Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:13106/16
Secção:CA-2º JUÍZO
Data do Acordão:11/24/2016
Relator:PAULO PEREIRA GOUVEIA
Descritores:PROGRAMA DE APOIO AO EMPREENDEDORISMO E À CRIAÇÃO DO PRÓPRIO EMPREGO – INCUMPRIMENTO JUSTIFICADO
Sumário:I - Se o exercício, a título parcial e não permanente, da segunda atividade (de formação profissional), em violação do acordado à luz do artigo 34º, nºs 3 e 4, do Decreto-Lei nº 220/2006 e da Portaria nº 985/2009, foi motivado pela necessidade de a autora, ex-desempregada, se manter a si própria, ao seu agregado familiar e à empresa criada ao abrigo do Programa de Apoio ao Empreendedorismo e à Criação do Próprio Emprego, deve-se concluir que o incumprimento (devido à segunda atividade profissional em horário parcialmente coincidente com o da empresa subsidiada) foi justificado.

II - Esta conclusão impõe-se, sob a égide da submáxima da necessidade em sede do postulado aplicativo da proporcionalidade administrativa; mas também à luz do sub-exame da proporcionalidade em sentido estrito: com efeito, seria manifestamente excessivo, desequilibrado, irracional e injusto que o Decreto-Lei e a Portaria cits. pudessem tolerar, no juízo ponderativo ou opcional feito pelo legislador dentro da unidade racional do sistema jurídico, que a ora Autora tivesse (i) de encerrar a empresa criada ao abrigo daquela legislação e (ii) de viver sem bem-estar mínimo por causa da exclusividade exigida pela lei, precisamente por causa de tal empresa, onde a autora, aliás, não deixou de trabalhar.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

I. RELATÓRIO

EDITE ………………….., NISS …………………., com residência habitual na Praceta ……………………., n° 146, r/c Dt. º, C………….., intentou no Tribunal Administrativo de Círculo de SINTRA ação administrativa especial contra

INSTITUTO DA SEGURANÇA SOCIAL, IP.

Pediu o seguinte:

- A anulação da decisão proferida pela Srª Chefe de Equipa do Núcleo de Prestações de Desemprego, da Unidade de Prestações, do Centro Distrital de Lisboa do R, pela qual foi determinada a cessação da prestação de subsídio de desemprego, de que a A beneficiou, e de que será emitida nota de reposição no valor € 43.512,96.

Após a discussão da causa e por acórdão de 15-10-2015, o referido tribunal decidiu absolver o réu do pedido.

*

Inconformada com tal decisão, a autora interpôs o presente recurso de apelação, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:

A. O presente recurso tem como objeto a Sentença proferida pelo Tribunal a quo que julgou injustificado o incumprimento da obrigação de não acumular a atividade resultante da criação do próprio emprego com outra atividade normalmente remunerada, para os efeitos previstos no art. 34° do Dec. Lei 220/2006, de 3 de novembro, na redação que lhe foi dada pelo Dec. Lei 64/2012, de 15 de março, considerando, assim, que a decisão impugnada não padece do vicio de violação de lei, por erro quanto aos pressupostos de facto e (ii) que tal decisão não violou o princípio da proporcionalidade em qualquer dos seus segmentos ou subprincípios, designadamente da adequação e da proporcionalidade, bem como da exigibilidade, indispensabilidade ou necessidade absoluta.

B. A matéria de facto provada constante da Sentença recorrida (vd. Fundamentação de Facto - págs. 3 e seguintes) contém todos os elementos para que se conclua pela justificação do incumprimento da obrigação de não acumular a atividade resultante da criação do próprio emprego com outra atividade normalmente remunerada, ao invés do que entendeu o Tribunal a quo.

C. De tal matéria de facto resulta claramente que a Recorrente se viu forçada a acumular uma outra atividade com o exercício do cargo de gerente da E.........., ainda que de forma esporádica e pontual, e as mais das vezes em horário pós-laboral, porque esta empresa deixou de gerar a rentabilidade esperada como consequência da súbita alteração / agravamento das condições económico-financeiras resultantes da crise interna despoletada em meados de 2011, da subsequente assinatura do Memorando de Entendimento sobre a concessão de assistência financeira internacional a Portugal, com a Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e o Fundo Monetário Internacional, e da posterior aplicação de um regime de austeridade sem precedentes, totalmente imprevisível aquando da decisão da Recorrente de antecipação do subsídio, aquisição e início de atividade da E...........

D. Assistiu-se a um aumento brusco sem precedentes de encerramentos e insolvências de empresas e no caso concreto da E.........., para além das consequências ao nível fiscal, as medidas de austeridade adotadas tiveram um impacto enorme e impossível de antecipar na procura e consumo internos, levando as pessoas, que viram os seus rendimentos fortemente contraídos, a "cortar" com aquilo que entendiam ser supérfluo ou menos importante, maxime com produtos de parafarmácia e beleza que constituíam o core business da Recorrente.

E. Em paralelo, assistiu-se a uma contração brutal no financiamento à economia ou, mais rigorosamente, às micro, pequenas e médias empresas, que assim se viram hipótese de recorrerem à banca para suprirem dificuldades pontuais de tesouraria e/ou para investirem.

F. O mesmo é dizer-se que se verificou uma alteração anormal das circunstâncias em que a Recorrente baseou a sua decisão de antecipar o pagamento global do subsídio de desemprego e adquirir a E.........., para os efeitos previstos no art. 427° do Código Civil, que a forçou a procurar outra fonte de rendimento para si e para a manutenção em atividade da própria sociedade.

G. Tal crise interna não constituiu somente um risco normal da atividade económica, pelo que a Recorrente ao ter procurado uma outra fonte de rendimento fê-lo com base numa mera, singela e irresponsável opção sua, como decidiu o Tribunal a quo.

H. Entender-se como fez o Tribunal a quo nos termos que constam da Sentença recorrida, ou seja, que, em suma, o incumprimento no caso subjudice não resultou de uma alteração anormal das circunstâncias ou de outras razões objetivas, mas antes de uma opção da Recorrente, é, no fundo, acreditar, ao arrepio de tudo o que se disse, que alguém no seu perfeito juízo, designadamente a Recorrente, licenciada em psicologia, a trabalhar há mais de 30 anos na área de gestão de recursos humanos (vd. facto provado n 9), grande parte deles como Diretora na COSEC - Companhia de Seguros de Crédito, pudesse aos 53 anos, ficar desempregada e requerer o pagamento global do subsídio de desemprego para a criação do próprio emprego, através da aquisição de urna empresa já existente - a E.......... - vd. factos provados 2), 3), 4), 7) e 8).

I. Com vista a contribuir para a criação de emprego (recorde-se que a E.......... dava emprego a mais uma pessoa), para a dinamização do tecido empresarial e da economia, em detrimento de receber o subsídio mensalmente, quedando-se em casa, sem nada fazer.

J. Aplicar a totalidade de tal montante, juntamente com capitais próprios que poupou ao longo de uma vida de trabalho, no valor de € 25.000,00, na E.........., sem recorrer a qualquer outra linha de crédito existente no PAECPE - vd. factos provados 5), 6), 13), 14), 15), 16), 17) e 26);

K. Recorrer ao apoio de urna empresa de consultoria em empreendedorismo, a Agência DNA de Cascais, para efeitos de construir um business plan consistente que lhe desse algumas garantias quanto à rentabilidade do negócio - vd. factos provados 11) e 12);

L. E franchisar a sua marca - vd. factos provados 27) e 28)

M. Mas ainda assim tivesse querido, por mera opção pessoal (porque não dizer capricho) e sem levar em consideração as dificuldades financeiras que a E………….. desde o início sentiu, e o facto de, a partir de Março de 2012, esta ter deixado de ter capacidade para pagar à A a remuneração mensal de € 800,00 pelo exercício do seu cargo de gerente, obrigando-a a reduzir o seu vencimento mensal para o valor correspondente ao ordenado mínimo - vd. factos provados n.0s 19), 20), 21), 22), 23), 24) e 25):

N. Acumular urna outra atividade remunerada, para retirar dela a quantia de eur 7.099,00 (correspondente a cerca de e 591,00 / mês) em 2012 e eur 2.370,00 (correspondente a € 197,50 / mês) em 2013 - vd. factos provados 31), 32) e 33).

