Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:11314/14
Secção:CA - 2.º JUÍZO
Data do Acordão:08/06/2014
Relator:CRISTINA DOS SANTOS
Descritores:SUSPENSÃO DE FUNÇÕES E PERDA DE 1/6 DO VENCIMENTO - ARTº 38º Nº 1 RD/PSP
FUMUS NON MALUS IURIS – ARTº 120º Nº 1 B) CPTA
Sumário:1. A razão de ser da medida administrativa de suspensão de funções e perda de 1/6 do vencimento prescritas do artº 38º nº 1 do RD/PSP em razão de pronúncia transitada por crime punível com pena de prisão superior a 3 anos, reside em consi­derações de ordem funcional, v.g. a defesa do prestígio dos serviços públicos, não implicando qualquer antecipação de aplicação de pena nem um imediato juízo de censura, pelo que não se mostra violado o princípio da presunção de inocência ex vi artº 32º nº 2 CRP.

2. No caso do artº 38º nº 1 do RD/PSP, o legislador fixou o limite temporal da suspensão de funções e perda de 1/6 do vencimento pelas baias da pronúncia transitada e sentença absolutória ou trânsito em julgado da sentença condenatória, deste modo respeitando, em abstracto, o princípio da proporcionalidade, pelo que não se mostra violado o regime do artº 30º nº 4 CRP.

3. Nas providências conservatórias em que esteja em causa a paralisação dos efeitos de uma actuação administrativa, o critério de apreciação da necessidade da tutela cautelar há-de assentar num juízo sumário de procedibilidade da pretensão, cumprindo aferir o chamado fumus non malus iuris da pretensão do requerente, isto é, que não seja evidente a improcedência da pretensão de fundo formulada no processo principal – cfr. artº 120º nº 1 b) CPTA

4. O decretamento da providência requerida depende da verificação cumulativa dos três requisitos legais gerais enunciados no artº 120º CPTA, pelo que o decaimento em sede de formulação negativa da aparência do bom direito alegado (fumus non malus iuris) importa a improcedência da causa.


A Relatora,
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:O Ministério da Administração Interna/Direcção Nacional da PSP, entidades com os sinais nos autos, inconformadas com a sentença proferida pelo Mmo. Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra dela vêm recorrer, concluindo como segue:

1. O Tribunal a quo decretou a providência cautelar de suspensão de eficácia do acto que determina a suspensão de funções e desarmamento de elemento policial, no âmbito do processo disciplinar n.9 2011LSB00290DIS.
2. O ato administrativo suspenso pelo tribunal a quo foi praticado ao abrigo do exercício da actividade administrativa total mente vinculada à lei.
3. De facto, o 1° Juízo do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa informou a PSP de decisão instrutória transitada em julgado, a qual pronunciou o ora Recorrido da prática de crimes com moldura penal superior a três anos.
4. Perante este pressuposto de facto, a Administração limitou-se a aplicar a lei, a qual determina no n.9 1 do artigo 38.9 do Regulamento Disciplinar da PSP, aprovado pela Lei n.9 7/90, de 20 de fevereiro (RD/PSP), que «O despacho de pronúncia ou equivalente com trânsito em julgado em processo penal por infracção a que corresponda pena de prisão superior a três anos determina a suspensão de funções e a perda de um sexto do vencimento base até à decisão final absolutória, ainda que não transitada em julgado, ou até à decisão final condenatória.» (sublinhado e negrito nosso).
5. No mesmo ato foi também determinado o desarmamento do ora Recorrido como medida cautelar, nos termos da ai. a) do nº 1 do artigo 74 do RD/PSP.
6. Em 17 de fevereiro de 2014, o ora Recorrido requer a decretação de providência cautelar de suspensão de eficácia do ato administrativo, alegando, no mais, que o artigo 38.° do RD/PSP é inconstitucional por violar os princípios da adequação, da proporcionalidade e da presunção de inocência.
7. Perante a providência requerida, a qual é conservatória, o Tribunal a quo, na fundamentação da sua decisão analisa se estão verificados os pressupostos para decretação da mesma, decidindo, e bem, não estar verificado o fumus bonis iuris de máxima intensidade, previsto na ai. a) do n.9 1 do artigo 120.9 do CPTA, o qual seria susceptível de permitir, respeitados que fossem os princípios do equilíbrio e da necessidade, previstos nos nºs 2 e 3 do artigo 120º9 do CPTA, o decretamento da providência requerida.
8. Já quanto ao fumus non malus iuris, ínsito na segunda parte da ai. b) do nº 1 do artigo 120º do CPTA, o tribunal a quo entende que não é manifesta a falta de fundamento da pretensão a formular no processo principal, na medida em que, e cita-se:"Já quanto ao fumus non malus iuris, à partida e sem prejuízo de posição eventualmente diversa, em sede da acção principal, considera haver alguma probabilidade (algum fumus boni iuris) de se reconhecer a sua ofensa, pelo artigo 38-1, do ED/PSP/90, na medida em que determina um efeito automático, tirado da circunstância de ser proferida decisão de pronúncia por crime punível com pena de prisão superior a 3 anos."
9. Verifica-se que, o juiz do tribunal a quo, ao invés de apreciar e decidir a questão da constitucionalidade da norma constante do nº 1 do artigo 38º do RD/PSP, ainda que de modo perfunctório, refere, apenas, que: "Porém, não se exclui que exista alguma possibilidade de a pretensão da desproporcionalidade vir a ser atendida."
10. Ora, em sede de fiscalização concreta e difusa da constitucionalidade de normas, cabe aos tribunais desaplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados - artigo 204.e da CRP, ainda que no âmbito dos processos cautelares, tal juízo sobre a inconstitucionalidade de normas seja um juízo perfunctório, dependente da decisão a proferir no processo principal.
11. Caso haja esse juízo de inconstitucionalidade, poderá ser decretada determinada providência cautelar que vise suspender a eficácia de ato administrativo praticado ao abrigo de norma ordinária que o tribunal considere infringir norma ou princípio plasmado na CRP.
12. Ademais, pode-se ainda dizer que o tribunal, onde tramite o processo cautelar, perante a convicção de que determinada norma, em que se fundamentou a prática do ato administrativo, é inconstitucional, deverá, nesses casos, decretar a providência nos termos da ai. a) do nº 1 do artigo 120º do CPTA e não com fundamento na segunda parte da ai. b) do mesmo dipositivo legal, uma vez que a desaplicação da norma ordinária torna, necessariamente, o ato administrativo manifestamente ilegal.
13. Assim sendo, não tendo o tribunal a quo decidido que a norma vertida no nº 1 do artigo 38º do RD/PSP viola regra ou princípio consignado na CRP (não basta considerar "existir alguma possibilidade”), não poderia a decisão recorrida alicerçar-se na violação do princípio constitucional da proporcionalidade para verificar preenchido o critério "fumus negativo" previsto na segunda parte da ai. b) do nº 1 do artigo 120º do CPTA.
14. Nesses termos, sempre se deveria considerar manifesta a falta de fundamento da pretensão a formular no processo principal, na medida em que o ato administrativo que suspendeu o Recorrido de funções foi praticado ao abrigo de norma totalmente vinculativa para a Administração, não fornecendo a lei qualquer margem de discricionariedade na aplicação da mesma.
15. A aplicação do nº 1 do artigo 38º do RD/PSP não carece de qualquer juízo valorativo a exercer por parte da Administração, pelo contrário, a decisão pela suspensão de funções é determinada por pressupostos totalmente vinculados à lei, não cabendo, verificados que estejam os pressupostos de facto previstos na lei, qualquer margem de discricionariedade administrativa.
16. De qualquer modo, o problema da constitucionalidade de norma semelhante ao artigo 38º do RD/PSP já foi apreciada pelo Tribunal Constitucional, o qual concluiu por um juízo de não inconstitucionalidade - cfr. Ac. do Tribunal Constitucional nº 439/87, disponível em www.tribunalconstitucional.pt .
17. Assim, e estando em causa uma providência conservatória, ao não se verificar o critério da ai. a) do nº 1 do artigo 120º do CPTA e não sendo suficiente o critério previsto na primeira parte da ai. b) do mesmo artigo (periculum in mora), na medida em que o mesmo é cumulativo com o fumus non malus iurís, previsto na segunda parte da norma, o qual, como supra se demonstrou, não se verifica, a providência cautelar não deveria ter sido decretada.
18. Nessa senda, deve merecer provimento o recurso ora interposto pelo Recorrente, o qual deve ser julgado procedente, revogando-se a decisão proferida pelo tribunal a quo e absolvendo-se o Recorrente do pedido, assim se fazendo a tão almejada Justiça.

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O Recorrido contra-alegou, concluindo como segue:

1. A douta sentença não decretou a providência com base na ai. a) do nº l do artº 120º do CPTA, ou seja, com fundamento na existência do fumus boni iuris.
2. Fundou-a com base na ai. b) do nº l do artº 120º do CPTA, ou seja, na aparência de que não há o mau Direito, isto é, considerou verificado o fumus non malus iuris.
3. Ao contrário do que alega o Réu a Mma. Juíza a quo não considerou inconstitucional o nºl do artº 38º do RD/PSP nem formulou um mero juízo perfunctório acerca da norma.
4. Estribou-se no pressuposto de que não é de todo improvável que na ação principal venha a ser considerado que a norma viola princípios consagrados na CRP.
5. Ocorre que este mesmo Tribunal Central Administrativo já tomou posição sobre esta mesmíssima matéria no douto Acórdão que foi prolatado no processo 10745/13 que correu os seus termos no 29 Juízo, datado de 06/02/2014, e disponível em dgsi.pt.

