Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:249/18.0BELRS
Secção:CT
Data do Acordão:04/29/2021
Relator:CATARINA ALMEIDA E SOUSA
Descritores:NOTIFICAÇÃO/ ARTIGO 105º, Nº4, ALÍNEA B) DO RGIT
INQUÉRITO CRIMINAL
Sumário:I - A notificação efectuada ao abrigo do artigo 105º, nº4, alínea b) do RGIT, embora efectuada pelos competentes serviços da Segurança Social, inclui-se e faz parte do processo crime, valendo apenas para os efeitos aí previstos.
II - Essa notificação não corresponde ao apuramento/ liquidação de imposto cuja validade seja da competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais dirimir, através da impugnação judicial.
III - O artigo 4º, nº 3 do ETAF exclui expressamente do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto a impugnação de actos relativos ao inquérito e instrução criminais, ao exercício da acção penal e à execução das respetivas decisões, como é o caso que aqui nos ocupa.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os Juízes que compõem a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul

J..., notificado da decisão sumária proferida pela ora Relatora, ao abrigo do disposto no artigo 656º do CPC, com respeito ao recurso jurisdicional interposto da sentença proferida pelo Tribunal Tributário de Lisboa que julgou verificada a excepção de incompetência em razão da matéria, para conhecer da presente impugnação, veio reclamar para a conferência de tal decisão, nos termos do disposto no artigo 652º, nº 3 do CPC, pedindo que sobre a decisão proferida recaia um acórdão.

Notificada a parte contrária, a mesma nada disse.


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O Exmo. Magistrado do Ministério Público foi notificado, não se tendo pronunciado sobre a reclamação apresentada.

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Colhidos os vistos, vêm os autos à conferência.

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O instituto da reclamação para a conferência, actualmente previsto no artigo 652º, nº 3, do CPC, fundamenta a sua existência no carácter de tribunal colectivo que revestem os Tribunais Superiores, nos quais a regra é a decisão judicial demandar a intervenção de três juízes, os quais constituem a conferência, e o mínimo de dois votos conformes.

Sempre que a parte se sinta prejudicada por um despacho do relator, que não seja de mero expediente, pode dele reclamar para a conferência. O que se visa com a reclamação é, afinal, a substituição do órgão excepcional (o relator) pelo órgão normal (a conferência como tribunal colectivo) para proferir determinada decisão.

Vejamos, então.

É o seguinte o teor da decisão sumária reclamada:

J..., vem recorrer para este Tribunal Central Administrativo, da decisão da Mma. Juíza do Tribunal Tributário de Lisboa que julgou verificada a excepção de incompetência em razão da matéria, para conhecer da presente impugnação.

Diga-se, desde já, que, como consta sumariado na decisão recorrida, o Recorrente veio, ao abrigo do disposto nos artigos 99º e seguintes do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), impugnar judicialmente a notificação efectuada ao abrigo do disposto no artigo 105º, nº 4, alínea b), do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), datada de 11 de Dezembro de 2017, emitida pelo Instituto da Segurança Social, IP – Núcleo de Investigação Criminal, referente a dívida no montante de € 107.104,67, respeitante a cotizações retidas e não entregues àquela entidade.

Alegou, para tanto, que a notificação efectuada não reflecte a verdade material dos valores concretamente em dívida, padecendo de errónea quantificação do facto tributário, porquanto: os montantes referentes aos meses de Fevereiro e Março 2014 já se encontravam liquidados; as cotizações respeitantes ao período de Abril de 2010 a Outubro de 2012 encontram-se prescritas; quanto aos montantes respeitantes ao período de Novembro de 2012 a Março de 2014, foi efectuado o pagamento voluntário; estão a ser cumpridos dois planos prestacionais pendentes.

Tenha-se presente que pediu, a final, a declaração de nulidade da notificação em causa e, bem assim, o reconhecimento da prescrição das dívidas de cotizações referentes aos períodos de abril de 2010 a outubro de 2012.

Vejamos, então, os termos em que foi concluído o recurso jurisdicional que nos vem dirigido:

«A) A douta sentença que aqui se recorre considerou que, "Com efeito, a notificação em causa não encerra em si qualquer acto administrativo ou qualquer acto de liquidação de impostos/contribuições, antes se tratando de um acto instrumental de inquérito criminal, necessário à comprovação da existência ou não de crime (…)."

