Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:07378/14
Secção:CT - 2.º JUÍZO
Data do Acordão:06/26/2014
Relator:PEDRO MARCHÃO MARQUES
Descritores:- IMPUGNAÇÃO DE DECISÃO CONTRA-ORDENACIONAL
- TEMPESTIVIDADE
- RECURSO
- JUNÇÃO DE DOCUMENTOS COM AS ALEGAÇÕES
- PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
Sumário:
i) Em sede de recurso jurisdicional é legítimo às partes juntar documentos com as alegações quando a sua apresentação não tenha sido possível até esse momento (superveniência objectiva ou subjectiva), quando se destinem a provar factos posteriores ou quando a sua apresentação apenas se tenha tornado necessária por virtude de ocorrência posterior ao julgamento em 1.ª instância.
ii) O princípio do contraditório (art. 3.º, n.º 3, do CPC), estruturante do Processo Civil, comporta uma dimensão injuntiva de contraditoriedade adjectiva, dando corpo a uma função de garantia da participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontram em ligação com o objecto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão.
Não tendo ora Recorrida sido chamada a pronunciar-se sobre a excepção de caducidade do direito de acção oficiosamente suscitada, não se apresentando essa questão como indiscutível, foi violado o princípio do contraditório, vício que influiu decisivamente na decisão proferida e que implica a sua anulação
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os Juízes da Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:

I. Objecto do recurso

...– Comércio de Mobiliário, SA (Recorrente), veio interpor recurso jurisdicional da sentença do Tribunal Tributário de Lisboa que, concluindo pela extemporaneidade da apresentação do recurso interposto ao abrigo do disposto no art. 80.º, nº 1, do RGIT da decisão de 27.09.2011 do Chefe do Serviço de Finanças de Lisboa 4, que aplicou a coima de EUR 30.000,00 no processo de contra-ordenação n.º 3301200806055818, julgou procedente a excepção de caducidade do direito de acção e não conheceu do mérito da mesma.

A Recorrente terminou a sua alegação de recurso formulando as seguintes conclusões:

