Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:145/19.3BCSLB
Secção:CA
Data do Acordão:05/14/2020
Relator:DORA LUCAS NETO
Descritores:DISCIPLINA DESPORTIVA;
PRESUNÇÃO DE AUTORIA E PUNIÇÃO DO CLUBE;
EXECUÇÃO MATERIAL DO ILÍCITO POR SÓCIO OU SIMPATIZANTE DO CLUBE.
Sumário:1. Por disposição expressa do art. 35º do Regulamento das Competições organizadas pela LPFP/2017, a titularidade do dever, colocada na esfera jurídica do clube desportivo sob a forma especial de dever de garante, constitui o fundamento da responsabilidade disciplinar do clube por delito de omissão do dever de evitar o resultado jurídico tipificado nos art.s. 127º/187º do RD –LPFP/2017 no contexto do “terreno de jogo” e “dentro dos limites do recinto desportivo”.

2. O sócio ou simpatizante executor do ilícito disciplinar tem de ser uma pessoa singular devidamente identificada no processo disciplinar através da sua identidade civil para, por seu intermédio, se fazer a imputação funcional do comportamento ilícito do sócio ou simpatizante, devidamente identificado, ao clube desportivo, na exata medida em que, nos termos expostos, o critério da autoria repousa na titularidade dos deveres elencados no art. 35º do Regulamento Disciplinar das competições organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional/2017.

3. Não é juridicamente admissível presumir a qualidade de sócio ou simpatizante do clube relativamente à pessoa singular desconhecida e, como tal, não existente no processo, que executa os atos materiais tipificados nos art.s. 127º/187º do RD–LPFP/2017, e que assim concretiza a infração, materializando o comportamento proibido pelo tipo de ilícito disciplinar.

4. Pois, não obstante dever ser no quadro do processo disciplinar a instaurar, nos termos dos arts. 212.º e segs., 225.º e segs., do RD-LPFP/2017, que se terão de averiguar e apurar todos os elementos da infração disciplinar, permitindo-se que, por esta via, a prova de primeira aparência poder vir a ser destruída pelo clube responsável, por exemplo, através da prova de que o espectador em causa não é sócio, simpatizante ou adepto do clube.

5. Se não se sabe quem é a pessoa singular, porque não foi identificada, não é possível afastar a presunção inicial, pelo que o que se sucede é fazer derivar, por presunção, e dar como provado que a pessoa em causa é sócia ou simpatizante do clube desportivo para efeitos de imputação da autoria à pessoa coletiva.

6. Por força do art. 32º nº 2 e 10 da Constituição, no direito sancionatório, seja criminal seja disciplinar, não se presume a autoria do tipo de ilícito, o que se presume, a partir de uma base fáctica provada (base da presunção), são comportamentos expressos em factos suscetíveis de imputação subjetiva ou objetiva.

Votação:MAIORIA, COM VOTO DE VENCIDO
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

I. Relatório

A Federação Portuguesa de Futebol, reclama para a conferência da decisão sumária do relator que, no âmbito de um processo contra si proposto pelo F... - FUTEBOL, SAD, que, ao abrigo do disposto nos art.s 652.º, n.º 1, alínea c), e 656.º do CPC ex vi art. 140.º do CPTA, por remissão para a fundamentação do acórdão deste TCA Sul de 21.11.2019, P. 102/19.0BCLSB, cuja cópia (extraída da base de dados) se anexou, decidiu o seguinte:

i) Julgar procedente o recurso interposto pela sociedade F... - Futebol SAD;

ii) Anular a decisão de 23.10.2018 proferida pelo Pleno da Secção Profissional do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol;

iii) Revogar o acórdão proferido pelo Tribunal Arbitral do Desporto de 09.10.2019; e

iv) Fixar o valor da causa em 2.773€, com as demais consequências legais, designadamente, em sede de fixação de custas processuais.

I.1. A reclamação para a conferência constitui o meio adjectivo próprio ao dispor da parte que se sinta prejudicada pela decisão individual e sumária do relator sobre o objecto do recurso, podendo o recorrente/reclamante, nessa reclamação, restringir o objecto do recurso no uso do direito conferido pelo art. 635.º, n.º 4, do CPC, ex vi art. 140.º do CPTA, mas não pode ampliar o seu objecto, faculdade limitada ao recorrido nos termos do art. 636.º, n.º 1, do CPC, ex vi art. 140.º do CPTA, isto é, limitada à parte vencedora que tendo decaído em alguns dos fundamentos da acção, apesar disso, obteve vencimento no resultado final.

Nestes termos, a reclamação para a conferência da decisão sumária proferida pelo relator faz retroagir o conhecimento em conferência do mérito da apelação ao momento anterior àquela decisão sumária.

Cumpre, pois, reapreciar as questões suscitadas pelo Recorrente em sede de conclusões, fazendo retroagir o conhecimento do recurso ao momento anterior à decisão singular proferida.

Em sede de conclusões, apresentadas no recurso interposto para este TCA Sul pelo Recorrente, foi dito o seguinte:

«(…)

i. O presente recurso tem por objecto o acórdão de 09.10.2018 do Tribunal Arbitral do Desporto, que confirmou a condenação da recorrente pela prática das infracções disciplinares p. e p. pelos arts. 127.°-1 e 187.°-1 a) e b) do RD, alegadamente cometidas aquando do jogo realizado a 14.09.2018 (entre F... - Futebol SAD e G... - Futebol SAD), punindo-a em multas no valor total de €3.773,00, e fixando as custas no total de € 6.125,40.

ii. Considerando as infracções p. e p. pelos arts. 127.M e 187.M, a) e b) do RD em causa nos autos, era necessário que o Conselho de Disciplina

iii. tivesse carreado aos autos prova suficiente de que os comportamentos indevidos foram perpetrados por sócio ou simpatizante da F... — Futebol SAD, e ainda, que tais condutas resultaram de um comportamento culposo da F... - Futebol SAD.

iv. O ónus da prova em processo disciplinar cabe ao titular do poder disciplinar, pelo que, não tem arguido de provar que é inocente da acusação que lhe é imputada.

v. Aliado ao ónus da prova que recai sobre o titular da acção disciplinar, vigora ainda o princípio da presunção de inocência, o qual tem como um dos seus principais corolários a proibição de inversão do ónus da prova, não impendendo sobre o arguido - in casu a recorrente - o ónus de reunir as provas da sua inocência.

vi. E precisamente o princípio de inocência que exigia ao Tribunal formular um juízo de certeza sobre o cometimento das infracções para condenar a Recorrente.

vii. Nem mesmo a presunção de veracidade dos relatórios prevista no art. 13.°, f), do RD, pode contrariar esta quadro normativo, dado que, mesmo beneficiando de uma presunção de verdade, não se trata de prova subtraída à livre apreciação do julgador, não se permitindo daí inferir um início de prova ou sequer uma inversão do ónus da prova.

viii. A míngua de meios de prova demonstrativos da violação de deveres de cuidado, o Tribunal o quo presumiu que a demandante falhou nos seus deveres, entendendo que caberia à demandante ilidir a presunção de culpa pela qual o Tribunal se segue; recorrendo a um critério da primeira aparência.

ix. Resulta claro da leitura do acórdão que o Tribunal a quo confirmou a condenação da demandante somente com base na prova da primeira aparência e num esquema argumentativo e racional fundado numa distribuição de ónus da prova: à demandada, titular do poder punitivo disciplinar, cabe fazer a prova da primeira aparência; e à demandante, uma vez comprovada essa primeira aparência, compete refutá-la, destruindo essa indiciação.

x. Este critério decisório viola o princípio da presunção de inocência, direito fundamental de que a demandante é titular e, do mesmo passo, implica que para a prova dos factos fundamentadores de responsabilidade disciplinar não será necessária uma racional e objectiva convicção da sua verificação, para além de qualquer dúvida razoável, sendo suficiente uma sua simples indiciação.

xi. Sucede que o arguido em processo disciplinar presume-se inocente, correspondendo o princípio da presunção de inocência em processo disciplinar a um direito, liberdade e garantia fundamental, ancorado no direito de defesa do arguido (art. 32.°, n.os 2 e 10 da CRP), no princípio do Estado de Direito (art. 2.° da CRP) e no direito a um processo equitativo (art. 20.M da CRP) (cf. Ac. do Pleno da Secção do CA do STA de 18-04-2002, Proc. 033881 e Ac. do STA de 20-10-2015, Proc. 01546/14, www.dgsi.pt).