O. Não obstante, a E.......... ser o seu novo projeto de vida, ao qual se dedicou desde a aprovação da candidatura exercendo as funções de gerente e mesmo durante os esporádicos períodos em que exerceu tal atividade, grande parte deles em horários pós-laboral -vd. factos provados n.ºs 18), 30) e 41),

P. E apesar de aplicar os valores auferidos na aludida atividade nas suas despesas pessoais, por não receber ordenado como gerente, e na E.........., e de o exercício de tal atividade de formação profissional ter sido motivada pelas necessidades da Recorrente se manter a si própria e ao seu agregado familiar, bem como à referida E.......... -vd. factos provados n.ºs 33) e 34)

Q. Conformando-se, assim, com a possibilidade de tal conduta ter originado como originou (i) a obrigação de devolução do montante do subsídio de desemprego antecipado, (ii) a perda das poupanças de uma vida, (iii) a perda do direito ao subsídio de desemprego (como a Recorrente assumiu as funções de gerente da E.......... e não teve possibilidade de regularizar a sua situação junto da Segurança Social, quando aquela foi declarada insolvente (a Recorrente não reunia os requisitos para que lhe fosse atribuído tal subsídio, previstos no art. 7 do Regime Jurídico de Proteção Social na Eventualidade de Desemprego de Trabalhadores Independentes com Atividade Empresarial e aos Membros de Órgãos Estatutários de Pessoas Coletivas, aprovado pelo Decreto-Lei nº 12/2013, 5 de Janeiro) e (iv) ter perdido a possibilidade de antecipar a sua pensão de reforma.

R. A justificação foi, obviamente, outra, sendo que resulta dos factos provados: a Recorrente foi obrigada a exercer - ainda que a título esporádico e pontual e grande parte dela em horário pós-laboral pois foi à E.......... que a Recorrente se dedicou sempre - uma outra atividade remunerada para se poder sustentar a si, à sua família e à manutenção da própria atividade da E.........., que constituía o seu novo projeto de vida, visto que esta, por motivos objetivos externos que lhe foram totalmente alheios e que radicaram na crise económico-financeira interna, na intervenção externa e nas medidas de austeridade que lhe sucederam, deixou de gerar a rentabilidade projetada aquando da sua aquisição, sendo que a que gerava nem sequer lhe permitia pagar o seu ordenado fixado pelo mínimo.

S. Nestes termos, forçoso se torna concluir, que houve, de facto e salvo o devido respeito, erro quanto aos pressupostos de facto tanto da decisão proferida pela Senhora Chefe de Equipa do Núcleo de Prestações de Desemprego, da Unidade de Prestações, do Centro Distrital de Lisboa do Recorrido, pela qual foi determinada a cessação da prestação do subsídio de desemprego, de que a Autora beneficiou, e que será emitida nota de reposição no valor de C 43.512,96, como da Sentença recorrida, na medida em que, efetivamente, não foi corretamente avaliada a factualidade subjacente ao incumprimento da obrigação de não acumulação de emprego próprio, criado ao abrigo do PARCPE, com outra atividade remunerada.

T. Acresce que, ao invés do que decidiu o Tribunal a quo, a decisão impugnada (e agora a própria Sentença ao mantê-la) viola o princípio da proporcionalidade administrativa, que se encontra plasmado no n. 2 do artigo 266. da Constituição da República Portuguesa e no n. 2 do artigo 5. do Código de Procedimento Administrativo, desde logo porque, em face da matéria de facto provada - vd., em especial, factos n°s 5), 6), 17), 18), 20) a 24), 30), 33), 34) e 41) - tal decisão é manifestamente desproporcionada porque excessiva.

U. Da referida factualidade resulta à evidência que a ora recorrente se viu obrigada a, recorrendo às suas habilitações, pontualmente, ministrar sessões de formação profissional para conseguir auferir algum rendimento, tanto para si como para a E.........., o que constituiu uma atuação absolutamente justificada e atendível.

V. Acresce que a decisão sub judice viola o princípio da proporcionalidade administrativa também na vertente da proporcionalidade em sentido estrito, porquanto o sacrifico imposto à ora recorrente é indiscutivelmente superior a qualquer benefício, do ponto de vista do interesse público, que se possa alcançar com tal medida.

W. Conclui-se, assim, pela manifesta ilegalidade da decisão, por violação do princípio da proporcionalidade administrativa, nas vertentes da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito, que se encontra consagrado no n 2 do artigo 266 da Constituição da República Portuguesa e no n 2 do artigo 5. ° do Código de Procedimento Administrativo.

X. Ademais que, quando a Recorrente apresentou candidatura ao PAECPE (19.07.2011), a redação do artigo 34 do Decreto-Lei n 220/ 2006, de 3 de Novembro, era absolutamente omissa quanto à proibição de o beneficiário do PAECPE poder prestar, pontualmente, um serviço como trabalhador independente, pelo que a proibição de acumulação e a consequência resultante da respetiva violação - revogação do apoio e restituição - não consubstanciaram uma intenção do legislador originário, sendo certo que quando a Recorrente iniciou o exercício da sua atividade como formadora, não estava a violar qualquer proibição, a que acresce a conclusão de que as formações lecionadas pelo recorrente no decurso do ano de 2011 e até Março de 2012 não podem ser tidas como ilegais.

Y. Em última análise, estando em causa o exercício de uma atividade de trabalho independente a tempo parcial, como ficou demonstrado, poderia o Tribunal a quo ter optado por proferir uma decisão que impusesse à Recorrente a devolução do montante auferido por esta na empresa onde ministrou ações de formação - vd. factos provados n.ºs 31), 33) e 41).

Z. Esta solução, para além de ser mais condizente com o princípio da proporcionalidade quando comparada com a decisão impugnada e a Sentença recorrida, vai ao encontro do espírito do legislador e com a lei vigente que prevê, como medida ativa de reparação do desemprego, também a possibilidade de acumular o subsídio de desemprego parcial com atividade profissional independente - vd. art. 4° do Dec. Lei 220/2006, de 3 de novembro na redação que lhe foi dada pelo Dec. Lei 72/2010, de 18 de junho

AA. Finalmente, a decisão impugnada e agora a Sentença recorrida são injustas sendo que, por isso, violam os arts. 20° e 202° da Constituição da República Portuguesa, bem como o art. 34º do Dec. Lei 220/ 2006, de 3 de novembro, na redação que lhe foi dada pelo Dec. Lei 64/ 2012, de 15 de março e o art. 4° do Dec. Lei 220/ 2006, de 3 de novembro, na redação que lhe foi dada pelo Dec. Lei 72/ 2010, de 18 de junho.

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O M.P., através do seu digno representante junto deste tribunal, foi notificado para se pronunciar em defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos, de interesses públicos especialmente relevantes ou de algum dos valores ou bens referidos no n.º 2 do artigo 9.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, como previsto no nº 1 do art. 146º. (1)

Cumpridos os demais trâmites processuais, importa agora apreciar e decidir em conferência.

Para decidir, este tribunal(2) superior tem omnipresente a nossa Constituição como síntese da ideia-valor de Direito vigente, cujo modelo político é de natureza ético-humanista e cujo modelo económico é o da economia social de mercado, amparado no Direito.

Consideramos as três dimensões do Direito como ciência do conhecimento prático (por referência à ação humana e ao dever-ser inspirador das leis), quais sejam, (i) a dimensão factual social (que influencia muito e continuamente o direito legislado através das janelas de um sistema jurídico uno e real), (ii) a dimensão ética e seus princípios práticos (que influenciam continuamente o direito também através das janelas do sistema jurídico) e, a jusante, (iii) a dimensão normativa e seus princípios prático-jurídicos.

*

Cabe, ainda introdutoriamente, sublinhar que os recursos, sendo dirigidos contra a decisão do tribunal recorrido e respetivos fundamentos, têm o seu âmbito objetivo delimitado pelo recorrente nas conclusões da sua alegação de recurso, alegação que apenas pode incidir sobre as questões (de facto (3) e ou de direito) que tenham sido apreciadas pelo tribunal recorrido ou que devessem ser aí oficiosamente conhecidas.

As QUESTÕES A RESOLVER neste recurso são as identificadas no ponto II.2, onde as apreciaremos.