A. Vem o presente Recurso Jurisdicional interposto do douto Despacho Decisório de fls. 81 a 87 dos autos que rejeitou o Recurso Judicial da Decisão de aplicação de coima por alegada extemporaneidade.
B. Discorda-se do aí decidido uma vez que a apresentação do Recurso Judicial é factualmente tempestiva, o que, aliás, poderia ter sido cabalmente demonstrado pela Recorrente acaso o Tribunal a quo a tivesse notificado para se pronunciar no âmbito do exercício do contraditório legalmente consagrado e que constitui em concreto um dever funcional e não de mera conveniência.
C. Mas não o fez, pelo que a falta de observância do princípio do contraditório implica a prática de uma nulidade processual.
D. Com efeito, o douto Tribunal a quo rejeitou o Recurso da Decisão de aplicação de coima com fundamento na extemporaneidade do mesmo, todavia sem facultar à ora Recorrente a possibilidade de se pronunciar previamente sobre a projectada excepção, tal como vem expressamente referido no douto Despacho Decisório.
E. Neste contexto, a Recorrente não pode conformar-se com a douta Sentença no que a esta parte respeita, porquanto foi efectivamente preterido o seu direito ao exercício do contraditório e audiência, constitucionalmente consagrados no artigo 32º, nºs 5 e 1O da lei Fundamental e, bem assim, na cláusula geral do artigo 3º, nº 3 do CPC, plenamente aplicável no Contencioso Tributário por via do artigo 4º do CPP.
F. Ora, nos casos em que tal não suceda, i.e., em que não seja observado e cumprido o direito ao contraditório, ocorre uma nulidade processual nos termos do artigo 201º, nº 1 do CPC, porque essa omissão é susceptível de influir na decisão da causa.
G. Corroborando quanto se disse, vejam-se os Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo, Recurso nº 0679107, de 13.11.2007 e Recurso nº 063/10, de 03.03.2010.
H. Nesta conformidade, deveria ter sido concedida à Recorrente a possibilidade de se pronunciar sobre a pretensa decisão judicial de extemporaneidade antes da sua consumação, nos termos legais acima expostos.
I. Tanto mais que, sendo uma excepção que põe termo à causa, ficou coarctada a possibilidade de apreciação do mérito do pleito, com a consequente lesão dos direitos e interesses juslegalmente tutelados da Recorrente pois o sentido do Despacho Decisório sob escrutínio acarreta mais um litígio e custas judiciais que a mesma tem assim de suportar.
J. Assim, não tendo sido notificada a Recorrente para se pronunciar sobre factos decisivos para a decisão conforme demonstrado supra, deve ser declarada a nulidade processual invocada e, por conseguinte, anulado o douto Despacho Decisório reconhecendo-se a tempestividade do Recurso Judicial com vista à sua apreciação de mérito.
K. Sem conceder, alega-se ainda que o Recurso Judicial foi apresentado no prazo legal.
L. Com efeito, nos termos do artigo 80º do RGIT a Recorrente dispunha do prazo legal de 20 dias para sindicar a Decisão de aplicação de coima mediante a apresentação de Recurso Judicial no Serviço de Finanças, sendo o mesmo dirigido ao Tribunal competente.
M. Mas o sobredito preceito normativo é omisso no modo de computar o prazo máximo legal aí estatuído, devendo então remeter-se subsidiariamente para o previsto no artigo 60º do RGCO, que manda suspender a contagem aos sábados, domingos e feriados, com transferência para o primeiro dia útil seguinte caso o prazo termine em dia não útil.
N. Em concreto, temos pois que, em 27.09.2011 a Recorrente foi notificada do Despacho do Chefe do Serviço de Finanças de Lisboa -4 (cit. Doc.1 junto à PI), pelo que se iniciou, em 28.09.2011, o termo a quo para a apresentação de Recurso Judicial contra a Decisão de aplicação de coima (por aplicação da regra contida no artigo 279º, alínea b) do CC), e cujo termo ad quem ocorreu em 26.10.2011 (não sendo, pois, computado o dia 5 de Outubro de 2011, por corresponder a dia feriado, i.e., dia não útil).
O. Neste contexto, não é verdade que a Petição Inicial de Recurso Judicial tenha sido apresentada fora do prazo legal.
P. De facto, a Petição Inicial de Recurso Judicial foi apresentada em 26.10.2011 por via postal registada (CTT RC852353362PT)- cfr. Anexo I.
Q. Ora, é consabido, que em caso de remessa pelo correio, sob registo, vale como data da prática do acto processual a da efectivação do respectivo registo postal, como decorre do artigo 150º, nº 2, alínea b) do CPC, aqui subsidiariamente aplicável por via do artigo 104º, nº 1 do CPP, ex vi do artigo 41º, nº 1 do RGCO e por sua vez do artigo 3°, alínea b) do RGIT – questão que foi, aliás, resolvida pelo Supremo Tribunal de Justiça (Assentos n.ºs 2/2000 e 1/2001 - citados por Jorge Lopes de Sousa e Manuel Simas Santos, ob. cit, pág. 550).
R. In claris non fit interpretatio, é a data do registo, e não a data da efectiva recepção do Recurso Judicial que vale para o cômputo legal do prazo aplicável – corroborando vide, sem preocupações de exaustividade, os Acórdãos do Tribunal Central Administrativo Sul, Recurso nº 00822/05, de 10.01.2006 e Recurso nº 00478105, de 29.03.2005.
S. Pelo exposto, resulta evidente que a apresentação do Recurso Judicial da Decisão de aplicação de coima ocorreu no prazo legal, ergo, em 26.10.2011, sendo portanto tempestivo, razão pela qual vai também impugnada a Informação prestada a fls. 61 dos autos pelo Serviço de Finanças receptor no que a esta matéria concerne, em especial, quanto à data de apresentação da Petição Inicial que não se afigura correcta como demonstrado (cfr. Anexo 1).
T. Por todo o exposto, deve ser substituído o douto Despacho Decisório por Decisão que reconheça a tempestividade da sobredita Petição Inicial, para uma devida apreciação de mérito do Recurso Judicial da Decisão de aplicação de coima.
U. Adicionalmente, sempre seria de concluir que o Recurso Judicial foi deduzido tempestivamente, de acordo com a Lei, Doutrina e Jurisprudência e nos termos expressamente indicados pela Autoridade Tributária.
V. De facto, da notificação da Decisão de aplicação de coima resulta que a contagem do prazo legal de 20 dias para recorrer somente se inicia após o decurso do prazo legal de 15 dias para pagamento voluntário da colma estatuído no ponto 2 do Doc.1 da PI.
W. Assim, a apresentação do Recurso Judicial é tempestiva perante o teor da notificação da Decisão de aplicação de coima (porque apresentada dentro do prazo de 20 dias úteis, sendo que a Recorrente dispunha ainda de 15 dias adicionais para a sua dedução).
X. Tudo visto, a rejeição do Recurso Judicial com o fundamento expresso de extemporaneidade só pode merecer o repúdio da Recorrente, pois faz tábua rasa de todo o regime legal, Doutrina, Jurisprudência e inclusive da notificação da Autoridade Tributária (cit Doc.1junto à PI) pois, reitera-se, o Recurso Judicial foi apresentado no prazo legal. i.e., em 26.10.2011.
Y. Pelo que, não podia o douto Tribunal a quo, sem mais, alegar a extemporaneidade do aludido Recurso, frustrando as legítimas e fundadas expectativas da Recorrente, atento o primado dos princípios da boa fé e, bem assim, da tutela da confiança e da segurança e certeza jurídicas, alicerces do Estado de Direito Democrático.
Z. A não se entender assim, estar-se-á perante uma violação das normas vertidas nos artigos 20°, 32°, nº 10 e 268º, nº 4, todos da Constituição da República Portuguesa, do artigo 80° do RGIT e dos artigos 60º e 63º do RGCO.
Nestes termos, e nos demais de Direito que V/ Exas. doutamente suprirão, deve conceder-se integral provimento ao presente Recurso Jurisdicional, por provado, declarando-se a nulidade processual invocada com a consequente anulação do douto Despacho Decisório recorrido, reconhecendo-se assim a tempestividade do Recurso Judicial da Decisão de aplicação de coima para uma devida apreciação de mérito, com o que se fará a devida e costumeira Justiça.