xii. O critério decisório adoptado pelo Tribunal a quo - da prova da primeira aparência, com imposição de ónus da prova ao arguido - contraria aberta e frontalmente a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo.

xiii. Pelo exposto, cumpre repor a legalidade, revogando-se o Acórdão recorrido e impondo-se ao Tribunal a quo que adopte um critério decisório em matéria de valoração da prova consentâneo com o princípio da presunção de inocência, exigindo-se, designadamente, que a prova de todos os elementos constitutivos da infração corresponda a um convencimento para para além de qualquer dúvida razoável, e não numa convicção da verificação decorrente da verificação de simples indícios resultantes de uma prova de primeira aparência, e que não se imponha à demandante (arguida no processo disciplinar) o ónus de demonstração da não verificação de qualquer elemento tipicamente relevante,

xiv. Mas mais, nem mesmo acolhendo a presunção de verdade prevista no art. 13.°, f) do RD ou jurisprudência recente do Supremo Tribunal Administrativo (processo n.° 297/2018 de 18-11-2018) se alcançaria a condenação da aqui recorrente, porquanto sempre se mostra por preencher pressuposto de imputação e condenação: a actuação culposa da recorrente.

xv. Nos relatórios de jogo, prova documental nos autos que beneficia da presunção de verdade, não se descreve um único facto relativamente ao que fez ou não fez o clube, por referência a concretos deveres legais ou regulamentares, nem tão-pouco se descreve por que forma essa actuação do clube facilitou ou permitiu o comportamento que é censurado; sendo a actuação culposa um dos “demais elementos das infracções"’ que se impunha à FPF, aqui recorrida, provar, sempre se mostrava prejudicada a condenação do Clube por falta de preenchimento de pressuposto legal exigido pelos arts. 127.°-l el87.°- a) e b) do RD.

xvi. Assim não se entendendo, antecipa-se como inconstitucional, por violação do princípio da presunção de inocência (inerente ao seu direito de defesa, art. 32.°, n.°s 2 e 10 da CRP; ao direito a um processo equitativo, art. 20.°-4 da CRP; e ao princípio do Estado de direito art.º da CRP) e do princípio jurídico-constitucional da culpa (art. 2o da CRP), a interpretação dos artigos 127.°, n.° 1, 187.°, n.° 1, alíneas a) e b), e 258.°, n.° 1, do RDLPFP de 2017, no sentido de que a indiciação, com base em relatórios da equipa de arbitragem ou do delegado da Liga, de que sócios ou simpatizantes de um clube praticaram condutas social ou desportivamente incorrectas é suficiente para, sem mais, dar como provado que essas condutas se ficaram a dever à culposa abstenção de medidas de prevenção de comportamentos dessa natureza por parte desse clube.

xvii. Tem-se como inconstitucional, por violação por violação do princípio da presunção de inocência (inerente ao seu direito de defesa, art. 32.°, n.°s 2 e 10 da CRP; ao direito a um processo equitativo, art. 20.°-4 da CRP; e ao princípio do Estado de direito art. 2.° da CRP) e do princípio jurídico-constitucional da culpa (art. 2.° da CRP), a interpretação dos artigos 127.°, n.° 1,187.°, n.° 1, alíneas a) e b), e 258.°, n.° 1,do RDLPFP de 2017, no sentido de que se dá como provado que o clube violou deveres regulamentares e legais de vigilância, controlo e formação dos seus sócios e simpatizantes quando se prove, com base com base no artigo 13.°, al. f), do RDLFPF, que esses sócios ou simpatizantes adoptaram um comportamento social ou desportivamente incorrecto, cabendo ao clube aportar prova demonstradora do cumprimento desses seus deveres.

xviii. O parâmetro da violação do dever de prevenção adoptado pelo Tribunal a quo é o mesmo para a imputação da infracção p. e p. pelo art. 187.°, n.° 1, a) do RD, correspondente ao comportamento incorrecto dos adeptos consubstanciado em cânticos grosseiros e ofensivos de terceiros.

xix. Acontece que é completamente impossível à recorrente impedir manifestações vocais desse tipo e fica sempre por demonstrar a efectividade de qualquer possível esforço pedagógico nesse sentido.

xx. Responsabilizar disciplinarmente os clubes pelas grosserias ditas pelos seus adeptos significa puni-los por algo que, objectivamente, não estão em condições de prevenir ou evitar, o que equivale a uma responsabilidade objectiva.

xxi. Pelo que, não podia o Tribunal a quo condenar a recorrente pela violação do art. 187.º, al´. a) do RD.

xxii. Além do mais, o dever que impende sobre a recorrente é um dever de vigilância, o qual resultou demonstrado da prova documental junta ao processo disciplinar que correu termos na Secção Profissional do Conselho de Disciplina sob o n.° 11-18/19 - designadamente a acta de reunião de segurança respeitante ao jogo disputado entre a recorrente e o Clube Desportivo de Tondela.

xxiii. O único dever da recorrente encontra-se a montante: garantir que se encontram no recinto ARD´s e agentes da PSP para prevenirem estas situações e pôr-lhes cobro quando ocorram, o que fez, mas nem mesmo

xxiv. as forças de autoridade presentes no recinto desportivo, autoridades capazes e legitimadas para prevenir estas situações - conseguiram conter esta acção destemperada dos adeptos.

xxv. Estando em falta um elemento imprescindível para a imputação da infracção à recorrente: a capacidade de agir para dar cumprimento ao dever que impende sobre o agente, fica necessariamente prejudicada a decisão do Tribunal a quo ao confirmar a condenação da aqui recorrente pela prática das infracções p. e p. pelos arts. 127..º e 187.º, alíneas a) e b) do RD.

xxvi. A modificação do valor da causa promovida pelo Tribunal a quo para € 30.000,01 - ao invés do total da multa por que foi a recorrente condenada - foi feita em violação do previsto no art. 33.°, b) do CPTA, pelo que se impõe repor a legalidade, fixando-se o valor da acção no montante de € 3.773,00 daí se extraindo as devidas consequências.

xxvii. Os custos fixados pelo TAD comprometem de forma séria e evidente o princípio da tutela jurisdicional efectiva (arts. 20.°-l e 268.°-4 da CRP).

xxviii. Considerando o critério da nossa jurisprudência constitucional, não são compatíveis com o direito fundamental de acesso à justiça (arts. 20.° e 268.°-4 da CRP) soluções normativas de tal modo onerosas que se convertam em obstáculos práticos ao efectivo exercício de um tal direito, como é o caso do TAD.

xxix. Uma vez que as normas conjugadamente aplicadas pelo Tribunal a quo para fixar o valor das custas finais (art. 2.°- 1 e -5, conjugado com a tabela constante do Anexo I (2/ linha), da Portaria n.° 301/2015,

xxx. articulado ainda com o previsto nos arts. 76.º1/2/3 e 77.º4/5/6 da Lei do TAD) são inconstitucionais, por violação do princípio da proporcionalidade (art. 2.° da CRP) e do princípio da tutela jurisdicional efectiva (art. 20..º e 268.º da CRP), devem essas normas ser desaplicadas (art. 204.° da CRP).»

A Recorrida, FPF, contra-alegou, tendo concluído, por sua vez, nos seguintes termos:

«(…)

1. O presente Recurso de Apelação foi interposto pela Recorrente do Acórdão do Tribunal Arbitral do Desporto, datado de 9 de outubro de 2019, que confirmou a decisão proferida pelo Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol que sancionou a Recorrente em multas por aplicação dos artigos 127.º e 187.º, n.º 1, al. a) e b) do RD da LPFP.

2. Em causa nos presentes autos está o comportamento incorreto dos adeptos da F... e a responsabilização desta sociedade anónima desportiva por violação de deveres a que estava adstrita de modo a evitar a ocorrência de tais comportamentos, em jogo em que a equipa da ora Recorrente participou na qualidade de visitada.

3. Sinteticamente, de acordo com os relatórios do jogo e de policiamento desportivo, os adeptos da Recorrente arremessaram objetos para o terreno de jogo, rebentaram objetos pirotécnicos proibidos por lei de entrar no recinto desportivo e levaram a cabo outros comportamentos incorretos. A Recorrente não coloca em causa que estes factos aconteceram, coloca em causa, sim, que tenha qualquer responsabilidade sobre o comportamento levado a cabo por outras pessoas.

