Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:650/19.1BELRA-S1
Secção:CA
Data do Acordão:12/18/2019
Relator:DORA LUCAS NETO
Descritores:QUESTÕES PRÉVIAS;
ART. 88.º, N.º 4, CPTA;
ART. 142.º, N.º 5, CPTA;
ART. 644.º CPC;
Sumário:i) O momento devido da impugnação de uma decisão interlocutória não contraria a regra da concentração/estabilização, em sede de despacho saneador, do momento processual em que o tribunal a quo deve conhecer de questões que possam obstar à decisão sobre o mérito da causa.

ii) Esta desejada concentração/estabilização opera através desse conhecimento e não fica desvirtuada pelo distinto momento em que, por efeito do regime dos recursos, a decisão proferida possa vir a ser reapreciada pelo tribunal ad quem.

iii) O disposto no art. 142.°, n.° 5, do CPTA, no qual se prevê que as decisões proferidas em despacho interlocutório podem ser impugnadas no recurso que venha a ser interposto da decisão final, exceto nos casos em que é admitida a apelação autónoma nos termos da lei processual civil, é aplicável à decisões proferidas em sede de despacho saneador;

iv) No caso em apreço, não é admissível a apelação autónoma da decisão proferida, uma vez que o recurso interposto não se enquadra em nenhuma das situações do n.º 1 e n.º 2, alíneas a) a i) do art. 644.º do CPC;

v) Não cabendo apelação autónoma, a decisão que tenha conhecido de questões prévias em sede de despacho saneador deverá ser impugnada em sede de recurso que vier a ser interposto da decisão final, ao abrigo dos art.s 142.º, n.º 5 e 147.º, ambos do CPTA.

Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:


I. O Demandado, Walter ………………………, ora Reclamante, vem reclamar para a conferência do despacho do relator que julgou findo o recurso por entender não ser de conhecer do seu objeto, ao ter considerado, conjugadamente, o seguinte: i) aplicabilidade do art. 142.°, n.° 5, do CPTA, onde se prevê que as decisões proferidas em despacho interlocutório podem ser impugnadas no recurso que venha a ser interposto da decisão final, exceto nos casos em que é admitida a apelação autónoma nos termos da lei processual civil; ii) inadmissibilidade, no caso em apreço, de apelação autónoma, uma vez que, o recurso da decisão tomada em sede de despacho saneador não se enquadra em nenhuma das situações do n.º 1 e n.º 2, alíneas a) a i) do art. 644.º do CPC; e, consequentemente, iii) não cabendo apelação autónoma, a decisão proferida em sede de despacho saneador, deverá ser impugnada em sede de recurso que vier a ser interposto da decisão final, ao abrigo dos art.s 142.º, n.º 5 e 147.º, ambos do CPTA.

É contra esta decisão que o Reclamante, se insurge, invocando, em síntese, que, ao contrário do decidido, o recurso devia ter sido admitido, e que a decisão reclamada «(…) resulta de uma errada interpretação das normas jurídicas aplicáveis». E que, na verdade, «o caso em apreço é um daqueles "casos especialmente previstos na lei", a que se refere a alínea i) do n.° 2 do artigo 644.° do CPC, em que de uma decisão proferida por um tribunal de 1.ª instância pode haver recurso de apelação autónomo», em virtude de «(…) o artigo 88.°, n.° 4 do CPTA só [prosseguir] a finalidade para o qual está vocacionado - garantir a estabilização do processo na fase de saneamento - e só tem um sentido útil se for interpretando como tornando admissível o recurso de apelação autónomo do despacho saneador que decida questões prévias. Com efeito, só sendo possível esse recurso é que se pode concluir que o despacho saneador transita no caso de ele não ser interposto e forma, imediatamente, caso julgado formal.»

I.1. Sem vistos, atenta a natureza urgente do processo, mas com prévia divulgação do projeto de acórdão pelos Mmos. Juízes Desembargadores Adjuntos, vem o processo agora à conferência para apreciação da reclamação deduzida.

II. Apreciando, o despacho reclamado é do seguinte teor, sendo que do mesmo consta a factualidade aqui relevante:

«(…)

I. WALTER……………………………………., Demandado na ação para perda de mandato em apreço intentada pelo Ministério Público, invocou, em sede de contestação, um conjunto de questões prévias que, no seu entendimento, impediam o julgamento de tal ação, a saber:

(i) a nulidade da petição inicial por omissão de elementos factuais necessários ao exercício efetivo do contraditório; (ii) a caducidade do direito de ação; e (iii) a falta de parecer prévio de um órgão autárquico.

Por despacho saneador proferido a 07.10.2019, o Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria julgou improcedentes tais questões prévias, determinando o prosseguimento do processo.

O Demandado, ora RECORRENTE, discordando dessa decisão e, por forma a evitar a alegação de que a não impugnação imediata do referido Despacho implica a constituição de caso julgado formal nos termos do n.° 4 do artigo 88.° do CPTA (aplicável por força do disposto no artigo 15.°, n.° 1 da Lei da Tutela Administrativa e no artigo 97.°, n.° 1, alínea a) do CPTA), veio dela interpor recurso, invocando, para tal, as disposições conjugadas dos artigos 88.°, n.° 4, 140.°, 141.°, n.° 1 e 142.°, n.° 5, 2.a parte do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), dos artigos 644.°, n.° 2, alínea i), 645.°, n.° 2 e 647.°, n.° 1 do Código de Processo Civil (CPC) e do artigo 37.°, alínea a) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF).