Com o recurso foram juntos 2 documentos.

A Recorrida, Fazenda, não apresentou contra-alegações.




Foram colhidos os vistos dos Exmos. Juízes Adjuntos, pelo que vem o processo submetido à Secção do Contencioso Tributário para julgamento do recurso


Tendo sido juntos documentos com as alegações de recurso, haverá que preliminarmente apreciar da admissibilidade da sua junção.

Com as alegações de recurso veio a Recorrente requerer a junção dos documentos de fls. 111 e 112 – originais de registo postal e do respectivo aviso de recepção assinado e datado, referentes ao envio da petição de recurso para o Serviço de Finanças de Lisboa 4.

Nos termos do disposto no art. 693.º-B do CPC, na redacção à data aplicável “as partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excepcionais a que se refere o art. 524.º, no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância e nos casos previstos nas alíneas a) a g) e i) a n) do n.º 2 do art. 691.º” (actualmente dispõe o art. 651.º do CPC que: “As partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excecionais a que se refere o artigo 425.º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância”).

Donde, em sede de recurso é legítimo às partes juntar documentos com as alegações quando a sua apresentação não tenha sido possível até esse momento (superveniência objectiva ou subjectiva), quando se destinem a provar factos posteriores ou quando a sua apresentação apenas se tenha tornado necessária por virtude de ocorrência posterior ao julgamento em 1.ª instância (cfr., sobre esta temática, António Geraldes, Recursos em Processo Civil; Novo Regime, 3.ª ed. revista e actualizada, 2010, p. 253 e s.).