*

II. FUNDAMENTAÇÃO

II.1. FACTOS PROVADOS

Com interesse para a decisão a proferir, está provado o seguinte quadro factual:

1. A Autora [A], Edite …………………, reside na Praceta de …………………, n° 146, r/c Dt. º, C………..

2. Em 18/07/2011, a A ficou desempregada.

3. Em 19/07/2011, a A requereu ao R o pagamento global do subsídio de desemprego para criação do próprio emprego [artigo 34, do DL 220/2006, de 03/11, na redação dada pelo DL 72/2010, de 18/06], mediante o "Programa de Apoio ao Empreendedorismo e à Criação do Próprio Emprego" [PAECPE].

4. Para o efeito, a A apresentou um "projeto de criação do próprio emprego", que consistiu na aquisição de uma empresa já existente - a “E.........., Saúde e Bem-estar, Lda” [E..........] - Formulário de Candidatura entregue, docº 2, fls 43 a 49.

5. Tal projeto não contemplava "(...) cumulativamente à Antecipação do Subsídio de Desemprego nenhuma linha de crédito existente no PAECPE (...)” - cfr o campo «Objetivos do Projeto» do Formulário referido - docº 2 [por acordo, visto que o formulário foi junto incompleto, pela A, e pelo R no PA], pois,

6. A ora A pretendia investir e investiu, pelo menos e no início da sua nova atividade, € 25.000,00 com recurso a capitais próprios, como fez constar em «7.2 Financiamento do Investimento» do mesmo Formulário de Candidatura -docº 2, fls 45.

7. O objetivo do projeto referido era a "aquisição de um espaço com valência de estética e venda de produtos Homeopáticos e Naturais, com proposta de inclusão de parafarmácia, na Alameda da Guia, nº 6, r/c direito, freguesia de Cascais, concelho de Cascais, espaço que se encontrava em atividade, contudo com muito pouca exploração de ambas as valências e consequentemente com baixo rendimento" - docº 2 [e por acordo visto que o formulário foi junto incompleto, pela A, e pelo R no PA].

8. O objetivo do projeto referido, quanto ao «4. Tipo de bens a produzir ou serviços a prestar», era o seguinte: «1) Comércio a retalho de produtos para a saúde designadamente medicamentos não sujeitos a receita médica (MNSRM), produtos de dermocosmética, vitaminas, homeopatia, fitoterapia, produtos naturais, aromoterapia, dentários, capilares, podologia, ortopédicos, óculos, aparelhos de medição e médicos, contracetivos, cosmética, primeiros socorros, alimentares, produtos de bebé e puericultura, literatura para a saúde, informática para a saúde, perfumes, leites e fórmulas, produtos geriátricos, produtos veterinários e químicos em geral.

2)Prestação de serviços nas seguintes áreas: massagens, homeopatia, osteopatia, acupunctura, depilação, aromaterapia, reflexologia e todos os atos médicos e de enfermagem designadamente consultas, exames de diagnóstico, análises clínicas, medicina física e reabilitação, ações de formação.

Serviços novos a incluir:

-Inscrição no INFARMED para autorização de venda de medicamentos não sujeitos a receita médica (atualmente não existe);

-Criação de mais um gabinete polivalente destinado a ser rentabilizado por novas prestações de serviço a contratar, nomeadamente mais especialidades médicas e novos tratamentos

-Introdução dos novos serviços a partir de outubro de 2011.» - docº 2, fls 44.

9. A Autora exerceu durante vários anos a sua atividade profissional na área de gestão de recursos humanos – por acordo.

10. A Autora considerava-se capaz e habilitada para criar o seu próprio emprego –por acordo.

11. Contudo, a A não prescindiu de ajudas externas, tendo recorrido ao apoio da Agência DNA Cascais [DNA Cascais], que se dedica, entre outras, à atividade de consultoria em empreendedorismo para a definição e desenvolvimento do seu PAECPE – por acordo.

12. A Agência DNA Cascais é uma associação sem fins lucrativos que tem por objeto contribuir, por todos os meios adequados, para a promoção, incentivo e desenvolvimento do empreendedorismo em geral, com especial incidência para a promoção do empreendedorismo jovem e social no Concelho de Cascais, concelho no qual se localiza o estabelecimento da referida “E..........” -acordo das partes.

13. Em 09/08/2011, o Réu deferiu o requerimento da A, de 19/07/2011, acima referido, por concordância com a proposta dos Serviços de fls 2 do PA anexo, de deferimento, ora se destacando «(…)Propõe-se o deferimento por se verificarem as condições de atribuição, previstas no Decreto-Lei nº 220/2006, de 3 de Novembro, alterado e republicado pelo Decreto -Lei nº 72/2010, de 18 de Junho; Decreto-Lei nºs 67/2000, de 26 de Abril; Decreto-Lei nº 320-A/2000, de 15 de Dezembro, alterado pelos Decretos-Leis nº 118/2004, de 21 de Maio e nº 320/2007, de 27 de Setembro:

Estar na situação de desemprego involuntário e inscrito como candidato a emprego no centro de emprego da área de residência (artº 20º).

E ainda as seguintes condições:

Ter 450 dias de trabalho por conta de outrem, com registo de remunerações, no período de 24 meses imediatamente anterior à data do desemprego (nº 1 do artº 22º do Decreto-Lei nº 220/2006, (…)).

Mais se propõe que se notifique o interessado nos termos seguintes:

Foi-lhe atribuído Subsídio de Desemprego no montante diário de €41,92 (…) e será concedido por um período de 102 dias, com início em 2011-07-19, a que corresponde a data de apresentação do requerimento da prestação. (…)».

14. A decisão acabada de referir foi levada ao conhecimento da A pelo ofício de 09/08/2011, a fls 3 do PA, e pelo ofício 202043 de 21/11/2011, a fls 5 do PA e docº 3 fls 50, de cuja comunicação ora se destaca o seguinte: «Informa-se V. Exª de que o requerimento acima indicado foi deferido, nos termos a seguir indicados:

Pagamento do montante global das prestações de desemprego no valor de € 43.512,96 (…), referente ao período de 2011-11-01 a 2014-09-18, por ter sido considerado viável, pelo respetivo centro de emprego, o projeto de criação do próprio emprego.

Mais se informa, que o emprego deve ser mantido pelo período mínimo de três anos, sendo o pagamento do montante global das prestações de desemprego considerado indevido em caso de incumprimento injustificado, sem prejuízo da aplicação do regime jurídico de contra -ordenações ou penal (alínea b) do nº 9 do artigo 12º da Portaria nº 985/2009 e nº 10 do Despacho nº 7131/2011, acima mencionados). (…) ».

15. Foi pago à Autora, pelo R, o remanescente do subsídio acima referido e deferido, de 01/11/2011 a 18/09/2014, num montante global de € 43.512,96.

16. A Autora aplicou a totalidade do apoio acabado de referir, que lhe foi atribuído no âmbito do PAECPE, na “E..........” – acordo das partes.

17. A par de tal apoio, a A investiu capital próprio, o que declarou no ponto 7.2 do citado formulário do requerimento.

18. Nesta sequência, a A avançou com o seu novo projeto de vida - a “E..........”, ao qual se dedicou desde a aprovação da candidatura, exercendo as funções de gerente–acordo e docº ora junto de fls 86vº a 89.

19. A título de retribuição pelo exercício das funções de gerente, a A deveria receber a quantia mensal de 800,00€.

20. Sucede que a atividade da E.......... não veio a corresponder ao projetado, e, logo em 2012, a A começou a sentir dificuldades económicas e financeiras.

21. O consumo privado da área de atividade da E.......... tem vindo a diminuir, fruto da crise económico-financeira por que tem atravessado o país nos últimos anos.

22. A faturação mensal prevista no projeto, para 2012, que sustentava a viabilidade do negócio, correspondia a um valor mínimo mensal entre € 8.000,00 e € 10.000,00.

23. Porém, desde o início de 2012, o valor médio mensal foi de apenas € 6.300,00.

24. A “E..........” deixou de ter capacidade para pagar à A a remuneração mensal de gerente (os referidos € 800,00), que, desde março de 2012, a A não recebe.

25. A Autora reduziu o seu vencimento mensal de gerente para €485,00, para diminuir os encargos junto da Segurança Social, já que não o auferia – recibo docº 5, fls 51.

26. Tendo já gasto as suas poupanças no início do projeto, a A “franchisou” a marca, com o acompanhamento da DNA Cascais.

