Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:231/20.7BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:09/10/2020
Relator:DORA LUCAS NETO
Descritores:ASILO;
PEDIDO SUBSEQUENTE;
AFEGANISTÃO;
ART. 33.º LEI DO ASILO.
Sumário:i) Existindo já uma decisão tomada por um Estado Membro e tendo sido esta de indeferimento, a retoma a cargo pelo Estado Membro responsável – in casu, Suécia – cfr. art. 18.º, n.º 1, alínea d), do Regulamento de Dublin III -, não se aplica no caso em apreço, dada a apresentação de um pedido de proteção internacional subsequente, por via do art. 33.º da Lei do Asilo, interpretado conjugadamente com o disposto na alínea e), do n.º 1, do art. 19.º-A, a contrario, do mesmo diploma legal, dado que o pedido formulado pelo Requerente, aqui Recorrente, preenche os requisitos necessários para o efeito.
ii) Procedendo o invocado erro de julgamento imputado à sentença recorrida imperioso se torna revogar a sentença recorrida e, julgando em substituição, anular o ato impugnado, por vício de violação de lei, concretamente, por errada interpretação e aplicação dos art. 19.º-A, n.º 1, alínea e), a contrario, e art. art. 33.º, ambos da Lei do Asilo, e determinar que o pedido de proteção internacional formulado pelo Requerente, ora Recorrente, seja admitido e conhecido como pedido subsequente, ao abrigo das supra citadas normas.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

I. Relatório

A....., interpôs recurso da sentença do TAC de Lisboa de 26.04.2020, que julgou a ação administrativa em matéria de asilo por si intentada improcedente, absolvendo o Ministério da Administração Interna do pedido.

As alegações de recurso que apresentou culminam com as seguintes conclusões:

«(…) 1- O Tribunal a quo julgou erradamente várias questões de facto.

2- Julgou erradamente que o Recorrente não juntou prova de novos factos, pelo que este Douto Tribunal deverá corrigir esse erro e considerar que existe legitimidade para um pedido de asilo subsequente.

3- O Tribunal a quo julgou erradamente que o Recorrente veio para a Europa por motivos pessoais/económicos, não fundamentando devidamente essa conclusão, nem existindo fundamento para tal, pelo que este Douto Tribunal deverá corrigir esse erro e revogar essa conclusão.

4- O Tribunal a quo julgou erradamente que o Recorrente não prova sério risco, pois sendo o Recorrente da etnia Hazara o sério risco é evidente, não carecendo de prova suplementar.

5- O Tribunal a quo errou ao julgar que o Recorrente pede asilo por motivos pessoais/económicos e o tribunal a quo não fundamenta devidamente essa conclusão, nem existindo fundamento para tal, pelo que este Douto Tribunal deverá corrigir esse erro e revogar essa conclusão.

6- Não é verdade que não haja explicação sobre esse hiato de tempo, pois nas suas declarações perante o SEF o ora recorrente referiu que depois do seu pai sr assassinado em 2005 fugiram da cidade Wardak para Kabul e depois de estar um período em Kabul voltaram a fugir para outra cidade, Ghazni, devido ao assassinato do seu irmão.

7- Não existem incoerências ou contradições, mas sim erros de perceção do tribunal de 1a instância, designadamente não existe contradição entre alegar ser Hazara e xiita, pois são realidades sobrepostas, nem existe contradição ou incoerência no facto de em maio de 2019 só ter referido a questão familiar e agora, perante o crescimento exponencial da violência sobre os Hazaras, ter feito um pedido de asilo subsequente com este fundamento.

8- O Tribunal a quo errou ao julgar que o dever de audiência prévia fou cumprido, pois para efeitos da notificação do relatório prevista no artigo 17.°, o relatório não são as declarações (prestadas em 3/1/2020), mas sim a informação elaborada em 24/1/2020, na qual consta a proposta de decisão.

9- O Tribunal a quo errou ao julgar que a decisão impugnada está bem fundamentada, pois apesar do Recorrente a haver contrariado, apenas o pode fazer parcialmente, em relação aos motivos fundamentos.

10- O Tribunal a quo errou ao não permitir a prestação de declarações, pois tendo a decisão da 1a instância se baseado na não credibilidade do Recorrente devido às suas alegadas contradições e incoerências, seria da mais elementar equidade que o tribunal a quo o ouvisse. (…)»

O Recorrido, notificado para o efeito, não contra-alegou.

