Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:800/19.8BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:05/14/2020
Relator:PAULA DE FERREIRINHA LOUREIRO
Descritores:REJEIÇÃO LIMINAR REQUERIMENTO DA PROVIDÊNCIA CAUTELAR;
MANIFESTA FALTA DE FUNDAMENTO DA PRETENSÃO- FALTA DE CAUSA DE PEDIR;
INVIABILIDADE DO CONVITE AO APERFEIÇOAMENTO DO REQUERIMENTO.
Sumário:I- Proferida a decisão de rejeição liminar do requerimento inicial, não pode o Tribunal prosseguir a tramitação subsequente para apreciação do mérito da causa, incluindo a produção de prova, uma vez que o julgamento das questões atinentes ao mérito da causa cautelar encontra-se prejudicado pela solução que o Tribunal concedeu ao caso concreto no que se refere ao labor verificativo da presença de determinadas condições processuais.
II- O decretamento de uma medida cautelar depende da verificação cumulativa de três requisitos: o fumus boni juris, o periculum in mora e a formulação de uma convicção de preponderância na proteção dos interesses do requerente da providência cautelar em sede de ponderação entre os interesses públicos e privados e presença.
III- Por conseguinte, o sucesso da providência cautelar depende direta e imediatamente da alegação de factos concretos demonstrativos da ocorrência daqueles requisitos cumulativos. O que quer dizer que, a falta da alegação de factualidade concreta, na qual possa ancorar-se o juízo a elaborar por banda do Tribunal, determina irremediavelmente o fracasso da pretensão cautelar.
IV- Sendo assim, recebido o requerimento inicial, o Tribunal deve, em momento prévio à citação do demandado cautelar, exercer um controlo liminar por forma a indagar da verificação das condições mínimas de viabilidade da medida cautelar requerida, sucedendo que ao Juiz cumpre “evitar o inútil prosseguimento de processos inexoravelmente condenados ao insucesso (…) quando considere que é evidente ou manifesto que a pretensão deduzida é infundada” (Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, in Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, 4.ª edição, 2018, p. 949).
V- A omissão completa de invocação de qualquer factualidade tangente à demonstração do requisito atinente ao fumus boni juris inviabiliza a prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento, pois que, não está em causa, no caso em discussão, a mera concretização da matéria de facto alegada, ou a eliminação de imprecisões ou ambiguidades na exposição, mas sim o suprimento da causa de pedir que, no tocante ao requisito relativo à “aparência de bom direito”, é inexistente.
VI- A emissão de convite ao aperfeiçoamento nesta classe de situações redundaria, em bom rigor, na apresentação de um novíssimo requerimento inicial e não no aperfeiçoamento do já apresentado, sendo certo que o próprio legislador acautelou, no art.º 116.º, n.º 3 e 4 do CPTA, a possibilidade de apresentação de novo requerimento para estas situações.
VII- Por conseguinte, o convite ao aperfeiçoamento não deve ter lugar nos casos de omissão de causa de pedir, devendo esta ocorrência ser regularizada com a apresentação de novo requerimento inicial, originando nova providência cautelar.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em Conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:


I. RELATÓRIO
A….. (Recorrente), vem interpor recurso jurisdicional da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa em 08/05/2019, que rejeitou liminarmente o requerimento inicial da providência cautelar contra o Ministério da Administração Interna- Direção Nacional da Polícia de Segurança Pública (Recorrido), por manifesta falta de fundamento da pretensão formulada.