4. O processo sumário é um processo propositadamente célere, em que a sanção, dentro dos limites regulamentares definidos, é aplicada no prazo-regra de apenas 5 dias (cfr. artigo 259.º do RD da LPFP) somente por análise do relatório da equipa de arbitragem, das forças policiais e dos delegados da LPFP. Com efeito, tais relatórios têm, como se sabe, presunção de veracidade dos respetivos conteúdos (cfr. Artigo 13.º, al. f) do RD da LPFP).

5. Recorde-se, aliás, que esta forma de processo consta do Regulamento Disciplinar da LPFP, aprovado pelas próprias SAD's que disputam as competições profissionais em Portugal, entre elas a ora Recorrente.

6. Entende a Recorrente que cabia ao Conselho de Disciplina provar (adicionalmente ao que consta dos Relatórios dos Delegados da LPFP e do Relatório de Policiamento Desportivo) que a Recorrente violou deveres de formação, tendo de fazer prova de que houve uma conduta omissiva. Isto é, entende que cabia ao Conselho de Disciplina fazer prova de um facto negativo, o que, como se sabe, não é possível.

7. Assim, os Relatórios elaborados pelos Delegados da LPFP, atento o seu conteúdo, são perfeitamente suficientes e adequados para sustentar a punição da Recorrente no caso concreto. Ademais, há que ter em conta que existe uma presunção de veracidade do conteúdo de tal documento (artigo 13.º, al. f) do RD da LPFP).

8. Isto não significa que o Relatório dos Delegados da LPFP contenham uma verdade completamente incontestável: o que significa é que o conteúdo do Relatório, conjuntamente com a apreciação do julgador por via das regras da experiência comum, são prova suficiente para que o Conselho de Disciplina forme uma convicção acima de qualquer dúvida de que a Recorrente incumpriu os seus deveres.

9. Para abalar essa convicção, cabia ao clube apresentar contraprova, colocando em causa aquela veracidade. Essa é uma regra absolutamente clara no nosso ordenamento jurídico, prevista desde logo no artigo 346.º do Código Civil.

10. Para além da presunção de veracidade dos factos constantes nos relatórios dos Delegados da LPFP, bem como dos esclarecimentos adicionais prestados pelos mesmos, ter-se-á, ainda, que atender à força probatória dos relatórios das forças policiais. Tal como resulta de toda a prova carreada no processo, a factualidade provada resulta, também, dos factos constantes dos Relatórios de Policiamento Desportivo das Forças de Segurança do jogo dos autos. Neste particular, os relatórios das forças policiais, por serem exarados por "autoridade pública" ou "oficial público", no exercício público das "respetivas funções" (para as quais é competente em razão da matéria e do lugar), constituem documento autêntico (art.º 363.º, n.º 2 do Código Civil), cuja força probatória se encontra vertida nos artigos 369.º e ss. do Código Civil. Com efeito, tal relatório faz «prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respetivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas perceções da entidade documentadora» (cf. art.º 371.º, n.º 1, do Código Civil). Tal valor probatório apenas pode ser afastado com base na sua falsidade (art.º 372.º, n.º 1, do Código Civil), sendo que, no contexto processual penal e nos termos do art.º 169.º do Código de Processo Penal, se consideram «provados os factos materiais constantes de documento autêntico ou autenticado enquanto a autenticidade do documento ou a veracidade do seu conteúdo não forem fundadamente postas em causa».

11. Ao contrário do que afirma a Recorrente, em sede sancionatória o "arguido" não pode simplesmente remeter-se ao silêncio, aguardando, sem mais, o desenrolar do procedimento cabendo-lhe, pelo menos, colocar uma dúvida na mente do julgador correndo o risco de, não o fazendo, ser punido se as provas reunidas forem todas no mesmo sentido.

12. Do lado do Conselho de Disciplina, todos os elementos de prova carreados para os autos iam no mesmo sentido dos Relatórios elaborados pelos Delegados da LPFP, pelo que dúvidas não subsistiam (nem subsistem) de que a responsabilidade que lhe foi assacada pudesse ser de outra entidade que não da Recorrente. Isto mesmo entendeu, e bem, o Tribunal a quo.

13. De modo a colocar em causa a veracidade do conteúdo dos Relatórios, cabia à Recorrente demonstrar, pelo menos, que cumpriu com todos os deveres que sobre si impendem, designadamente em sede de Recurso Hierárquico Impróprio apresentado ou quanto muito em sede de ação arbitral. Mas a Recorrente nada fez, nada demonstrou, nada alegou, em nenhuma sede.

14. Decorre de forma claríssima da Regulamentação aplicável que os clubes e sociedades desportivas podem (e devem) impedir comportamentos como os sub judice através do cumprimento dos deveres in formando e in vigilando dos seus adeptos, em especial, do cumprimento dos deveres estatuídos no art.º 35.º, nº 1, alíneas a), b), c) e o) do Regulamento das Competições da LPFP.

15. Com efeito, a imputação culposa das condutas infratoras dos adeptos da Recorrente, pelas quais esta é diretamente responsável (tal como determina a previsão legal das infrações disciplinares em causa), resulta, pois, do incumprimento culposo de deveres de prevenção e de ação no âmbito da violência associada ao Desporto que lhe estão cometidos e que levaram, em nexo de causalidade adequado e direto, ao resultado aqui verificado: os comportamentos perigosos e incorretos dos seus adeptos e simpatizantes, num espetáculo desportivo.

16. Ainda que se entenda - o que não se concede - que o Conselho de Disciplina não tinha elementos suficientes de prova para punir a Recorrente, a verdade é que o facto (alegada e eventualmente) desconhecido - a prática de condutas ilícitas por parte de adeptos da Recorrente e a violação dos respetivos deveres -foi retirado de outros factos conhecidos.

17. Refira-se, aliás, que este tipo de presunção é perfeitamente admissível nesta sede e não briga com o princípio da presunção de inocência, ao contrário do que refere a Recorrente, de acordo com jurisprudência, quer dos tribunais comuns, quer dos tribunais administrativos.

18. Há ainda que notar que o próprio Tribunal Arbitral do Desporto, por várias outras ocasiões, já se pronunciou em sentido diverso ao entendimento sufragado pela Recorrente, assim como o STA por mais de 10 vezes em sede de recurso de revista e o TCA Sul uma vez em sede de recurso de apelação.

19. Carece de fundamento a alegação de que as normas dos artigos 13.º, al. f), 127.º e 187.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RD da LPFP são inconstitucionais, porquanto o próprio Tribunal Constitucional já se pronunciou em matéria em tudo idêntica, defendendo a responsabilidade subjetiva neste âmbito, o que se revela conforme à CRP.

20. Em causa no presente recurso de apelação está, ainda, um alegado erro na fixação do valor da causa em € 30.000,01 (trinta mil e um euros) e, por conseguinte, a violação dos princípios constitucionais da proporcionalidade e da tutela jurisdicional efetiva.

21. Sinteticamente, entendeu o Tribunal a quo que, in casu, preponderará o critério relativo a bens imateriais do artigo 34.º, n.º 1 do CPTA.

22. De facto, o interesse imaterial que subjaz à pretensão da Recorrente é muito mais do que uma mera revogação de uma decisão disciplinar, indo muito além do valor económico que as sanções pecuniárias que estão em análise demonstram.

23. Ao aludir ao princípio da culpa, constata-se que os interesses invocados, são de ordem constitucional e excedem claramente meros limites quantitativos, motivo pelo qual, o Tribunal a quo, ao utilizar o critério supletivo constante do artigo 34.º do CPTA, não violou o disposto no artigo 33.º, al. b) do mesmo Código.

24. Por outra parte, o valor das custas finais fixado pelo Tribunal a quo não é, como alega a Recorrente, desproporcional, nem compromete, de forma séria e evidente, o princípio da tutela jurisdicional efetiva (artigos 20.º, n.º 1 e 268.º, n.º 4 do CRP).

25. Neste sentido entendeu, e bem, o Tribunal Constitucional, mediante Acórdão datado de 16 de outubro de 2019, não julgar inconstitucionais as normas constantes do artigo 2.º, n.s 1 e 4, da Portaria n.º 301/2015, de 22 de setembro, em conjugação com a primeira linha da tabela do seu Anexo I.