B) Acrescentando ainda a douta sentença que "Com efeito, considerando o Impugnante que tem a sua situação contributiva regularizada - por pagamento, prescrição, cumprimento de plano prestacional-, não preenchendo os pressupostos do tipo, tal prova deverá ser efectuada no âmbito do processo-crime, eventualmente em sede de instrução. Não será no âmbito de um processo do foro fiscal, onde seja pedida a nulidade de uma notificação, que se devem apreciar os pressupostos do tipo e as condições de punibilidade do crime."

C) Ora, não pode o RECORRENTE conformar-se com tal sentença.

D) Pois que, o RECORRENTE foi notificado nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 105° n°4 alínea b) do RGIT, e consecutivamente constituído arguido no âmbito do processo de inquérito n°6246/17.5T9LSB, na qualidade - de responsável solidário e subsidiário da sociedade por quotas, denominada "Restaurante J..., Lda", no passado dia 11 de dezembro de 2017.

E) Na notificação em causa, é solicitado ao RECORRENTE o pagamento voluntário e no prazo de 30 dias do montante de €107,104,67 (cento e sete mil, cento e quatro euros e sessenta e sete cêntimos).

F) Acresce que, a notificação em análise, estabelece o prazo máximo de 30 dias para pagamento do montante total constante da mesma, acrescido dos respectivos juros moratórios e custas processuais, sob pena de prosseguimento do procedimento criminal.

G) Sucede que, a notificação aqui em apreço, enferma de várias irregularidades, pelo que não pode produzir quaisquer efeitos.

H) Pois que, na notificação efetuada Ao RECORRENTE, constam os montantes respeitantes às cotizações desde o mês de abril de 2010 a março de 2014.

I) Ora, antes de mais urge esclarecer que, na data em que foi efetuada a notificação impugnada nos presentes autos, os montantes respeitantes aos meses de fevereiro e março de 2014, já se encontravam liquidados, bem como o mês de junho de 2012 e janeiro de 2011.

J) Desta forma, a notificação efetuada não reflecte a verdade material dos valores concretamente em dívida, razão pela qual, e só por si, a torna invalidada e consequentemente ineficaz.

K) Para mais, e no que concerne às cotizações respeitantes aos períodos de abril de 2010 a outubro de 2012, cuja exigência de pagamento é imputada ao RECORRENTE a dívida inerente aos referidos períodos encontra-se prescrita.

L) Pois que, o prazo de prescrição de dívidas à Segurança Social é, em regra de cinco anos.

M) Logo, e reconhecendo a prescrição das dívidas correspondentes aos períodos de abril de 2010 a outubro de 2012, cujo reconhecimento aqui mui doutamente se solicita, estamos, sem margem de dúvida, perante uma errónea quantificação do facto tributário.

N) Efetivamente, as dívidas relativas a contribuições e cotizações bem como os respetivos juros de mora e outros montantes que sejam exigidos peia Segurança Social prescrevem no prazo de 5 (cinco) anos.

O) Este prazo começa a contar a partir da data em que a dívida se torna vencida, ou seja, a partir do momento em que a dívida deveria ter sido paga.

P) A prescrição de dívidas à Segurança Social, tal como a prescrição em geral, tem como efeito ou consequência, o facto de ela deixar de ser exigível.

Q) Ou seja, após a prescrição, pode o devedor - empresa ou pessoa singular - deixar de pagar a dívida sem que daí decorram quaisquer consequências negativas ou sanções para a sua esfera jurídica patrimonial ou pessoal.

R) Deste modo, a prescrição de dívidas à Segurança Social é uma causa de extinção das obrigações contributivas, que permite ao devedor a defesa dos seus direitos e interesses legítimos contra a actuação (por vezes abusiva) da Administração Pública.

S) Estatuí o artigo 187° do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdêncial de Segurança Social, sob a epígrafe "Prescrição da obrigação de pagamento à Segurança Social", que; "1- A obrigação do pagamento das contribuições e das quotizações, respetivos juros de mora e outros valores devidos à Segurança Social, no âmbito da relação jurídico- contributiva, prescreve no prazo de cinco anos a contar da data em que aquela obrigação deveria ter sido cumprida. 2- O prazo de prescrição interrompe-se pela ocorrência de qualquer diligência administrativa realizada, da qual tenha sido dado conhecimento ao responsável pelo pagamento, conducente à liquidação ou à cobrança da dívida e pela apresentação de requerimento de procedimento extrajudicial de conciliação. 3- O prazo de prescrição suspende-se nos termos previstos no presente Código e na lei geral."

