Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:755/07.1BEALM
Secção:CT
Data do Acordão:10/08/2020
Relator:PATRÍCIA MANUEL PIRES
Descritores:IRS
CASO JULGADO
MANIFESTAÇÕES FORTUNA
IRREPETIBILIDADE PROCEDIMENTO
Sumário:I-É entendimento pacífico e consolidado na doutrina e na jurisprudência, que não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objeto de apreciação da decisão recorrida. A única exceção a esta regra, como bem se compreende, são as questões de conhecimento oficioso, das quais o Tribunal tem a obrigação de conhecer, mesmo perante o silêncio das partes.
II-Convocando a Recorrente a insusceptibilidade de discussão contenciosa, no processo de impugnação judicial do ato de liquidação de IRS, do vício procedimental atinente à existência de dois procedimentos inspetivos externos, tal questão reconduz-se à inimpugnabilidade do ato por consolidação na ordem jurídica, donde, questão de conhecimento oficioso, não representando, por isso, questão nova.
III-A decisão de avaliação da matéria tributável regulamentada no artigo 89º-A da LGT constitui ato que, embora preparatório da liquidação (em sentido estrito), assume a natureza de ato prejudicial ou ato destacável, logo caso sujeito passivo pretenda discutir a decisão de avaliação da matéria coletável pelo método indireto do artigo 89.º-A da LGT deve interpor recurso para o Tribunal Tributário (146.º B do CPPT).
IV-A decisão do aludido recurso apenas constitui caso julgado relativamente à determinação da matéria coletável apurada por via dos métodos indiretos, e à prova efetiva dos sinais exteriores de riqueza, o mesmo não sucedendo com as ilegalidades procedimentais e bem assim com a arguição de vícios que em nada contendam com essa determinação, mormente, falta de fundamentação.
V-O artigo 63.º, n.º 3 da LGT consagra o princípio da irrepetibilidade do procedimento de inspeção externo.
VI-A tutela visada por aquela norma é a segurança jurídica e a estabilidade da relação fiscal.
VII-Se nos autos se mostra provado que, quanto ao ano de 2001 e relativamente aos Recorridos, decorreram dois procedimentos inspetivos, um, a coberto de um Despacho, destinado à consulta, recolha e cruzamento de elementos e outro, a coberto de uma Ordem de Serviço, do qual resultou a fixação da matéria tributável, por recurso a métodos indiretos, e se ambos foram qualificados como procedimento inspetivo externo, ter-se-á de concluir pela ilegalidade do procedimento do qual emergiu a liquidação realizada.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:

I-RELATÓRIO

O DIGNO REPRESENTANTE DA FAZENDA PÚBLICA (IRFP) veio interpor recurso jurisdicional da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada que julgou procedente a impugnação apresentada por J….. e M….. contra o ato de liquidação adicional de IRS nº ….., respeitante ao ano de 2001, no valor de € 101.861,55, com a consequente anulação da liquidação e respetiva condenação da Administração Tributária no pagamento de juros indemnizatórios.


***

A Recorrente, apresenta as suas alegações de recurso nas quais formula as conclusões que infra se reproduzem:

I.Na douta Sentença ora sob recurso, o Tribunal “a quo” julgou a impugnação totalmente procedente e anulou o ato de liquidação impugnado, por entender que no âmbito do procedimento anterior à liquidação foi violado o disposto no artigo 63.º, n.º 3, da LGT;

II. Salvo o devido respeito por diferente entendimento, a Fazenda Pública entende que esta decisão não pode manter-se na ordem jurídica, nos termos em que foi proferida, porque nela se fez um errado julgamento da matéria de facto e da matéria de direito;

III. Na situação em apreço, os funcionários da Direção-Geral dos Impostos foram inicialmente credenciados para a realização da ação inspetiva externa que visava a avaliação do disposto no artigo 89.º-A, da LGT, através do Despacho do Exmo. Senhor Diretor de Finanças Adjunto, n.º …..;

IV. A referida a ação de inspeção teve por objetivo, a consulta, recolha e cruzamento de elementos, tendo-se nela concluído que havia motivos para aplicação da avaliação indireta da matéria coletável, relativamente ao ano de 2001;

V. Como de uma ação inspetiva, efetuada a coberto de um despacho, não podem resultar correções, houve a necessidade de emitir uma ordem de serviço, para prosseguir a inspeção dos sujeitos passivos e proceder à fixação do rendimento tributável em sede de IRS, a enquadrar na categoria G, do ano de 2001, atento o disposto no artigo 89.º-A, da LGT;

VI. Nos termos do disposto no artigo 6.º, do RCPIT, o procedimento de inspeção visa a descoberta da verdade material pelo que seria inaceitável que os serviços inspetivos, perante indícios de injustificado acréscimo patrimonial, apurados numa ação inspetiva credenciada por um despacho, ficassem depois impedidos de proceder avaliação indireta da matéria coletável nos termos previstos no artigo 89.º-A, da LGT;

VII. Na situação em apreço, o procedimento inspetivo iniciado com o Despacho n.º …..foi concluído a coberto da Ordem de Serviço n.º ….., que definiu o âmbito, a extensão da ação inspetiva e o ano a fiscalizar, e foi concluído com a elaboração de um relatório final onde foi fixado o rendimento coletável dos aqui impugnantes;

VIII. Na situação em apreço, os sujeitos passivos não foram notificados de nenhum projeto de conclusões do relatório, nem para sobre o mesmo se pronunciarem, nem foi elaborado um relatório final tendo por referência o Despacho n.º …..;

IX. O relatório de inspeção tributária que, in casu, pôs termo ao procedimento inspetivo, foi elaborado tendo por referência a Ordem de Serviço n.º ….., e nele se fez menção ao Despacho n.º ….., e à razão porque foi aquela ordem de serviço emitida;

X. Pelo facto de terem sido emitidos, in casu, um despacho e uma ordem de serviço, não se pode concluir que se realizaram dois procedimentos inspetivos externos, já que o que ocorreu de facto foi uma substituição da credenciação dentro de um mesmo procedimento inspetivo;

XI. Na situação sub judice, a fixação da matéria coletável dos impugnantes, apesar de num primeiro momento, ter resultado de um ato da Administração Fiscal, a final constituiu a execução de uma decisão judicial transitada em julgado;

XII. Por força da decisão proferida no Processo n.º 717/05.3BEALM, e das decisões dos subsequentes recursos, foi mantida a fixação da matéria tributável em sede de IRS, a enquadrar na categoria G, do ano de 2001, com recurso a manifestações de fortuna, nos termos do artigo 89.º-A, da LGT, no montante de € 239 422,99;

XIII. Todos os vícios de que padecesse a decisão de fixação da matéria coletável dos impugnantes deveriam ter sido invocados no recurso apresentado, nos termos do disposto no artigo 146.º-B, do CPPT;

XIV. Porque a decisão de fixação da matéria coletável, prevista no artigo 89.º-A, da LGT, é um ato destacável, não podem os vícios do procedimento que a ela conduziu servir de fundamento à impugnação da liquidação que daquela decisão tenha resultado, e mesmo que tenham sido invocados, não podem ser apreciados;

XV. A alegada ilegalidade que conduziu à decisão de procedência da presente impugnação judicial (violação do disposto no artigo 63.º, n.º 3, da LGT) não é um vício que possa imputar-se à liquidação de IRS impugnada;

XVI. Na douta Sentença ora sob recurso, reconhece a Meritíssima Juíza do Tribunal “a quo” que a violação do disposto no artigo 63.º, n.º 3, da LGT, ocorreu no âmbito do procedimento anterior à liquidação;

XVII. O alegado vício da decisão de avaliação indireta da matéria coletável, não podia ter sido apreciado nesta ação, nem poderia o mesmo servir de fundamento à decisão que nela foi proferida pelo Tribunal “a quo”;

XVIII. A avaliação indireta da matéria coletável que está na origem da liquidação de IRS impugnada, há muito que se encontra definitivamente fixada e consolidada na ordem jurídica;

XIX. Salvo o devido respeito, que é muito por parte da Fazenda Pública, entendemos que a Meritíssima Juíza do Tribunal “a quo” ao considerar que a liquidação em apreço enferma de vício de violação de lei, por erro nos pressupostos de direito e, em consequência, determinar a anulação da liquidação impugnada, violou o disposto nos artigos 54.º, 63.º, n.º 3, e 89.º-A, n.os 7 e 8, todos da LGT, e artigo 6.º, do RCPIT.