Neste tribunal, o DMMP apresentou pronúncia no sentido de ser negado provimento ao recurso.

Com dispensa dos vistos legais, atento o seu carácter urgente do processo, mas com disponibilização prévia do texto do acórdão, vem o mesmo submetido à conferência desta Secção do Contencioso Administrativo para decisão.

I. 1. Questões a apreciar e decidir

A sentença recorrida julgou improcedente a pretensão do Requerente, ora Recorrente, de anulação da decisão da Diretora Nacional do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, que considerou inadmissível, ao abrigo da alínea e) do art. 19.º-A, da Lei 27/2008, de 30.06. (doravante Lei do Asilo), o pedido de proteção internacional apresentado pelo Requerente, ora Recorrente, determinando a sua transferência para a Suécia, assim como julgou improcedente a sua pretensão de que a decisão do SEF fosse substituída por outra que permitisse a análise do seu pedido de proteção internacional pelo Estado Português.

I.2. O objeto do recurso é delimitado, em princípio, pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de questões de conhecimento oficioso ainda não decididas com trânsito em julgado – cfr. art.s 635.º, 639.º e 608.º, n.º 2, 2ª parte, todos do CPC , ex vi art. 1.º e art. 140.º, n.º 3, ambos do CPTA. E dizemos em princípio, porque o art. 636.º do CPC permite a ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido, situação que não se coloca nos autos.

As questões que cumpre conhecer consubstanciam erros de julgamento imputados à sentença recorrida, ao ter considerado que (cfr. conclusões do recurso):

1. O Recorrente não juntou prova de novos factos para um pedido de asilo subsequente;

2. o Recorrente veio para a Europa por motivos pessoais/económicos;

3. o Recorrente não provou sério risco em regressar ao Afeganistão, não obstante este ter invocado ser da etnia Hazara;

4. existirem incoerências e contradições no discurso do Recorrente, designadamente, (i) a inexistência de explicação sobre determinado hiato de tempo (ii) de contradição entre o Recorrente alegar ser Hazara e xiita (iii) no facto de em maio de 2019 só ter referido a questão familiar e agora, perante o crescimento exponencial da violência sobre os Hazaras, ter feito um pedido de asilo subsequente com este fundamento;

5. o dever de audiência prévia foi cumprido;

6. a decisão impugnada está bem fundamentada;

e, por fim,

7. do erro de julgamento imputado à sentença recorrida em virtude de o tribunal a quo não ter permitido a prestação de declarações.

II. Fundamentação

II.1. De facto

Dá-se aqui por reproduzida toda matéria de facto considerada provada na sentença recorrida, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 663.º, n.º 6, do CPC, ex vi art. 140.º do CPTA, transcrevendo-se apenas, para maior facilidade de exposição atendo ao âmbito do presente recurso, os seguintes factos:

A) [O] Requerente nasceu em 13/10/1999 em Wardak, Afeganistão e é nacional deste país (cfr. processo administrativo apenso, que ora se dá por integralmente reproduzido);

B) Em 17/12/2019 o Requerente efectuou pedido de asilo ao Estado Português (cfr. fls. 13 do processo administrativo apenso, que ora se dá por integralmente reproduzido);

C) Por consulta na base de dados do Eurodac, o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras verificou a existência de um pedido de asilo, formulado pelo Requerente em 02/12/2015, em AEMA3, Suécia e em 16/04/2019, em Lisboa, Portugal (cfr. fls. 3 e 4 do processo administrativo apenso, que ora se dá por integralmente reproduzido);

(...)

E) O pedido de protecção internacional apresentado pelo Requerente em 16/04/2019 foi considerado inadmissível, em virtude de se considerar a Suécia o Estado Membro responsável pela análise do seu pedido, nos termos do Regulamento (EU) 604/2013 do PE e do Conselho, de 26 de Junho, determinando-se a sua transferência para o referido país (cfr. SITAF, no âmbito do proc. 979/19.9 BELSB);

F) O Requerente impugnou judicialmente a decisão referida na alínea anterior, junto deste Tribunal, impugnação essa que que correu termos na 3a U.O e foi registada sob o n.° 979/19. 9 BELSB (cfr. idem);

G) Os autos registados sob o 979/19. 9BELSB foram julgados improcedentes (cfr. idem);

H) O Requerente interpôs recurso jurisdicional da decisão proferida por este Tribunal nos autos registados sob o 979/19. 9BELSB, ao qual foi negado provimento por Acórdão do Venerando Tribunal Central Administrativo Sul, em 24/10/2019 (…)

(…)

J) Em 03/01/2020, o Requerente prestou declarações perante o SEF, quanto aos fundamentos do seu pedido de asilo sub judice, com o seguinte teor:

(…)

P. E do pedido de proteção internacional que fez na Suécia, qual fora a resposta?

R. Foi negativo. Depois de um ano e três meses ali, obtive a primeira resposta negativa. Mas recorri da decisão e, voltou a ser negativa a decisão.