T) Assim, e nos termos do supra disposto, as dívidas cujo pagamento é exigido ao aqui Autor, encontram-se prescritas.

U) A verdade é que estas obrigações fiscais, subjacentes à notificação efetuada encontram-se já prescritas, facto que impõe, desde já, a anulação da notificação efetuada nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 105° n°4 alínea b) do RGIT.

V) Mais, ao não reconhecer a preterição acima alegada e ao efectuar a notificação em causa nos presentes autos, o instituto da Segurança Social preteriu as formalidades legais a que estava obrigada.

W) Dispõe o artigo 60° n° 1 da Lei de Bases do Sistema da Segurança Social que "as quotizações e as contribuições não pagas, bem como outros montantes devidos, são objeto de cobrança coerciva nos termos gerais."

X) Por seu turno, dispõe o n° 3 daquele normativo legal, que " a obrigação do pagamento das quotizações e das contribuições prescreve no prazo dê cinco anos a contar da data em que aquela obrigação deveria ter sido cumprida.”

Y) Dito isto, cumpre referir novamente que o aqui Autor foi notificado para pagamento voluntário dos montantes supra referidos em 11 de dezembro de 2017, momento que interrompe o prazo de cobrança das dívidas subjacentes aos presentes autos (artigo 60° n° 4 da Lei de Bases do Sistema Contributivo da Segurança Social).

Z) Sucede que, até esse momento, as dividas á Segurança Social, acima descritas estavam já prescritas.

AA) Prescrição cujo reconhecimento, desde já, se solicita. Mais solicitando, que seja decretada a prescrição dos montantes respeitantes aos períodos de abril de 2010 a outubro de 2012.

BB) No que concerne, aos restantes montantes objecto da notificação, isto é, de novembro de 2012 a janeiro de 2014 (em virtude do fevereiro e março de 2014 já se encontrarem liquidados), reconhece o aqui RECORRENTE a sua responsabilidade.

CC) Razão pela qual o mesmo procedeu ao seu pagamento voluntário, e dentro do prazo legai estabelecido na notificação aqui em causa, de 30 dias.

DD) Assim, o montante total dos valores em dívida e que poderiam ser imputados ao aqui RECORRENTE, totalizam o valor de €37.462,94 (trinta e sete mil, quatrocentos e sessenta e dois euros e noventa e quatro cêntimos), e cuja obrigação foi integralmente cumprida pelo mesmo.

EE) Porém, a notificação efetuada pela Segurança Social, solicita o pagamento de um montante de mais de €69,641,73 (sessenta e nove mil, seiscentos e quarenta e um euros e setenta e três cêntimos), de dívida prescrita, o que não pode de todo, suceder.

FF) Acresce ainda, que a Segurança Social, jamais notificou o RECORRENTE de uma eventual correção. De facto, o Instituto da Segurança Social manteve o seu ilegal propósito de cobrar ao aqui RECORRENTE a quantia de €107,10467 (cento e sete mil, cento e quatro euros e sessenta e sete cêntimos) não admitindo um pagamento inferior a este valor.

GG) Daí o interesse do RECORRENTE em demandar, e consequentemente, a sua legitimidade processual material nos termos do disposto no artigo 55° n° 1 alínea a) do Código de Procedimento Administrativo (CPA).

HH) Mais, os montantes, em causa, encontram-se a ser liquidados através de dois planos prestacionais, que o aqui RECORRENTE requereu a Segurança Social, planos prestacionais por reversão, que foram os dois, efectivamente deferidos em março de 2017, pelo instituto da Segurança Saciai, e cujas prestações se encontram a ser integralmente cumpridas.

II) Ora, desta forma, estando a dívida em causa, constante da notificação, a ser liquidada em plano prestacional, e que nos termos do disposto no artigo 208° n° 2 alínea a) do Código Contributivo da Segurança Social, a situação do devedor originário perante o Instituto de Segurança Social, considera-se como estando REGULARIZADA.