XX. Ao decidir como decidiu a presente impugnação judicial, a Meritíssima Juíza do Tribunal “a quo” incorreu em erro de julgamento de facto e de direito, razão pela qual não pode a, aliás, douta Sentença, manter-se na ordem jurídica.

Nestes termos e nos mais de Direito aplicáveis, requer-se a V.as Ex.as se dignem julgar PROCEDENTE o presente recurso, por totalmente provado e, em consequência, ser a douta Sentença ora recorrida revogada e substituída por douto Acórdão que julgue totalmente improcedente a presente impugnação, por não provada, com todas as devidas e legais consequências.”


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Os Recorridos apresentaram contra-alegações, tendo concluído da seguinte forma:

CONCLUSÕES:

Nos autos vem impugnada a liquidação adicional de IRS referente aos rendimentos auferidos pelos recorridos no ano de 2001, que a Autoridade Tributária determinou por recurso a avaliação indirecta, atenta a compra de um imóvel por preço alegadamente desproporcional aos rendimentos declarados. Assim,

Na liquidação ora impugnada, invocando o disposto no artigo 89°-A da L.G.T., a Autoridade Tributária aditou à matéria colectável 20% do preço do imóvel comprado, apesar de parte do preço ter sido paga com recurso a crédito bancário, que desta forma também acresceu à matéria colectável.

É assim evidente o lapso incorrido na liquidação, que ignorou o facto do contribuinte ter provado a origem dos meios usados no pagamento do preço, adquirindo carácter sancionatório sem a habilitação legal indispensável e, portanto, em violação da Constituição (cff. artigo 29°, n°. 3). Porém,

A recorrente imputa à douta sentença recorrida, que anulou a manifestamente injusta liquidação, vícios de julgamento, por errada interpretação dos factos, nas conclusões I a X e por errada interpretação de Direito, nas conclusões XI a XX. Ora,

Nos termos do n°. 3 do artigo 63° da L.G.T. só podia haver mais de um procedimento externo de fiscalização respeitante ao mesmo sujeito passivo ou obrigado tributário, imposto e período de tributação mediante decisão, fundamentada com base em factos novos, do dirigente máximo do serviço.

No caso dos autos houve dois procedimentos de inspecção, sem qualquer justificação (um, a coberto do Despacho n.° ….., destinado à consulta, recolha e cruzamento de elementos e o segundo, do qual resultou a fixação da matéria tributável, por recurso a métodos indirectos, a coberto da ordem serviço n.° …...

Como decidiu a douta sentença recorrida, esta ilegalidade do procedimento vicia a liquidação impugnada e tem como consequência a procedência da presente acção, decretada com este fundamento.

A douta sentença decidiu assim em conformidade com a Jurisprudência, senão unânime, pelo menos maioritária (cf. o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 29-06-2016, JORGE CORTÊS, Processo:09297/16, disponível em www.dgsi.pt). Ao invés,

Não é possível afirmar, como a recorrente, que não houve dois procedimentos porque tiveram finalidades diferentes, quando a proibição do n.° 3 do art. 63.° do LGT se refere ao procedimento externo de fiscalização, definido por oposição ao procedimento interno e respeitante à classificação do procedimento quanto ao lugar (art. 13.° do RCPIT), portanto independente da sua classificação quanto ao fim (art. 12.° do RCPIT), âmbito ou extensão (art. 14.° do RCPIT). E,

10ª

Também não é possível afirmar, com a recorrente, que houve apenas um procedimento, em que foi substituída a credenciação (cit. conclusão X), por falta de correspondência com os factos provados. Mas, se assim fosse, sem conceder,

11ª

A ilegalidade incorrida no decurso desse procedimento, que então teria durado mais de seis meses, determinaria a caducidade do direito a liquidar impostos (cff. artigo 36°, n°. 2 do Regulamento da Inspecção Tributária, aprovado pelo DL 413/98, de 31.12 e Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 6.02.2007, José Correia, Proc. 01456/06, disponível em www.dusi.pt) e, portanto, a nulidade da liquidação impugnada. Por outro lado,

12ª

Nas Conclusões XI até final, a Recorrente suscita questões que não foram conhecidas na douta sentença recorrida, por não terem sido suscitadas no processo, pelo que está vedado ao tribunal superior emitir pronúncia sobre elas (v.g. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10-12- 2015, Processo 677/12.4TTALM.L1.S1, Melo Lima). De qualquer modo, sempre se dirá,

13ª

Não se pode afirmar que a liquidação do imposto constitui execução da decisão proferida no processo em que, sem sucesso, foi impugnada a decisão de recorrer ao método indirecto de determinação da matéria colectável, instaurada nos termos do n°. 7 do artigo 89°-A da LGT (cf. Conclusão XI), pois logicamente a decisão judicial de improcedência não carece de execução.

14ª

Também não se pode afirmar que a douta sentença violou o artigo 6.º do RCPIT quando é a administração tributária que deliberadamente ignora a verdade material, ao incluir na matéria colectável 548.677,69 Euros obtidos por empréstimo bancário.

15ª

E também não se pode afirmar que os vícios da liquidação e do processo que a antecede não podem ser invocados na impugnação desta, nos termos do n°. 7 do artigo 89°-A da LGT e do artigo 146°-B, do CPPT, porque nessa interpretação estas normas seriam inconstitucionais, por ofensa do princípio da tutela judicial efectiva e do princípio da justiça, inscritos nos artigos 20.° e 268.°, n.° 4, da CRP.

16ª

A recorrente não o alega e também se não entende, qual o direito constitucionalmente protegido que poderia justificar o impedimento de recurso a juízo para impugnar a liquidação com fundamento nos vícios de procedimento, ainda não conhecidos judicialmente, direito indispensável para justificar a restrição àquele direito fundamental (cfr. artigo 18.º da Constituição). Com efeito,

17ª

A excepção de caso de julgado apenas impede o tribunal de se pronunciar de novo sobre os fundamentos de facto e de direito em que se baseou a anterior pretensão anulatória do acto impugnado (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 27-06-2018, Aragão Seia, Processo n°. 0525/18, disponível em www.dgsi.pt). Assim,

18a

A avaliação indirecta que está na origem da liquidação de IRS impugnada apenas se encontra fixada e consolidada quanto aos vícios que lhe foram imputados no processo instaurado ao abrigo do n°. 7 do artigo 89°-A da LGT. Mas ainda que assim se não devesse entender, o que não se concede,

19ª

Constitui entendimento maioritário da Jurisprudência que é sempre possível invocar os erros incorridos na liquidação do imposto (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 8.07.2015, Ascensão Lopes, proferido no Proc. 0225/15, disponível em www.dgsi.pt).