P. O que resolveu fazer então?

R. E a terceira vez também foi negativa. Não recordo já quando isso aconteceu.

P. Quando é que viajou para Portugal e, quando é que aqui chegou?

R. Depois da terceira resposta negativa, eu tinha de ir à Policia Sueca (…), três vezes por semana. E ali disseram então que tinha de ir à Embaixada do Afeganistão em Estocolmo para obter aquele documento. A Polícia Sueca disseram mesmo que iria ser deportado para o Afeganistão. E como suspeitei que iria ser em breve deportado, deixei de ali ir à Polícia fazer aquele registo três vezes por semana e, então acerca de oito meses atrás, viajei de comboio desde a Suécia para Portugal e, aqui cheguei em Abril de 2019.

P. Qual foi a data que chegou a Portugal e, o que fez na ocasião?

R. Eu cheguei aqui a Lisboa no dia 12/04/2019 e, vim então aqui solicitar a proteção internacional a Portugal.

P. Mas o seu pedido foi alvo de uma decisão de inadmissibilidade, face ao Regulamento Dublin e, fora à altura solicitado a tomada a cargo da Suécia, que veio a contestar nos tribunais Administrativos de Lisboa e, não fora executada a transferência, apesar de ter sido a Sentença improcedente, ou seja, desfavorável para si. O que tem a dizer?

R. Eu não quero voltar para a Suécia, pois ali vão-me deportar para o Afeganistão. E não quero voltar para o Afeganistão também.

P. É, ou alguma vez foi, membro de alguma organização política, religiosa, militar, étnica ou social, no Afeganistão?

R. Não. Nunca foi.

P. Tem agora a oportunidade de fornecer, sem interrupções, o seu relato pessoal sobre os motivos que o levaram a sair do seu país de origem, o Afeganistão e, está aqui a solicitar a proteção internacional a Portugal. Se possível inclua o máximo de detalhes sobre esses motivos.

R. É por causa de uma perseguição à minha família, que iniciou ainda em Wardak, Afeganistão, quando ainda era muito pequeno, pois saí dali com seis anos de idade. Havia um grupo que perseguia a minha família que é ligado aos Talibã. Havia um indivíduo daqueles, o M…., que queria casar com a minha irmã, a N…... E então houve um dia, que ele fora lá a nossa casa e, disse que ia "levar" a N…. com ele. Ele estava acompanhado de um grupo de homens armados, mas que eram muito influentes em Kabul. O meu pai opôs-se e, disse então ao meu pai que tínhamos de abandonar a casa de imediato e, foram embora. Mas naquela mesma noite, quando o meu pai estava a regar o jardim, ele foi assassinado com um tiro. E também mataram o meu tio, o S…., que também vivia connosco, passados quatro meses. E despois da morte do meu tio, a minha mãe decidiu viajar connosco para Kabul, para onde ficamos a viver.

P. E tem mas algum problema no Afeganistão?

R. Eu ali não pude ir à escola em Kabul. E depois ainda mataram o meu irmão, o I…….

P. Quando aconteceu o evento da morte do seu irmão?

R. Eu já estava em Teerão, Irão, quando isso aconteceu. Eu soube da notícia, pelo meu tio materno, o A…, que vivia com a minha mãe em Ghazni. Depois de três meses em Kabul, o grupo do Muliah Dadgah, soube onde vivíamos ali em Kabul e, então a minha mãe, irmão foram viver com o meu tio A…. para Ghazni. A minha outra irmã, a N....., casou ali em Kabul e, casou com Afegão e, foi viver para o Paquistão. E a minha irmã H....., já estava casada e, ali vivia em Kabul com o seu esposo. Mas ali foram os indivíduos do grupo do Muliah Dadgah e, raptaram o meu irmão I…., e levaram para a cidade de Wardak e, ali foi assassinado. E a minha mãe regressou a Kabul e, foi viver para casa da minha irmã, a H......