As alegações do recurso que apresenta culminam com as seguintes conclusões:
a) A providência cautelar intentada no Tribunal a quo tem por objeto, a suspensão da eficácia do Ato Administrativo praticado em 25 de Março de 2019, o qual, foi notificado ao Requerente em 01 de Abril de 2019, através do Proc.n.º ….. no qual se determinou no âmbito de um procedimento disciplinar a cominação de 'aposentação compulsiva', nos termos da alínea f) do n.º 1 Art. 25.º L 7/90, do 20 de Fevereiro;
b) O Tribunal "a quo” decretou a improcedência liminar da ação com fundamento em não estarem reunidos os pressupostos legais, nomeadamente, o fumus boni iuris, uma vez que, entende qua a mera adesão em processo sancionaria é válida, bem como, que existiu audiência dos interessados e ainda os fundamentos expostos são conclusivos, o que não se concede;
c) A decisão assenta e padece de várias vicissitudes no iter cognoscitivo, nomeadamente, oposição de fundamentos, erro de julgamento e nulidade por efeito da violação do exercício à defesa por não admissão da prova testemunhal.
d) O Recorrente argui, ab initio, a nulidade do Ato Administrativo, porquanto o mesmo resulta de uma mera adesão e concordância ao parecer emitido pela entidade competente.
e) O poder disciplinar está vinculado às garantias latu sensu do Arguido, nos termos e para os efeitos do n.º10 do Art. 32.º CRP;
f) Qualquer decisão tout court entendida que tenha por génese uma cominação negativa, rectius, repressiva no âmbito de um procedimento disciplinar, terá, afinal que cumprir e obedecer às mais elementares regras do Direito e, mais propriamente, a decisão terá que refletir não uma mera concordância e remissão mas sim uma verdadeira decisão, na qual se reflita os fatos - espaço e tempo - e o Direito, pese embora o Tribunal “a quo” entenda que a mera adesão é suficiente.
g) No processo disciplinar as exigências legais são acrescidas, devendo ser garantido ao visada as mais elementares garantias do processo penal, as quais são extensíveis ao processo disciplinar.
h) A decisão de um procedimento disciplinar não é um ato meramente confirmativo ou parecer vinculativo, ou seja, é o resultado de um procedimento administrativo sancionatório, que tem, após a instrução e análise da prova e respetivos fatos, um parecer prévio.
i) Posteriormente, deve a entidade competente para decidir, por conseguinte, munir-se de toda a informação recolhida ex ante, para depois, refletir e autonomizar esses mesmos fatos através de uma decisão vinculativa na qual se respeite os mais elementares Direitos do arguido, o ora Recorrente.
j) Considerando que o Ato Administrativo ora visado no presente caso sub Judicio, nada mais é do que uma mera adesão, entendemos que o mesmo é nulo, por violar os Direitos Liberdades e Garantias do Recorrente, nos termos e para os efeitos da aliena d) do n.2 do Art. 161ª CPTA e o n.º 3 do Art. 283.º CPC ex vi o n.º 10 do Art. 32.º CRP.
k) Na Sentença ora impugnada alega-se que o Recorrente exerceu o direito, rectius, exercício da audiência dos interessados, previsto nos Art.s 121.ºCPA e ss. aquando este apresentou defesa e prova (testemunhas), o que não se concede.
l) Com efeito, a decisão reflete fundamentos que consubstanciam um non venire contra factum proprium. id est, se é um processo especial por ser no âmbito do Direito sancionatório, então, com efeito, deve respeitar essas mesmas regras e não, conforme alegado pelo Tribunal "a quo”, fundar a Sentença de que a concordância ou/ mera adesão da decisão é valida em procedimento administrativo.
m) É valido em sede de procedimento administrativo a mera adesão ou concordância, quando estamos diante pareceres vinculativos e outros (que não conflituam com os direitos liberdades e garantias), no entanto quando estamos perante um procedimento disciplinar, na esteira da Constituição e das garantias da defesa do arguido, a mera adesão não colhe, conforme supra se verteu.
n) Se estamos diante um procedimento administrativo tout court a instrução prevista nos Art.s 115° CPA e ss não se confunde e não exonera a necessidade da audiência dos interessados, prevista no Art. 121° CPA.
o) Atento a princípio da legalidade da Administração, deveria o ora Recorrente ter sido notificado do projeto de decisão para, querendo se pronunciar ao abrigo da audiência dos interessados, a qual não se confunde com a Instrução.
p) Ao não ter sido notificado o Recorrente do projeto de decisão para exercer o exercício à audiência dos interessados, tal Ato final é salvo e por melhor douta opinião contrairia, anulável.
q) Por outro lado, entendendo o Tribunal a quo que os fatos alegados no requerimento inicial, são meramente conclusivos, ao invés de indeferir liminarmente o mesmo, cabia e competia ao Tribunal "a quo”, prima facie, por entender que estávamos diante fatos, a seu ver, conclusivos, ordenar o convite ao aperfeiçoamento do Requerimento Inicial.
r) Não o fazendo, violou o Art. 590.º CPC (ex vi, Art. 1.º CPTA).
s) Finalmente, o Tribunal "a quo” ao indeferir liminarmente o requerimento inicial e, bem assim, a produção de provia requerida viola os mais elementares Direitos à defesa e ao contraditório – duo process of law.
t) Tal circunstancialismo gera ope legis a nulidade da decisão atento os mais elementares princípios do Direito quer probatório e quer, maxime da legalidade e do Estado de Direito Democrático.
Termos em que deve ser concedido provimento ao presente recurso, com as legais consequências, fazendo-se assim JUSTIÇA!”