Os documentos cuja junção vem nesta sede de recurso requerida são originais de registo postal e do respectivo aviso de recepção assinado e datado e serviriam, como alegado, para provar que a p.i. do recurso da decisão de aplicação de coima aplicada no processo de contra-ordenação havia sido apresentada tempestivamente pela ora Recorrente, mais concretamente em 26.10.2011.

Ora, verificando-se que tal alegação só se mostra pertinente em face do julgamento efectuado pelo Tribunal a quo, tanto mais que Administração Fiscal não havia questionado a tempestividade da petição (cfr. a informação de fls. 61 e s.), nem a parte foi anteriormente chamada a discutir a questão ou a factualidade em que assentou a decisão recorrida, terá que se concluir que os documentos oferecidos pela ora Recorrente com as alegações são admissíveis ao abrigo do citado art. 693.º-B do CPC, na redacção à data aplicável.

Pelo exposto, acorda-se em admitir a junção dos documentos de fls. 111-112.



I. 1. Questões a apreciar e decidir:

A questão suscitada pela Recorrente, delimitada pelas alegações de recurso e respectivas conclusões, traduz-se em apreciar:

a) se o Tribunal a quo incorreu na nulidade processual suscitada, por violação do princípio do contraditório; e

b) se o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento de facto e de direito ao ter considerado o recurso da decisão de aplicação de coima extemporâneo, com a sua consequente rejeição.



II. Fundamentação

II.1. De facto

O Tribunal a quo deu como assentes os seguintes factos:

A) Em 25.11.2003 foi levantado a “...5, Móveis e Decorações, S.A.”, o auto de notícia de fls. 5 e 6 dos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, por infracção ao disposto nos artigos 26º, n.º 1 e 40.º, n.º 1, al. b) do CIVA, por apresentação da declaração periódica de IVA do 4.º trimestre de 2002 no prazo legal sem pagamento ou com pagamento insuficiente, sendo a norma punitiva os artigos 114º, nº 2 e 26º, nº 4, do RGIT [cf. fls. 5 dos autos].
B) Com base no auto de notícia identificado no ponto anterior foi instaurado a 13.01.2004, no Serviço de Finanças de Lisboa 4, o processo de contra-ordenação n.º 3301200406001289 (Migrado/SCO 3301200806055818) [cf. fls. 4 dos autos].
C) Foi instaurado contra “...5, Móveis e Decorações, S.A.”, o processo de inquérito nº 168/04.7IDLSB, referente, entre outros, aos factos constantes do auto de notícia referido em A) [cf. fls. 12 e 22 a 32 dos autos].
D) Em 05.03.2004, a arguida recepcionou ofício datado de 24.02.2004, emitido pelo Serviço de Finanças de Lisboa 4, referente ao processo de contra-ordenação mencionado na alínea antecedente, com o seguinte teor [cf. fls. 8 dos autos]:
“Fica V.Exa. por este meio notificado, que os autos de contra-ordenação nº 04/600128.9 por infracção ao Código do IVA referente à falta de entrega da prestação tributária do período de 0212T se encontra suspenso, nos termos do artº 74º. do Regime Geral das Infracções Tributárias, após despacho proferido pelo Chefe do Serviço Local”.