P. Tem algum problema com as autoridades do Afeganistão; Policia e Tribunais ali?

R. Não tenho.

P. Mas referiu ainda, nos meios probatórios que juntou ao processo, que o seu problema no Afeganistão é por causa de ser de etnia Hazara também. Queira explicar.

R. Sim. No Afeganistão a maioria é Sunita e, eu sou Xiita e pertenço a uma minoria.

P. Mas então não é pelo fato de ser de etnia Hazara, mas sim ser Muçulmano Xiita?

R. Sim.

P. E pelo fato de ser Muçulmano Xiita, de que forma sente ser prejudicado na sociedade Afegã?

R. Eu não tenho problemas com eles, os Muçulmanos Sunitas; eles é que tem problemas connosco. Eles sabem onde estamos, controlam as casas em que ali vivemos.

P. Mas Sente qualquer tipo de opressão por esse fato?

R. Sim. Os Sunitas sentem ódio pelos Xiitas. Eles controlam e ocupam as nossas casas e, cortam a cabeça aos Xiitas.

P. Compulsei os meios probatórios que juntou (Doc. 4) e, constato que as Autoridades da Suécia (The Migration Court – (…), que analisaram o seu pedido de proteção internacional ali na Suécia, concluíram pelo impacto negativo na sua credibilidade das suas declarações ali. O que tem a dizer?

R. O argumento deles é que quando isso aconteceu eu era pequeno.

P. Constato que juntou meios probatórios, designadamente as páginas 71, 72, 76; e da página 81 à página 94, que não tem conteúdo informativo e, nada carreiam para a meteria de facto probatória. O que tem a dizer?

R. Não sei explicar.

P. Ponderou ir viver em outra localidade/cidade dentro do Afeganistão, para suprir essas dificuldades que refere, ao invés de ter optado por sair do Afeganistão e viajar para a Suécia?

R. Sim. Eu era uma criança à altura. E fui de Wardak para Kabul, mas não resolveu os meus problemas e, resolvi sair do Afeganistão.

P. E solicitou a proteção internacional pelos países por onde foi transpondo fronteiras, designadamente, o Irão, Turquia, Grécia, Macedónia do Norte, Sérvia, Hungria, Áustria, Alemanha, Dinamarca, Suécia?

R. Não pedi. Só pedi na Suécia aos 02/12/2015.

P. E receia voltar então a que país ou países?

R. Sim. Mas não quero voltar ao Afeganistão e, não quero voltar à Suécia, porque ali vão deportar-me para o Afeganistão.

P. O que poderia acontecer se regressasse ao Afeganistão? E porque aconteceria isso?

R. Vou cair nas mãos do M…. e, vai-me matar.

P. Já pediu proteção internacional, asilo anteriormente?

R. Sim. Já pedi na Suécia.

P. Algum dos membros da família é reconhecido como refugiado?

R. Não.

P. Alguma ver cumpriu pena de prisão?

R. Nunca.

P- Alguma vez foi condenado por algum crime?

R. Nunca.

P. Tem algum meio probatório que sustente as suas declarações?

R. Tenho todos aqueles que juntei ao processo.

P. Deseja acrescentar algo ao seu relato que não lhe tenha sido questionado e que considere relevante para a análise do seu pedido de proteção internacional?

R. Sim. Tudo o que vi, ouviu e, vivi eu contei.

P. Neste momento é dado a palavra ao Dr. – F……. que, querendo, pode agora dizer o que lhe aprouver?

R. Eu tinha algumas perguntas, mas já vi esclarecido durante a entrevista realizada. (…)»

K) 24/01/2020, foi elaborada a informação n.° 22/GAR/20, pelo Gabinete de Asilo e Refugiados do SEF, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido (…)

(…) Face aos factos atrás expostos, consideramos o pedido de proteção internacional inadmissível, por se enquadrar na alínea e) do n.º 1 do artigo 19.º-A da Lei n.9 27/08 de 30.06, com as alterações introduzidas peia Lei n.º 26/14, de 05.05 pelo facto de não apresentar novos indícios, elementos ou dados relacionados com a análise do cumprimento das condições para beneficiar de proteção internacional nos termos do artigo 37.º prescindindo-se assim daquela mesma análise nos termos do n.º 2, do artigo 19.º-A.(…)

L) Em 24/01/2020, a Directora Nacional Adjunto do SEF proferiu o seguinte despacho:

Processo de Proteção Internacional n.º 2201/19

De acordo com o disposto na alínea e) do n.º 1 e n.º 2, do artigo 19.º-A, bem como do artigo 37.º, todos da Lei n.º 27/08, de 30.06, alterada pela Lei n.º 26/14 de 05.05, com base na informação n.º 22/GAR/20 do Gabinete de Asilo e Refugiados do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, considero o pedido de proteção internacional apresentado pelo cidadão que se identificou como A....., nascido aos 13/10/1999, nacional do Afeganistão, inadmissível.