O Recorrido apresentou contra-alegações clamando, em suma, pela improcedência do recurso.


O Digno Magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal Central Administrativo emitiu parecer, pugnando pela improcedência do vertente recurso.


*
Com dispensa de vistos, atenta a sua natureza urgente, vem o processo submetido à Conferência desta Secção do Contencioso Administrativo para decisão.

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Questões a apreciar e decidir:
As questões suscitadas pelo Recorrente, delimitadas pelas alegações de recurso e respetivas conclusões, consubstanciam-se, em suma, em apreciar:
I) Se ocorre, na decisão recorrida, “oposição de fundamentos”;
II) Se a decisão recorrida padece de erro de julgamento no que concerne à verificação de “manifesta falta de fundamento da pretensão formulada”, bem como se a decisão recorrida encerra a “violação do exercício à defesa por não admissão da prova testemunhal”.



II- APRECIAÇÃO DO RECURSO
O Recorrente requereu no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa a presente providência cautelar contra a o Ministério da Administração Interna- Direção Nacional da Polícia de Segurança Pública, peticionando a suspensão da eficácia do ato proferido em 25/03/2019 pelo Ministro da Administração Interna, através do qual foi aplicada ao Recorrente a sanção disciplinar de aposentação compulsiva, bem como peticionada a “autorização provisória ao interessado para prosseguir a atividade até à decisão do processo principal”.
O Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa rejeitou liminarmente o requerimento inicial da providência por despacho prolatado em 08/05/2019.
O Recorrente, por discordar da decisão de rejeição liminar, interpôs o vertente recurso jurisdicional.

Apreciemos, portanto, a impetração.

I) O Recorrente invoca, na conclusão c) da sua impetração, que a decisão recorrida padece de “oposição de fundamentos”.
Todavia, nada mais alega ou concretiza o Recorrente no que tange à reclamada “oposição de fundamentos”, constituindo esta uma afirmação meramente conclusiva.
Com efeito, ainda que- com muita generosidade- se pudesse interpretar tal alegação como imputação de nulidade à decisão recorrida nos termos do previsto no art.º 615.º, n.º 1, al. c) do CPC, a verdade é que tal imputação está condenada ao soçobramento, uma vez que o Recorrente não substancia, nem concretiza, de facto e de direito, a razão pela qual entende que a decisão sob escrutínio contém “oposição de fundamentos”.
Pelo exposto, o vertente recurso jurisdicional improcede, forçosamente, nesta parte.


II) O Recorrente sufraga que a decisão recorrida padece de erro de julgamento no que concerne à verificação de “manifesta falta de fundamento da pretensão formulada”, bem como que a decisão recorrida encerra a “violação do exercício à defesa por não admissão da prova testemunhal”.
Vejamos se assim é.