20ª

No caso dos autos, a liquidação incorre em evidente lapso, pois é evidentemente errado determinar a matéria colectável por referência ao preço de imóvel comprado, sem desconto do valor cuja origem o contribuinte logrou provar ou, quando menos, dos empréstimos obtidos, como sucedeu. Por fim, também por mera cautela de patrocínio, sem conceder,

21ª

Na procedência do recurso, que não se concede, requer-se a ampliação do seu objecto para conhecimento dos fundamentos da impugnação em que os ora recorridos decaíram, ao abrigo do n°. 1 do artigo 636° do CPC. Designadamente,

22ª

Como se reconheceu na, aliás, douta sentença, a liquidação impugnada foi efectuada em data anterior à decisão proferida pelo Tribunal Constitucional em 30.03.2007, que pôs termo ao processo instaurado nos termos do n° 7 do artigo 89°-A da L.G.T„

23ª

A liquidação é por isso nula, pois foi proferida em data em que o seu objecto era impossível, dado o efeito suspensivo do recurso ainda pendente (cfr. artigo 161°, n°. 2, al. c) do CPA e n°. 7, do artigo 8 9o-A da LGT). Acresce que,

24ª

A aliás douta sentença não conheceu do alegado vício de violação de lei por erro nos pressupostos de facto, por alegadamente já estar consolidada a matéria tributável e não ser agora possível questioná-la. Porém,

25ª

São distintas a decisão de avaliação da matéria colectável pelo método indirecto e a decisão de liquidação do imposto e, se a primeira é decidida no recurso interposto nos termos do n°. 7 do artigo 89°-A da LGT, a segunda, logicamente posterior, está também sujeita à fiscalização jurisdicional (cf. Acórdão do STA de 8.07.2015, Ascensão Lopes, Proc. 0225/15, disponível em www.dgsi.pt e Acórdão do Tribunal Constitucional n.° 554/2009).

26ª

Ao assim não decidir, a aliás douta sentença fez errada interpretação dos artigos 9º do Código Civil, 11º, n° 1, 54°, 81°, n°. 1, 89°-A, n° 7, 95°, n° 1 e 2, al. a) e c) da LGT, 161°, n°. 2, al. c) e 163° do CPA ou, quando menos, o n°. 7 do artigo 89°-A da LGT em sentido que viola a garantia constitucional de acesso a Juízo e os princípios da igualdade e capacidade contributiva, acolhidos nos artigos 13°, 18°, 20°, 104 e 268°, n°. 4 da Constituição, pelo que,

27ª

Na hipótese que não se concede do recurso ser julgado procedente, deve ainda assim a impugnação ser julgada procedente com fundamento na nulidade da liquidação, por impossibilidade do seu objecto, como se refere na conclusão 23ª ou, quando menos, sem conceder, deve ser ordenada a baixa do processo para que a primeira instância apure o valor que os recorridos lograram justificar, sendo a impugnação julgada procedente nesse montante, se diferente da totalidade da matéria colectável indevidamente considerada (cff. artigo 665°, n°. 2 do C.P.C.), apenas assim se fazendo a costumada Justiça”.


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A Digna Magistrada do Ministério Público (DMMP) neste Tribunal Central Administrativo Sul emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

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Colhidos os vistos dos Exmos. Juízes Desembargadores Adjuntos, cumpre, agora, decidir.

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II-FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A sentença recorrida julgou provada a seguinte matéria de facto:


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Com relevância para a decisão da causa, consideram-se provados os seguintes factos:

A) - Em 19 de março de 2003, foi proferido Despacho n.º ….. “nos termos dos n.ºs 4 e n.ºs 5 do art. 46.º do RCPIT, pelo qual foi determinado “Proceda-se à Inspecção Externa» dos Impugnantes, abrangendo o exercício de 2001, tendo por fim a consulta, recolha e cruzamento de dados, tendente “ à avaliação do disposto no artigo 89.º-A da LGT” - facto extraído do despacho e carta aviso a fls. 30 a 33 dos autos, conjugado com fls. 27 do PAT apenso, e, bem, assim, com o depoimento da 1.ª testemunha;

B) - Em 26 de agosto de 2004, foi emitido o inscrito designado “NOTA DE DILIGÊNCIA”, “nos termos do artigo 61.º do RCPIT”, segundo a qual a inspeção identificada na alínea antecedente decorreu entre 25.08.2004 e 26.08.2004 - facto extraído da nota de diligências a fls. 30 dos autos, cfr. depoimento da 1.ª testemunha;

C) - Em 18 de novembro de 2004, foi emitida a Ordem de Serviço n.º ….., “com fundamento no art. 46.º do RCPIT”, pela qual foi determinada “Proceda-se à Inspecção Externa» dos Impugnantes, de âmbito parcial, que incidiu sobre o IRS do ano de 2001, destinada à verificação e cumprimento das correspondentes obrigações tributárias - facto extraído de fls. 27 do PAT apenso, conjugado com a carta aviso, nota de diligências referente à aludida ordem de serviço de fls. 34 a 37 dos autos, conjugado com o depoimento da 1.ª testemunha;

D) - Em 19 de abril de 2005, foi emitido o inscrito designado “NOTA DE DILIGÊNCIA”, “nos termos do artigo 61.º do RCPIT”, segundo a qual a inspeção identificada na alínea antecedente decorreu entre 02.02.2005 e 19.04.2005 - facto extraído da nota de diligências a fls. 36 dos autos, cfr. depoimento da 1.ª testemunha;

E) - No âmbito da inspeção identificada na alínea antecedente, a 23 de setembro de 2005, foi elaborado o “Relatório de Acção Inspectiva”, nos termos do qual foi proposta a fixação de rendimento coletável de IRS, por recurso a métodos indiretos, no montante de € 239.422,99, para o ano de 2001, a título de rendimentos da categoria G, “de acordo com a tabela a que se refere o n.º 4 do referido artigo 89.º-A”, nos seguintes termos: “(...)



(...)” - cfr. Relatório de Acção Inspetiva constante de fls. 23. e ss. do PAT apenso, que se dá por integralmente reproduzido, cfr. depoimento da 1.ª testemunha;

F) - Em 29 de setembro de 2005, o Diretor-geral dos Impostos proferiu despacho de concordância exarado no “Relatório de Acção Inspectiva” identificado na alínea antecedente - cfr. despacho de fls. 23 do PAT apenso;

G) - Em 29 de setembro de 2005, o Diretor-geral dos Impostos proferiu despacho de fixação de rendimento tributável, com o seguinte teor:

“Nos termos da alínea d) do artigo 87.º e do artigo 89.º-A da Lei Geral Tributária, fixo o rendimento tributável, a enquadrar na categoria G, no montante de € duzentos trinta e nove quatrocentos e vinte e dois euros, noventa e nove cêntimos” - cfr. fls. 22 do PAT apenso;

H) - Em 21 de outubro de 2005, os Impugnantes apresentaram recurso da referida decisão, que correu os seus termos no Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada, sob o n.º 717/05.3BEALM - facto que se extrai de fls. 75 a 83 do PAT apenso, confirmado por consulta oficiosa da Plataforma SITAF do processo n.º 717/05.3BEALM;