Notifique-se o interessado nos termos do n.º 2 do artigo 37.º da Lei n.º 27/08, de 30.06, alterada pela Lei n.º 26/14 de 05.05.

(…)» (sublinhados nossos).

II.2. De direito:

Do conhecimento do primeiro erro de julgamento imputado à sentença recorrida dependerá o conhecimento dos restantes, pois, caso se considere que o Requerente, ora Recorrente, apresentou, de facto, junto das autoridades portuguesas, um pedido de proteção internacional subsequente, ao abrigo do art. 33.º da Lei do Asilo, o resultado será a revogação da sentença e, conhecendo em substituição, anular o ato impugnado, determinando, ao abrigo dos n.ºs 3 e 5 do citado art. 33.º, que o SEF informe o representante do ACNUR e o CPR (n.º 3) e que prossiga com o procedimento nos termos previstos nos artigos 27.º e seguintes, do mesmo diploma legal (n.º 5).

Vejamos.

Resulta da alínea C) que o Requerente, ora Recorrente, apresentou um pedido de proteção internacional junto das autoridades suecas em 2015.

Perante esse facto, e atendendo ao disposto no art. 18.º, n.º 1, alínea d), do Regulamento (UE) n° 604/2013 (doravante Regulamento de Dublin III), sob a epígrafe “Obrigações do Estado-Membro responsável”, que o Estado-Membro responsável por força do presente regulamento é obrigado a (n.º 1) retomar a cargo, nas condições previstas nos artigos 23.°, 24.°, 25.° e 29.°, o nacional de um país terceiro ou o apátrida cujo pedido tenha sido indeferido e que tenha apresentado um pedido noutro Estado-Membro (alínea d), assim como, ao disposto no n.° 1 do art. 3.° do Regulamento de DublinIII ao dispor que «(...) O pedido de asilo é analisado por um único Estado-membro (…).», imperioso se torna concluir que a Suécia será o Estado Membro responsável pela apreciação de um pedido de asilo do Requerente, ora Recorrente, desde logo, porque já decidiu um anterior – cfr. alínea J) da matéria de facto -, mas apenas se o pedido apresentado perante as autoridades portuguesas em dezembro de 2019 – cfr. alínea B) da matéria de facto – não for considerado um pedido subsequente, e apreciado como tal, ao abrigo do art. 33.º da Lei do Asilo.

Assim, tendo o Recorrido dado início ao procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de asilo, que culminou com o apuramento de que essa responsabilidade pertencia à Suécia (cfr. art. 18.°, n.° 1, alínea d), do Regulamento de Dublin III e art. 37.° n° 1 da Lei do Asilo, poderia entender-se, numa primeira linha de análise, ser de proferir um ato de inadmissibilidade de apreciação do pedido de proteção internacional formulado e fosse determinada a transferência do Recorrente para a Suécia, tal como sucedeu no caso em apreço, mas não é esse o nosso entendimento. Vejamos porquê.

Em primeiro lugar, porque com a primeira decisão do pedido de asilo se esgota a aplicação do Regulamento de DublinIII, porquanto este visa primacialmente estabelecer «os critérios e mecanismos para a determinação do Estado-Membro responsável pela análise dos pedidos de proteção internacional apresentados num dos Estados-Membros por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida.» (art. 1.º).

E isto porque, de facto, uma das regras basilares do Sistema Europeu Comum de Asilo (SECA), na parte que se prende com a regulamentação da determinação do Estado Responsável pela análise dos pedidos de proteção internacional, é a de que seja apenas um Estado Membro a decidir – cfr. art. 3.º, n.º 1, e art. 18.º, do Regulamento de Dublin III.

Porém, esta conclusão não significa que fora do âmbito de aplicação do Regulamento de Dublin III, o Estado Português possa eximir-se a uma apreciação das situações que se lhe apresentam, do que é exemplo o caso sub judice, analisada à luz do disposto no art. 33.º da Lei do Asilo, que admite a apresentação de pedidos de proteção internacional subsequentes, conjugado com o disposto no art. 19.º-A, n.º 1, alínea e), a contrario, da Lei do Asilo.