26. Motivo pelo qual deverá, também, improceder a inconstitucionalidade suscitada resultante da conjugação do disposto no art. 2.º, n.ºs 1 e 5 (e respetiva tabela constante do Anexo I, 23 linha, da Portaria n.º 301/2015), com o previsto nos artigos 76.º, n.ºs 1, 2 e 3 e 77.º, n.ºs 4, 5 e 6 da Lei do TAD, por violação dos princípios da tutela jurisdicional efetiva e da proporcionalidade.

27. O TAD apenas poderia alterar a sanção aplicada pelo Conselho de Disciplina da FPF se se demonstrasse a ocorrência de uma ilegalidade manifesta e grosseira - limites legais à discricionariedade da Administração Pública, neste caso, limite à atuação do Conselho de Disciplina da FPF.

28. Assim, não existindo nenhum vício que possa ser imputado ao acórdão do Conselho de Disciplina que levasse à aplicação da sanção da anulabilidade por parte deste Tribunal Arbitral, andou bem o Colégio de Árbitros ao decidir manter a condenação da Recorrente pelas infrações disciplinares p. p. pelo artigo 127.º e 187.º, n.º 1, al. a) e b) do RD da LPFP.»


Neste Tribunal Central Administrativo, a DMMP emitiu pronúncia no sentido de ser concedido parcial provimento ao recurso, nos seguintes termos:

«(…) emite-se parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso formulado pela F...-SAD e manter o acórdão do TAD, em consonância com a referida jurisprudência do STA, que se vem tornando uniforme e estável, no sentido de confirmar os Acórdãos do TAD e rejeitar o entendimento da inconstitucionalidade das normas dos art. 13.°, al. f) e 127.°, n.° 1, 187.°, n.° 1, als. a) e b), do RD/LPFP-2017.

E conceder provimento ao recurso no respeitante às custas fixadas com base no valor de € 30.000,01, por violação do art. 33°, al. b) do CPTA.»


Com dispensa de vistos dos Mmos. Juízes Desembargadores Adjuntos, dado tratar-se de um processo urgente, e tendo sido facultadas cópias do acórdão, vem o processo agora à conferência para se conhecer do recurso.


I. 1. Questões a apreciar e decidir

As questões a apreciar são, pois, as seguintes:

i) Do erro de julgamento de facto e de direito imputados à decisão recorrida por inexistência de prova suficiente de que os comportamentos indevidos foram perpetrados por sócio ou simpatizante do Recorrente;

ii) Do erro de julgamento de facto e de direito imputados à decisão recorrida por inexistência de prova suficiente de que tais condutas resultaram de um comportamento culposo do Recorrente;

iii) Do erro em que incorreu na modificação do valor da causa para € 30.000,01 (trinta mil euros e um cêntimo) em violação do regime estabelecido no art. 33.º, alínea b), do CPTA, e, consequentemente, da violação dos princípios constitucionais da proporcionalidade e da tutela jurisdicional efetiva, quanto às custas processuais devidas em sede dos processos de arbitragem necessária no TAD.

II. Fundamentação de facto e de direito

II.1. De Facto

A matéria de facto pertinente é a constante do acórdão recorrido, a qual se dá aqui por reproduzida, ipsis verbis:

«(…)

a) No dia 14 de setembro de 2018, no Estádio do D..., no P…, realizou-se o jogo n.º 3… (2…), entre F... - Futebol SAD e G... -Futebol SAD., a contar para a "A... Cup".

b) No jogo dos autos, os membros do Grupo Organizado de Adeptos denominados de "S...", afeto ao F..., ficaram instalados na "bancada topo Sul, setor 9 e 10 do Estádio do D..., sectores que lhes estão exclusivamente afetos.

c) Os referidos adeptos do GOA "S..." afeto ao F... situados no setor 9 da bancada topo Sul do Estádio do D..., aos minutos 70 e 80 do jogo, aquando a bola era reposta em jogo pelo guarda-redes da equipa do G..., entoaram em coro "Filho da Puta";

d) Os referidos adeptos do GOA "S..." afetos ao F... situados no setor 9 da bancada topo Sul do Estádio do D..., aos 74 minutos da segunda parte do jogo, após um golo do F..., deflagraram um flash-light.

e) Os adeptos do GOA "S..." afetos ao F..., situados no setor 9 da bancada topo Sul do Estádio, usavam cachecóis, camisolas, tarjas e bandeiras alusivas à Demandante;

f) O F... não adotou as medidas preventivas adequadas e necessárias a evitar os acontecimentos protagonizados pelos seus adeptos, descritos nos factos provados c) e d) (convicção fundada nas regras de experiência e segundo juízos de normalidade e razoabilidade);

g) O F... agiu de forma livre, consciente e voluntária bem sabendo que ao não evitar a ocorrência dos referidos factos perpetrados pelos seus adeptos e simpatizantes, incumpriu deveres legais e regulamentares de segurança e de prevenção da violência que sobre si impendiam, enquanto entidade organizadora do evento desportivo em causa e clube participante no dito jogo de futebol (convicção fundada nas regras de experiência e segundo juízos de normalidade e razoabilidade);

h) Na presente época desportiva, à data dos factos, o F... já havia sido sancionado, por decisão definitiva na ordem jurídica desportiva, pelo cometimento de diversas infrações disciplinares, cfr. cadastro disciplinar da F... - Futebol SAD.»




II.2 De Direito

A Recorrida FPF e ora Reclamante, vem reclamar da decisão sumária do relator, proferida a 19.03.2020, que concedeu provimento ao recurso interposto e, consequentemente, revogou o acórdão recorrido.

A decisão em causa, na sua parte relevante, é do seguinte teor:

«(…)

II.2. Em face da definição do objeto do recurso supra efetuada, impõe-se conhecer do mesmo, podendo já adiantar-se que o recurso merece provimento, não podendo manter-se a decisão proferida pelo tribunal a quo.

Analisemos conjuntamente os dois primeiros erros de julgamento que cumpre apreciar:

i) Do erro de julgamento de facto e de direito imputados à decisão recorrida por inexistência de prova suficiente de que os comportamentos indevidos foram perpetrados por sócio ou simpatizante do Recorrente;

ii) Do erro de julgamento de facto e de direito imputados à decisão recorrida por inexistência de prova suficiente de que tais condutas resultaram de um comportamento culposo do Recorrente;

Em situação análoga à presente e cuja doutrina é aqui replicável, já este TCA Sul se pronunciou, entre outros, no acórdão de 21.11.2019, P. 102/19.0BCLSB, no qual a primeira signatária interveio na qualidade de segunda adjunta.

Antes porém, ao invés do que refere o DMMP no seu parecer, é nosso entendimento que inexiste ainda jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo sobre as questões que irão ser apreciadas no presente recurso, nos termos em que as mesmas foram aqui colocadas, na medida em que as decisões até agora tomadas, designadamente, no sentido da decisão proferida no P. 102/19, supra identificada, como melhor explicitaremos infra, foram objeto de recurso, aliás, obrigatório, por parte do Ministério Público, para o Tribunal Constitucional, onde ainda se encontram.

Por seu turno, as decisões já proferidas pelo Supremo Tribunal Administrativo, designadamente, nos processos n.° 033/18.0BCLSB, de 21.02.2019; n.° 01/18.2BCLSB, de 19.06.2019; n.° 073/18.0BCLSB, de 02.05.2019; n.° 040/18.3BCLSB, de 04.04.2019 e n.° 030/18.6BCLSB, de 04.04.2019, debruçaram-se primacialmente sobre duas outras questões, deveras importantes, e com cuja doutrina concordamos – da presunção, de natureza ilidível, acerca da veracidade dos factos – que não da autoria, conforme a questão foi colocada nos presentes autos – e da natureza subjetiva da responsabilidade dos clubes.

Retomando o caso em apreço. No supra citado aresto, proferido no P. 102/19.0BCLSB, por este Tribunal Central Administrativo Sul, assinado também pela 1.ª signatária, sumariou-se o seguinte:

1. Por disposição expressa do artº 35º do Regulamento das Competições organizadas pela LPFP/2017, a titularidade do dever, colocada na esfera jurídica do clube desportivo sob a forma especial de dever de garante, constitui o fundamento da responsabilidade disciplinar do clube por delito de omissão do dever de evitar o resultado jurídico desvalioso tipificado nos artºs. 127º/187º do RD –LPFP/2017 no contexto do “terreno de jogo” e “dentro dos limites do recinto desportivo”.