I) - Por sentença proferida a 30 de janeiro de 2006, no âmbito do processo n.º 717/05.3BEALM, foi decidido julgar improcedente o recurso identificado na alínea antecedente, “mantendo a fixação da matéria tributável em sede de IRS, a enquadrar na categoria G do ano de 2001, com recurso a manifestações de fortuna, nos termos do art.º 89-A da Lei Geral Tributária, no montante de € 239.422,99” - facto que se extrai de fls. 75 a 83 do PAT apenso, confirmado por consulta oficiosa da Plataforma SITAF do processo n.º 717/05.3BEALM;

J) - Em 17 de fevereiro de 2006, os Impugnantes interpuseram recurso jurisdicional para o Tribunal Central Administrativo Sul, da decisão proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada, identificada na alínea antecedente, que, por Acórdão de 20 de abril de 2006, negou provimento ao recurso e confirmou a sentença recorrida - facto que se extrai da consulta oficiosa da Plataforma SITAF do processo n.º 717/05.3BEALM;

K) - Em 5 de maio de 2006, os Impugnantes interpuseram recurso jurisdicional para o Supremo Tribunal Administrativo, do Acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo Sul, identificado na alínea antecedente, que, por Acórdão de 29 de novembro de 2006, não admitiu o recurso - facto que se extrai da consulta oficiosa da Plataforma SITAF do processo n.º 717/05.3BEALM;

L) - Em 22 de dezembro de 2006, os Impugnantes interpuseram recurso para o Tribunal Constitucional do Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Administrativo, identificado na alínea antecedente - facto que se extrai da consulta oficiosa da Plataforma SITAF do processo n.º 717/05.3BEALM;

M) - O referido recurso foi admitido pelo Supremo Tribunal Administrativo, tendo-lhe sido atribuído efeito suspensivo - facto que se extrai de fls. 20 dos autos, confirmado por consulta oficiosa da Plataforma SITAF do processo n.º 717/05.3BEALM;

N) - Em 22 de fevereiro de 2007, o Tribunal Constitucional proferiu a Decisão Sumária n.º 157/2007, que incidiu sobre o recurso identificado na alínea antecedente, na qual decidiu não conhecer o objeto de recurso, decisão que foi comunicada às partes por ofícios de 23.02.2007- facto que se extrai da consulta oficiosa da Plataforma SITAF do processo n.º 717/05.3BEALM;

O) - Em 8 de março de 2007, tendo sido notificados da referida decisão sumária que decidiu não conhecer o objeto de recurso, os Impugnantes apresentaram junto do Tribunal Constitucional reclamação para a conferência - facto que se extrai da consulta oficiosa da Plataforma SITAF do processo n.º 717/05.3BEALM;

P) - Por telecópia da Direção de Serviços de Consultadoria Jurídica e do Contencioso, com data de entrada nos Serviços de Inspeção Tributária da Direção de Finanças de Setúbal de 27 de fevereiro de 2007, foi comunicado o seguinte:

“Junto envio a V. Exa. a decisão sumária proferida pelo Tribunal Constitucional sobre o recurso interposto do Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo. Em vista da decisão ora notificada cessa o efeito suspensivo previsto no n.º 6 do artigo 89.º-A da LGT” - cfr. fls. 315 dos autos;

Q) - Consta do ofício n.º ….., de 13 de março de 2007, dos Serviços de Inspeção Tributária da Direção de Finanças de Setúbal, dirigido ao Chefe do Serviço de Finanças de Setúbal 2, que incidiu sobre o auto de notícia - IRS/2001, designadamente o seguinte:

R) - Em 27 de março de 2007, foi emitida a «Demonstração de Liquidação de IRS» oficiosa n.° ….., relativo ao ano de 2001, tendo sido foi fixado como rendimento coletável o valor de € 239.422,99, na qual foi apurado o montante a pagar de € 85.718,20, a qual foi notificada aos Impugnantes em 04.04.2007 - cfr. fls. 127-130 do PAT apenso, conjugadas com a demonstração de liquidação a fls. 18 dos autos; quanto à data da notificação, cfr. facto alegado no artigo 2.º da petição inicial e não impugnado pela Fazenda pública; cfr. comprovativo dos CTT, a fls. 19 dos autos;

S) - Em 29 de março de 2007, foi emitida a «Nota de Cobrança - demonstração da compensação» n.º ….., em virtude do acerto de contas efetuado por «total de acerto de liquidação n.° …..», no valor de € 85.718,20, de acerto de «juros compensatórios», no valor de € 16.143,35, da «regularização de documento n.º …..», no valor de € 11,61, e do «estorno da liquidação.º …..», no valor de € 11,61, no montante total de € 101.861,55, que foi notificada aos Impugnantes no dia 17.04.2007 - cfr. print da nota de cobrança e comprovativos dos CTT, de fls. 130-133 do PAT apenso;

T) - Em 30 de março de 2007, o Tribunal Constitucional proferiu o Acórdão n.º 251/2007, em que decidiu indeferir a reclamação para a conferência identificada na alínea O), o qual foi comunicado às partes por ofícios de 2 de abril de 2007 - facto que se extrai da consulta oficiosa da Plataforma SITAF do processo n.º 717/05.3BEALM;

U) - A presente impugnação deu entrada no Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada, em 27 de julho de 2007 - cfr. aposição do carimbo a fls. 1 dos autos;

V) - Em 22 de novembro de 2004, o 1.º Impugnante sofreu um acidente de viação, no qual sofreu diversas fraturas e traumatismos nos membros e um traumatismo craniano, com perda de conhecimento - cfr. documentos de fls. 192 a 196 dos autos, conjugado com o depoimento das testemunhas;

W) - A ocorrência identificada na alínea antecedente dificultou que o Impugnante procedesse, pessoalmente, à entrega dos documentos, das respostas/esclarecimentos, designadamente na reunião havida com o técnico de inspeção da AT, relativos às fontes de pagamento do preço do imóvel à inspeção - cfr. documentos de fls. 192 a 196 dos autos, conjugado com o depoimento das testemunhas;

X) - Foi F….., filha dos Impugnantes, que providenciou pela obtenção de documentos a apresentar à inspeção, tendo efetuado, designadamente, diligências junto de instituições bancárias a solicitar fotocópias de cheques e talões de depósitos, que apresentou à inspeção posteriormente - cfr. depoimento da 2.ª testemunha;

Y) - Os elementos recolhidos pela AT no âmbito do Despacho n.º ….., melhor identificado na alínea A) do probatório, relevaram-se insuficientes, daí a emissão da Ordem de Serviço identificada na alínea C) do probatório - cfr. depoimento da 1.ª testemunha.


***

A decisão recorrida consignou como factualidade não provada o seguinte:

“Não existem factos não provados com relevância para a decisão em causa, atenta a causa de pedir.”


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Consta na motivação da matéria de facto, o seguinte: “ a decisão da matéria de facto efetuou-se com base no exame crítico dos documentos, não impugnados, constantes dos autos, do PAT apenso e do SITAF, na posição processual assumida pelas partes nos articulados, e, bem assim, no depoimento prestado pelas duas testemunhas inquiridas, que contribuíram [juntamente com a prova documental] ou relevaram para a verificação dos factos constantes das alíneas A) a E) e V) a Y), como é especificado em cada alínea do probatório.