27. Assim, a “E..........” tem, desde maio de 2012, um “franchisado” em atividade, tendo aberto outro no passado mês de janeiro de 2014, os quais se dedicam ao exercício da mesma atividade da “E..........”, nas referidas áreas.

28. O “franchisado” não foi suficiente e a A recorreu à sua experiência e “know-how” adquiridos ao longo dos anos; sendo titular, desde 04/12/2000, de Certificado de Competências Pedagógicas (CAP), fls 52 docº 6, do Instituto do Emprego e Formação Profissional-IP.

29. Fazendo uso da certificação acabada de referir, a A foi formadora em formações profissionais organizadas pela empresa “Tecla Lisboa Formação Profissional, Lda”, e pela “Unidade Local de Saúde do Baixo Alentejo EPE”, entre maio de 2012 e novembro de 2013, em parte em horário pós-laboral; sendo o horário do estabelecimento comercial, de que a “E..........” é titular, das 9:00 às 20:00.

30. A Autora continuou a dedicar-se à “E..........” e a exercer as funções de gerente.

31. A Autora recebeu da atividade de formação profissional referida os seguintes valores, num total de 9.469,00€, das seguintes entidades, com as seguintes datas *ora se ressalvando a conclusiva infra de que “são despesas, não são honorários” + – fls 53 a 58:

« Texto no original»

32. Os documentos acabados de referir têm os nºs 7 a 12, de fls 53 a 58, e de fls 10 a 15 do PA, e correspondem a «Recibo Verde Eletrónico» os nº 7 a 11, e a «Fatura Recibo» o nº 12, de todos eles constando a menção «Importância recebida a título de honorários», bem como as datas acima mencionadas no quadro, como a respetiva «data de prestação do serviço» e a «descrição» deste, todos referentes a formação cujo tipo e horas ali consta descrito e, no caso dos 144€, «deslocação em serviço».

33. A remuneração proveniente da atividade de formação profissional de 7.099,00€ do ano de 2012 e 2.370,00€, do ano de 2013, foi destinada a despesas pessoais da A, por não receber ordenado como gerente, e à “E..........”.

34. O exercício da atividade de formação profissional acabada de referir foi motivado pelas necessidades de a Autora se manter a si própria e ao seu agregado familiar, bem como a referida “E..........”.

35. Em 11/11/2013, o Réu dirigiu à A o ofício nº 296003, de 12/11/2013, de fls 59, docº 13 e fls 9 do PA, comunicando o propósito de cessar a prestação, por incumprimento injustificado das obrigações, para se pronunciar, do qual ora se destaca o seguinte:

«(…). Pelo presente, fica V. Exª notificado, que analisado o seu processo de pagamento global do subsídio de desemprego para criação do próprio emprego, verifica -se ter havido incumprimento injustificado das obrigações assumidas para atribuição do mesmo.

No que respeita às consequências do incumprimento, a legislação em vigor determina que, nestes casos, o beneficiário perde o direito aos montantes já recebidos e fica obrigado a restituir os referidos valores.

Na situação em análise, V. Exª iniciou outra atividade profissional, antes de decorrido o período supramencionado.

Nestes termos, caso V. Exª não apresente, no prazo de 10 dias, elementos que obstem em sentido contrário, a prestação será cessada, com efeitos à data de atribuição do pagamento global do subsídio de desemprego e emitida a respetiva nota de débito. (…)».

36. Em 28/11/2013, a Autora exerceu a resposta escrita de fls 60/ss, 34 do PA, docº 14, em termos semelhantes ao alegado na PI.

37. Em 15/01/2014, o Réu, pela Diretora de Núcleo, proferiu o despacho de fls 37 do PA, do seguinte teor:

«Nos termos da Portaria n° 985/2009, de 04 de setembro, o pagamento, por uma só vez, do montante global das prestações de desemprego, é atribuído aos beneficiários das prestações de desemprego que criem o próprio emprego, a tempo inteiro, durante, pelo menos 3 anos.

Considerando que a beneficiária em epígrafe, em 01 -04-2012, iniciou atividade profissional como trabalhadora independente, antes de decorrido o referido prazo, deve ser suspensa a prestação e a beneficiária notificada em conformidade. Notifique-se a interessada.» [facto impugnado].

38. Em 27/01/2014, a Diretora de Unidade, do Réu, proferiu o despacho de fls 39 do PA, do seguinte teor: «Considerando que a beneficiária em epígrafe, em fase de audiência prévia, não apresentou elementos que possam obstar à cessação da prestação de desemprego, com efeitos a novembro de 2011, confirmo a decisão da Srª Diretora de Núcleo , de 15-01-2014 e decido sobre a obrigação de a beneficiária restituir o valor que lhe foi pago a título de montante global de prestações de desemprego de €43.512,96. Notifique-se a interessada. (…)» [facto impugnado].

39. Em 23/01/2014, o R levou ao conhecimento da A a decisão acabada de referir, pelo ofício nº 026054, Refª 18/2014/NPD, de fls 42, docº 1, e fls 38 do PA, do qual ora se destaca o seguinte: «(…). Relativamente à exposição apresentada por V. Exª, sobre o assunto em epígrafe, que mereceu a nossa melhor atenção, cumpre informar o seguinte:

Em 19-07-2011, foi requerido, pela beneficiária supra referenciada, subsídio de desemprego que mereceu despacho de deferimento, pelo período de 1140 dias.

Em novembro de 2011, foi deferido o pagamento global do subsídio para criação do próprio emprego, para criação da empresa “E.......... SAÚDE E BEM-ESTAR, LDA”, tendo sido pago o remanescente do subsídio a que tinha direito, ou seja, de 01-11-2011 a 18-09-2014, num total de 1038 dias a um valor diário de € 41,92, no montante global de€ 43.512,96.

O Despacho favorável sobre o projeto de criação do próprio emprego, do Centro de Emprego e a atribuição do montante global das prestações, teve por base o cumprimento das condições previstas no artº 12º da Portaria n° 985/2009, de 04/09 designadamente, a criação do seu próprio emprego, a tempo inteiro durante, pelo menos, três anos.

Sucede que apesar da Sua Constituinte, estar obrigada a manter o seu próprio emprego durante o período de 3 anos em exclusividade, verifica-se que antes de decorrido o referido prazo, em 01-04-2012 iniciou atividade profissional, como trabalhadora independente.

Face ao exposto, encontra-se numa situação de incumprimento injustificado, uma vez que não se confirmou a manutenção da criação do próprio emprego em exclusividade, a tempo inteiro.

Face ao exposto, por decisão proferida pela Srª Chefe de Equipa foi cessada a prestação e será emitida nota de reposição no valor de€ 43.512,96. (…)».

40. Em 19/02/2014, o R dirigiu à A a Nota de reposição nº 8740163, no valor de eur 43.512,96, de fls 80/ss, docº 15 e respondeu ao pedido de informação da A, [artigo 60, do CPTA], pelo ofício 097419, de 21/03/2014, de fls 42 do PA.

41. Em 2011, 2012 e 2013, a Autora prestou a seguinte atividade de formadora na empresa Tecla Lisboa Formação Profissional [docº fls 80, 80vº e 81]:

« Texto no original»

42. A presente ação deu entrada em juízo a 29/04/2014 -fls 2 e 3.

43. Dão-se por reproduzidos todos os documentos juntos, referidos na PI e na oposição.

*

Continuemos.

II.2. APRECIAÇÃO DO RECURSO: O DIREITO

Tudo visto, cumpre decidir.

Com efeito, aqui chegados, há condições para se compreender esta apelação e para, num dos momentos da verdade do Estado de Direito (o do controlo jurisdicional do agir da administração pública(4)), ter presentes, inter alia, os seguintes princípios jurídicos fundamentais decorrentes do superprincípio geral da justiça: (i) juridicidade e legalidade administrativas, ao serviço do bem comum; (ii) igualdade de tratamento material axiológico de todas as pessoas humanas (5); (iii) certeza e segurança jurídicas (6) (que obrigam à obediência rigorosa ao imposto ao juiz pelo artigo 9º do Código Civil); e (iv) tutela jurisdicional efetiva.

Este tribunal superior utiliza um método de Ciência do Direito adequado à garantia efetiva, previsível e transparente dos direitos dos “administrados”, através de um processo decisório teleologicamente orientado apenas (i) à concretização dos valores da Constituição e (ii) ao controlo racional (7) de coerência dos nexos da sistematicidade jurídica que precedam a resolução do caso.