E) Em 02.10.2009 foi a arguida, ora recorrente, notificada para efeitos de defesa no âmbito do processo de contra-ordenação mencionado na alínea antecedente [cf. fls. 13 a 15 dos autos].
F) Através do ofício n.º 11548 de 26.10.2009 foi comunicado à recorrente, pelo Serviço de Finanças de Lisboa 4, que a notificação para defesa mencionada na alínea antecedente foi enviada por lapso, pelo que deveria ser considerada sem efeito. Mais foi comunicado que o processo de contra-ordenação ainda se encontrava suspenso nos termos do artigo 74º do RGIT retomando a sua tramitação quando fosse proferida decisão [cf. fls. 19 dos autos].
G) Em 01.03.2011 foi proferido pela Procuradora-Adjunta do DIAP, despacho de arquivamento nos termos do disposto no artigo 282.º, n.º 3, 1.ª parte, do CPP, do processo de inquérito instaurado a “...5, Móveis e Decorações, S.A.” [cf. fls. 24 dos autos].
H) Em 22.09.2011 foi proferido despacho de fixação da coima pelo Chefe do Serviço de Finanças de Lisboa 4 com o seguinte teor [cf. fls. 35 dos autos].
“(…)
1 – Em face dos factos constantes do Auto de Notícia, levantado em 2003/11/16, verifica-se que o arguido praticou irregularidade(s), designadamente:
- Por declaração periódica apresentada fora do prazo legal sem meio de pagamento ou com ele insuficiente, referente ao período de 2002/12T, infracção ao Artº 40º nº 1 alínea b) e Artº 26º nº 1 do CIVA, punível nos termos do Artº 114º nº 2 e Artº 26º nº 4 do RGIT.
Dão-se como provados os factos constantes do Auto de Notícia.

Decisão da Fixação da Coima

Assim, tendo em conta estes elementos para a graduação da coima e de acordo com o disposto no artigo 79º do RGIT aplico ao arguido a coima de € 30 000,00 (…)”

I) Em 27.09.2011 foi a recorrente notificada do despacho de fixação da coima no montante de €30.000,00, proferido pelo Chefe do Serviço de Finanças de Lisboa 4, em 22.09.2011, no âmbito do processo de contra-ordenação nº 3301-04/600128.9 Migrado/SCO 3301200806055818 [cf. fls. 36 a 38 dos autos].
J) O presente recurso de contra-ordenação foi apresentado em 28.10.2009 [cf. fls. 39 dos autos].

Nada mais se provou com interesse para a decisão a proferir.

Assenta a convicção deste Tribunal no exame dos documentos constantes dos presentes autos, não impugnados, referidos a propósito de cada alínea do probatório.



II.2. De direito


Nas conclusões do presente recurso a Recorrente começa por invocar a existência de uma nulidade processual decorrente do facto de o tribunal recorrido não ter promovido o contraditório relativamente à questão suscitada da intempestividade da apresentação da petição de recurso da decisão de aplicação da coima (conclusões B. a J. do recurso).

Está em causa, portanto, uma eventual nulidade secundária, anterior à sentença e traduzida, segundo a Recorrente, na violação do direito ao contraditório, uma vez que o Tribunal a quo rejeitou o recurso da decisão de aplicação de coima com fundamento na extemporaneidade do mesmo, sem facultar a possibilidade de a ora Recorrente se pronunciar previamente sobre a projectada excepção. Como se sabe, as nulidades processuais são quaisquer desvios do formalismo processual seguido, em relação ao formalismo processual prescrito na lei, e a que esta faça corresponder – embora não de modo expresso – uma invalidação mais ou menos extensa de actos processuais (cfr. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, p. 176.).

Como este TCA Sul teve já oportunidade de afirmar, nenhuma decisão deve ser tomada pelo juiz sem que previamente tenha sido dada ampla e efectiva possibilidade à parte contra quem é dirigida de a discutir, de a contestar e de a valorar, com vista a evitar decisões surpresa (cfr., i.a. o acórdão de 13.04.2010, proc. n.º 3829/10). E a inobservância deste contraditório consubstanciará, fatalmente, uma nulidade processual se a omissão do convite à parte para tomar posição sobre qualquer questão que a possa afectar e que ainda não tenha tido possibilidade de contraditar, for susceptível de influir no exame ou decisão da causa.

Com efeito, o art. 3.º, n.º 3, do CPC estabelece que: “o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”. É o chamado princípio do contraditório, o qual consubstancia uma das pedras basilares em que assenta todo o Processo Civil. Tal princípio comporta uma dimensão injuntiva de contraditoriedade adjectiva, dando corpo a uma função de garantia da participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontram em ligação com o objecto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para decisão.