Vejamos em que termos.

O art. 33.º da Lei do Asilo, sob a epígrafe “Apresentação de um pedido subsequente”, no seu n.º 1, dispõe que «[i] O requerente ao qual tenha sido negado o direito de proteção internacional [ii] pode, sem prejuízo do decurso dos prazos previstos para a respetiva impugnação jurisdicional, apresentar um pedido subsequente, [iii] sempre que disponha de novos elementos de prova que lhe permitam beneficiar daquele direito ou [iv] quando entenda que cessaram os motivos que fundamentaram a decisão de inadmissibilidade ou de recusa do pedido de proteção internacional

Sobre este aspeto entendeu a sentença recorrida o seguinte:

«(…)

Compulsados os autos, constata-se que, neste conspecto, o Requerente, nada alegou ou expendeu, em termos concretos - quer em sede procedimental, quer nos presentes autos- quanto às deficiências sistémicas no acolhimento dos migrantes/refugiados, por parte do Estado sueco, - quanto ao risco real de ser sujeito a tratamento desumano ou degradante ou que tenha sido alvo dos mesmos.

Ao invés, é o próprio Requerente quem reconhece que na Suécia traçou um percurso de vida condigno ao referir que “empenhou-se em reconstruir a sua vida em segurança: aprendeu a língua e concretizou o sonho de finalmente frequentar um estabelecimento de ensino e assim lutar por oportunidades em condição de Igualdade aos restantes cidadãos, que nunca tinha conseguido alcançar durante todo o seu percurso de vida.” e, bem assim, que foi acolhido por famílias suecas, que lhe davam apoio em tudo quanto necessitava.

Pelo que, nesta sede, pese embora o Requerente tenha apresentado um pedido de asilo subsequente, não apresentou “novos elementos ou dados relacionados com a análise do cumprimento das condições para beneficiar de proteção internacional” ou quaisquer eventos ocorridos desde as decisões administrativas e judiciais anteriormente proferidas quanto ao seu pedido de protecção internacional.

(…)

In casu, pese embora o Requerente tenha relatado que a sua família foi perseguida quando era pequeno, com cerca de 6 anos, porquanto um dos membros de um grupo ligado aos Talibãs queria casar com a sua irmã N…. e o seu pai opôs-se, sendo assassinado, assim como o seu tio, em 2005 e, posteriormente, também o seu irmão I……, resulta manifesto que a Requerente assenta o seu pedido (de asilo/de protecção subsidiária) em motivos pessoais/económicos.

Não tendo a Requerente invocado factos suficientes que traduzam um receio objectivo de perseguição, concreto e direccionado contra a sua pessoa, sendo certo que a concessão da protecção pretendida tem de assentar em factos que digam respeito à pessoa do requerente, avaliados pelos padrões de um homem médio e não em termos subjectivos, impendendo sobre aquele o ónus da alegação e prova dos factos em que se baseia a pretensão.

Com efeito, não obstante o relato fornecido pelo Requerente, de perseguição à sua família, o que, invoca, motivou a sua saída do Afeganistão e a apresentação de pedido de protecção internacional na Suécia (e posteriormente, em Portugal), após ter passado por países como o Irão (onde viveu seis anos), a Turquia, a Grécia, a Macedónia do Norte, a Sérvia, Hungria, Áustria, Alemanha e Dinamarca - onde não formulou qualquer pedido de asilo - e, bem assim, o facto de pertencer professar a religião Muçulmana Xiita, a qual é odiada pelos Muçulmanos Sunitas, o Requerente não logrou demonstrar que existe o risco de sofrer ofensa grave.

(…)

Com efeito, os acontecimentos relatados de perseguição da sua família e de assassinato do seu pai e tio ocorreram, alegadamente, em 2005, pelo que, a esta distância, carecem de actualidade.

Aliás, de notar que o próprio Requerente refere que na altura teria cerca de seis anos e, detendo actualmente, 20 anos, não se vislumbra como, decorridos todos estes anos (cerca de 15) ainda se pudesse manter a alegada perseguição à sua família que, entretanto, desmembrou e foi residir para outro(s) local(is), aliado ao facto de a sua irmã N…… já ter casado com outro homem.