Assim, a resolução jurisdicional de casos implica:

(i) um rigoroso respeito pelas normas (materialmente constitucionais) inseridas no artigo 9º do Código Civil(8), na busca do pensamento legislativo da fonte de direito, dentro do sistema jurídico atual e com respeito pela máxima constitucional da sujeição dos juizes às leis durante o processo de interpretação-aplicação do direito objetivo;

(ii) e, nos casos “difíceis” e residuais em que tal for lícito ao juiz, a metodologia racional-justificativa consistente no sopesamento ou ponderação de bens, interesses e valores eventualmente colidentes na situação concreta, sob a égide da máxima da proporcionalidade (9), mas sem prejuízo, quer dos cits. quatro princípios jurídicos fundamentais decorrentes do superprincípio geral da justiça, quer do princípio constitucional fundamental da sujeição dos juizes às leis em sede do processo de interpretação-concretização do direito objetivo.

1 – DO ERRO QUANTO AOS PRESSUPOSTOS DE FACTO

Aquilo que a recorrente designa como “erro sobre os pressupostos de facto” é, afinal, um alegado erro na avaliação que o Tribunal Administrativo de Círculo fez dos factos provados.

Ou seja, um erro de direito, um erro de julgamento de direito.

A recorrente, com efeito, não ataca o julgamento feito quanto à matéria de facto relevante alegada, isto é, quanto aos factos relevantes julgados provados e ou julgados não provados.

Assim, estamos remetidos para o ponto que se segue.

Cfr., ainda assim, o Acórdão do STA de 1-7-2010, Processo nº 1217/09.

2 – DA VIOLAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA PROPORCIONALIDADE ADMINISTRATIVA E DA JUSTIÇA

2.1.

Estamos em sede do “Programa de Apoio ao Empreendedorismo e à Criação do Próprio Emprego”, a coberto do artigo 34º do Decreto-Lei nº 220/2006, o qual dispõe o seguinte:

1 - O subsídio de desemprego ou o subsídio social de desemprego inicial a que os beneficiários tenham direito pode ser pago globalmente, por uma só vez, nos casos em que os interessados apresentem projeto de criação do próprio emprego.

2 - O montante global das prestações corresponde à soma dos valores mensais que seriam pagos aos beneficiários durante o período de concessão, deduzido das importâncias eventualmente já recebidas.

3 - Nas situações de criação do próprio emprego com recurso ao montante global das prestações de desemprego, os beneficiários não podem acumular o exercício dessa atividade com outra atividade normalmente remunerada durante o período em que são obrigados a manter aquela atividade.

4 - O incumprimento injustificado das obrigações decorrentes da aprovação do projeto de criação do próprio emprego ou a aplicação, ainda que parcial, das prestações para fim diferente daquele a que se destinam implica a revogação do apoio concedido, aplicando-se o regime jurídico da restituição das prestações de segurança social indevidamente pagas, sem prejuízo da responsabilidade contraordenacional ou penal a que houver lugar.

5 - Sem prejuízo das competências dos centros de emprego, os serviços de fiscalização da segurança social podem, para efeitos do número anterior, verificar o cumprimento das condições de atribuição do pagamento, por uma só vez, do montante global das prestações de desemprego.

6 - A regulamentação do pagamento do montante global das prestações de desemprego consta de diploma próprio.

2.2.

O Tribunal Administrativo de Círculo, concordando com a entidade pública demandada, considerou que o (pacificamente aceite) incumprimento, pela autora/recorrente, do previsto no cit. artigo 34º/3/4 do Decreto-Lei nº 220/2006 (alt. pelo Decreto-Lei nº 72/2010 e pelo Decreto-Lei nº 64/2012) não foi uma conduta justificada.

A recorrente vem insistir que tal conclusão jurídica é injusta e violadora do princípio fundamental da proporcionalidade administrativa: o incumprimento, no caso concreto, seria justificado.

2.3.

Teremos, pois, de analisar o significado dos nº 3 e 4 de tal artigo 34º, ao abrigo do imposto no artigo 9º do Código Civil.

A interpretação propriamente dita assenta

a) no elemento gramatical (apreensão literal do texto da norma), que também é um limite da interpretação e a expressão de um legislador sábio, racional e justo,

b) no elemento lógico-sistemático da unidade do sistema jurídico (10) encimado pela Constituição (11) (1ª parte do pensamento legislativo ou do sentido da lei, numa orientação objetivista),

c) no elemento lógico-histórico-temporal(12) (2ª parte do pensamento legislativo ou do sentido da lei, numa orientação objetivista) e

d) no elemento lógico-teleológico, racional ou finalístico, na justificação social atual da lei (13) (3ª parte do pensamento legislativo ou do sentido da lei, numa orientação objetivista).

Da utilização de tais 4 elementos e da presunção racional referida na parte final do nº 3 do art. 9º CC (o legislador é sábio, racional e justo) obtém-se, a final, o sentido ou significado da norma jurídica.

Este sentido pode resultar

a) numa “interpretação declarativa, lata, média ou restrita” (porque há coincidência entre os 4 elementos citados),

b) numa “interpretação extensiva” (porque o elemento gramatical ficou aquém do elemento lógico) ou

c) numa “interpretação restritiva” (porque o elemento gramatical foi além do elemento lógico),

d) ou ainda, muito raramente (14), numa “interpretação ab-rogante” (em que o interprete verifica que a regra jurídica está lógica (15) ou valorativamente “morta”).

Depois veremos se há lugar ou não (i) à subsunção jurídica (como concretização do princípio fundamental da vinculação do juiz à lei e ao direito encimado pela Constituição material) ou (ii) à excecional aplicabilidade da máxima metódica da proporcionalidade, prevista, para as relações jurídicas administrativas, nos artigos 266º/2 da Constituição da República Portuguesa e 7º do atual Código do Procedimento Administrativo/2015 (antes, era o artigo 5º/2).

Se for o caso desta segunda, então faremos o juízo de proporcionalidade com base, logicamente, nos factos provados.

O postulado aplicativo da proporcionalidade jurídica, apurado pelos tribunais, contém quatro regras jurídicas, que são também quatro testes ou exames essenciais em cada caso concreto, a realizar pelo intérprete-aplicador antes de concretizar a norma por si apurada:

1º- Legitimidade dos fins prosseguidos;

2º- Adequação da medida ao fim prosseguido: exige relação de idoneidade ou de pertinência entre o meio escolhido pela Lei (em abstrato) ou pela Administração (em concreto) e os fins prosseguidos pela lei ou pelo ato administrativo; tem a ver com as possibilidades factuais existentes;

3º- Necessidade ou exigibilidade da medida para atingir o fim prosseguido: corresponde ao direito de o cidadão ter a menor desvantagem possível, quando há mais de uma alternativa para o Estado-Lei ou Estado-Administração (16); (17) tem a ver com as possibilidades factuais existentes;

4º- Proporcionalidade em sentido estrito ou otimização quanto às possibilidades jurídicas existentes (“o meio apropriado ou equilibrado”): implica a ponderação (18) racional sobre se o resultado obtido com a medida em causa é justo quando comparado com a carga coativa da mesma; visa evitar que se utilizem meios que causem maiores desvantagens do que as vantagens do fim prosseguido (19); há quem formule uma “lei” própria para isto. (20)

É esta a metodologia jurídica vinculativa do juiz e orientada à segurança jurídica, onde se inclui

(i) a metodologia clássica (consagrada no artigo 9º do Código Civil (21)) (22) e

(ii) a menos frequente e menos rigorosa metodologia ponderativa ou de sopesamento, simultaneamente respeitadora da organização formal-hierárquica do sistema jurídico de matriz romano-germânica (sistema que é caracterizado pela existência, no topo da pirâmide normativa, de uma Constituição formal e material e pela separação dos poderes legislativo e jurisdicional).

2.4.

Ora, o Decreto-Lei nº 220/2006 estabeleceu, no âmbito do subsistema previdencial, o quadro legal da reparação do desemprego dos trabalhadores por conta de outrem, sem prejuízo do disposto em instrumento internacional aplicável.

Essa reparação da situação de desemprego realiza–se através de «medidas passivas e ativas», podendo, ainda, incluir medidas excecionais e transitórias – cfr. artigo 1º.