JJ) Mais, determina o artigo 194° n° 1 do diploma legal acima mencionado que "Sem prejuízo do disposto no artigo 885° do Código de Processo Civil, a decisão de autorização do pagamento da dívida em prestações e a decisão de resolução do respetivo acordo determinam, respetivamente, a suspensão e o prosseguimento da instância de processo executivo pendente."

KK) Desta forma, e se o deferimento do plano prestacional suspende o prosseguimento da instância do processo executivo, como é possível efetuar a notificação a que alude o artigo 105° n°4 alínea b) do RGJT, e exigir o pagamento voluntário e no prazo de 30 dias.

LL) Ora, o crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, consuma-se com o não cumprimento de um dever traduzido- na não - entrega, dolosa, do montante das contribuições deduzidas do valor das remunerações devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais, no prazo da entrega fixado para cada prestação.

MM) Assim, o abuso de confiança contra a Segurança Social é um crime de omissão pura, pese embora exija num primeiro momento um facere, traduzido na dedução e retenção das contribuições, fica perfeito quando tais elementos se verificam, pois em tal caso, foi colocada em risco o bem protegido pelo tipo e não perde essa perfeição pela necessidade, de coexistência das chamadas condições objetivas de punibilidade, mais concretamente do decurso do prazo de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação e do prazo de 30 dias após a comunicação para o efeito, mencionados, respetivamente nas alíneas a) e b) do n° 4 do artigo 105° do RGIT, aplicável ao crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, por força da remissão do artigo 107° n°2 do mesmo diploma legal.

NN) As condições objetivas de punibilidade são elementos situados fora da definição do crime, cuja presença constitui um pressuposto para que a ação antijuridica tenha consequências penais.

OO) Não integram a tipicidade, a ilicitude ou a culpa, pelo que a notificação a que alude a alínea b) do n° A do artigo 105° do RGIT, tem, ou deve ter, lugar em momento que lógica e cronologicamente prévio à existência do facto criminoso.

PP) A notificação em questão, não é um ato processual penal, mas sim um ato administrativo, que incumbe à administração tributária.

QQ) Desta forma, e por tudo supra explanado, a notificação nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 105° n° 4 alínea b) do RGIT, encontra-se ferida de nulidade nos termos do disposto no artigo 161° nº 5 alínea d), k) e l)do Código de Procedimento Administrativo (CPA).

RR) "A nulidade constitui a forma mais grave de invalidade, torna o acto totalmente ineficaz, é insusceptível de sanação, é impugnável a todo o tempo perante os tribunais, sendo que este conhecimento judicial concorre com o conhecimento administrativo", Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, Processo; 00007/09.2BEMDI, de 09/06/2010, disponível em http://www.dgsi.pt.

SS) Desta forma, o ato de notificação efetuado, ora impugnado, é nulo, em virtude de criar uma obrigação pecuniária, não prevista para o aqui Autor, pois que parte dos valores solicitados já se encontram prescritos.

TT) Encontra-se ainda ferida de nulidade, na medida em que o Instituto da Segurança Social, preteriu total o procedimento a que estava legalmente obrigada, isto é, o apuramento dos montantes concretamente em dívida.

UU) Por fim, é ainda nula, uma vez que ao ser mantido na ordem jurídica, ofende indubitavelmente um direito fundamental, o direito de ser responsabilizado pelo pagamento das dívidas que se encontram efectivamente em dívida.

W) Pelo que, tal ato não pode ser mantido na ordem jurídica, tendo de ser declarado nulo, com todas as cominações legais, que dai advenham.

WW) Sob pena, de a manutenção na ordem jurídica do ato nulo praticado, e da exigência de pagamento de montantes que não são devidos, se violar os princípios estatuídos no artigo 9°, 13°, 18 e 20° da Constituição da República Portuguesa.

XX) Ainda assim, se não for este o entendimento de V/ Exas,, o que não se compreende, e apenas se concede por mero dever de patrocínio, o aio praticado sempre será anulável nos termos do disposto no artigo 163° n° 1 do CPA.

YY) Pois que "são anuláveis os atos administrativos praticados com ofensa dos princípios ou outras normas jurídicas aplicáveis, para cuja violação se não preveja outra sanção."

ZZ) Para mais, nos termos do n° 3 do artigo 212° da Constituição da República Portuguesa (CRP) "compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das apões e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais."