2. Tal significa que a entidade administrativa com poderes regulamentares – a Liga, LPFP – quis vincular a autoria pelo cometimento dos ilícitos disciplinares dos artºs. 127º/187º do RD–LPFP/2017 à violação do dever jurídico de garante da observância dos deveres elencados no artº 35º do Regulamento Disciplinar das Competições da LPFP/2017.

3. Consequentemente, recai sobre a pessoa colectiva, i.e, sobre o clube desportivo a imputação de autoria dos ilícitos descritos nos artºs.127º/187º do RD–LPFP/2017 por violação dos deveres normativamente elencados no âmbito do dever jurídico de garante que incumbe ao próprio clube desportivo.

4. O que significa que o sócio ou simpatizante executor do ilícito disciplinar tem de ser uma pessoa singular devidamente identificada no processo disciplinar através da sua identidade civil para, por seu intermédio, se fazer a imputação funcional do comportamento ilícito do sócio ou simpatizante, devidamente identificado, ao clube desportivo, na exacta medida em que, nos termos expostos, o critério da autoria repousa na titularidade dos deveres elencados no artº 35º do Regulamento Disciplinar das competições organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional/2017.

5. Não é juridicamente admissível presumir a qualidade de sócio ou simpatizante do clube relativamente à pessoa singular desconhecida e, como tal, não existente no processo, que executa os actos materiais tipificados nos artºs. 127º/187º do RD–LPFP/2017, que é o sócio ou simpatizante do clube, e que assim concretiza a infracção, nos termos já expostos, materializando o comportamento proibido pelo tipo de ilícito disciplinar.

6. Se não se sabe quem é a pessoa singular, porque não está identificada no processo disciplinar, não é possível fazer derivar por presunção e dar como provado que a pessoa em causa é sócia ou simpatizante do clube desportivo para efeitos de imputação da autoria à pessoa colectiva.

7. Por força do artº 32º nº 2 e 10 da Constituição, no direito sancionatório, seja criminal seja disciplinar, não se presume a autoria do tipo de ilícito, o que se presume, a partir de uma base fáctica provada (base da presunção), são comportamentos expressos em factos susceptíveis de imputação subjectiva ou objectiva.

Contando do seu texto, além do mais, o seguinte:

«(…) a responsabilidade objectiva mostra-se afastada pela circunstância de ambos os normativos em causa (127º/187º) do RD–LPFP/2017 exigirem para efeito de imputação aos clubes e punição destes por factos ocorridos nos recintos desportivos, que as faltas sejam praticadas por espectadores sócios ou simpatizantes do clube.

Por esta razão, porque as normas exigem a imputação da qualidade pessoal de sócio ou simpatizante ao clube especificamente objecto da punição, do ponto de vista jurídico não é admissível, presumir a qualidade de sócio ou simpatizante relativamente a pessoa que nem se sabe quem é por não estar identificada no processo disciplinar, para efeitos de operatividade da ligação funcional do (desconhecido) sócio ou simpatizante ao clube desportivo nos termos consignados nos artºs. 127º/187º do RD–LPFP/2017 – [se não se sabe quem é, ou foi, como pode o clube fazer prova, negativa, de que esse “alguém”, não era sócio ou simpatizante do clube, para assim poder afastar, em sede de processo disciplinar, a presunção de autoria que lhe foi imputada?]

Efectivamente, a interpretação dos artºs. 127º/187º do RD–LPFP/2017 no sentido (i) da imputação de autoria ao clube por efeito automático da concretização dos ilícitos disciplinares comissivos referidos ou descritos nos citados artigos (127º/187º), cometidos por pessoa física cuja identidade é desconhecida, (ii) presumindo a qualidade funcional de “sócio ou simpatizante” (ligação ao clube) exigida pela norma (182º/187º) relativamente a essa pessoa física de identidade desconhecida, (iii) associando à concretização dos ilícitos (182º/187º) o efeito automático de imputação ao clube do delito omissivo impróprio de violação do dever jurídico de garante (artº 35º do Regulamento das Competições da LPFP/2016), configura-se inconstitucional, por violação do princípio da presunção de inocência em sede de processo disciplinar, à luz do regime constante do artº 32º nºs. 2 e 10 CRP.

Só os cachecóis, camisolas, bandeiras e tarjas com a heráldica do clube bem como as pessoas assistirem na zona do estádio reservada ao clube – [v. alíneas c), d) e e) da matéria de facto supra] -, não chega para dar operatividade à imputação de autoria ao clube, posto que, nos termos já referidos, tal é vedado pelo artº 32º nºs. 2 e 10 da Constituição.»

Assim, por remissão para a fundamentação do acórdão deste TCA Sul supra citado, haverá que conceder provimento ao recurso, desaplicando, no caso em apreço, as citadas normas constantes dos art.s. 127º e 187º do RD–LPFP/2017, por violação do princípio da presunção de inocência em sede de processo disciplinar, à luz do art. 32.º nºs. 2 e 10 CRP, quando interpretadas, como foram na decisão recorrida, no sentido:

(i) da imputação de autoria ao clube por efeito automático da concretização dos ilícitos disciplinares comissivos referidos ou descritos nos citados artigos (127.º/187.º), cometidos por pessoa física cuja identidade é desconhecida;

(ii) presumindo a qualidade funcional de “sócio ou simpatizante” (ligação ao clube) exigida pela norma (187.º) relativamente a essa pessoa física de identidade desconhecida;

(iii) associando à concretização dos ilícitos (187.º) o efeito automático de imputação ao clube do delito omissivo impróprio de violação do dever jurídico de garante (art. 35.º do Regulamento das Competições da LPFP/2016).

Por fim, cumpre ainda aferir:

iii) Do erro em que incorreu a decisão recorrida por via da modificação do valor da causa para € 30.000,01 (trinta mil euros e um cêntimo) em violação do regime estabelecido no art. 33.º, alínea b), do CPTA, e, consequentemente, da violação dos princípios constitucionais da proporcionalidade e da tutela jurisdicional efetiva, quanto às custas processuais devidas em sede dos processos de arbitragem necessária no TAD.

Esta questão tem sido decidida por este tribunal de recurso, no sentido com o qual concordamos, e por esse motivo aqui transcrevemos, a título de exemplo, a parte decisória proferida a 07.11.2019, no processo n.º 2/19.3BCLSB, desde já se adiantando que assiste razão ao RECORRENTE, pois: “o objecto da causa consubstancia a impugnação da decisão sancionatória de aplicação da pena de multa; tal significa que compete aplicar o regime específico referente ao critério do conteúdo económico do acto, a saber, o montante da sanção de carácter pecuniário que foi aplicada, nos termos do artºs. 33º b) CPTA. Exactamente porque o valor da causa é o montante pecuniário da multa, podendo esta não atingir o valor da alçada dos TCA’s - € 30000 mais € 0,01 -, o regime de recurso em matéria sancionatória segue o disposto no artº 142º nº 3 b) CPTA sendo justificada a admissibilidade de recurso independentemente do valor da causa, pela especificidade da matéria – direito sancionatório - e pela natureza dos direitos e interesses em causa. Consequentemente, no caso presente o valor que compete é o resultante do pedido de anulação da multa aplicada (…)».

Assim sendo, no caso em apreço, estando em causa a aplicação de duas sanções pecuniárias, o valor da ação será o correspondente ao somatório dos respetivos valores, a saber: 956,00€ pela prática da infração p.p. pelos art.s 127.º, n.º 1, do RD LPFP, ex vi art. 35.º, n.º 1, alínea f) do Regulamento de Competições da LPFP e art.s 6.º, n.º 1, alínea g) e 9.º, n.º 1, alíneas m) vi), do Anexo VI desse Regulamento de competições; 383,00€ pela prática da infração prevista e punida pelo art. 187.º, n.º 1, alínea a) do RD LFPF; e 1.434,00€ pela prática da infração prevista e punida pelo art. 187.º, n.º 1, alínea b) do RD LFPF, o que perfaz o total de 2.773€, a que corresponderá ao valor da ação nos termos do art. 33.º, n.º 1, alínea b) do CPTA .

Pelo exposto, considera-se procedente a suscitada questão do erro na fixação do valor da causa e revoga-se, nesta parte o acórdão recorrido.