Para efeitos deste decreto-lei o «desemprego» consiste em «toda a situação decorrente da perda involuntária de emprego do beneficiário com capacidade e disponibilidade para o trabalho, inscrito para emprego no centro de emprego» - cfr. artigo 2º.

As referidas medidas «passivas» são (a) o subsídio de desemprego; e o (b) subsídio social de desemprego inicial ou subsequente ao subsídio de desemprego - cfr. artigo 3º.

E as medidas «ativas» são, entre outras, (a) o pagamento, por uma só vez, do montante global das prestações de desemprego com vista à criação do próprio emprego; a (b) a possibilidade de acumular subsídio de desemprego parcial com trabalho por conta de outrem a tempo parcial ou com atividade profissional independente; (d) a manutenção das prestações de desemprego durante exercício de atividade ocupacional; e ainda (e) outras medidas de política ativa de emprego não mencionadas nas alíneas anteriores desde que promovam a melhoria dos níveis de empregabilidade e a reinserção no mercado de trabalho de beneficiários das prestações de desemprego a definir por legislação própria – cfr. artigo 4º.

Segundo o artigo 6º deste DL 220/2006, alterado pela referida lei, o subsídio de desemprego visa (a) compensar os beneficiários da falta de retribuição resultante de desemprego ou de redução por aceitação de trabalho a tempo parcial; e (b) promover a criação de emprego, através, designadamente, do pagamento por uma só vez das prestações de desemprego com vista à criação do próprio emprego.

E tais prestações são o subsídio de desemprego, o subsídio social de desemprego e o subsídio de desemprego parcial, nos casos definidos conforme o artigo 7º.

A Portaria nº 985/2009 de 04/09 regula no Capítulo II os apoios à criação de empresas, começando pelas condições e requisitos de acesso bem como, entre o mais, os requisitos do projeto, que «deve apresentar viabilidade económico-financeira» - cfr. artigo 6º.

No seu Capítulo III, sob a epígrafe «apoio à criação do próprio emprego por beneficiários de prestações de desemprego», a Portaria 985/2009 dispõe no artigo 12º/1/9-b) que:

1- Há lugar ao pagamento, por uma só vez, do montante global das prestações de desemprego, deduzido das importâncias eventualmente já recebidas, ao abrigo do previsto no artigo 34° do Decreto-Lei n° 220/2006, de 3 de Novembro, sempre que o beneficiário das prestações de desemprego apresente um projeto ao abrigo da alínea b) do nº 2 do artigo 1º [apoio à criação do próprio emprego por beneficiários de prestações de desemprego] e que origine, pelo menos, a criação de emprego, a tempo inteiro, do promotor destinatário.

(…)

9 - Os projetos referidos no presente capítulo que não beneficiem da modalidade de apoio prevista na alínea a) do artigo 2º [Crédito com garantia e bonificação da taxa de juro (o caso da A é o da al c) -pagamento por uma só vez]:

(…)

b) Devem manter a atividade da empresa e os postos de trabalho preenchidos por beneficiários das prestações de desemprego durante, pelo menos, três anos.

E o artigo 17º da Portaria 985/2009, sob a epígrafe «incumprimento», dispõe que

Sem prejuízo das situações de vencimento antecipado do crédito estabelecidas nos protocolos referidos no nº 2 do artigo 9º e sem prejuízo de participação criminal por crime de fraude na obtenção de subsídio de natureza pública, o incumprimento de qualquer das condições ou obrigações previstas na lei, regulamentação, protocolos e contratos aplicáveis tem como consequência, em caso de incumprimento imputável à entidade , a revogação dos benefícios já obtidos, assim como dos supervenientes, que implica:

a) A devolução dos benefícios já obtidos, nomeadamente as bonificações de juros e da comissão de garantia, aplicando-se aos valores devidos uma cláusula penal nos termos definidos nos protocolos, e os apoios referidos nas alíneas c) e d) do artigo 2º;

b) A aplicação, a partir da respetiva data, de uma taxa de juro a suportar pela empresa, nos termos definidos nos protocolos;

c) A impossibilidade de a empresa voltar a beneficiar de bonificação, ainda que cesse a causa que tenha dado origem ao incumprimento.

2.5.

Com este quadro exposto, podemos regressar ao artigo 34º do Decreto-Lei nº 220/2006:

3 - Nas situações de criação do próprio emprego com recurso ao montante global das prestações de desemprego, os beneficiários não podem acumular o exercício dessa atividade com outra atividade normalmente remunerada durante o período em que são obrigados a manter aquela atividade.

4 - O incumprimento injustificado das obrigações decorrentes da aprovação do projeto de criação do próprio emprego ou a aplicação, ainda que parcial, das prestações para fim diferente daquele a que se destinam implica a revogação do apoio concedido, aplicando-se o regime jurídico da restituição das prestações de segurança social indevidamente pagas, sem prejuízo da responsabilidade contraordenacional ou penal a que houver lugar.

A lei é clara no nº 3: a autora não podia acumular o exercício dessa atividade com outra atividade normalmente remunerada durante o período (3 anos) em que são obrigados a manter aquela atividade.

Trata-se de uma norma-regra (antigamente designada apenas como “norma”), clara e imediatamente vinculativa, que não apela a qualquer dever-ser ideal; há apenas um dever-ser real (ou dever de fazer) como referência. Não estamos remetidos para um comando reportado a um dever-ser ideal (que, em última instância, é sempre a justiça).

A interpretação resultante dali é meramente declarativa.

E, em sede de aplicação à realidade da norma-regra por nós apurada, não se admitem ponderações por parte da A.P. ou do Juiz: a aplicação basta-se com a simples subsunção do facto à norma inferida a partir da fonte.

E concluímos que o caso da ora autora cai na previsão do cit. nº 3.

Mas a lei salvaguarda o caso de a violação do nº 3 ter uma justificação aceitável.

É o que decorre do cit. nº 4, também numa interpretação meramente declarativa: se o incumprimento do dever imposto no nº 3 tiver uma justificação aceitável, não haverá lugar às consequências negativas ali previstas, designadamente a restituição da verba recebida.

Há, pois, que saber, agora não em sede de interpretação da fonte de direito, mas já em sede de aplicação/concretização do significado do nº 4 (a norma apurada pelo intérprete), se a justificação apresentada é aceitável ou razoável e adequada, no caso em apreço.

O nº 4 também é uma norma-regra, no sentido exposto, mas contém um elemento impreciso ou vago, de textura aberta, o qual consiste aqui, não numa norma principial, mas sim na necessidade de apurar em concreto se há ou não uma justificação (aceitável); temos “apenas” de concretizar a expressão “incumprimento injustificado” que está contida na norma-regra apurada a partir do nº 4.

Assim, a norma resultante do artigo 34º/4 implica margem de livre apreciação administrativa para concretização de conceitos indeterminados, sindicável pelos tribunais quanto aos seus aspetos vinculados.

Estes aspetos ou limites imanentes são, como se sabe, além (i) da proibição de erros notórios e além (ii) das formalidades e (iii) trâmites essenciais, (iv) os vários princípios constitucionais e gerais de Direito administrativo, consagrados no artigo 266º da Constituição da República Portuguesa e nos artigos 3º a 19º do atual Código do Procedimento Administrativo (cfr. MARCELO REBELO DE SOUSA/A.S.M., D. Adm. Geral, I, §9 e §10; PAULO OTERO, Legalidade Administrativa…, 2003, págs. 411 ss e 733 ss; FREITAS DO AMARAL, Curso…, I, 2ª ed., págs. 116 ss):

- prossecução do interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos,

- submissão à lei,

- igualdade,

- proporcionalidade,

- justiça e razoabilidade,

- imparcialidade e

- boa-fé.

Utilizando a terminologia de Freitas do Amaral, este “incumprimento injustificado” será um conceito indeterminado do tipo “a valorar objetivamente de acordo com as conceções dominantes”, como tal suscetível de controlo jurisdicional (ob. cit., págs. 120-122).

Está também em causa a organização de uma decisão (administrativa) proporcionada à situação - cfr. assim J. M. SÉRVULO CORREIA, “Conceitos jurídicos indeterminados e âmbito do controlo jurisdicional”, in C J A, nº 70, 2008, págs. 32 ss, a pág. 56.

Vejamos, pois.

2.6.