O escrutínio do requerimento inicial do Recorrente, especialmente, o exame do petitório final, permite assumir que, efetivamente, o Recorrente formulou pretensão cautelar de natureza suspensiva, com fundamento na ocorrência de falta de fundamentação, de falta de audiência prévia e de excesso ou falta de proporcionalidade no que respeita à seleção da medida punitiva.
Também no requerimento inicial, o Recorrente apresentou logo o respetivo rol de testemunhas, requerendo a sua admissão.
Porém, examinada a decisão a quo, bem como a tramitação sucedida no Tribunal recorrido, verifica-se que, efetivamente, não foi admitida nem produzida a prova testemunhal requerida pelo Recorrente. Mas a verdade é que não tinha de ser.
É que a presente providência cautelar soçobrou em momento processual lógico-racionalmente anterior à avaliação, por banda do Julgador, da necessidade de produção de prova testemunhal, em conformidade com o previsto no art.º 118.º, n.ºs 1, 3 e 5 do CPTA. O que implicou que a admissão da prova testemunhal requerida pelo Recorrente tenha ficado prejudicada.
Expliquemos melhor.
Como dimana do despacho liminar a quo, o requerimento inicial da providência cautelar foi rejeitado por “manifesta falta de fundamento da providência cautelar”, nos termos previstos nos art.ºs 116.º, n.º 2, alíneas a) e d) e 114.º, n.º 3, alínea g) do CPTA.
Quer isto significar que, em sede de escrutínio liminar da verificação das condições processuais, o Tribunal a quo concluiu que a presente providência não reunia a totalidade das referidas condições processuais imprescindíveis para o prosseguimento da tramitação da providência cautelar, em ordem ao julgamento do mérito da mesma. Ora, a ausência destas condições desemboca necessariamente na rejeição liminar do requerimento inicial da providência cautelar, em conformidade com o preceituado no art.º 116.º, n.º 2 do CPTA. Assim, rejeitado liminarmente o requerimento inicial da providência cautelar, extingue-se a instância cautelar, cessando a subsistência do litígio processual ao abrigo do qual seria emitida a pronúncia judicial de mérito.
Com efeito, proferida a decisão de rejeição liminar do requerimento inicial, não pode o Tribunal prosseguir a tramitação subsequente para apreciação do mérito da causa, incluindo a produção de prova, uma vez que o julgamento das questões atinentes ao mérito da causa cautelar encontra-se prejudicado pela solução que o Tribunal concedeu ao caso concreto no que se refere ao labor verificativo da presença de determinadas condições processuais.
Realmente, é consabido que o decretamento de uma medida cautelar depende da verificação cumulativa de três requisitos: o fumus boni juris, o periculum in mora e a formulação de uma convicção de preponderância na proteção dos interesses do requerente da providência cautelar em sede de ponderação entre os interesses públicos e privados e presença. Por conseguinte, o sucesso da providência cautelar depende direta e imediatamente da alegação de factos concretos demonstrativos da ocorrência daqueles requisitos cumulativos. O que quer dizer que, a falta da alegação de factualidade concreta, na qual possa ancorar-se o juízo a elaborar por banda do Tribunal, determina irremediavelmente o fracasso da pretensão cautelar.
Sendo assim, recebido o requerimento inicial, o Tribunal deve, em momento prévio à citação do demandado cautelar, exercer um controlo liminar por forma a indagar da verificação das condições mínimas de viabilidade da medida cautelar requerida, sucedendo que ao Juiz cumpre “evitar o inútil prosseguimento de processos inexoravelmente condenados ao insucesso (…) quando considere que é evidente ou manifesto que a pretensão deduzida é infundada” (Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, in Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, 4.ª edição, 2018, p. 949). O que quer dizer que, a medida cautelar pretendida pela Recorrente soçobrou antes mesmo da instância cautelar estabilizar.
Interessa realçar, a este propósito, que “a falta de fundamento da pretensão (alínea d)) [do art.º 116.º, n.º 2 do CPTA] prende-se com a aplicação dos critérios de que depende a adoção das providências cautelares e há-de fundar-se num juízo negativo sobre o preenchimento de algum dos pressupostos de que depende a aplicação desses critérios: por via de regra, de acordo com o regime comum dos n.ºs 1 e 2 do artigo 120.º, o periculum in mora, o fumus boni juris e a ponderação de danos.” (Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, in ob. cit. p. 951).
Quer isto significar, portanto, que compete ao Juiz, em sede de despacho liminar, examinar o requerimento inicial da providência cautelar, por forma a verificar se o mesmo reúne um mínimo de condições de viabilidade que permitam a emissão de uma decisão de mérito sobre a medida cautelar pretendida, precedida, caso tal seja necessário, de atividade instrutória.
Deste modo, constatando a omissão de condições formais no requerimento inicial e que sejam inequivocamente comprometedoras de qualquer hipótese de deferimento da providência cautelar, cumpre ao Juiz rejeitar in limine o requerimento inicial.
Do que vem de se expor deriva, para o caso que agora se aprecia, que a rejeição in limine do requerimento inicial da providência cautelar conduz imediatamente à extinção da instância cautelar. Pelo que, evidentemente, não pode haver lugar à admissão da produção de prova testemunhal, pois que tal decisão supõe que a instância cautelar ultrapassa com sucesso a fase de avaliação liminar do requerimento inicial da providência cautelar.
Por conseguinte, fracassam completamente as imputações vertidas nas conclusões s) e t) do recurso jurisdicional.

