Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1565/07.1BELSB
Secção:CT
Data do Acordão:01/14/2021
Relator:MÁRIO REBELO
Descritores:LIQUIDAÇÃO OFICIOSA DE IVA.
INEXISTÊNCIA DE OPERAÇÕES TRIBUTÁVEIS.
Sumário:1. As liquidações oficiosas de IVA, assentes em rendimento presumido, não podem subsistir quando o contribuinte ilide a presunção em que se fundaram, demonstrando a inexistência de factos, ou actos tributários relevantes.

2. Não havendo actividade nem operações tributáveis, não há IVA a liquidar e a entregar ao Estado.

3. Tais liquidações sempre seriam anuladas perante a regra de que «a dúvida fundada sobre a existência e quantificação do facto tributário implica a anulação do acto tributário.

Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência na Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:

RECORRENTE: FAZENDA PÚBLICA.
RECORRIDOS: HERDEIROS DE A........ E V.........
OBJECTO DO RECURSO:
Sentença proferida pelo MMº juiz do Tribunal Tributário de Lisboa que julgou procedente a impugnação deduzida por A........ e V........, revertidos no processo de execução fiscal n° ........ e apensos, para cobrança coerciva de IVA e Coimas fiscais, no montante total de €5.378,46, originariamente instaurada contra a sociedade D........, Lda.

A........, faleceu tendo sido julgados habilitados a sua viúva e filhos.

CONCLUSÕES DAS ALEGAÇÕES:

«I - Pelo elenco de razões acima arroladas, ressalve-se melhor entendimento, infere-se que a sentença proferida pelo Tribunal “ad quo” caiu em erro, porquanto os factos dados como provados devem levar, na aplicação devida das normas substantivas, a solução diversa da sentenciada e portanto conduziriam a uma decisão diferente da adoptada pelo Tribunal ad quo. Como tal, somos levados a concluir pela existência resulta de uma distorção na aplicação do direito de tal forma a que o decidido não corresponde à realidade normativa objecto de uma análise deficiente, levando a decisão recorrida a enfermar de error juris.
II - Nos presentes autos está em causa, as liquidações oficiosas de IVA, referentes aos anos de 1999, 2000 e 2001, no montante de € 5.378,46, em que o Tribunal ad quo considerou que a estando inactiva desde 1993, a tributação violava o principio pelo lucro real, sendo anuladas as liquidações.
III - A Fazenda não concorda com a posição da douta sentença do Tribunal ad quo porquanto as mesmas são devidas, uma vez que tendo sido a devedora originária notificada para substituir as mesmas, não o fez, pelo que consolidou aquele montante.
IV - A questão decidenda é saber se as liquidações oficiosas emitidas sem que houvesse rendimentos declarados, as mesmas são devidas ou não, face à notificação emitida e validamente notificada à devedora de que tinha 30 dias para substituir as liquidações oficiosas emitidas, sob pena de se consolidar aquele montante, na esfera jurídica da devedora.
V - Os impugnantes são revertidos, na qualidade de responsáveis subsidiários da sociedade D........ Lda, por dívidas de IVA relativas aos anos de 1999, 2000 e 2001, no montante de € 5.378,46, por não terem entregue as declarações a zeros.
VI - Ora, a devedora originária era uma sociedade comercial e como tal, a nível de obrigações declarativas teria de enviar a declaração periódica mesmo sem valores, ou seja, a zeros.
VII - Na verdade, os impugnantes enquanto gerentes da devedora originária cumpriram, ao entregar as declarações periódicas a zeros, só que, em 1999, 2000 e 2001 não as entregaram.
VIII - Esta declaração tem de ser entregue nos prazos fixados no n° 1, do art.°40, acompanhada do respectivo meio de pagamento, sempre que for o caso, nos termos do art.° 26, do CIVA (actuais art.°s 41° e 27°, respectivamente).
IX - Não procedendo os impugnantes à entrega das declarações referidas, está a Autoridade Tributária legalmente legitimada a lançar mão do disposto no art.° 83.°, do CIVA (actual 88.°), podendo as liquidações oficiosas ficar sem efeito se o sujeito passivo, dentro do prazo de 90 dias após notificação para pagamento, apresentar a declaração em falta, o que não ocorreu.
X - Alegam os impugnantes que a sociedade não tinha actividade desde 1993.
XI - Nos termos do disposto na al. a), do n.° 1, do art.° 28.°, do CIVA, para além da obrigação de pagamento do imposto, os sujeitos passivos referidos na al. a), do n.° 1, do art.° 2.°, são obrigados a “Entregar, segundo as modalidades e formas prescritas na lei, uma declaração de início, de alteração ou de cessação da sua actividade”.
XII - Nos termos do disposto no n.° 2, do art.° 160.°, do CSC, “a sociedade considera-se extinta, mesmo entre os sócios (...) pelo registo do encerramento da liquidação’’, sendo este que marca o termo da personalidade jurídica da sociedade.
XIII - Dos art.°s 32.° e 33.° do CIVA resulta que o legislador teve a preocupação de definir, através de uma enumeração de circunstâncias, o que se entende por cessação de actividade e quando é que esta se verifica.
XIV - E refere-se à cessação total, a qual implica o cancelamento do registo do sujeito passivo, e não a cessação parcial, que somente pode implicar a obrigação declarativa de apresentação de uma declaração de alterações.
XV - As diversas alíneas do n° 1 consagram, de forma taxativa, os factos cuja ocorrência coincide com a cessação da actividade do sujeito passivo.
XVI - Especificamente quanto à al. a) do n.° 1, deve concluir-se que a cessação de actividade, em virtude do período assinalado de dois anos sem prática de actividade pelo sujeito passivo, não reveste características oficiosas, assim não onerando a Administração Tributária.