*

Atento o que, e no pressuposto que antecede quanto ao critério relevante para a fixação do valor da causa, terá de ser analisada a questão subsequentemente suscitada pelo RECORRENTE, ao pretender que este tribunal desaplique, ao abrigo do art. 204.º da Constituição da República Portuguesa, a norma resultante da conjugação do disposto art. 2.°, n.ºs 1 e 5 (e respetiva tabela constante do Anexo I (2.ª linha), da Portaria n.° 301/2015, invocando, em suma, ser obrigado recorrer junto do TAD de uma condenação pecuniária no valor total de € 2.773€ e, não tendo esse obtido provimento, confronta-se com uma fixação de custas no total de € 5.104,50, o que alega ser inconstitucional por violação do princípio da proporcionalidade (art. 18.º, nº 2, da CRP) e do princípio da tutela jurisdicional efetiva (art. 20.º, n.º 1, da CRP).

Vejamos.

Os preceitos indicados como fundamento da norma a desaplicar são os seguintes:

Artigo 2.º da Portaria n.º 301/2015, de 22.06., que dispõe o seguinte:

“1 A taxa de arbitragem necessária corresponde ao montante devido pelo impulso processual do interessado e é fixada pelo presidente do Tribunal Arbitral do Desporto em função do valor da causa, nos termos do anexo I à presente portaria que dela faz parte integrante.

(…)

5 A fixação do montante das custas finais do processo arbitral e a eventual repartição pelas partes é efetuada na decisão arbitral que vier a ser proferida pelo tribunal arbitral, em função do valor da causa, nos termos do anexo I.»

Por sua vez, da segunda linha do Anexo I da citada Portaria n.º 301/2015, resulta que nas causas de valor compreendido entre os 30.000,01 euros e os 40.000,00 euros, a taxa de arbitragem é sempre de 900 euros, os honorários do coletivo de árbitros somam 3.000 euros e os encargos administrativos 90 euros.

Esta questão tem sido objeto de apreciação por este tribunal de recurso, assim como pelo Supremo Tribunal Administrativo , nos termos seguintes – cfr., a título de exemplo, ac. STA de 21.02.2019, P. 033/18.0BCLSB, e do qual se transcreve, pelo resumo da questão que comporta, o seguinte:

«(…) insurge-se a recorrente com o juízo de improcedência expendido no mesmo acórdão quanto ao pedido de isenção de custas, porquanto alegadamente proferido em violação do disposto nos arts. 13.º, 20.º, nºs. 1 e 2, e 268.º, n.º 4, todos da CRP.

77. Esta questão fundamento de recurso mereceu já resposta concordante deste Supremo nos citados acórdãos de 18.10.2018 [Proc. n.º 0144/17.0BCLSB] e de 20.12.2018 [Proc. n.º 08/18.0BCLSB] no sentido de que a não concessão à Federação Portuguesa de Futebol da isenção da taxa de arbitragem não viola o referido quadro normativo.

78. Afirmou-se na motivação daquele juízo, que aqui se acompanha e reitera, que «[e]fetivamente, resultando dos arts. 76.º, n.º 2, e 77.º, n.º 3, da Lei do TAD [Lei n.º 74/2013, de 6.9, com as alterações resultantes da Lei n.º 33/2014, de 16.6] que “a taxa de arbitragem corresponde ao montante devido pelo impulso processual do interessado” e que esta “é integralmente suportada pelas partes e por cada um dos contrainteressados” e não se encontrando prevista neste diploma, nem na Portaria n.º 301/2015, de 22.9, nenhuma isenção de pagamento dessas taxas, não se pode verificar qualquer desigualdade entre os intervenientes processuais no que a esse pagamento respeita» e que, nessa medida, fosse violadora do art. 13.º da CRP, sendo que também «é insuscetível de infringir os citados preceitos constitucionais a circunstância de, eventualmente, a legislação que introduziu a arbitragem obrigatória se traduzir num agravamento da responsabilidade tributária da recorrente, quando nem sequer é alegado que o novo regime seja de tal modo gravoso que dificulte de forma considerável o acesso aos tribunais» e que, desta forma, se possam considerar postergados os comandos insertos nos arts. 20.º, n.ºs 1 e 2, e 268.º, n.º 4, da CRP.»

Assim como, foi já alvo de pronúncia por parte do Tribunal Constitucional – acórdão n.º 392/18, de 16.10.2019, proferido no P. n.º 392/18 e, mais recentemente, acórdão n.º 782/19, de 19.12.2019, proferido no P. n.º 872/18 – ambos no sentido da não inconstitucionalidade, in casu, das normas constantes do art. 2.º, n.º 1 e 4, da Portaria n.º 301/2015, de 22.09, em conjugação com a primeira (ac. n.º 392/18) e segunda (ac. n.º 782/19) linha da tabela constante do seu Anexo 1.

Em virtude de ser inteiramente aplicável ao caso em apreço a doutrina que dimana dos citados arestos do Tribunal Constitucional, pois que, apesar de as pronúncias de não inconstitucionalidade não surtirem de lege um efeito preclusivo da discussão da inconstitucionalidade das normas legais, fazendo apenas caso julgado no processo - cfr. art. 80.º da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional -, o certo é que a doutrina que dimana desta decisão negativa, proferida em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade, que aqui se transcreve na parte que relevante (por referência ao ac. n.º 392/18), tem inteira aplicabilidade ao caso em apreço.

Vejamos em que termos:

«(…) Como o Tribunal Constitucional tem reiteradamente afirmado, no contexto de apreciação das custas judiciais, a Constituição não garante uma justiça gratuita mas uma justiça economicamente acessível à generalidade dos cidadãos, sem necessidade de recurso ao sistema de apoio judiciário (cfr., entre outros, Acórdãos n.ºs 1182/96 e 70/98). Ora, se o Estado pode exigir aos cidadãos que recorrem aos tribunais públicos o pagamento de taxas de justiça em contrapartida do serviço público de justiça que lhes é individualmente prestado nos processos judiciais, por maioria de razão poderá exigir aos operadores desportivos o pagamento do serviço especializado de justiça desportiva que lhes é especificamente prestado pelo TAD, que é um centro de arbitragem de natureza privada criado para responder às necessidades de uniformização, celeridade e especialização impostas pela especificidade do litígio desportivo (Acórdão n.º 230/13).

(…)

O mesmo raciocínio será transponível para as custas judiciais e para as custas cobradas no TAD -, dado que também nesta área, onde nem sequer impera idêntico princípio, se procura a racionalização na utilização da justiça, uma vez que os recursos são limitados e se pretende reservá-los para aqueles que mais deles careçam.

Independentemente de outras ponderações, trata-se aqui de aplicar um princípio geral de cobertura e imputação de custos, sendo legítima a adoção de medidas aptas a assegurar a sustentabilidade económica de um serviço público prestado por entidades privadas e a imputação do respetivo custo sobre quem, concluindo pela necessidade da utilização desse serviço público, especialmente dele beneficia.

Não questionando tais premissas, o que o Tribunal recorrido defende é que o montante das custas cobradas no TAD por processos arbitrais necessários de valor até 30.000,00 é demasiado elevado, em si mesmo e por comparação com o montantes cobrados nos tribunais estaduais, podendo atingir montantes muito superiores ao valor da causa, como se considerou ser o caso, o que constitui «um condicionamento excessivo e injustificado do acesso aos tribunais por via tributária ou paratributária», especialmente censurável porque as partes não têm a possibilidade de optar, em alternativa, pelo recurso aos tribunais do Estado, que deixaram de ter competência na matéria.

O problema levantado situa-se, pois, ao nível do princípio constitucional da proibição do excesso aplicável em matéria de restrição de direitos fundamentais dos cidadãos (artigo 18.º, n.º 2, da Constituição).

(…) Sucede que, (…), há razões constitucionalmente aceitáveis para essa diferença de valores, que se prendem com a natureza privada do TAD - que tem nas custas processuais a sua principal fonte de financiamento (artigo 1.º, n.º 3, da Lei do TAD) -, o nível médio de rendimentos das entidades desportivas envolvidas nos litígios que integram a competência necessária desse tribunal arbitral, sensivelmente superior ao nível médio de rendimentos dos cidadãos em geral, e as próprias características do serviço de justiça prestado pelo TAD.

Note-se, quanto ao primeiro ponto, que a capacidade de auto-financiamento do TAD é essencial para assegurar a sua independência e imparcialidade, quer em relação à administração pública do desporto, quer em relação aos organismos que integram o sistema desportivo cfr. artigo 1.º, n.º 1, da referida lei. A redução do preço do serviço especializado de justiça prestado pelo TAD para níveis equivalentes aos que vigoram na justiça estadual comportaria o risco de comprometer, ou a subsistência do TAD, considerando os custos tendencialmente mais elevados da atividade de arbitragem, ou a sua independência e imparcialidade, que necessariamente passam pela garantia de um estatuto de efetiva autonomia económico-financeira em relação a todas as partes potencialmente envolvidas nos litígios que compete àquele tribunal decidir.