Numa outra perspetiva, entende também o Recorrente que o Tribunal a quo julgou incorretamente os vícios de falta de fundamentação e de audiência prévia, que foram invocados em esteio da ilegalidade do ato cuja suspensão de eficácia foi requerida, isto é, o ato proferido em 25/03/2019, que aplicou ao agora Recorrente a pena disciplinar de aposentação compulsiva.
Ora, esclareça-se, em primeiro lugar, que a decisão recorrida, de rejeição liminar do requerimento inicial, não constitui um julgamento respeitante à procedência, ou improcedência, da medida cautelar requerida. Como se explicou antecedentemente, a avaliação liminar do requerimento inicial configura um momento inicial da instância cautelar, que tem o fito de escrutinar a presença de todas as condições processuais de que depende o prosseguimento da tramitação da providência, por forma a ser prolatada a decisão de mérito. Assim, na decisão de rejeição liminar, o que o Tribunal a quo determina é que o requerimento inicial da providência cautelar não reúne as condições previstas no art.º 116.º, n.º 2 do CPTA.
No caso versado, percorrido o requerimento inicial apresentado pelo Recorrente, verifica-se que o mesmo não enuncia um único facto apto a ancorar a formulação de um juízo de fumus boni juris. Ou seja, o Recorrente, em boa verdade, nada alega a título de fundamento factual para efeitos de verificação do requisito atinente à “aparência de bom direito”.
Aliás, ressalte-se que o próprio Recorrente não rejeita esta realidade em sede recursiva, pois que, nas conclusões q) e r) do seu recurso, alude ao dever de o Tribunal a quo formular um convite ao aperfeiçoamento.
Seja como for, explicite-se que a omissão completa de invocação de qualquer factualidade tangente à demonstração do requisito atinente ao fumus boni juris inviabiliza a prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento, pois que, não está em causa, no caso em discussão, a mera concretização da matéria de facto alegada, ou a eliminação de imprecisões ou ambiguidades na exposição, mas sim o suprimento da causa de pedir que, no tocante ao requisito relativo à “aparência de bom direito”, é inexistente. A emissão de convite ao aperfeiçoamento nesta classe de situações redundaria, em bom rigor, na apresentação de um novíssimo requerimento inicial e não no aperfeiçoamento do já apresentado, sendo certo que o próprio legislador acautelou, no art.º 116.º, n.º 3 e 4 do CPTA, a possibilidade de apresentação de novo requerimento para estas situações. Por conseguinte, o convite ao aperfeiçoamento não deve ter lugar nos casos de omissão de causa de pedir, devendo esta ocorrência ser regularizada com a apresentação de novo requerimento inicial, originando nova providência cautelar.
Concomitantemente, refira-se que a convocação do disposto no art.º 590.º do CPC não é pertinente, atendendo ao facto de que as providências cautelares em contencioso administrativo são objeto de regulação especial nos art.ºs 112.º a 134.º do CPTA.
Ademais, o convite ao aperfeiçoamento do requerimento inicial da providência cautelar é disciplinado pelo prescrito nos art.ºs 114.º, n.º 3 e 116.º, n.º 2 do CPTA.
Desta feita, fracassa também o presente recurso jurisdicional no que respeita às imputações insertas nas conclusões s) e t).