XVII - Pelo contrário, levando em consideração o disposto no citado art.32.°, tal obrigação recai sobre o sujeito passivo (ou sobre os seus legais representantes no caso de pessoa colectiva).
XVIII - E saliente-se que durante o período de dois anos previsto na al. a) do n.° 1, o sujeito passivo continua obrigado à apresentação da declaração periódica, nos termos do então art.° 28.°, n.° 2 do CIVA (actual art.° 29.°, n.° 2), a qual subsiste mesmo não havendo, no período correspondente, operações tributáveis realizadas.
XIX - Assim, uma vez que desde 1999 a 2001, a devedora originária não procedeu à entrega das declarações periódicas de IVA, procedeu a AT, nos termos legais à elaboração das declarações oficiosas.
XX - Assim sendo, não entregando as declarações periódicas de IVA e incindindo o IVA em transacções comerciais, ficcionou-se que houve transacção, tendo sido emitidas as liquidações oficiosas que perfazem o montante total de € 5.378,46, nos termos do art.° 28.°, 40.° do CIVA.
XXI - Contudo, a douta sentença assim o não entendeu porquanto a sociedade estava inactiva desde 09/03/1993.
XXII - Ora, se estava inactiva, a devedora originária sabia, pois tinha entregue as declarações periódicas a zeros até ao 1.° trimestre de 1999, devendo ter continuado a faze-lo, mas não.
XXIII - Por outro lado, tal como cessou a actividade em 2001, poderia tê-lo feito em 1999, não o fazendo, as liquidações oficiosas, não tendo sido substituídas como o não foram, tornaram-se consolidadas na esfera jurídica da impugnante, sendo as mesmas devidas.
XXIV - E, no caso de inactividade da sociedade, esta já tinha conhecimento desde a data em que foi constituída que nunca laborou, pelo que poderia ter cessado, liquidado e dissolvido a mesma, o que não fez.
XXV - Com respeito à infracção do art.° 1.° do CIRC, a Fazenda dirá que não estamos no âmbito do IRC mas, sim, do IVA, sendo que este permite, tal como vimos, a emissão da declaração periódica a zeros e caso, não a tenham entregue, que seja emitida uma liquidação oficiosa com o montante do valor mínimo de volume de negócios que um sujeito passivo pode ter no regime normal, isto é, € 9.981, o qual corresponde a uma liquidação de IVA, referente ao ano de 2000 ou 2001, no montante de € 1.496,40, cada e para o ano de 1999, no montante de € 1.122,30, perfazendo o montante total de € 5.378,46.
XXVI - O princípio da tributação pelo lucro real consagrado no art.° 104.° da CRP, salvo melhor entendimento, deve interpretar-se “no sentido que as sociedades apenas devem ser tributadas quando têm rendimento e na exacta medida desse rendimento”. Este princípio tem plena aplicação em sede de IRC.
XXVII - O art.° 104.° da CRP consagra que “1. O imposto sobre o rendimento pessoal visa a diminuição das desigualdades e será único e progressivo, tendo em conta as necessidades e os rendimentos do agregado familiar.
2. A tributação das empresas incide fundamentalmente sobre o seu rendimento real.
3. A tributação do património deve contribuir para a igualdade entre os cidadãos.
4. A tributação do consumo visa adaptar a estrutura do consumo à evolução das necessidades do desenvolvimento económico e da justiça social, devendo onerar os consumos de luxo." (bold e sublinhado nosso)
XXVIII - No que concerne ao IVA, imposto sobre o consumo, uma vez que estamos perante um imposto com natureza diferente, foi notificada a devedora originária para entregar as declarações de substituição, não o tendo feito, no prazo concedido, de 30 dias, pelo que, só posteriormente a esta notificação é que a liquidação oficiosa foi emitida com a consequente instauração do processo executivo.
XXIX - Ora, assim sendo, as liquidações oficiosas de IVA não violam nenhum princípio consagrado constitucionalmente, sendo que o princípio da tributação pelo lucro real apenas tem plena aplicação no caso dos impostos sobre o rendimento.
XXX - Nos termos expostos, constata-se que a AT cumpriu com todas as formalidades, não havendo nem podendo ser imputado o vício que o Tribunal ad quo imputa, devendo a sentença ser revogada por outra, sob pena de ilegalidade por erro de julgamento.
Termos em que, concedendo-se provimento ao recurso, deve a decisão ser revogada e substituída por acórdão que declare a impugnação improcedente, com as devidas consequências legais.
PORÉM V. EX.AS DECIDINDO FARÃO A COSTUMADA JUSTIÇA