Ora, ficou provada a seguinte factualidade (que, aliás, foi invocada pela autora no procedimento administrativo, mas que o réu não teve em conta após a audiência prévia):

- A Autora aplicou a totalidade do apoio que lhe foi atribuído no âmbito do PAECPE, na “E..........”,

- A par de tal apoio, a A investiu capital próprio,

- Nesta sequência, a A avançou com o seu novo projeto de vida - a “E..........”, ao qual se dedicou desde a aprovação da candidatura, exercendo as funções de gerente,

- A título de retribuição pelo exercício das funções de gerente, a A deveria receber a quantia mensal de 800,00€,

- Sucede que a atividade da E.......... não veio a corresponder ao projetado, e, logo em 2012, a A começou a sentir dificuldades económicas e financeiras,

- O consumo privado da área de atividade da E.......... tem vindo a diminuir, fruto da crise económico-financeira por que tem atravessado o país nos últimos anos,

- A faturação mensal prevista no projeto, para 2012, que sustentava a viabilidade do negócio, correspondia a um valor mínimo mensal entre € 8.000,00 e € 10.000,00,

- Porém, desde o início de 2012, o valor médio mensal foi de apenas € 6.300,00,

- A “E..........” deixou de ter capacidade para pagar à A a remuneração mensal de gerente (os referidos € 800,00), que, desde março de 2012, a A não recebe,

- A Autora reduziu o seu vencimento mensal de gerente para €485,00, para diminuir os encargos junto da Segurança Social, já que não o auferia – recibo docº 5, fls 51,

- Tendo já gasto as suas poupanças no início do projeto, a A “franchisou” a marca, com o acompanhamento da DNA Cascais,

- Assim, a “E..........” tem, desde maio de 2012, um “franchisado” em atividade, tendo aberto outro no passado mês de janeiro de 2014, os quais se dedicam ao exercício da mesma atividade da “E..........”, nas referidas áreas,

- O “franchisado” não foi suficiente e a A recorreu à sua experiência e “know-how” adquiridos ao longo dos anos; sendo titular, desde 04/12/2000, de Certificado de Competências Pedagógicas (CAP), fls 52 docº 6, do Instituto do Emprego e Formação Profissional-IP,

- Fazendo uso da certificação acabada de referir, a A foi formadora em formações profissionais organizadas pela empresa “Tecla Lisboa Formação Profissional, Lda”, e pela “Unidade Local de Saúde do Baixo Alentejo EPE”, entre maio de 2012 e novembro de 2013, em parte em horário pós-laboral; sendo o horário do estabelecimento comercial, de que a “E..........” é titular, das 9:00 às 20:00,

- A Autora continuou a dedicar-se à “E..........” e a exercer as funções de gerente,

- A Autora recebeu da atividade de formação profissional referida os seguintes valores, num total de 9.469,00€,

- A remuneração proveniente da atividade de formação profissional de 7.099,00€ do ano de 2012 e 2.370,00€, do ano de 2013, foi destinada a despesas pessoais da A, por não receber ordenado como gerente, e à “E..........”,

- O exercício da atividade de formação profissional acabada de referir foi motivado pelas necessidades de a Autora se manter a si própria e ao seu agregado familiar, bem como a referida “E..........”.

Em síntese, o rendimento tirado pela Autora da execução deste projeto aprovado pelo Réu não dava para ela viver com normal dignidade, sem se demonstrar a sua culpabilidade em tal situação.

Aliás, embora não provado como causa (e, portanto, irrelevante para análise de uma alegada alteração substancial das circunstâncias “contratuais”), podemos afirmar aqui um contexto evidente: a crise económico-financeira nacional desde 2011.

O exercício, a título parcial e não permanente, da segunda atividade (de formação profissional), durante cerca de ano e meio, foi motivado pela necessidade de a Autora se manter a si própria, ao seu agregado familiar e à referida empresa “E..........”.

Portanto, sem o segundo trabalho, ou segunda atividade profissional, a Autora não teria tido condições para viver, nem para evitar o fecho da empresa criada.

Isso quer dizer, necessariamente, que o incumprimento (a segunda atividade profissional em horário parcialmente coincidente com o da empresa subsidiada) foi justificado.

Esta conclusão impunha-se ainda e impõe-se ao réu sob a égide da submáxima da necessidade em sede do postulado aplicativo da proporcionalidade administrativa; mas também à luz do sub-exame da proporcionalidade em sentido estrito: seria manifestamente excessivo, desequilibrado, irracional e injusto que o Decreto-Lei e a Portaria cits. pudessem tolerar, no juízo ponderativo ou opcional feito pelo legislador dentro da unidade racional do sistema jurídico, que a ora Autora tivesse (i) de encerrar a empresa criada ao abrigo daquela legislação e (ii) de viver sem bem-estar mínimo por causa da exclusividade exigida pela lei, precisamente por causa de tal empresa, onde a autora, aliás, não deixou de trabalhar.

O posto de trabalho projetado pelas aqui partes processuais, no âmbito legal referido, manteve-se e a segunda atividade parcial e não permanente da ex-desempregada (a autora) impediu a empresa e o posto de trabalho de desaparecerem (essencial no espírito desta legislação), bem como, ainda, permitiu à autora viver com um pouco mais do que o SMN durante um ano e meio dos vários anos da cit. empresa e do cit. posto de trabalho.

Com efeito, no caso concreto, o que ocorreu é que o incumprimento da obrigação legal aqui em discussão serviu, imediatamente, para que a ex-desempregada (i) mantivesse o posto de trabalho criado e a empresa criada com a ajuda do seu subsídio de desemprego, outorgado pelo réu, e (ii) serviu também, imediatamente, para que ela vivesse com pouco mais do que uma remuneração mínima equivalente ao salário mínimo nacional (sendo que se trataram de mais 9400 euros e um ano e meio de “acumulação”).

Portanto, o réu errou, ajuizou mal, porque violou os princípios gerais da justiça e da proporcionalidade administrativa, ao qualificar esta factualidade como um “incumprimento injustificado”, isto é, ao concretizar o conceito jurídico-legal de “incumprimento injustificado”.

Se tivesse ponderado de facto e expressamente os argumentos invocados na audiência prévia pela autora, talvez o réu não tivesse feito esta incorreta concretização do cit. conceito jurídico indeterminado, concluindo que se tratou de um incumprimento justificado.

É um vício de violação de lei, causa de anulabilidade (cfr. hoje o artigo 163º/1 do Código do Procedimento Administrativo/2015 e, antes, o artigo 135º).

Procede, assim, este ponto das conclusões do recurso.

*

III. DECISÃO

Por tudo quanto vem de ser exposto e de harmonia com os poderes conferidos no artigo 202º da Constituição, acordam os juizes deste Tribunal Central Administrativo Sul em conceder provimento ao recurso, julgando-o procedente, revogar a sentença recorrida e, em substituição, anular o ato administrativo impugnado.

Custas a cargo do réu em ambos os tribunais.

Lisboa, 24-11-2016

(Paulo Pereira Gouveia - relator)

(Nuno Coutinho)

(Carlos Araújo)