Nas conclusões d), e), f), g), h), i), j), l) e m) do seu recurso jurisdicional, vem o Recorrente atacar o julgamento realizado pelo Tribunal a quo no que concerne à falta de fundamentação. Efetivamente, a este propósito, invocou o Recorrente no requerimento inicial da providência cautelar que o despacho punitivo é ilegal, por falta de fundamentação, em virtude do despacho não conter em si próprio as razões de facto e de direito que motivam a punição e de remeter para parecer, aderindo ao mesmo. Entende, por isso, o Recorrente que se encontra violado o disposto nos art.ºs 152.º, n.º 1, al. a) e 153.º, n.º 1 do Código do Procedimento Administrativo (CPA, em diante).
Importa, então, averiguar se assiste razão ao Recorrente.
Ora, a decisão recorrida exarou, a este propósito, o seguinte:
“(…) Relativamente aos invocados vícios de que padeceria o acto impugnado (sendo certo que a aludida falta de fundamentação é, em substância, o mesmo vício referido em primeiro lugar, de mera adesão da decisão a um parecer ou, pelo menos, dele não tem autonomia), é jurisprudência pacífica e reiterada que nada há de ilegal no facto de uma decisão ou acto administrativo consistir na mera concordância, remissão expressa ou apropriação dos fundamentos de um parecer ou informação que lhe serve de base, pelo que manifestamente improcederia tal fundamento em sede de acção principal de impugnação do acto aqui em causa.(…)”
Confrontando as alegações realizadas pelo Recorrente- no que se refere à falta de fundamentação do despacho punitivo- com o decidido na Instância a quo, é mister concluir que nada há a censurar ao julgado. E por três simples razões.
Primo, porque a alegação do Recorrente, como se consignou já em momento supra, assume um carácter meramente conclusivo.
Secundo, porque o que dispõe o n.º 1 do art.º 153.º do CPA é que “a fundamentação deve ser expressa, através de sucinta exposição dos fundamentos de facto e de direito da decisão, podendo consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas, que constituem, neste caso, parte integrante do respetivo ato.” (sublinhado nosso)
Ou seja, é o próprio normativo que o Recorrente invoca que, expressamente, prevê a existência de fundamentação per relationem, ou por remissão.
Diga-se, aliás, que a fundamentação remissiva, para além de constituir parte integrante do próprio ato administrativo- ainda que não seja contextual-, não provoca qualquer conflito na doutrina, sendo a mesma admitida de modo unânime e pacífico, incluindo no que toca aos processos de natureza sancionatória. Veja-se, neste sentido, e entre outros, MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA, PEDRO COSTA GONÇALVES e J. PACHECO DE AMORIM (Código do Procedimento Administrativo, Comentado, 2.ª edição, 3.ª reimpressão, maio, 2001, Almedina, pp. 603 e 604, ressaltando-se que, muito embora a exposição verse sobre o anterior art.º 125.º do CPA, a redação do normativo mantém-se intocada na versão atual do CPA), ELIANA DE ALMEIDA PINTO, ISABEL SILVA e JORGE COSTA (Código do Procedimento Administrativo, Comentado, maio, 2018, Quid Juris?, p. 370) e DIOGO FREITAS DO AMARAL (Curso de Direito Administrativo, Volume II, 4.ª edição, setembro, 2018, Almedina, p. 325).
A citada unanimidade também sucede na Jurisprudência administrativa, destacando- exemplificativamente- os Acórdãos prolatados em 20/05/2013, no processo 06471/10, pelo Tribunal Central Administrativo Sul e em 10/03/1999, no Recurso 44302, pelo Supremo Tribunal Administrativo.
Por último, tertio, porque a Lei n.º 7/90, de 20 de fevereiro, que aprovou o Regulamento Disciplinar da Policia de Segurança Pública (na versão aplicável aos autos) não contém qualquer normativo que contrarie a aplicação do disposto no art.º 153.º, n.º 1 do CPA. Pelo contrário. O que deriva, na verdade, do sobredito Regulamento é que, após a apresentação da defesa por banda do arguido, há logo lugar à elaboração do relatório final do instrutor, que deve conter, entre o mais, a fundamentação e a proposta de aplicação de uma pena concreta (cfr. art.º 87.º).
E, após tal relatório, há lugar à prolação da decisão punitiva, nos termos do disposto no art.º 88.º, sendo certo que o n.º 2 deste preceito apenas exige que “a entidade que decidir o processo fundamentará a decisão quando discordar da proposta constante do relatório do instrutor”. Ora, tal exigência conduz à conclusão, numa interpretação a contrario, que no caso de não ocorrer discordância, não é necessário fundamentação acrescida da decisão punitiva por banda do órgão decisor.
E o art.º 122.º, n.º 3 do mesmo Regulamento, que exige a intervenção do Conselho de Deontologia e Disciplina em momento prévio ao da emissão do ato punitivo no caso de o órgão decisor ser o Ministro da Administração Interna, também não adiciona qualquer exigência suplementar de fundamentação na decisão do Ministro.
Por conseguinte, inexiste qualquer impedimento de utilização de fundamentação por remissão no procedimento disciplinar, realçando-se ainda a circunstância do CPA, por constituir lei procedimental geral, poder ser aplicado a qualquer procedimento especial, contanto que não contrarie nenhuma regulação especial.
Sendo assim, improcede o alegado pelo Recorrente nas conclusões d), e), f), g), h), i), j), l) e m) do recurso.