Por despacho de 11.11.2019, o tribunal a quo admitiu o recurso ao abrigo do disposto no art. 646.º, n.º 1, do CPC, mais ordenando a constituição de apenso e a subida em separado mesmo.

II. Apreciando desde logo a admissibilidade do recurso.

Nos termos do disposto no art. 140.º do CPTA: «os recursos das decisões proferidas pelos tribunais administrativos regem-se pelo disposto na lei processual civil, salvo o disposto no presente título» (nº 3).

De acordo com o disposto no art. 142.º, n.º 5, do CPTA: «[a]s decisões proferidas em despacho interlocutório podem ser impugnadas no recurso que venha a ser interposto da decisão final, exceto nos casos em que é admitida apelação autónoma nos termos da lei processual civil.» (sublinhado nosso).

E, por fim, nos termos do art. 147.º, do CPTA: «1 - Nos processos urgentes, os recursos são interpostos no prazo de 15 dias e sobem imediatamente, no processo principal ou no apenso em que a decisão tenha sido proferida, quando o processo esteja findo no tribunal recorrido, ou sobem em separado, no caso contrário.»

É hoje jurisprudência pacífica, desde o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, n.º 2/2011, P.225/11, de uniformização de jurisprudência, que o disposto no art. 147.º do CPTA, relativo aos processos urgentes não afasta a aplicação do artigo 142.º, n.º 5, do mesmo código.

Com isto significando, entre outras coisas, o seguinte:

«(…) pois que não há qualquer determinação especial, nomeadamente no artigo 147.º, n.º 1, do CPTA, o que haverá que fazer, simplesmente, tendo em conta a regra do artigo 142.º, n.º 5, é proceder à impugnação das decisões interlocutórias no recurso da decisão final, por isso, em 15 dias desde a sua notificação, salvo se deverem ser impugnadas antes, nos termos também previstos naquele artigo 142.º, e aí, claro, também no prazo de 15 dias. (…) Ou seja, (…), no artigo 142.º, n.º 5, do CPTA dispõe-se sobre a recorribilidade e impugnabilidade dos despachos interlocutórios proferidos em todos os processos, já no artigo 147.º, n.º 1, nada se prevê sobre essa matéria, antes, apenas, sobre o momento de subida e o modo de subida dos recursos. (…)

2.2.4.1 - A interpretação que se acaba de realizar não se traduz em nenhuma postergação do direito de tutela jurisdicional efectiva.

É o que corresponde completamente ao sentido literal mais directo de ambos os preceitos (interpretação declarativa) e tem plena justificação de substância, não havendo qualquer razão para pensar que a letra do artigo 147.º, n.º 1, fica aquém do seu espírito. (…) não se vê que uma regra como a do artigo 142.º, n.º 5, agora também inscrita no CPC, possa ser violadora do direito a efectiva tutela jurisdicional, apenas por também aplicável em processos urgentes.

O direito a efectiva tutela jurisdicional, constitucionalmente inscrito - artigo 20.º - e também inscrito, por exemplo, no artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e no artigo 47.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, não releva apenas de processos urgentes.»

Por seu turno, dispõe o art. 644.º, n.º 1, do CPC, sob a epígrafe, apelações autónomas, o seguinte:

1 - Cabe recurso de apelação:

a) Da decisão, proferida em 1.ª instância, que ponha termo à causa ou a procedimento cautelar ou incidente processado autonomamente;

b) Do despacho saneador que, sem pôr termo ao processo, decida do mérito da causa ou absolva da instância o réu ou algum dos réus quanto a algum ou alguns dos pedidos.

2 - Cabe ainda recurso de apelação das seguintes decisões do tribunal de 1.ª instância:

a) Da decisão que aprecie o impedimento do juiz;

b) Da decisão que aprecie a competência absoluta do tribunal;

c) Da decisão que decrete a suspensão da instância;

d) Do despacho de admissão ou rejeição de algum articulado ou meio de prova;

e) Da decisão que condene em multa ou comine outra sanção processual;

f) Da decisão que ordene o cancelamento de qualquer registo;

g) De decisão proferida depois da decisão final;

h) Das decisões cuja impugnação com o recurso da decisão final seria absolutamente inútil;

i) Nos demais casos especialmente previstos na lei.[sublinhados nosso].

Donde, desde logo se conclui, nem tal o RECORRENTE invoca, que no caso em apreço não se verifica o preenchimento da previsão normativa consagrada na supra citada e transcrita alínea b) do n.º 1 do art. 644.º do CPC.