No que concerne à 1.ª testemunha O….., o mesmo confirmou que foi o técnico da AT que procedeu à conferência da documentação e aos contactos estabelecidos com a inspeção.

Explicou quais as informações e documentos que foram recolhidos, por confronto com o RIT, as finalidades prosseguidas no âmbito do despacho n.º …..e da ordem de serviço n.º …...

Referiu que não estava certo de que as dificuldades sentidas na entrega dos documentos necessários à inspeção eram apenas resultado do acidente de viação do 1.º Impugnante, que era do seu conhecimento, pois salientou que a contabilidade não estava organizada, mesmo aquela mais antiga, anterior à referida ocorrência.

A 2.ª testemunha, F….., apesar de ser filha dos Impugnantes, prestou o seu depoimento de forma segura e credível, contribuindo para a fixação dos factos constantes das alíneas V) a X) do probatório. Explicou as implicações do acidente de viação na saúde do seu pai, ora 1.º Impugnante e, ainda, o modo como foi organizada a documentação a apresentar à inspeção e as diligências por si efetuadas nesse contexto junto de instituições bancárias.”


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III-FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

In casu, a Recorrente não se conforma com a decisão proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada, que julgou totalmente procedente a impugnação judicial deduzida contra a liquidação adicional de IRS, referente ao ano de 2001, no valor de €101.861,55.

Em ordem ao consignado no artigo 639.º, do CPC e em consonância com o disposto no artigo 282.º, do CPPT, as conclusões das alegações do recurso definem o respetivo objeto e consequentemente delimitam a área de intervenção do Tribunal ad quem, ressalvando-se as questões de conhecimento oficioso.

Assim, ponderando o teor das conclusões de recurso cumpre aferir se a sentença padece de erro de julgamento, de facto e de direito, por ter decidido que a Administração Tributária havia incorrido em vício de violação de lei decorrente da preterição do normativo 63.º, nº 3 da LGT. Para o efeito, cumpre, preliminarmente, aquilatar da possibilidade de discussão contenciosa nesta lide e na de impugnação judicial do aludido vício.

Procedendo o aludido erro de julgamento, atenta a ampliação do objeto do recurso[1], importa conhecer das questões nas quais, os Recorridos, decaíram, concretamente:
Ø Vício de violação de lei, por antecipação da liquidação antes da decisão definitiva sobre a determinação da matéria coletável;
Ø Caducidade do direito à liquidação, pelo decurso de quatro anos;
Ø Erro nos pressupostos na fixação da matéria coletável, por se mostrar provada a fonte de acréscimo de património dos Impugnantes;

Apreciando.

A Recorrente defende que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento de facto e de direito, porquanto existiu uma ação de inspeção externa, a coberto de um despacho do Diretor de Finanças Adjunto, n.º ….., que visou, tão-somente, a consulta, recolha e cruzamento de elementos, no âmbito da qual se constatou a necessidade de aplicação da avaliação indireta da matéria coletável, relativamente ao ano de 2001.

Mais aduz que, face a tal constatação, e uma vez que de uma ação inspetiva, efetuada a coberto de um despacho, não podem resultar correções, existiu a necessidade de emitir uma ordem de serviço, para prosseguir a inspeção dos sujeitos passivos e proceder à fixação do rendimento tributável em sede de IRS, a enquadrar na categoria G, do ano de 2001, atento o disposto no artigo 89.º-A, da LGT.

Pelo que, o procedimento inspetivo externo iniciado com o Despacho n.º ..... foi concluído a coberto da Ordem de Serviço n.º ….., que definiu o âmbito, a extensão da ação inspetiva e o ano a fiscalizar, e foi concluído com a elaboração de um relatório final onde foi fixado o rendimento coletável dos aqui impugnantes, inexistindo, assim, qualquer violação do artigo 63.º, da LGT, mas, tão-somente, uma substituição da credenciação.

De resto, outra não poderia ser a interpretação a atender à realidade dos factos, atento, desde logo, o fim do procedimento de inspeção consignado no artigo 6.º do RCPIT.

Mais sustenta que, de todo o modo, todos os vícios de que padece a decisão de fixação da matéria coletável dos Recorridos têm de ser invocados no recurso apresentado, nos termos do disposto no artigo 146.º-B, do CPPT, logo a alegada ilegalidade que conduziu à decisão de procedência da presente impugnação judicial (violação do disposto no artigo 63.º, n.º 3, da LGT) não consubstanciando um vício que possa imputar-se à liquidação de IRS impugnada, e face à natureza de ato destacável da decisão de fixação da matéria coletável, prevista no artigo 89.º-A, da LGT, não pode servir de fundamento à impugnação da liquidação, donde ser o fundamento de anulação do ato de liquidação sindicado.

Conclui, assim, que a decisão sindicada violou o disposto nos artigos 54.º, 63.º, n.º 3, e 89.º-A, n.ºs 7 e 8, todos da LGT, e artigo 6.º, do RCPIT, tendo, por isso, de ser revogada.

Dissentem os Recorridos, relevando, desde logo, que a questão atinente à insusceptibilidade de discussão contenciosa no processo de impugnação dos vícios do procedimento de inspeção tributária é uma questão nova, logo insuscetível de ser apreciada na presente lide recursiva.

Não obstante o exposto, aduzem que, contrariamente ao propugnado pela Recorrente, o aludido vício de violação de lei sempre podia ser apreciado na impugnação judicial do ato de liquidação, por ser uma ilegalidade a montante e que inquina o ato de liquidação final.

Mais defendem que a avaliação indireta que está na origem da liquidação de IRS impugnada apenas se encontra fixada e consolidada quanto aos vícios que lhe foram imputados no processo instaurado ao abrigo do nº 7, do artigo 89.°-A da LGT.

Ademais, sublinham que não se pode afirmar que os vícios da liquidação e do processo que a antecede não podem ser invocados na impugnação desta, nos termos do n°. 7 do artigo 89°-A da LGT e do artigo 146°-B, do CPPT, porquanto tal interpretação atentaria contra os princípios da tutela judicial efetiva e da justiça, inscritos nos artigos 20.° e 268.°, n.° 4, da CRP.

Convocam, outrossim, a inexistência de qualquer erro de julgamento que possa ser imputado à sentença, tendo a mesma decidido, desde logo, em conformidade com a Jurisprudência dos Tribunais Superiores.

In fine, aduzem que mesmo que se equacionasse, no limite, a alegada substituição de credenciação sempre o procedimento teria excedido os seis meses de duração, determinando, por isso, a caducidade do ato de liquidação impugnado.

Vistas as posições das partes, apreciemos.

Comecemos pela questão nova.

É entendimento pacífico e consolidado na doutrina e na jurisprudência, que não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objeto de apreciação da decisão recorrida, pois os recursos são meros meios de impugnação das decisões judiciais pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação, não servindo para criar decisões sobre matéria nova, não submetida ao exame do Tribunal de que se recorre, visto a sua apreciação implicar a preterição de um grau de jurisdição[2].

Como doutrina Abrantes Geraldes “a natureza do recurso, como meio de impugnação de uma anterior decisão judicial, determina outra importante limitação ao seu objecto, decorrente do facto de, em termos gerais, apenas poder incidir sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, não podendo confrontar-se o Tribunal ad quem com questões novas[3]”.