CONTRA-ALEGAÇÕES.
Os recorridos contra alegaram, concluindo o seguinte:
A. A Fazenda Pública apresentou, a 07.11.2018, alegações de recurso da decisão do Tribunal a quo de 12.09.2018, não se conformando com a mesma;
B. Nas alegações apresentadas, concluiu que ”A questão decidenda é saber se os impugnantes, como revertidos, deveriam ter entregue as declarações periódicas de IVA, para os anos de 1999, 2000 e 2001 e, no pressuposto que não deveriam ter entregue, então as liquidações oficiosas emitidas são ilegais, devendo ser anuladas.";
C. E que a ausência de apresentação das declarações periódicas de IVA por parte da sociedade comercial D........, Lda., com o contribuinte fiscal n.° ........, é ilegal;
D. No entanto, não concordam os ora Recorridos, Impugnantes nos autos acima identificados, com o pugnado pela Recorrente;
E. Desde logo, porque os actos de liquidação de que foram citados são ilegais;
F. Isto é, os referidos actos de liquidação são ilegais por "preterição de outras formalidades legais” nos termos do disposto no artigo 99.°, alínea d) do CPPT, uma vez que o montante de € 5.378,46 (cinco mil trezentos e setenta e oito euros e quarenta e seis cêntimos) apenas poderia ser imputado, em teoria, à - então - sociedade comercial D........, Lda., devedora original de tais quantias;
G. E nunca aos Impugnantes, que nunca deveriam ter sido citados nos termos do disposto no artigo 160.° do CPPT enquanto responsáveis subsidiários, por falta de exercício, na data dos factos, de gerência de facto;
H. Não tendo a Recorrente provado a existência da gerência, conforme era sua obrigação legal (art. 74.° LGT);
I. Concluindo-se pela ineficácia das notificações oficiosas de IVA quanto à devedora originária, preterição das formalidades essenciais aplicáveis à mesma, cfr. o disposto no artigo 99.°, alínea d) do CPPT;
J. Acresce que, os referidos actos de liquidação devem ainda ser declarados ilegais por "Errónea qualificação e quantificação dos rendimentos, lucros, valores patrimoniais e outros factos tributários”, cfr. o disposto no artigo 99.°, alínea a) do CCPT;
K. Porque, conforme demonstrado nos autos, a devedora originária nunca apresentou declarações trimestrais de IVA no decurso dos anos 1999, 2000 e 2001 porque não teve qualquer actividade durante os referidos anos (i.e., não tinha clientes nem fornecedores, deixou de possuir conta bancária e não facturou qualquer valor no referido período);
L. Ademais, a sociedade comercial foi dissolvida oficiosamente em 2008 (sem que nenhum credor, onde se inclui a Fazenda Pública, notificado para o efeito, tenha reclamado créditos);
M. Concluindo-se, assim, pela total inexistência, na prática, da referida sociedade comercial, motivo pelo qual não entregou as respectivas declarações (nem sequer tinha conhecimento se as mesmas estavam a ser entregues ou não, porque tal função estava atribuída à contabilista da empresa);
N. Não obstante o referido, não entendem os Recorridos o motivo pelo qual a Recorrente insiste no pagamento dos (alegados) valores, quando nunca seria tributado qualquer valor, mesmo que entregues as declarações de IVA, pois não existia lucro;
O. Pressuposto sem o qual não há tributação, cfr. resulta dos artigos 1.° do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas, artigo 4.°, n.° 1 do CIVA, e 104.°, n.° 4 da CRP;
P. No mesmo sentido vai a nossa Doutrina portuguesa, ao concluir que ”Sob pena de se violarem as características do imposto, para que se considere que existe uma prestação de serviços em sede de IVA deverá existir um serviço enquadrável numa atividade económica, deverá existir um consumo. (...) Uma prestação de serviços só é tributável se existir um nexo direto entre o serviço prestado e a contrapartida recebida (teoria das contraprestações recíprocas).”, in ”Código do IVA e RITI - Notas e Comentários", Coordenação e Organização: Clotilde Celorico Palma e António Carlos dos Santos, Almedina, 2014, página 67;
Q. Pelo que, a exigência do montante peticionado nos autos sempre contrariaria o Princípio do Lucro Real, expressamente previsto na CRP - e este Princípio aplica-se a todos os tipos de impostos;
R. E nem se refira que se aplica, no caso, o n.° 2 do artigo 104.° da CRP, como a Recorrente o veio fazer: conforme explicado pela Doutrina portuguesa, esta norma não contraria a aplicação do n.° 4 do artigo 104.° da CRP;
S. Mais, o n.° 2 do artigo 104.° da CRP pretende apenas ”contribuir para a "justiça social, devendo onerar os consumos de luxo". De facto, para ter em conta a justiça social, a tributação do consumo tanto pode desonerar o consumo de bens de primeira necessidade como agravar o consumo dos bens supérfluos ou de luxo, sendo esta uma imposição constitucional.", cfr. concluem J J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, in ”Constituição da República Portuguesa Anotada", Volume I, Coimbra Editora, 4.a Edição Revista, 2007, página 1101;
T. Nestes termos, deverão as referidas liquidações ser revogadas, porque ilegais nos termos do disposto na alínea a) do artigo 99.° do CPPT;
U. Por último, mesmo que assim não se conceda, o que por mera hipótese de raciocínio se concede, sempre os valores respeitantes aos actos de liquidação em análise se encontrariam, na presente data, prescritos;
V. Como concluem Alfredo José de Sousa e José da Silva Paixão, in "Código de Procedimento e de Processo Tribuário Comentado e Anotado", Almedina, 2000, página 228, ainda a propósito dos fundamentos de impugnação previstos no artigo 99.° do CPPT: "Os fundamentos discriminados nas alíneas deste preceito são meramente exemplificativos. Com efeito, constitui fundamento da liquidação judicial "qualquer ilegalidade" do acto tributário. (...) E o mesmo se passa com a ilegalidade concreta decorrente: (...) de esse facto ou situação estar prevista tipicamente, mas ocorrer ainda uma circunstância prevista igualmente na lei como impeditiva ou suspensiva de tal incidência";
W. Com efeito, dispõe o artigo 48.° da LGT que: "As dívidas tributárias prescrevem, salvo o disposto em lei especial, no prazo de oito anos contados, nos impostos periódicos, a partir do termo do ano em que se verificou o facto tributário e, nos impostos de obrigação única, a partir da data em que o facto tributário ocorreu, excepto no imposto sobre o valor acrescentado e nos impostos sobre o rendimento quando a tributação seja efectuada por retenção na fonte a título definitivo, caso em que aquele prazo se conta a partir do início do ano civil seguinte àquele em que se verificou, respectivamente, a exigibilidade do imposto ou o facto tributário.";
X. Pelo que se conclui que, em 2018, os valores (alegadamente) devidos em 1999, 2000 e 2001 sempre se considerariam, mesmo que devidos em tese, prescritos;
Y. Nestes termos, deverão os valores referentes ao processo de execução em análise ser declarados prescritos, cfr. o disposto no artigo 48.° da LGT, mantendo-se, consequentemente, o decidido na sentença do Tribunal a quo. 