(1) O que, desde 1-1-2004, não pode ser confundido com emissão de um parecer sobre o processo.
(2) Como não é demais lembrar, tribunal é o órgão de que é titular um juiz ou um colégio de juizes que, a requerimento de outrem e através de um procedimento equitativo, imparcial e independente, decide, com força obrigatória para os interessados, os factos integradores dos respetivos direitos e obrigações, aplicando-lhes o direito pertinente (Ac. do Tribunal Constitucional nº 33/96; Ac. nº 472/95; Acórdão nº 81/86; GOMES CANOTILHO/V.M., Constituição da República Portuguesa Anotada, 4ª ed., II, págs. 24 ss).
(3) Sobre a matéria de facto, cfr., inter alia, o Acórdão do STJ de 13-11-2014, Processo nº 444/12.5 (rel. Lopes do Rego); F. F. de ALMEIDA, DPC, II, 2015, págs. 346 ss; LEBRE DE FREITAS, A Ação Declarativa…, 3ª ed., págs. 188-206.
(4) Sobretudo nas vertentes do controlo efetivo do ato administrativo, ainda que sob a forma legal (cfr. o artigo 268º/4 da Constituição da República Portuguesa e, inter alia, o Acórdão do STA de 10-12-1996, Processo nº 032590), do controlo do regulamento administrativo (cfr., inter alia, o Acórdão do STA de 1-10-2014, Processo nº 01548/13) e do controlo do contrato público; diferente daquele conceito material de norma legal e de ato administrativo, é o conceito funcional e pragmático de lei, exclusivamente para efeitos do exercício da função fiscalizadora do Tribunal Constitucional (Acórdãos nº 26/85, nº 80/86, nº 1/97, nº 24/98, nº 214/2011 e nº 441/2012, bem como os nº 34/86, nº 405/87 e nº 63/91).
(5) Com efeito, os sujeitos do direito devem agir de modo a que, pelas suas máximas, possam ser legisladores de leis universais (adaptando aqui a “fórmula da lei universal” do imperativo categórico de Kant).
(6) A segurança jurídica (diferente da proteção da confiança legítima) é um princípio constitucional tão importante que, por vezes, chega a suplantar o princípio da constitucionalidade: cfr. o artigo 282º/3-1ª parte/4 da Constituição da República Portuguesa e PAULO OTERO, Ensaio Sobre o Caso Julgado Inconstitucional, 1993, págs. 48 ss.
(7) Racional, isto é, com vontade de agir e compreender de acordo com a representação partilhada de certas normas ou máximas, no âmbito de uma mesma comunidade de juristas unidos pelas mesmas leis ou normas (adotando aqui linguagem kantiana).
(8) Cfr. JORGE MIRANDA, Manual…, II, 4ª ed., 2000, pág. 358; PAULO OTERO, Legalidade e Adm. Pública, 2003, págs. 585-587.
(9) Cfr. ROBERT ALEXY, “Os direitos fundamentais e o princípio da proporcionalidade”, in O Direito, Ano 146º, 2014, I/II, págs. 817-834, e “A construção dos direitos fundamentais “, in Direito & Política, nº 6, 2014, págs. 38 ss.
(10) Um conjunto consistente de princípios (programáticos, formais e materiais) e de regras (primárias ou secundárias; específicas, especiais ou excecionais; injuntivas ou supletivas; de resultado ou técnicas; definitórias, de remissão, de presunção, de ficção legal, de conflitos ou autorreferenciais) com um critério próprio de validade aplicável a tais normas jurídicas. Este critério é, a nosso ver, uma regra de seleção, pressuposta no art. 203º da nossa CRP, que nos diz que direito é aquilo que o direito diz que é direito (LUHMANN) e que ele contém sempre normas ponderativas para resolver eventuais conflitos ou colisões normativas (D. DUARTE, “Drawing up the Boundaries of Normative Conflicts that Lead to Balances”, in Archiv fur Rechts und Socialphilosophie-Beiheft, 124, 2010, p. 57, Ed. Jan Reinard Sieckmann. Stuttgart: Franz Steiner Verlag).
(11) Aqui, atende-se aos princípios gerais do sistema jurídico, ao contexto normativo e aos “lugares paralelos”. V. ainda, sobre a interpretação conforme à Constituição, K. ENGISCH, Introdução ao Pensamento Jurídico, 5ª, Lisboa, 1979, pp. 114 e 120.
(12) Aqui atende-se aos precedentes normativos históricos e comparativos, aos trabalhos preparatórios e à occasio legis (circunstancialismo que rodeou o aparecimento da lei). Aqui, nesta última, procura-se identificar o ponto de vista valorativo que presidiu à feitura da lei.
(13) Assente no princípio da coerência valorativa ou axiológica da ordem jurídica – J. BAPTISTA MACHADO, Introdução…, 1985, p. 191. Ali procura-se transpor ou ajustar ao presente o juízo de valor da lei ao tempo em que foi elaborada (ibidem).
(14) Por causa do princípio do aproveitamento das leis e da presunção de racionalidade da lei.
(15)A lei remete para um regime que não existe. Ou há disposições inconciliáveis em que não há revogação.
(16) I.e., a medida não pode ser substi­tuída por outra igualmente adequada (eficaz) e menos gravosa (“o meio mais benigno”, na formulação de R. Alexy).
(17) Entre nós, em sede de fiscalização da constitucionalidade de normas legais, este exame tem sido quase sempre ignorado, por causa, alega-se, do respeito por um espaço de livre conformação do legislador. Cfr. J. J. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª ed., Almedina, Coimbra, 2007, p. 272.
(18) Esta é a forma específica de aplicação dos comandos jurídicos conhecidos como princípios gerais, sendo a subsunção a forma específica de aplicação dos comandos jurídicos conhecidos como das regras. A ponderação jurídica diz respeito à questão de apurar qual o lado da balança que deve suportar os custos da medida em causa.
(19) Quanto maior for o grau de não realização ou de afetação de um princípio ou direito fundamental, maior terá de ser a importância de realizar o outro principio ou direito fundamental.
(20) A “Lei Material ou Substantiva da Ponderação” evidencia que o sopesamento pode ser feito em três fases. A primeira fase refere-se a estabelecer o grau de não realização ou de afetação do primeiro princípio ou direito fundamental. Segue-se a segunda fase, em que se determina a importância de realizar o princípio concorrente. Finalmente, a terceira fase responde à questão de saber se a importância de realizar o princípio ou direito fundamental concorrente justifica a afetação ou não realização do primeiro princípio ou direito fundamental.
A “Fórmula do Peso”, deste sopesamento, traduz a ideia de que se pode definir o peso concreto de um princípio ou direito fundamental “P1” como sendo igual ao quociente resultante da divisão da intensidade da interferência da medida em causa (leve=1, moderada=2 ou grave=4) nesse princípio “P1” pela importância concreta de realizar o princípio concorrente ou direito fundamental concorrente “P2” (leve=1, moderada=2 ou grave=4); se o resultado for superior a 1 o princípio “P1” prevalecerá; se for inferior a 1 o princípio “P2” prevalecerá; se for igual a 1 valerá integralmente a margem de conformação do Legislador. Se acaso os pesos abstratos de cada princípio ou direito colidente forem diferentes, devem ser incluídos na fórmula.
Deve-se atender ainda à importantíssima Segunda Lei da Ponderação ou “Lei Epistémica da Ponderação”, que tem semelhante fórmula de sopesamento, mas em que se adita a “segurança das premissas que sustentam a interferência” à cit. intensidade da interferência da medida em causa (leve=1, moderada=2 ou grave=4) nesse princípio e à cit. importância concreta de realizar o princípio concorrente ou direito fundamental concorrente. Se acaso os pesos abstratos de cada princípio ou direito colidente forem diferentes, devem ser incluídos na fórmula. Esta segunda lei tem, pois, a ver com a margem epistémica de ação do legislador e diz o seguinte: quanto mais intensa for a interferência do legislador num direito fundamental, tanto maior deve ser a segurança das premissas que sustentam essa interferência.
A cit. segurança das premissas pode ser “certa” (=1 ou 2-0), “plausível” (=1/2 ou 2-1) ou “não evidentemente falsa” (=1/4 ou 2-2). Aqui desembocaremos em graus diferentes de intensidade do controlo jurisdicional: um “controlo intenso de conteúdo” quando as premissas que sustentam a interferência forem apenas não evidentemente falsas, um “controlo de plausibilidade” quando as premissas forem meramente plausíveis ou um “controlo de mera evidência” quando as premissas que sustentam a interferência forem certas.
Cfr. ROBERT ALEXY: A construção dos direitos fundamentais, trad., in Direito & Política, nº 6, 2014, pp. 38-48, e respetivas notas e introdução; The weight formula, trad., in J. Stelmach/B. Bro¿ek/W. Za³uski org., “Studies in the Philosophy of Law”, 3, Krakau, 2007, pp. 9-27; Sobre los derechos constitucionales a protección, trad., in R. García Manrique org., “Derechos sociales y ponderación”, Madrid, 2007, pp. 45-84; A Theory of Constitutional Rights, trad., Oxford, 2002.
(21) Cfr. A. VAZ SERRA, Discurso do Ministro da Justiça…, in B.O.M.J., Ano I, nº 1, Lisboa, 1940, págs. 141-152; MANUEL DE ANDRADE, Fontes do direito, vigência, interpretação e aplicação da lei, in BMJ, 102 (1961), págs. 141-152; MARCELO CAETANO, O respeito da legalidade e a justiça das leis, in O Direito, Ano LXXXI (1949), a págs. 18 ss.

(22) Cfr. JOSÉ LAMEGO, Elementos de Metodologia Jurídica, 2016, págs. 57 ss, 86 ss, 106-107, 146 ss, 150 ss, 155-171, 189-192, 255 e 270-275.