Por outro lado, se é certo que tanto pode recorrer para o TAD um praticante desportivo como uma sociedade anónima desportiva, como é o caso do A., SAD (artigo 52.º da Lei n.º 74/2013), com diferenciados níveis de rendimentos, é razoável que o nivelamento do valor das custas processuais se faça de modo a permitir a viabilização, em condições de independência, de uma entidade jurisdicional que tem por função prestar um serviço de justiça compatível com as necessidades próprias do sistema desportivo, assegurado que esteja, como está, que ninguém será impedido de aceder à justiça desportiva por insuficiência de meios económicos (cfr. artigo 4.º da Portaria n.º 301/2015, na redação da Portaria n.º 314/2017).

Finalmente, não é possível ignorar que o serviço de justiça desportiva prestado pelo TAD, também no âmbito da sua jurisdição arbitral necessária, está normativamente estruturado em termos que garantem a competência e qualificação especializada dos árbitros, por um lado, e a prolação de decisões em tempo compatível com a natureza específica do tipo de litígios abrangidos pela sua jurisdição, por outro.

Com efeito, o TAD integra na sua composição o Conselho de Arbitragem Desportiva (CAD), órgão que é composto por 11 membros, sendo 2 deles designados pelo Comité Olímpico de Portugal, 2 designados pela Confederação de Desporto de Portugal e 1 pelo Conselho Nacional do Desporto, de entre juristas de reconhecido mérito e idoneidade, com experiência na área do desporto (artigos 9.º e 10.º, n.º 1, alíneas a) a c), da Lei do TAD). Compete ao CAD, designadamente, estabelecer a lista de árbitros do TAD, com base em propostas apresentadas por entidades com responsabilidades institucionais no sistema desportivo (artigo 21.º), e promover o estudo e a difusão da arbitragem desportiva, bem como a formação específica de árbitros, nomeadamente estabelecendo relações com outras instituições de arbitragem nacionais ou com instituições similares estrangeiras ou internacionais (artigos 11.º, alíneas a) e g), da mesma lei). Essa lista de árbitros é integrada, no máximo, por 40 árbitros, designados de entre juristas de reconhecida idoneidade e competência e personalidades de comprovada qualificação científica, profissional ou técnica na área do desporto (artigo 20.º, n.º 2). Acresce que a competência arbitral necessária é sempre exercida por um colégio de três árbitros, podendo cada parte designar um árbitro, devendo os árbitros assim designados escolher o terceiro, que atuará como presidente do colégio (artigo 28.º, n.ºs 1 e 2).

Por outro lado, em atenção às exigências próprias do sistema desportivo, a tramitação do processo arbitral obedece a um padrão comum de simplicidade, celeridade e eficácia, que se manifesta, por exemplo, na regra da continuidade dos prazos processuais, que não se suspendem aos sábados, domingos e feriados, nem em férias judiciais (artigo 39.º, n.º 1), na possibilidade da redução dos prazos legalmente previstos (artigo 40.º), já por si muito curtos, sendo de 5 dias o prazo geral para a prática de atos processuais (artigo 39.º, n.º 3) e de 15 dias o prazo de prolação da decisão final, que se conta da data do encerramento do debate da causa (artigo 58.º, n.º 1), incorrendo os árbitros que obstem a que a decisão seja proferida dentro do prazo legal em responsabilidade pelos danos causados (artigo 45.º).

O serviço de justiça prestado pelo TAD revela, assim, um nível de especialização e rapidez que, sendo imposto por razões de interesse público com relevância constitucional (artigo 79.º da Constituição), beneficia diretamente os operadores do sistema desportivo. É, pois, razoável que o maior custo necessariamente implicado na prestação desse serviço seja suportado por quem, tendo condições económicas para tanto, como é manifestamente o caso do A., SAD, e da Federação Portuguesa de Futebol, dele objetivamente beneficia.

Conforme é referido no Acórdão n.º 155/2017, «[p]ara que se possa considerar existir uma clara desproporção que afeta o carácter sinalagmático de um tributo não se pode atender apenas ao carácter fortemente excessivo da quantia a pagar relativamente ao custo do serviço (acórdãos nºs. 640/95 e 1140/96); ela há-de igualmente ser aferida em função de outros fatores, designadamente da utilidade do serviço para quem deve pagar o tributo (cfr. acórdãos nºs. 1140/96; 115/02 e 349/02).»

Ora, estando em causa a prestação do serviço público de justiça, como é o caso, a utilidade do serviço não deve ser aferida tendo em consideração apenas o valor da causa, mas todos os benefícios com expressão económica que decorrem das características específicas do serviço prestado, designadamente quanto ao (menor) tempo de resposta e o (maior) grau de especialização. (…)»

Em suma, face à jurisprudência do Tribunal Constitucional, do Supremo Tribunal Administrativo e, bem assim, a que vem sendo firmada por este Tribunal Central Administrativo Sul – cfr. se expôs supra -, na motivação de um juízo de não inconstitucionalidade das normas em apreço, que aqui se acompanha e reitera, claudica a última alegação de recurso (…)».

Vejamos.

A Recorrida, ora Reclamante, veio reclamar para a conferência da decisão sumária proferida pela primeira signatária, supra transcrita na parte relevante, por entender que a mesma «padece de graves erros na aplicação do Direito, com os quais a Reclamante não se pode conformar (…), em virtude, designadamente, de que não poderão proceder as inconstitucionalidades suscitadas na decisão de que ora se recorre. (…)» assim concluindo que «Deverá o coletivo de juízes revogar a decisão singular proferida, determinando improcedente o recurso apresentado, e, consequentemente, a manutenção do acórdão arbitral proferido pelo TAD(…)».

Por seu turno, o Recorrente, ora Reclamado, aduz que «(…)

E, na verdade, reponderando o decidido, imperioso se torna manter a sentença recorrida atendendo às inconstitucionalidades evidenciadas, no sentido de que, estando em causa comportamentos social ou desportivamente incorretos perpetrados por terceiros, se considerou ser absolutamente aplicável a doutrina exarada por este TCA Sul no acórdão de 21.11.2019, P. n.º 102/19.0BCLSB, no qual a primeira signatária, então reatora da sentença reclamada, havia, aliás, intervindo na qualidade de segunda adjunta.

Assim, proferindo decisão por remissão para a fundamentação desse mesmo acórdão, que foi junto integralmente em anexo à sentença reclamada, em sede de notificação desta, foram desaplicadas as normas constantes dos arts. 127.º e 187.º do RDLPFP de 2017, por violação do principio da presunção de inocência em sede de processo disciplinar - cfr. art. 32.º, 2 e 10 da CRP - quando interpretadas, como foram na decisão recorrida, no sentido:

(i) da imputação de autoria ao clube por efeito automático da concretização dos ilícitos disciplinares comissivos referidos ou descritos nos citados artigos (127.º/187.º), cometidos por pessoa física cuja identidade é desconhecida;

(ii) presumindo a qualidade funcional de “sócio ou simpatizante” (ligação ao clube) exigida pela norma (187.º) relativamente a essa pessoa física de identidade desconhecida;

(iii) associando à concretização dos ilícitos (187.º) o efeito automático de imputação ao clube do delito omissivo impróprio de violação do dever jurídico de garante (art. 35.º do Regulamento das Competições da LPFP/2016).

Pelo que a mesma é de manter, nos precisos termos em que foi proferida.