(…)

Por outra banda, ora refere que o receio de sofrer ofensa grave assenta no facto de pertencer à etnia Hazara, ora resulta do facto de professar a religião Muçulmana Xiita, o que abala, de igual modo, a sua credibilidade.

(…)

Ora, das declarações do Requerente, de forma manifesta, não resultam quaisquer factos concretos que permitam concluir que o mesmo corre o risco de ser preso ou de sofrer ofensa grave se regressar ao Estado da sua nacionalidade — o Afeganistão —, pois, face às suas declarações, como supra expendido, não se mostra credível o receio de sofrer ofensa grave.

(…)

Pelo que suas do Requerente declarações são suficientes para abalar a convicção de que o Requerente carece, efectivamente, de asilo político e, em contrapartida, cria a firme convicção no Tribunal de que o real propósito do mesmo se funda em razões de cariz pessoal/ económico que, apesar de se tratar de uma pretensão legítima e humana, não se enquadra, no entanto, nas disposições que regulam o direito de asilo em Portugal.

(…)

Com efeito, pelas razões sobreditas, no decurso do procedimento de asilo, o Requerente prestou declarações pouco plausíveis.

Ora, os factos alegados pelo Requerente de asilo e de autorização de residência por razões humanitárias, não tendo necessariamente de ser comprovados, devem apresentar um grau de verosimilhança que leve a admitir a sua credibilidade, o que, face ao supra exposto, não podemos concluir no caso dos autos.

Donde, conforme decorre do supra explanado desta sentença, não estão reunidas no caso sub judice, de forma evidente, as condições exigidas pelas als. c) e e) do n.° 4 do art.° 18°, da Lei 27/2008 — supra enunciados -, razão pela qual não podia ser concedido o benefício da dúvida ao autor.

(…)

Pelo exposto, não resultando, quer do procedimento administrativo, quer dos autos, novos elementos relacionados com a análise do cumprimento das condições para beneficiar de protecção internacional, que permitissem inflectir as decisões administrativa e judiciais anteriores, conclui-se que a decisão de inadmissibilidade do pedido de asilo não padece de ilegalidade (atento o disposto no art.° 19°-A, da Lei 27/2008, na actual redacção) devendo, nesta medida, o pedido da sua anulação improceder.

(…)» (sublinhados nossos).

Porém, não só o Requerente, ora Recorrente, invocou, de facto, novos elementos de prova que lhe permitem beneficiar de proteção internacional, designadamente, na modalidade de proteção subsidiária – cfr. documentos que juntou ao seu pedido, reveladores da situação existente no Afeganistão, referidos, embora não explorados, pelos serviços do SEF - cfr. alíneas J) e K) da matéria de facto - como também, complementarmente, alegou, que cessaram e/ou modificaram os motivos que fundamentaram a decisão de recusa de proteção internacional proferida pelas autoridades suecas – cfr. se enunciou supra.

Tal conclusão resulta de uma análise ponderada dos autos, designadamente, do facto de esse primeiro pedido, apreciado pelas autoridades suecas, apresentado em 2015, ter na sua base a saída do Afeganistão de o Requerente, ora Recorrente, quando era ainda uma criança com cerca de 6 anos e as alterações que se verificaram, na sua vida, dado que permaneceu, ao abrigo de um regime de acolhimento, ao que parece, excecional, na Suécia, tendo frequentado a escola e vivido com uma família de acolhimento – cfr. alíneas J) e K) matéria de facto.

No Afeganistão, ao invés, o que o espera é um cenário de mortes indiscriminadas entre a população civil, bem como de violência generalizada perpetrada por grupos armados em conflito civil, étnico, religioso e político – cfr. relatórios da ONU de 2018 e 2019.

Em face do que, a motivação do pedido apresentado em dezembro de 2019 às autoridades portuguesas, sobre o qual recaiu a decisão aqui sob escrutínio – cfr. alíneas K) e L) da matéria de facto – enquanto pedido de proteção internacional subsequente, é evidentemente outra da que foi apresentada naquele primeiro pedido, em 2015, e ainda menor, desacompanhado, tendo por base a sua saída do Afeganistão quando ainda criança, embora o Recorrente ainda lhe faça referência no âmbito da entrevista que prestou junto dos serviços do SEF – designadamente, respondendo à pergunta, “sobre os motivos que o levaram a sair do seu país de origem” – cfr. alínea J) da matéria de facto.