Por todo o exposto, deve o recurso apresentado pela Recorrente ser declarado
Totalmente improcedente, mantendo a decisão do Tribunal a quo e, consequentemente, absolvendo os Impugnantes da execução fiscal acima identificada e julgando procedente a impugnação judicial.

PARECER DO MINISTÉRIO PÚBLICO.

O Exmo. Procurador-Geral Adjunto neste TCA emitiu esclarecido parecer pronunciando-se pela improcedência do recurso.

II QUESTÕES A APRECIAR.

O objecto do presente recurso, delimitado pelas conclusões formuladas (artigos 635º/3-4 e 639º/1-3, ambos do Código de Processo Civil, «ex vi» do artº 281º CPPT), salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 608º/ 2, in fine), consiste em saber se a sentença errou de facto e de direito ao julgar procedente a impugnação com fundamento em inexistência de facto tributário.

III FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.

A sentença fixou os seguintes factos provados e respetiva motivação:

A) A sociedade D........, Lda iniciou a sua actividade em 09-03-1993;

B) Desde a data da sua constituição e até ao 1° trimestre de 1999 a sociedade entregou todas as declarações periódicas de IVA a zeros e as declarações Modelo 22 de IRC;

C) A partir do 2° trimestre de 1999 e até 2001 (ano da cessação da sua actividade) a sociedade deixou de entregar as declarações periódicas de IVA;

D) A Administração Tributária (AT) efectuou as liquidações oficiosas de IVA relativas aos 1°, 2°, 3° e 4° trimestres dos exercícios de 1999, 2000 e 2001 à sociedade identificada em A) ao abrigo do art° 83°do CIVA (fls 111 do PAT);

E) Foram ainda liquidadas coimas fiscais relativas aos anos de 1999, 2000 e 2001, pela falta de apresentação das declarações (PEF);

F) As notificações das liquidações foram enviadas à sociedade identificada em A) para a morada sita na Rua……….., n°….., 1° esq°, em Lisboa (fls do PAT);

G) A dívida exequenda relativa a IVA e coimas Fiscais que totalizam €5.378,46 foram revertidas contra os ora impugnantes por despacho de 22 de Novembro de 2006 (fls do PAT);

H) Nos anos de 1999, 2000 e 2001 a sociedade identificada em A) não teve qualquer actividade (inquirição da testemunha).

A convicção do tribunal formou-se no teor dos documentos identificados em cada pontos dos factos provados e na inquirição da testemunha.

FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.
O Impugnante (e herdeiros habilitados) deduziu impugnação judicial contra a liquidação oficiosa de IVA dos anos 1999 a 2001 alegando, em síntese, que a devedora original embora constituída em 1993 não teve qualquer actividade desde então. Acrescentou que os Impugnantes não receberam quaisquer notificações para apresentação das DPs ao abrigo do disposto no art.º 83º-A do CIVA.

A MMª juiz julgou a impugnação procedente com a seguinte reflexão:
Como resulta da alegação da AT as liquidações oficiosas foram efectuadas ao abrigo dos art°s 83° e 83°-A, ambos do CIVA e que, "não conhecendo qualquer elemento que permitiam aferir quais os valores tributáveis com referência aos períodos em questão, uma vez que tanto em sede de IVA como de IRC, desde o inicio da sua actividade a sociedade sempre apresentou declarações a zeros, o seu enquadramento em termos de IVA foi efectuado no regime normal e considerou como elementos base das liquidações, o montante mínimo de volume de negócios que um sujeito passivo pode ter no regime normal, ou seja, €9.981,00", como resulta da alegação na contestação.
Como se verifica as liquidações oficiosas em causa foram efectuadas com fundamentos nos art°s 83° e 83°-A do CIVA, por falta de apresentação das declarações, uma vez que não foi feita a declaração formal de cessação em sede de IVA, como é facto incontroverso.
Com efeito, a falta de cumprimento das obrigações declarativas por parte do contribuinte impõe assim à administração o dever funcional de proceder a uma liquidação oficiosa, cujo objectivo será também prevenir a caducidade do direito à liquidação. (Neste sentido vide Rui Duarte Morais, Apontamentos ao IRC, ed. Almedina, pag. 208).
Assim, e verificando-se os pressupostos legais para a liquidação oficiosa, a Administração Tributária actuou de acordo com a lei, nesta parte.
Porém, esse facto, não é impeditivo para os impugnantes usarem da faculdade de demonstrar que a matéria tributável apurada pela Administração Tributária, nos termos estatuídos na lei, não corresponde à realidade ou inexiste, de todo.
No caso em apreço decorre da al H) do probatório os impugnantes cumpriram esse ónus (artigo 74.° da LGT), já que, como ficou ali exarado, a sociedade não teve qualquer actividade, nos anos de 1999, 2000 e 2001, a que se reportam as liquidações, ora impugnadas. Aliás como se verifica da al B) do probatório a sociedade desde a data da sua constituição não teve qualquer actividade tendo entregue as declarações, sempre que o fez, a zeros.
Ora, como vem afirmando a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, inexistindo facto tributário em resultado da inactividade do sujeito passivo e consequente não demonstração da obtenção de receitas no ano a que respeita a tributação, não se verifica o pressuposto do imposto (artigo 1.° do CIRC) - cf. acórdãos de 05.07.2012, recuso 474/11, 02.03.2011, recurso 1039/10, e de 04.11.2009, recurso 533/09, todos in www.dgsi.pt.
Assim sendo as liquidações oficiosas (e as coimas fiscais) não se podem manter na ordem jurídica, sob pena de violação do princípio da tributação pelo lucro real consagrado no artigo 104.° da Constituição da República Portuguesa, interpretado no sentido de que as sociedades apenas devem ser tributadas quando têm rendimento e na exacta medida desse rendimento.
Pelo que, devem as liquidações oficiosas e as coimas fiscais serem anuladas, por ilegais, pelos motivos expostos, não se conhecendo qualquer outra questão invocada pelos impugnantes”.