Quanto ao mais, no sentido de verificar da admissibilidade do requerimento de recurso ao abrigo do n.º 2, do art. 644.º do CPC, designadamente da alínea i), invocada pelo RECORRENTE, imperioso se torna concluir também que, de uma leitura conjugada do art. 88.º, n.º 1, alínea a) e n.º 4 – sob a epígrafe, “Despacho Saneador” – n.º 1 – o despacho saneador destina-se a: a) conhecer das exceções dilatórias e nulidades processuais que hajam sido suscitadas pelas partes (…)”; n.º 4 – no caso previsto na alínea a) do n.º 1, o despacho constitui, logo que transite, caso julgado formal (…) - 140.º, 141.º, n.º1 e 142.º, n.º 5 – as decisões proferidas em despacho interlocutório podem ser impugnadas no recurso que venha a ser interposto da decisão final, exceto nos casos em que é admitida apelação autónoma nos termos da lei processual civil - , todos do CPTA, que o recurso da decisão tomada em sede de despacho saneador, não se enquadra em nenhuma das situações do n.º 1 e n.º 2, alíneas a) a i), do art. 644.º do CPC, pelo que da mesma não cabe apelação autónoma, mas sim, e ao invés, deverá esta ser impugnada em sede de recurso que vier a ser interposto da decisão final, ao abrigo do art. 142.º, n.º 5, e art. 147.º, ambos do CPTA.

E porque este tribunal superior não se encontra vinculado à decisão proferida pelo tribunal a quo que admitiu o recurso, atento o preceituado no art. 641.º, n.º 5, do CPC ex vi art. 1.º do CPTA, não se irá tomar conhecimento do objeto do recurso.

III. Pelo exposto, julga-se findo o recurso, por não haver que conhecer do seu objeto.»

II.1. Da questão decidenda

Considera o Reclamante que a interpretação que foi seguida no despacho reclamado é inadmissível porque impede que o n.° 4 do art. 88.° do CPTA prossiga a finalidade para o qual está vocacionado, a saber, garantir a estabilização do processo na fase de saneamento, retirando qualquer sentido útil àquele preceito.

Mas não tem razão.

A operacionalidade da desejada estabilização do processo é alcançada através da obrigatoriedade do conhecimento, sempre que tal seja possível, de todas as questões que possam obstar à decisão do mérito da causa, em sede de saneamento e não a final.

Questão diferente é o momento em que tal decisão transita em julgado, cuja resposta tem de ser articulada com o regime de recursos previstos no CPTA e no CPC, sempre que a aplicação supletiva deste opere, tal como fez o despacho reclamado.

É doutrinaria e jurisprudencialmente aceite a aplicabilidade, ao recurso de decisões proferidas em sede de despacho saneador - nas situações em que estas decisões não sejam imediatamente recorríveis nos termos da lei processual civil -, do regime da impugnação/recurso das decisões proferidas em despacho interlocutório, que (apenas) podem ser impugnadas no recurso que venha a ser interposto da decisão final, exceto nos casos em que é admitida apelação autónoma nos termos da lei processual civil (cfr. art. 142.º, n.º 5, do CPTA).

A titulo de exemplo, veja-se o recente acórdão do STA, de 17.01.2019, P. 01282/17 (1), de onde ressalta que «(…) no caso previsto na citada alínea a) do artigo 88º do CPTA, «o despacho constitui, logo que transite, caso julgado formal […]» - artigo 88º, nº 4 - 1ª parte, do CPTA]. Efectivamente, desse despacho poderá ser interposto «recurso jurisdicional» nos termos do artigo 142º, nº 5, do CPTA, ou seja, pode ser impugnado no recurso que venha a ser interposto da decisão final.»

Assim como Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha (2), «(…) Entre os despachos interlocutórios que só são impugnáveis a final e se encontram, como tal, abrangidos pela primeira parte do n.º 5, contam-se os despachos que, na fase de saneamento do processo, julguem improcedentes uma questão prévia.»

E isto porque, o momento da impugnação da decisão interlocutória proferida não contraria a regra da concentração/estabilização, em sede de despacho saneador, do momento processual em que o tribunal a quo deve conhecer de questões que possam obstar à decisão sobre o mérito da causa.

Esta desejada concentração/estabilização opera através desse conhecimento e não fica desvirtuada pelo distinto momento em que, por efeito do regime dos recursos, a decisão proferida possa vir a ser reapreciada pelo tribunal ad quem.

Razão pela qual se considera que o despacho reclamado não só não compromete o sentido útil da 1.ª parte do n.° 4 do art. 88.° do CPTA, como não contraria nenhum elemento teleológico de interpretação ou a regra hermenêutica que resulta do n.° 3 do art. 9.° do Código Civil.

Tendo o assim dito, terá que confirmar-se integralmente o despacho reclamado, que bem aplicou a lei.

Pelo que improcede a reclamação, como explicitado.


III. Decisão

Nestes termos e por todos os fundamentos expostos, acorda-se em julgar improcedente a reclamação e manter o despacho do relator .

Custas pelo Reclamante.


Lisboa, 18.12.2019.



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Dora Lucas Neto


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Pedro Figueiredo


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Cristina Santos


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(1) Disponível em www.dgsi.pt
(2) Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 2017, 4.ª edição, Almedina, pg. 1092, em anotação ao n.º 5 do art. 142.º, do CPTA.