AAA) Este princípio encontra-se ainda reafirmado no n° 1 do artigo 1° do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais. Logo, no caso aqui em apreço o Tribunal Tributário de Lisboa, é formal e territorialmente para julgar os presentes autos.

BBB) Pelo que andou mal o Tribunal A quo, ao considerar nos presentes autos verificada a exceção de incompetência absolutamente do Tribunal.

NESTES TERMOS E NOS MASS DE DIREITO SEMPRE COM O MUI DOUTO SUPRIMENTO DE V/ EXAS, SEVE O PRESENTE RECURSO SER JULGADO PROCEDENTE POR PROVADO E CONSEQUENTEMENTE SEREM DECLARADA NULA A NOTIFICAÇÃO EM CAUSA.»


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Não foram apresentadas contra-alegações.

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O Exmo. Magistrado do Ministério Público (EMMP) junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido do provimento do recurso.

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Com dispensa dos vistos, profere-se decisão ao abrigo do artigo 656º do CPC.

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Conforme entendimento pacífico dos Tribunais Superiores, são as conclusões extraídas pelo recorrente, a partir da respectiva motivação, que operam a fixação e delimitação do objecto dos recursos que àqueles são submetidos, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que, face à lei, sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer.

Assim sendo, a questão que constitui objecto do presente recurso consiste em saber se a decisão recorrida errou ao considerar verificar-se a excepção de incompetência material dos tribunais tributários para obter a declaração de nulidade do acto do foro criminal objecto da presente impugnação.


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II - FUNDAMENTAÇÃO

- De facto

Importa que deixemos devida nota do teor da referida decisão que infra se transcreve. Assim:

“J..., contribuinte fiscal nº 1..., residente na Rua R..., veio, ao abrigo do disposto nos artigos 99º e seguintes do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), impugnar judicialmente a notificação efectuada ao abrigo do disposto no artigo 105º, nº 4, alínea a), do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), datada de 11 de Dezembro de 2017, emitida pelo Instituto da Segurança Social, IP – Núcleo de Investigação Criminal, referente a dívida no montante de € 107.104,67, respeitante a cotizações retidas e não entregues àquela entidade.

Alegou, em síntese, que a notificação efectuada não reflecte a verdade material dos valores concretamente em dívida, padecendo de errónea quantificação do facto tributário, porquanto:

 Os montantes referentes aos meses de Fevereiro e Março 2014 já se encontravam liquidados;

 As cotizações respeitantes ao período de Abril de 2010 a Outubro de 2012 encontram-se prescritas;

 Quanto aos montantes respeitantes ao período de Novembro de 2012 a Março de 2014, foi efectuado o pagamento voluntário;

 Estão a ser cumpridos dois planos prestacionais pendentes.

Pede, a final, que seja declarada nula a notificação em causa.

Juntou 2 documentos.

Cumpre proferir despacho liminar.

Considerando o acto ora impugnado, suscita-se, antes de mais, a questão de saber se este Tribunal é competente em razão da matéria.


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Para o conhecimento da referida excepção, importa considerar as seguintes ocorrências processuais:

A) Em 11.12.2017, o Impugnante foi constituído Arguido no âmbito dos autos de averiguações nº 2016001145 e de Inquérito nº 6246/17.5T9LSB, no qual prestou termo de identidade e residência (cfr. doc. 1 junto com a p.i., que se dá por integralmente reproduzido);

B) Na mesma data, no âmbito dos referidos autos, foi efectuada “Notificação pessoal para pagamento de valor em dívida”, nos termos do artigo 105º, nº 4, alínea b), do RGIT, que aqui se reproduz parcialmente:

“Nesta data 2017/12/11, foi notificado J..., (…) para no prazo de 30 dias pagar ou apresentar prova de ter pago o valor das quotizações em dívida à Segurança Social. A prova do pagamento deverá ser entregue, ou enviada, para o Núcleo de Investigação Criminal de lisboa e Vale do Tejo do Núcleo de Investigação Criminal do INSTITUTO DA SEGURANÇA SOCIAL, IP (…).

Se não for recebida a prova do pagamento nos próximos 30 dias, o procedimento criminal irá prosseguir contra o contribuinte Restaurante J..., Lda com NISS 2....

O montante em dívida dependerá da data do pagamento.