A única exceção a esta regra, como bem se compreende, são as questões de conhecimento oficioso, das quais o Tribunal tem a obrigação de conhecer, mesmo perante o silêncio das partes.

No caso vertente, como visto, a Recorrente convoca a insusceptibilidade de discussão contenciosa no processo de impugnação judicial do ato de liquidação de IRS, do vício procedimental atinente à existência de dois procedimentos inspetivos externos, porquanto, no seu entendimento, tinha de ser convocado e dirimido no recurso regulamentado no artigo 146.º do CPPT.

De facto, tal questão não foi analisada pela primeira instância, e isto, tão somente, porque não foi convocada pela Fazenda Pública, nem mesmo pelo DMMP, enquanto garante da legalidade, contudo ajuizamos que tal questão mais não se reconduz que à inimpugnabilidade do ato por consolidação na ordem jurídica, isto é, à inimpugnabilidade da liquidação face ao caso julgado decorrente do processo elencado na alínea H) do probatório, donde, questão de conhecimento oficioso.

Aliás, é a própria Recorrente que nas suas contra-alegações que identifica e qualifica a questão como sendo a exceção de caso de julgado, ainda que refutando-a, no caso vertente.

E por assim ser, entendemos que a mesma pode e deve ser conhecida nesta lide recursiva.

Face ao exposto, importa, então, analisar se no âmbito de um processo de impugnação judicial que visa a anulação de um ato de liquidação de IRS -dimanante de ação inspetiva que determinou a fixação de rendimento coletável, por recurso a métodos indiretos, a título de rendimentos da categoria G, a qual já foi objeto de discussão contenciosa mediante o recurso regulado no artigo 146.º B, melhor evidenciado na alínea H) da factualidade assente, já transitado- pode ser apreciado um vício do próprio procedimento inspetivo.

E a resposta é afirmativa. Senão vejamos.

Preceitua o artigo 54.º do CPPT, sob a epígrafe de “impugnação unitária”, que: “Salvo quando forem imediatamente lesivos dos direitos do contribuinte ou disposição expressa em sentido diferente, não são suscetíveis de impugnação contenciosa os atos interlocutórios do procedimento, sem prejuízo de poder ser invocada na impugnação da decisão final qualquer ilegalidade anteriormente cometida.”

Da letra do citado preceito legal resulta que só é possível, em princípio, impugnar o ato final do procedimento tributário, uma vez que só esse ato lesa, efetiva e imediatamente, a esfera jurídica do sujeito passivo, sendo que no contencioso tributário o critério da impugnabilidade dos atos é o da sua lesividade objetiva, imediata, atual e não meramente potencial[4].

Com efeito, os atos interlocutórios do procedimento não são, em princípio, imediatamente lesivos, daí que a sua ilegalidade só possa ser sindicada aquando da eventual impugnação deduzida contra o ato final lesivo, ressalvadas as situações em que os atos interlocutórios cuja sindicância judicial imediata e autónoma se encontre expressamente prevista na lei (são os denominados atos destacáveis, que na falta de impugnação direta se fixam na ordem jurídica, com a inerente preclusão da discussão da sua legalidade) ou de atos que, pese embora inseridos no procedimento tributário e anteriores à decisão final, sejam imediatamente lesivos, facultando-se, assim, a impugnação imediata, sem prejuízo de a sua ilegalidade poder, ainda, ser suscitada na impugnação que venha a ser interposta contra o ato final.

Como vem sendo afirmado, de forma pacífica e reiterada, pela jurisprudência do STA[5], a decisão de avaliação da matéria tributável regulamentada no artigo 89º-A da LGT constitui ato que, embora preparatório da liquidação (em sentido estrito), assume a natureza de ato prejudicial ou ato destacável porquanto, define, desde logo, uma situação jurídica, inserindo-se nas relações intersubjetivas e condicionando irremediavelmente a decisão final.

Com efeito, dispunha, à data, o n.º 7 do artigo 89.º-A da Lei Geral Tributária, sob a epígrafe de “Manifestações de fortuna e outros acréscimos patrimoniais não justificados”, que:

“Da decisão de avaliação da matéria coletável pelo método indireto constante deste artigo cabe recurso para o tribunal tributário, com efeito suspensivo, a tramitar como processo urgente, não sendo aplicável o procedimento constante dos artigos 91.º e seguintes”.

Preceituando, por seu turno, n.º 8 do mesmo preceito legal que:

“Ao recurso referido no número anterior aplica-se, com as necessárias adaptações, a tramitação prevista no artigo 146.º-B do Código de Procedimento e de Processo Tributário”.

Estatuindo, ainda neste particular, os números 2 e 5, do citado artigo 146.º-B CPPT, quanto à tramitação do recurso que:

“2 - A petição referida no número anterior deve ser apresentada no prazo de 10 dias a contar da data em que foi notificado da decisão, independentemente da lei atribuir à mesma efeito suspensivo ou devolutivo

5. As regras dos números precedentes aplicam-se, com as necessárias adaptações, ao recurso previsto no artigo 89.º-A da Lei Geral Tributária”.

Dimana, assim, inequívoco que caso o sujeito passivo pretenda discutir a decisão de avaliação da matéria coletável pelo método indireto do artigo 89.º-A da Lei Geral Tributária -constituindo este, como vimos, ato prejudicial/destacável- deve interpor recurso para o Tribunal Tributário.

Razão pela qual, uma vez “[d]ecidido que seja o «recurso» de tal decisão de avaliação da matéria colectável (ou na falta dele) constitui-se sobre a questão caso decidido ou caso resolvido, de efeitos similares aos do caso julgado judiciário, consolidando-se a decisão[6]”.

Porém, se é certo que constitui caso julgado relativamente à determinação da matéria coletável apurada por via dos métodos indiretos, e à prova efetiva dos sinais exteriores de riqueza, o mesmo não sucede com as ilegalidades procedimentais e bem assim com a arguição de vícios que em nada contendam com essa determinação, mormente, falta de fundamentação.

Com efeito, face ao consignado no artigo 99.º do CPPT, o ato de liquidação do respetivo tributo pode ser impugnado com fundamento em “qualquer ilegalidade”, ressalvada, como visto, a questão (prejudicial) do valor da matéria coletável, a qual tem autonomia na presente situação.

Noutra formulação, o prévio recurso ao abrigo do artigo 146.º B do CPPT apenas é um pressuposto ou condição de procedibilidade quando a impugnação tem por fundamento o erro nos pressupostos de aplicação de métodos indiretos e a prova dos manifestações de fortuna e não quando, como no caso dos autos, os Impugnantes/Recorridos tenham invocado como fundamento da impugnação judicial a violação do artigo 63.º da LGT, atenta a irrepetibilidade das inspeções.

Ora, face ao supra expendido, dimana inequívoco que não estava precludida a possibilidade de discussão contenciosa do vício de violação de lei concatenado com a irrepetibilidade das inspeções, porquanto nos encontramos perante um vício que em nada contende com os pressupostos e com o apuramento da matéria coletável, e por assim ser, não incorreu o Tribunal a quo em qualquer ilegalidade na sua apreciação.


***

Aqui chegados, compete, então, apreciar se nos encontramos perante a existência de um vício de violação de lei, decorrente da existência de dois procedimentos de inspeção externa, relativamente ao mesmo sujeito passivo e abrangendo o mesmo exercício, subsumindo-se a questão no normativo 63.º, nº 3, da LGT, como propugnou o Tribunal a quo ou se nos encontramos perante uma mera substituição de credenciação, como sustenta a Recorrente.