Cumprindo ainda aferir do invocado erro em que incorreu o TAD na modificação do valor da causa para € 30.000,01 (trinta mil euros e um cêntimo) em violação do regime estabelecido no art. 33.º, alínea b), do CPTA, e, consequentemente, da violação dos princípios constitucionais da proporcionalidade e da tutela jurisdicional efetiva, quanto às custas processuais devidas em sede dos processos de arbitragem necessária no TAD, a sentença reclamada, apelando à circunstância de esta questão ter vindo a ser decidida por este tribunal de recurso, no sentido com o qual concordava, e por esse motivo ali aqui transcreveu, a título de exemplo, a parte decisória proferida a 07.11.2019, no processo n.º 2/19.3BCLSB, desde já se adianta que nada há a reparar no assim decidido, sendo também de manter, nesta parte a sentença reclamada, em virtude de «no caso em apreço, estando em causa a aplicação de duas sanções pecuniárias, o valor da ação será o correspondente ao somatório dos respetivos valores, a saber: 956,00€ pela prática da infração p.p. pelos art.s 127.º, n.º 1, do RD LPFP, ex vi art. 35.º, n.º 1, alínea f) do Regulamento de Competições da LPFP e art.s 6.º, n.º 1, alínea g) e 9.º, n.º 1, alíneas m) vi), do Anexo VI desse Regulamento de competições; 383,00€ pela prática da infração prevista e punida pelo art. 187.º, n.º 1, alínea a) do RD LFPF; e 1.434,00€ pela prática da infração prevista e punida pelo art. 187.º, n.º 1, alínea b) do RD LFPF, o que perfaz o total de 2.773€, a que corresponderá ao valor da ação nos termos do art. 33.º, n.º 1, alínea b) do CPTA .

Pelo exposto, considera-se procedente a suscitada questão do erro na fixação do valor da causa e revoga-se, nesta parte o acórdão recorrido.»

Por fim, e no pressuposto que antecede quanto ao critério relevante para a fixação do valor da causa, a sentença reclamada conheceu também de uma outra questão suscitada pelo RECORRENTE, ao pretender que este tribunal desaplicasse, ao abrigo do art. 204.º da CRP, a norma resultante da conjugação do disposto art. 2.°, n.ºs 1 e 5 (e respetiva tabela constante do Anexo I (2.ª linha), da Portaria n.° 301/2015, invocando, em suma, ser obrigado recorrer junto do TAD de uma condenação pecuniária no valor total de € 2.773€ e, não tendo esse obtido provimento, confronta-se com uma fixação de custas no total de €5.104,50, o que alega ser inconstitucional por violação do princípio da proporcionalidade (art. 18.º, n.º 2, da CRP) e do princípio da tutela jurisdicional efetiva (art. 20.º, n.º 1, da CRP).

A sentença reclamada, com respaldo na Jurisprudência do Tribunal Constitucional, do Supremo Tribunal Administrativo e, bem assim, na que vem sendo firmada por este Tribunal Central Administrativo Sul – supra citada e transcrita -, aderiu à respetiva motivação de um juízo de não inconstitucionalidade das normas em apreço, que aqui se acompanha e reitera, claudicando quanto a este aspeto também, a reclamação apresentada.

Tendo o assim dito, terá que confirmar-se integralmente a sentença reclamada.

III. Decisão

Nestes termos e por todos os fundamentos expostos, acordam os juízes da secção de contencioso administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul em julgar improcedente a reclamação apresentada e manter a sentença da Relatora proferida a 19.03.2020.

Custas pela Reclamante.

Notifique nos termos habituais, considerando-se que no presente processo, porque urgente, os respetivos prazos não estão suspensos para a prática de atos processuais que possam realizar-se via SITAF (cfr. art. 7.º, n.º 7, alínea a), da Lei n.º 1-A/2020, de 19.03., na redação dada pela Lei n.º 4-A/2020, de 06.04.).

Lisboa, 14.05.2020.



Dora Lucas Neto



Pedro Nuno Figueiredo (com voto de vencido)



Ana Cristina Lameira


Voto de vencido

Voto vencido quanto ao juízo de provimento do recurso, desaplicando as normas constantes dos artigos 127.º e 187.º do RD–LPFP/2017, por violação do princípio da presunção de inocência em sede de processo disciplinar, à luz do artigo 32.º, n.ºs 2 e 10, da CRP, quando interpretadas como foram na decisão recorrida.

Em primeiro lugar, por se acolher a orientação consensual da jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, de que são exemplos mais recentes os acórdãos de 02/05/2019, proc. n.º 073/18.0BCLSB, de 04/04/2019, proc. n.º 030/18.6BCLSB, de 04/04/2019, proc. n.º 040/18.3BCLSB, de 21/02/2019, proc. n.º 33/18.0BCLSB, e de 26/09/2019, proc. n.º 076/18.4BCLSB (todos disponíveis em http://www.dgsi.pt), conforme lapidarmente sumariado neste último:

- a presunção de veracidade dos factos constantes dos relatórios dos jogos elaborados pelos delegados da Liga Portuguesa Futebol Profissional [LPFP] que tenham sido por eles percecionados, estabelecida pelo art. 13.º, al. f), do Regulamento Disciplinar da LPFP [RD/LPFP], conferindo ao arguido a possibilidade de abalar os fundamentos em que ela se sustenta mediante a mera contraprova dos factos presumidos, não infringe os comandos constitucionais insertos nos arts. 02.º, 20.º, n.º 4, e 32.º, n.ºs 2 e 10, da CRP e os princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo.

- a responsabilidade disciplinar dos clubes e sociedades desportivas prevista no art. 187.º do referido RD/LPFP pelas condutas ou os comportamentos social ou desportivamente incorretos que nele se mostram descritos e que foram tidos pelos sócios ou simpatizantes de um clube ou de uma sociedade desportiva e pelos quais estes respondem não constitui uma responsabilidade objetiva violadora dos princípios da culpa e da presunção de inocência.

- a responsabilidade desportiva disciplinar ali prevista mostra-se ser, in casu, subjetiva, já que estribada numa violação dos deveres legais e regulamentares que sobre clubes e sociedades desportivas impendem neste domínio e em que o critério de delimitação da autoria do ilícito surge recortado com apelo não ao do domínio do facto, mas sim ao da titularidade do dever que foi omitido ou preterido.”

Em segundo lugar, quanto à ausência de identificação da pessoa singular e presunção da qualidade funcional de sócio ou simpatizante, não se acompanham os fundamentos da posição que fez vencimento.

Desde logo porque constam dos autos elementos seguros que os factos foram praticados por sócios / simpatizantes da recorrente.

E como se observa no voto de vencido proferido no acórdão deste TCAS de 21/11/2019, proc. n.º 144/17.0BCLSB (disponível em http://www.dgsi.pt), “não estamos propriamente no domínio do Direito Penal qua tale, não existindo aqui uma punição de natureza jurídico-criminal; movemo-nos (apenas) na área do ilícito disciplinar e respectivo regime sancionatório. Logo, o juízo a efetuar de subsunção normativa não poderá apropriar-se, sem mais, dos cânones típicos do Direito Penal e, em particular, da teoria geral da responsabilidade penal das pessoas colectivas que vem enunciada no acórdão”.

Acompanhando outro voto de vencido, proferido no acórdão deste TCAS de 06/11/2019, proc. n.º 89/19.9BCLSB (disponível em http://www.dgsi.pt), afigura-se ainda de realçar que o regime infracional dos presentes autos se aproxima mais do regime contraordenacional, no âmbito do qual a jurisprudência constitucional se tem pronunciado no sentido do afastamento da exigência de determinabilidade do tipo predominante no direito criminal, em função da diferente natureza dos ilícitos, da censura e das sanções, vejam-se, v.g. os acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 635/2011 e 85/2012 (disponíveis em https://www.tribunalconstitucional.pt/).

E veja-se também o Parecer do Conselho Consultivo da PGR n.º P000112013, votado em 10/07/2013, no qual se analisa em profundidade a doutrina e jurisprudência sobre a temática, e onde se conclui, designadamente, (no ponto 5) que a responsabilidade contraordenacional das pessoas coletivas assenta numa imputação direta e autónoma, quer o fundamento dessa responsabilidade se encontre num “defeito estrutural da organização empresarial” (defective corporate organization) ou “culpa autónoma por défice de organização”, quer pela imputação a uma pessoa singular funcionalmente ligada à pessoa coletiva, mas que não precisa de ser identificada nem individualizada, e (ponto 6) resultar a imputação da infração à pessoa coletiva de se considerar autor desta o sujeito que tiver violado (por ação ou por omissão) a proibição legal ou o dever jurídico cuja violação a lei comina com contraordenação, solução que é coerente com o facto de no Direito contraordenacional a ilicitude não assentar numa censura ético-jurídica mas sim na violação de um dever legal (disponível em http://www.dgsi.pt).

Pelas razões explanadas, seria de negar provimento ao recurso, quanto à aplicação das sanções disciplinares.

Lisboa, 14 de maio de 2020.

(Pedro Nuno Figueiredo)