O valor das quotizações retidas e não entregues à Segurança Social é de 107.104,67 euros (…)

(…).”


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A competência material do Tribunal é de conhecimento oficioso e o seu conhecimento precede o de qualquer outra questão (cfr. artigos 16.º, n.º 2, do CPPT e 13.º, do CPTA/2004).

Para esta apreciação, importa atender à estrutura da relação jurídica material, segundo a versão apresentada em juízo pelo Autor/Impugnante, tendo em conta a pretensão concretamente formulada e os respectivos fundamentos invocados, por referência ao pedido e causa de pedir (cfr. acórdão do Tribunal de Conflitos, de 06.07.1993, Conflito nº 253, e acórdão do STA, de 11.07.2000, processo nº 318).

Ora, com a instauração da presente acção, visa o Impugnante a declaração de nulidade da notificação efectuada ao abrigo da alínea b) do nº 4 do artigo 10.º do RGIT [a que faz referência a alínea B) do probatório], pelo que interessa determinar a natureza do ato aqui em crise, e averiguar se o mesmo está ou não abrangido no âmbito da jurisdição tributária.


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Nos termos do nº 3 do artigo 212º da CRP “compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”, princípio que se encontra reafirmado no n.º 1 do artigo 1º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF/2015).

A competência dos tribunais tributários é, pois, delimitada constitucionalmente por referência ao conceito de relações jurídicas tributárias.

Por sua vez, o artigo 4º do ETAF/2015 procede à delimitação do âmbito da jurisdição, fornecendo, por um lado, exemplos de litígios cuja competência está acometida à jurisdição administrativa e fiscal, e prevendo, por outro lado, os litígios excluídos do âmbito da referida jurisdição.

Desde logo, com interesse para o caso concreto, dispõe a sua alínea c) do n.º 3 do artigo 4.º que “está nomeadamente excluída do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal: (…) c) Atos relativos ao inquérito e instrução criminais, ao exercício da acção penal e à execução das respectivas decisões”.

Assim delimitado, de forma genérica, o âmbito da jurisdição tributária, impõe-se apreciar a natureza da “ordem de regularização da situação tributária”, contida na notificação elaborada ao abrigo da alínea b) do nº 4 do artigo 105º do RGIT, aqui impugnada.

Sobre esta matéria escreve a Conselheira Isabel Marques da Silva (Regime Geral das Infracções Tributárias, 3ª ed., Almedina, 2010, páginas 229) o seguinte:

“A par desta condição de punibilidade, que hoje consta da alínea a) do nº 4 do artigo 105º do RGIT, a Lei do Orçamento do Estado para 2007 introduziu ao tipo uma outra, inteiramente nova, que consta da alínea b) do nº 4. A qualificação desta nova alínea como condição de punibilidade, embora não seja questão pacífica na doutrina, foi a orientação que sempre propusemos e que o Supremo Tribunal de Justiça acolheu através do seu Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 6/2008, de 9 de Abril (…). Por força desta nova alínea, os factos só serão puníveis se, havendo declaração mas faltando a entrega da prestação tributária devida, o contribuinte, notificado para o efeito, não paga a prestação devida acrescida dos juros respectivos e valor da coima aplicável no prazo de 30 dias”.

Salienta ainda o Tribunal Constitucional, no acórdão nº 409/2008, de 31.07.08 (processo nº 361/08), que:

“O critério é de que é competente para determinar a notificação prevista nesta al. b) do nº 4 do artigo 105º do RGIT a entidade titular do procedimento ou do processo (Administração, Ministério Público, tribunal de instrução criminal ou tribunal do julgamento), consoante a fase em que ele se encontre quando surge a necessidade de proceder a essa notificação (…). Quando o Ministério Público, na fase do inquérito, determina essa notificação, ele visa, não a prossecução da tarefa de cobrança de receitas típica da Administração Tributária, mas o apuramento, que lhe incumbe enquanto titular da acção penal, da verificação dos requisitos que o habilitem a tomar uma decisão de acusação ou de não acusação (…)”.

Resulta, assim, do exposto supra, que a notificação em causa consubstancia uma condição de punibilidade e, como tal, integra-se na primeira fase do processo penal – o inquérito – que, nos termos do disposto no artigo 262º do Código de Processo Penal “compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação”.