O Exmo. Representante da Fazenda Pública não se conforma. Defende que a impugnação deveria improceder pois tendo sido remetidas notificações à devedora originária para no prazo de 30 dias substituir as liquidações oficiosas emitidas, sob pena de se consolidar aquele montante na esfera jurídica da devedora, não o fez.
Embora regularmente notificada, a devedora originária não procedeu à entrega das DPs de IVA nem promoveu a cessação da actividade.
Portanto, as liquidações oficiosas consolidaram-se na esfera jurídica da devedora originária.
Por outro lado, o princípio da tributação pelo lucro real apenas se aplica em sede de IRC, e não já no âmbito do IVA, que é um imposto sobre o consumo, abrangido pelo n.º 4 do art.º 104º da Constituição da República Portuguesa.

A AT tem razão quanto à especificidade constitucional das liquidações oficiosas para efeitos de IVA, quando está em causa a falta de exercício de atividade, por não se ter violado o princípio da tributação pelo rendimento real consagrado no art. 104º/2 da Constituição, mas sim o n.º 4 do mesmo preceito que dispõe sobre a tributação do consumo.
Mas quanto ao mais não lhe assiste razão. Vejamos porquê.

Comecemos pela “consolidação” das liquidações oficiosas na esfera jurídica do contribuinte.
Na tese da Recorrente, uma vez que a devedora originária, tendo sido notificada, não apresentou as DPs de substituição, nem procedeu à cessação da atividade da Impugnante, então operou-se a consolidação na sua esfera jurídica das liquidações oficiosas e a sua impugnação estaria votada ao insucesso.

Convém referir que, de facto, o n.º 2 do art. 90º do CIVA (numeração e redação aplicáveis) referia expressamente os recursos hierárquicos, as reclamações e as impugnações não serão admitidas se as liquidações forem ainda suscetíveis de correção nos termos do art.º 71º, ou se não tiver sido entregue a declaração periódica cuja falta originou a liquidação prevista no art. 83º.

No entanto, a interpretação deste preceito não tem o alcance que a Recorrente lhe confere. O STA já se pronunciou sobre a questão, no acórdão de 2 de Julho de 2014, proferido no processo n.º 1074/13 disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/8bb2cc6b780a52a080257d190050393f?OpenDocument.), debruçando-se sobre o art. 97º/2 do CIVA, que no essencial corresponde ao n.º 2 do art.º 90º acima transcrito.