Para o efeito, atentemos, desde já, na fundamentação que sustentou a procedência da impugnação judicial.

O Tribunal a quo, relevou que “[e]stando provado nos autos que, quanto ao exercício de 2001, e relativamente aos Impugnantes, decorreram dois procedimentos inspetivos externos, um, a coberto do Despacho n.º ….., destinado à consulta, recolha e cruzamento de elementos; outra, a coberto da ordem serviço n.º ….., do qual resultou a fixação da matéria tributável, por recurso a métodos indiretos, não pode senão concluir-se pela ilegalidade do procedimento.”

Mais sublinhando que “[a] esta conclusão não obsta o facto de os objetivos visados pelas ações inspetivas serem distintos, uma vez que (…) a restrição prevista no n.° 3 [atual n.º 4] do artigo 63.° da LGT, é estabelecida em função, não do tipo ou fim do procedimento, mas sim do local onde o mesmo deva ocorrer”.

Adensando, ainda, que “[o] legislador admitiu como possível que esse novo procedimento ocorra desde que a AT emita despacho fundamentado especificando essa situação, i.e., emita um despacho fundamentado em factos novos. O facto é que tal Despacho, a ser emitido pela entidade competente, não foi proferido no caso concreto.”

Concluindo, desta feita, que “[n]o âmbito do procedimento anterior à liquidação foi violado o disposto no artigo 63.º, n.º 3 da LGT, a liquidação em apreço enferma de vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de direito, e nessa medida, a consequência jurídica dessa violação é a anulação, nos termos do disposto no artigo 135.º do CPA [que corresponde ao atual n.º 1 do artigo 163.º].”

E, de facto, nenhuma censura merece a decisão do Tribunal a quo, a qual decidiu com total acerto e de forma bem fundamentada, o caso vertente.

Expliquemos porque o assim o entendemos, começando por convocar o quadro jurídico que para o caso releva.

Dispunha, à data, o artigo 63.º, n.º 3 da LGT sob a epígrafe de “Inspeção” que:

“3 - O procedimento da inspeção e os deveres de cooperação são os adequados e proporcionais aos objetivos a prosseguir, só podendo haver mais de um procedimento externo de fiscalização respeitante ao mesmo sujeito passivo ou obrigado tributário, imposto e período de tributação mediante decisão, fundamentada com base em factos novos, do dirigente máximo do serviço, salvo se a fiscalização visar apenas a confirmação dos pressupostos de direitos que o contribuinte invoque perante a administração tributária e sem prejuízo do apuramento da situação tributária do sujeito passivo por meio de inspeção ou inspeções dirigidas a terceiros com quem mantenha relações económicas”.

O citado normativo consagra o princípio da irrepetibilidade do procedimento de inspeção externo, razão pela qual urge, desde logo, convocar para efeitos da delimitação do conceito nele contemplado, o normativo 13.º do RCPIT, o qual preceitua quanto ao lugar do procedimento de inspeção que o mesmo pode classificar-se em:

“a) Interno, quando os atos de inspeção se efetuem exclusivamente nos serviços da administração tributária através da análise formal e de coerência dos documentos;

b) Externo, quando os atos de inspeção se efetuem, total ou parcialmente, em instalações ou dependências dos sujeitos passivos ou demais obrigados tributários, de terceiros com quem mantenham relações económicas ou em qualquer outro local a que a administração tenha acesso.”

Ora, fazendo uma interpretação conjugada dos aludidos normativos resulta que sempre que o procedimento de inspeção seja qualificado como externo-quando os atos de inspeção se efetuem, total ou parcialmente, em instalações ou dependências dos sujeitos passivos ou demais obrigados tributários, de terceiros com quem mantenham relações económicas ou em qualquer outro local a que a administração tenha acesso- e desde que respeite ao mesmo sujeito passivo ou obrigado tributário, imposto e período de tributação só pode existir um único procedimento, ressalvadas as situações excecionais contempladas, in fine, no normativo legal, ou existindo situações novas, mas desde que exista decisão fundamentada do Dirigente máximo dos Serviços.

Como doutrina José Maria Fernandes Pires[7]:

“[p]or razões de certeza e segurança jurídicas, sempre que se verifiquem os pressupostos que justificam a realização excepcional de mais do que uma acção de inspecção externa em relação ao mesmo contribuinte, imposto e período de tributação, terá de haver uma decisão expressa e devidamente fundamentada do dirigente máximo do serviço (Director-Geral da AT) para efectuação de novo procedimento de inspecção externa. Compreende-se esta limitação, dada a vinculação da administração tributária ao princípio do inquisitório e os poderes e prerrogativas legais de que dispõem os órgãos da administração tributária no procedimento de inspecção.”

Dir-se-á, portanto, que a aludida regra da proibição da repetição do procedimento inspetivo externo consignada no citado normativo visa garantir a estabilidade da relação jurídica fiscal e a unidade do ato tributário, as quais, de resto, seriam colocadas em crise com a possibilidade de realização de inspeções sucessivas sobre o mesmo sujeito passivo, imposto e período de tributação.

Aqui chegados, visto o direito que releva para apreciação da presente lide, vejamos, então, o que resulta do acervo fático dos autos, sublinhe-se não impugnado.

Resulta do acervo probatório que:

Foi dado início a uma primeira ação de inspeção externa a qual foi realizada na sequência da prolação do Despacho n.º ….., de 19 de março de 2003, proferido ao abrigo do normativo 46.º, nºs 4 e 5 do RCPIT, dele resultando, de forma expressa, a seguinte menção: “Proceda-se à Inspecção Externa”.

Mais dimana, em termos de âmbito e abrangência, que essa ação inspetiva compreendia o IRS, do ano/período de 2001, tendo por fim a consulta, recolha e cruzamento de dados.

Resultando, outrossim, assente que, foi dado início a uma segunda ação de inspeção materializada na sequência da ordem serviço n.º ….., emitida em 18 de novembro de 2004, que determinou a realização de um novo procedimento de inspeção externo aos Impugnantes, ora Recorridos, a incidir sobre o (mesmo) IRS de 2001.

Ora, face a todo exposto resulta, desde logo, inequívoco que nos encontramos, efetivamente, perante duas ações de inspeção externa, qualificação, de resto, nunca controvertida pela Administração Tributária, como bem salientou o Tribunal a quo. Aliás, é expressamente reconhecido pela Recorrente, no ponto III das conclusões de recurso que, “[o]s funcionários da Direção-Geral dos Impostos foram inicialmente credenciados para a realização da ação inspetiva externa que visava a avaliação do disposto no artigo 89.º-A, da LGT, através do Despacho do Exmo. Senhor Diretor de Finanças Adjunto, n.º …..”.

Assim, e estando provado nos autos que, relativamente ao exercício de 2001, e relativamente aos ora Recorridos, decorreram dois procedimentos inspetivos externos, um, credenciado pelo Despacho n.º ….., destinado à consulta, recolha e cruzamento de elementos, e outro, mediante a ordem serviço n.º ….., do qual resultou a fixação da matéria tributável, por recurso a métodos indiretos, não pode, senão, concluir-se pela ilegalidade do procedimento, atenta a violação do normativo 63.º, nº3 da LGT.