Com efeito, a notificação em causa não encerra em si qualquer acto administrativo ou qualquer acto de liquidação de impostos/contribuições, antes se tratando de um acto instrumental de inquérito criminal, necessário à comprovação da existência ou não de crime [no caso dos autos, inquérito que corre termos sob o nº 6246/17.5T9LSB, conforme alínea A) do probatório].

E essa natureza criminal é bem perceptível se se atender ao teor dos próprios documentos juntos pelo Impugnante – Termo de constituição de arguido, Termo de identidade e residência, etc.

Ora, com meridiana clareza se conclui que a notificação feita ao abrigo da alínea b) do nº 4 do artigo 105º do RGIT não surge num procedimento administrativo, não obedece a princípios e disposições de natureza administrativa e fiscal e nem é um acto impositivo (de cobrança), muito menos lesivo dos direitos dos particulares. Pelo contrário, tal acto emerge de um processo-crime, é efectuado a abrigo de disposições da lei penal fiscal, e, além disso, consagra uma proposição disjuntiva, onde se lê “…foi notificado… para no prazo de 30 dias, pagar ou apresentar prova de ter pago...”, dando, assim, uma alternativa ao contribuinte, sem impor qualquer obrigação.

Se a quantia indicada for paga, os factos integradores do tipo de crime não serão puníveis; se já tiver sido efectuado o pagamento, será de juntar os respectivos comprovativos; se não se verificarem os pressupostos do tipo, nomeadamente por efeito da prescrição (como se alega), deverá ser feita prova no referido processo-crime.

Confirma a jurisprudência que “Tal notificação, embora efectuada pelos Serviços da AT [ou da segurança social] insere-se no âmbito do próprio processo-crime (…) e nesse processo se esgotam as suas virtualidades. (…) Porque a notificação opera tão só no âmbito do processo-crime, também não há nela a invocada exigência material, por parte da AT, da dívida correspondente ao imposto que está a ser objecto de cobrança (…). Com efeito, o pagamento das quantias reportadas na dita notificação é facultativo (configurando o não pagamento uma condição de punibilidade, se o arguido a ele não proceder, não ficando impedido de, em sede de processo crime e com a amplitude aí admitida, fazer a prova de que não praticou os factos por que é acusado) …” (cfr. acórdão do STA de 28.11.2012, processo nº 0648/12).

Com efeito, considerando o Impugnante que tem a sua situação contributiva regularizada – por pagamento, prescrição, cumprimento de plano prestacional –, não preenchendo os pressupostos do tipo, tal prova deverá ser efectuada no âmbito do processo-crime, eventualmente em sede de instrução. Não será no âmbito de um processo do foro fiscal, onde seja pedida a nulidade de uma notificação, que se devem apreciar os pressupostos do tipo e as condições de punibilidade do crime.

De referir, em qualquer caso, que a prescrição deverá ser invocada, em primeira linha, em requerimento dirigido ao órgão de execução fiscal ou então, em sede de oposição, no âmbito do processo de execução fiscal, nos termos do artigo 203º e seguintes do CPPT.

Donde, considerando que a notificação impugnada constitui um acto instrumental do processo-crime, a sua apreciação encontra-se excluída do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal, tendo, portanto, no respectivo tribunal criminal (jurisdição comum) a sede própria de reacção.

Pretendendo o Impugnante a declaração de nulidade de um acto do foro criminal, o Tribunal Tributário, por força da alínea c) do nº 3 do artigo 4º do ETAF/2015, não é competente para conhecer da presente acção.

Ora, a infracção das regras de competência em razão da matéria determina a incompetência absoluta deste tribunal (artigo 16º, nº 1, do CPPT).

Assim, nos termos do nº 2 do artigo 18º do CPPT, em caso de incompetência absoluta “pode o interessado, no prazo de 14 dias a contar da notificação da decisão que a declare, requerer a remessa do processo ao tribunal competente”, tribunal criminal, caso em que a petição se considera apresentada na data do primeiro registo do processo.


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Face ao exposto, nos termos das disposições legais citadas, julgo este Tribunal incompetente, em razão da matéria, para conhecer da presente impugnação.

Notifique, com advertência de que o Impugnante pode, no prazo de 14 dias a contar da notificação da presente decisão, requerer a remessa para o tribunal competente.

Registe.

Custas do incidente a suportar pelo Impugnante, com taxa de justiça que se fixa no mínimo legal”.