Do apontado princípio decorre, pois, o dever de facultar sempre às partes a oportunidade de, antes de a decisão ser proferida, se pronunciarem sobre qualquer questão que as possa afectar e que ainda não tenham tido possibilidade de contraditar, mesmo tratando-se de questões meramente de direito e que sejam de conhecimento oficioso. Só assim não será em casos de manifesta desnecessidade, por se tratar de questão simples e incontroversa.

A Mma. Juiz do Tribunal a quo fundamentou a sua decisão neste ponto do seguinte modo:

O requerimento de interposição de recurso de decisão de aplicação de coima deve ser apresentado no Serviço de Finanças onde tiver sido instaurado o processo de contra-ordenação, no prazo de 20 dias, atento o disposto no artigo 80.º, n.º 1, do RGIT, sendo tal prazo computado nos termos do disposto no artigo 60.º, do Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas (RGCO)

Nos termos do art. 60.º do RGCO, sob a epígrafe “Contagem do prazo para impugnação”, consta que: [1] - O prazo para a impugnação da decisão da autoridade administrativa suspende-se aos sábados, domingos e feriados. [2] - O termo do prazo que caia em dia durante o qual não for possível, durante o período normal, a apresentação do recurso, transfere-se para o primeiro dia útil seguinte.”

Não sendo tal prazo de natureza judicial, não se lhe aplicam as regras privativas dos prazos judiciais (artigos 144.º, n.º 1, e 145.º, n.º 5, do CPC), embora se suspendendo aos sábados, domingos e feriados (cf. Jorge Lopes de Sousa e Manuel Simas Santos, Regime Geral das Infracções Tributárias anotado, 6ª. edição, 2011, Áreas Editora, pág.474 e seg.; Isabel Marques da Silva, Regime Geral das Infracções Tributárias, Cadernos IDEFF, n.º.5, 3ª. edição, 2010, Almedina, pág. 145 e ss; acórdãos do STA de 01.06.2011, proc. nº 0312/11 e de 13.07.2011, proc. 0314/11).

Ao invés, está-se perante um prazo substantivo, peremptório e de caducidade.

No caso dos presentes autos, a arguida foi notificada da decisão de aplicação de coima no dia 27.09.2011 (cf. alínea I) dos factos provados) tendo o presente recurso sido interposto no dia 28.10.2009 (cf. alínea J) dos factos provados).

Ora, computado nos termos supra expostos e a partir de 28.09.2011 (inclusive), excluindo-se os sábados e domingos e o feriado do dia 5 de Outubro de 2011, o prazo de interposição de recurso teve o seu termo final no dia 26.10.2011, assim se concluindo ter sido deduzido manifestamente fora de prazo, excepção peremptória de conhecimento oficioso e que obsta ao conhecimento do mérito da causa.

(…)

Finalmente dir-se-á que não se faz accionar o exercício do contraditório, por o mesmo, no caso concreto, se revelar manifestamente desnecessário e redundar na prática de um acto ou diligência inútil e inconsequente para os termos da decisão a proferir.

Ora, certo é que no caso concreto estamos de longe de estar perante uma situação simples e incontroversa, justificadora da dispensa do contraditório, pela sua manifesta desnecessidade, relativamente à questão da (in)tempestividade suscitada. Pelo contrário, basta para afastar a pretensa desnecessidade do contraditório, a pertinência do teor da alegação do recurso jurisdicional interposto.

Como no citado aresto deste TCA se afirmou, em observação que aqui também se aplica: “(…) seria de elementar prudência que o julgador tivesse dado cumprimento ao dever legal de convidar o Reclamante a tomar posição sobre a referida questão, possibilitando-lhe influir activamente na respectiva decisão pela apresentação de argumentos jurídicos que contribuíssem para um real debate contraditório e que pudessem ser ponderados na decisão (independentemente de serem nela atendidos ou não)”.

Em conclusão, foi efectivamente violado o princípio do contraditório, uma vez que não foi dada à ora Recorrente qualquer possibilidade de se pronunciar sobre a excepção oficiosamente suscitada, vício que influiu decisivamente na decisão proferida e que implica a sua anulação.