Hoje, adulto, com 20/21 anos, o Recorrente juntou novos elementos ao seu pedido de proteção internacional – que abrange a concessão de asilo e de proteção subsidiária - elementos esses que no seu entender, são reveladores da situação muito perigosa que se vive em algumas zonas do Afeganistão, mais tendo invocado a sua etnia como causa de perseguição e morte por assassinato.

Pelo que, relacionando tais informações – que podem ser apenas vistas ou lidas como alertas – a etnia do Recorrente e o percurso que fez até chegar em 2015 à Suécia - Irão, Turquia, Grécia, Macedónia do Norte, Sérvia, Hungria, Áustria, Alemanha, Dinamarca -, a distinta realidade que subjaz e que diferencia os fundamentos desse primeiro pedido de proteção internacional e os do pedido em apreço, e sendo o país de retorno o Afeganistão, não se pode acompanhar a sentença recorrida quando conclui que dos autos resultam não verificados os pressupostos da aplicação e tramitação do pedido formulado pelo Recorrente, como pedido subsequente, ao abrigo do art. 33.º da Lei do Asilo.

Acresce que, importa não perder de vista a pertinência do princípio do non refoulement em matéria de asilo, que, aliás, o Recorrente invoca, dada a inquestionável relevância do mesmo para o Sistema Europeu Comum de Asilo (SECA), conforme resulta da jurisprudência do TEDH, mais especificamente, nos acórdãos de 21.01.2011, M.S.S. vs Bélgica e Grécia, Queixa n.º 30696/09, e de 04.11.2014, Tarakhel vs Suíça, Queixa n.º 29217/12.

Este princípio, na medida em que visa impedir que alguém possa ser deportado para seu país de origem – onde correrá risco de vida ou de ameaças à sua integridade física -, a menos que constitua um perigo à segurança do país ou uma séria ameaça à comunidade nacional - cfr. art.s 33.º, n.º 1 e 2 da Convenção de Genebra -, não nos pode deixar tranquilos com o resultado direto e consequente da decisão de retoma a cargo do Recorrente para Suécia, onde tem pendente uma ordem de expulsão para o Afeganistão.

Ao invés, deverá ser admitido e conhecido o pedido de proteção internacional subsequente que apresentou, na medida em que dúvidas não há que o Afeganistão é um país que exige concreta e individualizada análise das condições de retorno de cada requerente de proteção internacional atendendo à atividade do Estado Islâmico e da Al Qaeda nas áreas ocupadas por estes grupos, mas não só, assim como à violenta perseguição entre etnias.

Face a todo o exposto, no caso em apreço, consideramos, pois, que existindo já uma decisão tomada por um Estado Membro e tendo sido esta de indeferimento, a retoma a cargo pelo Estado Membro responsável – in casu, Suécia – cfr. art. 18.º, n.º 1, alínea d), do Regulamento de Dublin III -, não se aplica no caso em apreço, dada a apresentação de um pedido de proteção internacional subsequente, por via da aplicação direta do art. 33.º da Lei do Asilo, interpretado conjugadamente com o disposto na alínea e), do n.º 1, do art. 19.º-A, a contrario, do mesmo diploma legal, dado que o pedido formulado pelo Requerente, aqui Recorrente, preenche os requisitos necessários para o efeito.

Nestes termos, procedendo o invocado erro de julgamento imputado à sentença recorrida imperioso se torna anular o ato impugnado, por vício de violação de lei, concretamente, por errada interpretação e aplicação dos art. 19.º-A, n.º 1, alínea e), a contrario, e art. art. 33.º, ambos da Lei do Asilo e, julgando em substituição, determinar que o pedido de proteção internacional formulado pelo Requerente, ora Recorrente, seja admitido e conhecido como pedido subsequente, ao abrigo das supra citadas normas.

III. Decisão

Nestes termos e face a todo o exposto, acordam os juízes da Secção de Contencioso Administrativo deste Tribunal Central Administrativo Sul em conceder provimento ao recurso, revogar a sentença recorrida e, conhecendo em substituição, anular o ato impugnado e condenar o Recorrido a admitir o pedido de proteção internacional formulado pelo Requerente, ora Recorrente, como pedido subsequente, ao abrigo do art. 19.º-A, n.º 1, alínea e), a contrario, e art. 33.º, ambos da Lei do Asilo.

Sem Custas por isenção objetiva (cfr. art. 84.º da Lei nº 27/2008, de 30.06.).

Lisboa, 10.09.2020.


Dora Lucas Neto

Pedro Nuno Figueiredo

Celestina Castanheira