O Recorrente assaca à decisão recorrida erro de julgamento por violação do seu direito de audiência prévia. Argumenta o Recorrente, nas conclusões k), n), o) e p) do recurso, que deveria ter sido notificado “do projeto de decisão para exercer o exercício à audiência dos interessados”, em conformidade com o art.º 121.º do CPA.
A decisão recorrida, no tocante a esta questão, decidiu do modo que se transcreve:
“(…) Por outro lado, relativamente à invocada falta de audiência prévia (que o Requerente não especifica mas entende-se do seu contexto que se refere à audiência antes da decisão final), também falece de forma manifesta tal fundamento, porquanto decorre da lei e é igualmente jurisprudência pacífica que, no âmbito do procedimento disciplinar, a "audiência dos interessados" é regida por regras próprias (nos respectivos estatutos disciplinares) e que, por outro lado, esse direito de audiência e participação nas decisões, neste tipo de procedimentos, se realiza e se consubstancia com a notificação ao arguido da acusação e da defesa que, em decorrência, apresente (cf., a título exemplificativo, acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 19.12.2014, no processo n.° 1726/07.3BEPRT, disponível em www.gde.mj.pt).
Ora, decorre de forma cristalina dos documentos juntos com o requerimento inicial, maxime da decisão impugnada, do parecer que lhe serve de base e do relatório final do instrutor do procedimento disciplinar, que a acusação foi notificada ao Requerente em 14.05.2018 e este apresentou a sua defesa. Nem o Requerente põe esta factualidade em causa, apenas considerando que ainda teria direito a ser novamente ouvido em sede de audiência prévia antes de proferida a decisão final de aplicação da pena disciplinar, o que, como se viu, não procede.(…)”
Escrutinado este segmento fundamentador da decisão recursada, somos forçados a concluir pelo total acerto do mesmo.
É que, como é consabido, nos procedimentos administrativos de natureza sancionatória a audiência dos interessados assume uma vertente completamente diversa daquela que é acolhida no art.ºs 121.º do CPA. Realmente, nos procedimentos de cariz sancionatório, como é o caso do disciplinar, a audiência assume uma dimensão garantística fundamental, que é a de concretizar o direito de defesa do arguido, em consonância com o prescrito no art.º 269.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa.
Quer isto significar que, nos procedimentos sancionatórios, é organizada toda uma fase procedimental destinada a ouvir o arguido, permitindo-lhe apresentar, por escrito, toda a sua defesa, incluindo requerer as diligências instrutórias, por forma a reverter a decisão punitiva que se encontra já, e de certa forma, projetada na acusação elaborada pelo instrutor do procedimento disciplinar.
Daí que, no procedimento disciplinar, porque assume cariz sancionatório, a audiência do interessado corresponde simetricamente à fase da apresentação da defesa pelo arguido.
Diga-se, aliás, que esta é a visão propugnada pela doutrina, citando-se, ilustrativamente, PEDRO MACHETE (A Audiência dos Interessados no Procedimento Administrativo, Lisboa, 1996, Universidade Católica Editora, pp. 300 a 313) e PAULO OTERO (Direito do Procedimento Administrativo, Volume I, 1.ª edição, reimpressão, agosto, 2016, Almedina, pp. 571 a 575).
No que respeita ao procedimento disciplinar agora em discussão, diga-se que, em bom rigor, as alegações do Recorrente não permitem percecionar o motivo pelo qual o mesmo sufraga a violação do seu direito de defesa, até porque, o que emerge do documento n.º 1 junto pelo próprio Recorrente com o requerimento inicial é que o mesmo foi notificado da acusação elaborada pelo instrutor, tendo apresentado defesa escrita e requerido a audição de testemunhas, o que foi realizado.
Sendo assim, e ponderando o disposto nos art.ºs 83.º a 86.º do Regulamento Disciplinar da Polícia de Segurança Pública, aprovado pela já mencionada Lei n.º 7/90, de 20 de fevereiro, não subsiste qualquer razão fáctico-jurídica que possibilite a conclusão de que o direito de defesa do Recorrente foi coartado.
Por conseguinte, nada mais tendo o Recorrente alegado e concretiza no que tange a esta questão, nada mais há que indagar quanto à imputação respeitante à violação do direito de defesa.
Destarte, atento o exposto, impera concluir que o recurso do Recorrente fracassa no que se refere à argumentação inserida nas conclusões k), n), o) e p) do seu recurso.