Posto isto, quanto à questão atinente à data em que deve considerar-se interposto o recurso, não sofre dúvida a razão da ora Recorrente. Verificando-se que de acordo com os documentos por nós admitidos a petição foi expedida por correio sujeito a registo no dia 26.10.2011 (cfr. doc.s de fls. 111 e 112), forçoso é concluir que a mesma foi tempestivamente apresentada, atendendo ao termo inicial fixado pelo Tribunal a quo (28.09.2011) e excluindo-se os sábados e domingos e o feriado do dia 5 de Outubro de 2011 (nos termos do art. 60.º do RGCO o prazo para a impugnação da decisão da autoridade administrativa suspende-se aos sábados, domingos e feriados). Neste particular, refira-se, ainda, que a interposição de recurso judicial do despacho de entidade administrativa que aplica uma coima pode ser remetido via CTT, valendo, neste caso, como data processual da prática do acto, a do respectivo registo postal, de acordo com o disposto no art. 150.º, n.º 2, al. b) do CPC, subsidiariamente aplicável (do actual art. 144.º, n.º s 7 e 8, retira-se a mesma estatuição, ainda que a regra seja a transmissão electrónica de dados) – vide, por todos, o acórdão deste TCA Sul de 10.01.2006, proc. n.º 822/05 e jurisprudência aí citada.

Mais, independentemente do acabado de concluir, sempre a petição teria que ser considerada tempestivamente apresentada, tal como alega a Recorrente, atendendo ao teor da notificação efectuada (cfr. conclusões V. e W. do recurso). Com efeito, se a Administração Tributária, na notificação da decisão de aplicação da coima, erradamente, indicou ao arguido que o termo inicial do prazo de 20 dias para interpor recurso judicial era o dia seguinte ao termo do prazo de 15 dias para pagamento voluntário, como sucedeu no caso (cfr. o constante do doc. de fls. 36 – “notificação art. 79º n.º 2 RGIT) não podia rejeitar-se com fundamento em intempestividade o recurso que foi interposto para além do termo do prazo previsto no art. 80.º, n.º 1, do RGIT, mas dentro do prazo assinalado pela Administração. O entendimento contrário violaria de forma intolerável os princípios da confiança e da boa fé, consagrados nos artigos 2.º e 266.º da CRP (cfr., sobre esta exacta questão, o ac. do TCA Norte de 11.03.2010, proc. n.º 1117/07.6BECBR).

Ou seja, o recurso judicial da decisão de aplicação de coima objecto dos presentes autos é tempestivo.

Donde, e em conclusão, haverá que anular a decisão recorrida e ordenar a baixa dos autos ao tribunal a quo para instrução da causa e posterior prolação de decisão mérito.



III. Conclusões

Sumariando:

i) Em sede de recurso jurisdicional é legítimo às partes juntar documentos com as alegações quando a sua apresentação não tenha sido possível até esse momento (superveniência objectiva ou subjectiva), quando se destinem a provar factos posteriores ou quando a sua apresentação apenas se tenha tornado necessária por virtude de ocorrência posterior ao julgamento em 1.ª instância.
ii) O princípio do contraditório (art. 3.º, n.º 3, do CPC), estruturante do Processo Civil, comporta uma dimensão injuntiva de contraditoriedade adjectiva, dando corpo a uma função de garantia da participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontram em ligação com o objecto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão.
iii) Não tendo ora Recorrida sido chamada a pronunciar-se sobre a excepção de caducidade do direito de acção oficiosamente suscitada, não se apresentando essa questão como indiscutível, foi violado o princípio do contraditório, vício que influiu decisivamente na decisão proferida e que implica a sua anulação.



III. DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Sul em conceder provimento ao recurso, anular a decisão recorrida e ordenar a baixa dos autos ao Tribunal Tributário de Lisboa para aí prosseguirem ulteriores trâmites em ordem à prolação de decisão de mérito.

Sem custas.

Lisboa, 26 de Junho de 2014

Pedro Marchão Marques

Jorge Cortês

Pereira Gameiro