Disse o STA o seguinte:
«O art. 97.º do CIVA (na numeração introduzida pelo Dec. Lei n.º 102/2008, de 20/6), integra-se no Capítulo VII, que tem por título «Garantias dos sujeitos passivos», e sob a epígrafe de «Recurso hierárquico, reclamação e impugnação», estabelece no seu n.º 2 que «Os recursos hierárquicos, as reclamações e as impugnações não são admitidos se as liquidações forem ainda susceptíveis de correcção nos termos do artigo 78.º, ou se não tiver sido entregue a declaração periódica cuja falta originou a liquidação prevista no artigo 88.º».
Da leitura desta norma retira-se que é vedado ao sujeito passivo reclamar ou impugnar a liquidação se esta for ainda susceptível de correcção nos termos definidos no art. 78.º, ou se o sujeito passivo não tiver procedido à entrega da declaração periódica cuja falta deu causa à liquidação a que se refere o art. 88º.
A questão […] prende-se, assim, com a interpretação do art. 97.º, n.º 2, do CIVA, tendo em conta o regime da liquidação oficiosa previsto no art. 88.º do mesmo diploma legal.
Ora, no que aqui interessa, o art. 88.º do CIVA diz o seguinte:
Artigo 88.º - Liquidação oficiosa do imposto pelos serviços centrais
1- Se a declaração periódica prevista no artigo 40.º não for apresentada, a Direcção-Geral dos Impostos procede à liquidação oficiosa do imposto, com base nos elementos de que disponha.
2 - O imposto liquidado nos termos do número anterior deve ser pago nos locais de cobrança legalmente autorizados, no prazo mencionado na notificação, efectuada nos termos do Código de Procedimento e de Processo Tributário, o qual não pode ser inferior a 90 dias contados desde o seu envio.
3 - (…)
4 - A liquidação referida no n.º 1 fica sem efeito nos seguintes casos:
a) Se o sujeito passivo, dentro do prazo referido no n.º 2, apresentar a declaração em falta, sem prejuízo da penalidade que ao caso couber;
(...)
Significa isto, em suma, que nos termos do art. 88.º do CIVA, ante a notificação da liquidação oficiosa, o sujeito passivo dispõe de um prazo de 90 dias para expressar a sua discordância quanto ao teor da liquidação oficiosa efectuada pela Administração Tributária e para a eliminar pura e simplesmente da ordem jurídica mediante a entrega das declarações que omitira com referência aos períodos ali considerados.
Prevendo a lei este instrumento administrativo expedito, eficaz e eficiente para o sujeito passivo destruir a liquidação levada a cabo pela Administração Tributária, compreende-se que lhe denegue a possibilidade de prosseguir o mesmo objectivo através de outros meios ou instrumentos impugnatórios, como a reclamação graciosa ou a impugnação judicial. Como se compreende igualmente que, ante a inércia do sujeito passivo, a liquidação oficiosa se converta em definitiva decorrido que seja o prazo para apresentação da declaração em falta.
Nesse contexto, o art. 97.º, n.º 2, do CIVA não padecerá da inconstitucionalidade material […], na medida em que a lei viabiliza, sem tornar oneroso, o exercício do direito de contrariar e derrubar o acto de liquidação oficioso no que se refere ao seu quantum».
No entanto, no caso sub judice o Impugnante não questiona o quantum da liquidação, entendida esta em sentido estrito, como acto de apuramento do imposto devido por aplicação de uma taxa pré-definida na lei à matéria tributável.
Compulsada a petição inicial, verificamos que os vícios assacados às liquidações impugnadas – bem identificados pelo Impugnante – são: i) a inexistência de factos tributários (arts. 6.º a 9.º); ii) a preterição de formalidade essencial por omissão do dever de audiência prévia às liquidações (arts. 10.º a 13.º)
Parafraseando o citado acórdão de 2 de Julho de 2014, os vícios invocados pelo Impugnante na impugnação judicial não contendem com o apuramento ou quantificação do tributo e que o sujeito passivo poderia ter ultrapassado pela via da entrega das declarações consideradas omitidas, mas com a possibilidade de as liquidações oficiosas serem efectuadas, com a existência de factos tributários e com a preterição da audiência prévia, no procedimento de liquidação oficiosa.
Ora, como resulta do que ficou já dito, a apresentação da declaração de substituição pelo sujeito passivo constitui um modo de intervenção do mesmo para evitar que a liquidação oficiosa feita pela AT se consolide quanto ao seu montante e venha precludir o direito do contribuinte o impugnar contenciosamente. Ou seja, a condição de impugnabilidade prevista no n.º 2 do art. 97.º do CIVA apenas faz sentido quando a discordância do sujeito passivo com a liquidação oficiosa se refira ao quantum da obrigação tributária, uma vez que o art. 88.º do CIVA lhe concede um meio administrativo simples e expedito de eliminar essa liquidação oficiosa da ordem jurídica, procedendo à entrega da declaração (denominada, expressivamente, de substituição), mas já não quando o fundamento da impugnação se refira ao próprio an da obrigação tributária. Não teria sentido impor ao contribuinte que pretende impugnar a liquidação oficiosa efectuada ao abrigo do art. 88.º do CIVA por considerar que a mesma não deveria ter lugar (designadamente por entender que inexistem factos tributários e que, em consequência da sua inactividade, deixou de ser sujeito passivo e de estar obrigado à apresentação de declarações periódicas) a necessidade de apresentar declaração de substituição, ainda que “a zeros”. Como bem argumenta o Impugnante, seria inútil e, para além do mais, contenderia com a sua tese de que a sociedade não estava sujeito à obrigação de apresentação das declarações periódicas para efeitos de IVA, porque deixara de ser sujeito passivo de imposto em virtude do período por que se manteve inactiva.
A exigência de apresentação das declarações de substituição como condição de abertura da via contenciosa prevista no n.º 2 do art. 97.º do CIVA deve ser interpretada restritivamente, reconduzindo o alcance da norma aos limites que decorrem da sua razão de ser ( Às vezes, «o intérprete chega à conclusão de que o legislador adoptou um texto que atraiçoa o seu pensamento, na medida em que diz mais do que aquilo que pretendia dizer. Também aqui a ratio legis terá uma palavra decisiva. O intérprete não deve deixar-se arrastar pelo alcance aparente do texto, mas deve restringir este em termos de o tornar compatível com o pensamento legislativo, isto é, com aquela ratio. O argumento em que assenta este tipo de interpretação costuma ser assim expresso: cessante ratione legis cessat eius dispositio (lá onde termina a razão de ser da lei termina o seu alcance)» (BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1983, pág. 186).), o que conduz ao afastamento dessa exigência em casos, como o dos autos, em que a discordância do Impugnante com a liquidação oficiosa não se manifesta em relação ao montante da liquidação, mas à prática do acto de liquidação em si. Aliás, aconselha-se a maior prudência na interpretação das regras, como a do n.º 2 do art. 97.º do CIVA, que estabelecem restrições no acesso dos contribuintes aos meios de controlo contenciosos, garantido pelo art. 268.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa («É garantido aos administrados tutela jurisdicional efectiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, incluindo, nomeadamente, o reconhecimento desses direitos ou interesses, a impugnação de quaisquer actos administrativos que os lesem, independentemente da sua forma, a determinação da prática de actos administrativos legalmente devidos e a adopção de medidas cautelares adequadas».).
A sentença recorrida, que interpretou a referida norma com um sentido mais abrangente, eventualmente mais chegado à letra da lei, não pode manter-se, antes devendo o Tribunal de 1.ª instância prosseguir com a apreciação das questões suscitadas pelo Impugnante, se a tal nada mais obstar”.