É certo que a Recorrente aduz que nos encontramos perante uma mera substituição de credenciação dentro de um mesmo procedimento inspetivo, até porque no âmbito de uma ação inspetiva realizada a coberto de um despacho não podem resultar correções, a verdade é que a aludida argumentação não pode lograr provimento, desde logo, porque nada nos autos e do probatório nos permite inferir pela substituição de uma credenciação, conforme é definida pelo artigo 46.º, nº2 do RCPIT, bem pelo contrário. Ademais, nem sempre a realização de procedimento de inspeção depende de emissão de uma Ordem de Serviço, conforme resulta expresso do artigo 46.º, nº4 do mesmo diploma legal.

Acresce que, não se pode descurar que “[o]s princípios e poderes à disposição dos serviços de inspecção são suficientes para que um único procedimento inspectivo externo seja eficaz, de modo a que a administração tributária cumpra a sua missão nesse domínio[8]”, logo só em situações excecionais, perfeitamente delimitadas na lei e justificadas, se poderá admitir mais do que um procedimento inspetivo, em nada se subvertendo a ratio legis subjacente no artigo 6.º do RCPIT.

Note-se que a tutela visada na disposição legal, que vimos analisando, coaduna-se com a segurança jurídica e a estabilidade da relação fiscal.

De sublinhar, outrossim, que a tal não obsta a circunstância de os objetivos visados pelas ações inspetivas serem distintos, pois na senda do propugnado pelo Tribunal a quo, a restrição contemplada no, à data, 63.°, nº 3, da LGT, é estabelecida em função, não do tipo ou fim do procedimento, mas sim do local onde o mesmo deva ocorrer.

Ademais, foi precisamente para acautelar situações limite ou de absoluta necessidade da ocorrência de duas inspeções externas relativamente ao mesmo ano, tributo e sujeito, por terem, entretanto, surgido novos factos relevantes para o âmbito e objetivo da inspeção que o legislador institui a possibilidade de um novo procedimento desde que a Administração Tributária proceda à emissão de um despacho devidamente fundamentado e materializando os factos novos.

Porém, como visto, in casu, esse despacho não foi prolatado. Note-se, ademais, que, nem tão-pouco, a Recorrente alvitrou nesse e para esse efeito.

De sublinhar, in fine, que em nada releva a circunstância de no âmbito da ação inspetiva realizada a coberto do Despacho nº ..... não ter resultado qualquer emissão de relatório inspetivo, aliás tal atuação mais não representa que o cumprimento da letra da lei, concretamente, do artigo 46.º n.º 7 do RCPIT, não podendo, por conseguinte, e face a essa circunstância, inferir-se no sentido preconizado pela Recorrente.

Este foi também o entendimento propugnado neste Tribunal no âmbito do processo nº 05674/12, datado de 14 de abril de 2015 -e bem assim nos Arestos que lhe sucederam, designadamente, os proferidos nos processos nº 132/08[9], e 06182/12, datados de 13 de dezembro de 2019 e 23 de abril de 2015, respetivamente-  transcrevendo-se excerto do seu sumário na parte que, ora, releva e com a qual se anui:

“III-Se nos autos se mostra provado que, quanto ao exercício de 2001 e relativamente à Recorrida decorreram dois procedimentos inspectivos, um, a coberto do Despacho ….., datado de 07/06/2005 e notificado à impugnante em 13/06/2005, destinado à consulta, recolha e cruzamento de elementos e outro, a coberto da Ordem de Serviço n.° ….., datada de 13/09/2005 e notificado à impugnante em 14/09/2005, do qual resultaram as correcções agora em análise, e que ambos decorreram nas instalações da Impugnante, deve concluir-se que ambos os procedimentos inspectivos são externos e, consequentemente, pela ilegalidade do procedimento do qual emergiu a liquidação realizada.

IV - A essa conclusão não obsta o facto de os objectivos visados serem distintos uma vez que a restrição prevista no n.° 4 do artigo 63.° da Lei Geral Tributária – imposta pela necessidade de impedir os incómodos que as fiscalizações externas são susceptíveis de provocar ao sujeito passivo inspeccionado, assegurando, por essa via, a adequação e proporcionalidade entre tais incómodos e os fins que a inspecção visa prosseguir - não se encontra estabelecida em função do tipo ou fim do procedimento mas do local onde o mesmo deva ocorrer.

V – Tal como não afecta a validade da mesma conclusão o facto de num dos procedimentos a Administração Fiscal, a final, não emitir Relatório ou dele não notificar o sujeito passivo, não só porque o legislador não erigiu essa circunstância em condição de admissibilidade de repetição do procedimento externo, como a própria legitimidade e admissibilidade dessa circunstancia inviabilizaria os objectivos visados com a restrição referida com a consequente violação dos princípios constitucionais da legalidade, da justiça, da proporcionalidade e da boa-fé a que a Administração fiscal em primeira linha está obrigada a observar.”

Ora, face a todo o exposto e sem necessidade de quaisquer considerados adicionais, encontramo-nos, efetivamente, perante uma atuação eivada de vício de violação de lei, concretamente do artigo 63.º, nº 3 da LGT, o que comina o ato tributário impugnado de anulabilidade.

Destarte, improcedem na íntegra as alegações da Recorrente, inexistindo qualquer erro de julgamento decorrente da, alegada, violação dos artigos 54.º, 63.º, n.º 3, e 89.º-A, nºs 7 e 8, todos da LGT, e artigo 6.º, do RCPIT, devendo, por isso, a decisão recorrida manter-se na ordem jurídica.

Face ao sentido decisório deste recurso mostra-se, necessariamente, prejudicado o conhecimento da ampliação do objeto do recurso.


***

IV. DECISÃO

Face ao exposto, acorda-se em conferência na Segunda Subsecção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul, em Negar provimento ao recurso, mantendo-se a decisão recorrida.

Custas pela Recorrente.

Registe e notifique.


Lisboa, 08 de outubro de 2020


[A Relatora consigna e atesta, que nos termos do disposto no artigo 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13.03, aditado pelo artigo 3.º do DL n.º 20/2020, de 01.05, têm voto de conformidade com o presente Acórdão os restantes Desembargadores integrantes da formação de julgamento, os Desembargadores Susana Barreto e Vital Lopes]

Patrícia Manuel Pires

_______________________
[1] Não tendo os Recorridos legitimidade para interpor recurso já que o resultado final lhes foi integralmente favorável, podem ao abrigo do artigo 636.º do CPC, proceder à ampliação do âmbito do recurso.
[2] cfr. Ac. do STA, proferido no processo nº 13331, de 22 de janeiro de 1992; Ac.TCA Sul,2ª. Secção, proferido no processo nº proc.2442/08, de 1 de março de 2011 e Ac.TCA Sul-2ª. Secção, processo nº 6817/13, de 9 de julho de 2013.
[3] Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 5ª edição, 2018, p.119.
[4] Vide neste sentido, designadamente, Acórdão do STA, proferido em 23.06.2010, disponível para consulta em www.dgsi.pt.
[5] Vide, designadamente, Acórdãos proferidos nos processos números 342/08, de 24.09.2008, 188/09, de 09.09.2009, 334/09 de 09.09.2009, e 422/11 de 06.07.2011.
[6] Acórdão do STA, proferido no processo nº 0633/14, de 15.02.2017.
[7] E outros, Lei Geral Tributária comentada e anotada, Almedina:2015, pp.656, 657.
[8] José Maria Fernandes Pires e out., in ob. cit, p.657.
[9] Processo no qual interveio como primeira adjunta.