Derradeiramente, esclareça-se o Recorrente que, os requisitos de que depende a concessão da medida cautelar peticionada são de verificação cumulativa, não sucedendo, quanto a esta matéria, qualquer dissidência na Jurisprudência, antes constatando-se a unanimidade na caracterização das condições de procedência das medidas cautelares requeridas como cumulativas.
No caso em discussão, fracassa, como se viu, a verificação do requisito relativo ao fumus boni juris. O que implica, mesmo na hipótese de prosseguimento dos autos, o irremediável insucesso da presente providência cautelar. Realmente, a natureza cumulativa dos requisitos de decretamento da providência cautelar arrasta a inutilidade da apreciação dos remanescentes requisitos, no caso do apuramento prévio da inverificação de algum deles. Pelo que, concluindo-se pela carência de um dos requisitos imprescindíveis ao decretamento, não se impõe o prosseguimento da decisão no sentido de apreciar os restantes, visto que tal labor configura, em bom rigor, um ato inútil.


Desta feita, apresenta-se inequívoco que o despacho a quo não padece de nulidade, nem dos erros de julgamento que lhe são assacados, antes revelando um acerto insuscetível de ser abalado pelo vertente recurso jurisdicional.

Pelo que, em conformidade, terá de negar-se provimento ao presente recurso e confirmar-se o despacho recorrido.


III- DECISÃO
Pelo exposto, acordam, em Conferência, os Juízes da Secção de Contencioso Administrativo deste Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida.


Custas a cargo do Recorrente, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário de que possa, eventualmente, gozar.


Lisboa, 14 de maio de 2020,

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Paula Cristina Oliveira Lopes de Ferreirinha Loureiro

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Jorge Pelicano

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Celestina Castanheira