Ora, no caso dos autos, os Impugnantes não questionam a quantificação mas sim a própria liquidação que consideram sem fundamento. Por isso, não tem aplicação a condição de impugnabilidade prevista no n.º 2 do art. 90º CIVA acima transcrito.

Ultrapassada esta questão, sabemos que, no caso em exame, a AT perante a inércia declarativa do contribuinte emitiu a liquidação oficiosa relativa aos exercícios em causa (1999 a 2001), tendo por base o disposto no artigo 83º do CIVA.

Contudo, estas liquidações oficiosas, assentes em rendimento presumido, não podem persistir quando o contribuinte ilide a presunção em que se fundaram, demonstrando a inexistência de factos, ou actos tributários relevantes. Não havendo actividade nem operações tributáveis, não há qualquer IVA a liquidar e a entregar ao Estado. Isto por um lado.

Por outro, as liquidações sempre seriam anuladas perante a regra de que «a dúvida fundada sobre a existência e quantificação do facto tributário implica a anulação do acto tributário» (artigo 100.º/1, do CPPT).

No caso, provou-se que não existiu qualquer atividade nos anos em causa (alínea H) pelo que se deve considerar ilidida a presunção de existência de operações sujeitas a IVA não podendo obstar a tal elisão o facto de não se ter efetuado a cessação da devedora originária.

Ou seja, não havendo factos nem operações tributáveis não há qualquer imposto a liquidar e a exigir ao sujeito passivo.

Além disso, havendo fundadas dúvidas sobre a existência e quantificação do facto tributário, que não foram superadas pela administração tributária a quem compete o ónus da demonstração do direito que se arroga (artigo 74.º/1, da LGT), deve o acto de liquidação em apreço ser anulado (artigo 100.º/1 do CPPT).

Concluímos assim, que a sentença recorrida não incorreu em erro, devendo ser confirmada com a presenta fundamentação, improcedendo todas as presentes conclusões de recurso

V DECISÃO.

Face ao exposto, acordam, em conferência, os juízes da segunda sub-secção de contencioso tributário deste Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso e confirmar a sentença recorrida, com a presente fundamentação.

Custas pela Recorrente

Lisboa, 14 de janeiro de 2021.


(Mário Rebelo)


[Nos termos do disposto no art.º 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13 de março, aditado pelo art.º 3.º do DL n.º 20/2020, de 01 de maio, o relator consigna e atesta que têm voto de conformidade as Exmas. Senhoras Desembargadoras Patrícia Manuel Pires e Susana Barreto que integram a presente formação de julgamento.]