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- De direito

Com o claro propósito de se perceber o sentido da decisão recorrida e a argumentação que a sustenta, deixámo-la transcrita supra.

Ora, não há dúvidas que a Mma. Juíza limitou-se a apreciar a (in)competência material dos Tribunais Administrativos e Fiscais para conhecer da solicitada declaração de nulidade da notificação efectuada ao abrigo do artigo 105º, nº4, alínea b) do RGIT.

Relembremos o teor de tal preceito e normativo em concreto:

“1 - Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a (euro) 7500, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.

2 - Para os efeitos do disposto no número anterior, considera-se também prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja.

3 - É aplicável o disposto no número anterior ainda que a prestação deduzida tenha natureza parafiscal e desde que possa ser entregue autonomamente.

4 - Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se:

a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação;

b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito”.

Ora, a análise feita pelo TT de Lisboa é incontornável e irrepreensível, razão pela qual nos absteremos, por fastidiosa, de a repetir, até porque, se bem lermos as conclusões da alegação de recurso, apenas em breves asserções a Recorrente se insurge contra o decidido, já que, na sua maior parte, limita-se a repetir o teor do articulado inicial de impugnação judicial.

A verdade é que a notificação em causa, a que alude a alínea B) dos factos provados, efectuada ao abrigo do artigo 105º, nº4, alínea b) do RGIT, embora efectuada pelos competentes serviços da Segurança Social, inclui-se e faz parte do processo crime, valendo apenas para os efeitos aí previstos.

Ou seja, essa notificação não corresponde ao apuramento/ liquidação de imposto cuja validade seja da competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais dirimir, através da presente impugnação judicial, importando ter presente que, nos termos do artigo 212º, nº 3 da CRP, “compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais” e, bem assim, que, nos termos do artigo 1º, nº1 do ETAF, “Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, nos termos compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.º deste Estatuto.”

O artigo 4º, nº 3 do ETAF, exclui expressamente do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto a impugnação de actos relativos ao inquérito e instrução criminais, ao exercício da ação penal e à execução das respetivas decisões, como é o caso que aqui nos ocupa.

Portanto, recuperando tudo o que vem dito pelo TT de Lisboa, os tribunais da jurisdição Administrativa e Fiscal não são materialmente competentes para conhecer da nulidade do acto contestado.

A infração às regras da competência em razão da matéria determina a incompetência absoluta, podendo o interessado, no prazo de 14 dias a contar da notificação da decisão que a declare, requerer a remessa do processo ao tribunal competente, tribunal criminal, caso em que a petição se considera apresentada na data do primeiro registo do processo.

No mais, e tal como o TT bem observou, a seu tempo, e se tal lhe ver a ser exigido, pode a prescrição da dívida ser apreciada e decidida pelo órgão da execução fiscal competente, sem prejuízo de posterior controlo jurisdicional – aí sim – dos Tribunais Fiscais, em sede de reclamação apresentada ao abrigo do artigo 276º do CPPT.

Confirma-se, assim, na íntegra a decisão de incompetência absoluta da 1ª instancia, o que equivale a negar provimento ao recurso jurisdicional.


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III - DECISÃO

Termos em que se decide negar provimento ao recurso.

Custas pelo Recorrente.

Lisboa, 9 de Novembro de 2020


Catarina Almeida e Sousa”

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O acabado de expor mantém-se inteiramente válido, sufragado por este colectivo, não se justificando, assim, alterar a decisão sumária reclamada.

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DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes da Secção de Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Sul em julgar improcedente a presente reclamação para a conferência, confirmando-se a decisão sumária reclamada, proferida em 09/11/20.

Condena-se o Reclamante pelo presente incidente, fixando-se a taxa de justiça no mínimo legal.

Actualize a informação prestada no oficio deste TCA de 12/03/2021, com a referência 004074790.

Lisboa, 29/04/21

[A Relatora consigna e atesta que, nos termos do disposto no art.º 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13 de março, aditado pelo art.º 3.º do DL n.º 20/2020, de 01 de maio, têm voto de conformidade com o presente Acórdão as restantes Desembargadoras integrantes da formação de julgamento, as Senhoras Desembargadoras Hélia Gameiro e Ana Cristina Carvalho]


Catarina Almeida e Sousa