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Com dispensa de vistos substituídos pela entrega das competentes cópias aos Exmos. Senhores Desembargadores Adjuntos, vem para decisão em conferência.

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Pelo Senhor Juiz foram julgados provados os seguintes factos:

1. O Requerente/Autor (A), ... é o Agente Principal da PSP M/... , tendo entrado para a PSP em Julho de 1990 e está adstrito à Esquadra de Investigação Criminal de Cascais do Comando Metropolitano da Polícia de Lisboa - consta do processo administrativo e facto admitido.
2. Desde a sua entrada para a PSP, o Autor frequentou vários cursos de formação e teve as seguintes avaliações: 2003/2004 - 9,000 - Muito Bom 2004 - 9,000 - Muito Bom 2005-9,000- Muito Bom 2006 - 8,330 – Bom 2007 - 9,000 - Muito Bom 2008 - 8,500 - Muito Bom 2009 - 8,500 - Muito Bom 2010 - 8,160 - Bom - doe. n° l junto com a p.i.
3. Em 2010, foi instaurado o processo-crime NUIPC 56/10.8 SLLSB, contra vários suspeitos entre os quais o ora A.
4. O Requerente foi constituído arguido nesse inquérito crime NUIPC 56/10.8 SLLSB, tendo sido acusado e pronunciado, como co-autor material, instigador e autor material dos crimes que desses autos constam e que se encontram, discriminadamente, na Decisão Instrutória de 30 de Abril 2013, de fls. 375 a 386 v° do processo administrativo e que aqui se dá como reproduzida.
5. Comunicado à PSP, foi, por Despacho de 20/05/2011 instaurado o processo disciplinar NUP 2011LSB00290DIS, que teve início em 23/05/2011, que culminou com o Despacho do Director Nacional da PSP de 17/12/2013, do teor seguinte:
Processo NUP 2011LSB00290DIS Assunto: Suspensão de funções.
DESPACHO
l - O Agente Principal M/... , ... , do CM de Lisboa, foi pronunciado como co-autor de um crime de tráfico de estupefacientes, como instigador de um crime de falsificação de documento, como co-autor material de um crime de exercício ilícito de segurança privada, como autor de seis crimes de violação do dever de sigilo, como autor de um crime de abuso de poder, como co-autor material de um crime de extorsão, como co-autor material de um crime de coacção, como autor material de um crime de extorsão qualificada, como autor material de um crime de peculato de uso, como co-autor de um crime de exercício ilícito da actividade de segurança privada, como autor material de um crime de detenção de arma proibida e como autor material de um crime de associação criminosa, crimes cuja moldura penal corresponde a pena superior a 3 anos de prisão.
2 - O despacho de pronúncia transitou em julgado, em 12-6-2013.
3 - Nos termos do n° l do artigo 38° do RD/PSP, o despacho de pronúncia ou equivalente com trânsito em julgado em processo penal por infracção a que corresponda pena de prisão superior a três anos determina a suspensão do exercício de funções e a perda de 1/6 do vencimento base até à decisão final absolutória, ainda que não transitada em julgado, ou até à decisão final condenatória.
4 - Assim, nos termos do n° l do artigo 38° do RD/PSP, determino a suspensão de funções do Agente Principal M/... , ... , do CM de Lisboa, que se manterá até à decisão final absolutória, ainda que não transitada em julgado, ou até à decisão final condenatória (artigo 38°, n° l, do RD/PSP, aprovado pela Lei n° 7/90, de 20 de Fevereiro), devendo o Agente Principal fazer a sua apresentação no dia imediato a qualquer das decisões, sem necessidade de notificação para o efeito.
5 - Notifique.
6 - Informe o DRH.
Lisboa, 17 de Dezembro de 2013
O Director Nacional Assinatura ilegível ...
Superintendente" - Despacho impugnado, fls. 17/18 dos autos
6. Entretanto, por Despacho de 25 de Maio 2011, o Comandante em substituição do Comando Metropolitano de Polícia de Lisboa, tinha aplicado a medida cautelar de desarmamento ao Autor, "nos termos do n° l, ai a), n° 2 e n° 3, do art° 74° do RDPSP, aprovado pela Lei n° 7/90, de 20 de Fevereiro, até decisão final do processo NUP 2011LSB00290DIS"- cf. ofício do chefe do Núcleo de Deontologia e Disciplina ao chefe do Núcleo de Recursos Humanos, fls. 25 do p.a.









DO DIREITO



1. acto vinculado - artº 38º/1 RD/PSP;

Está em causa o segmento do despacho proferido pelo Director Nacional da PSP de 17/12/2013 que, em via de aplicação do disposto no artº 38º nº 1 do RD/PSP, aprovado pela Lei 7/90, de 20/Fev., determinou “… a suspensão de funções do Agente Principal M/... , ... , do CM de Lisboa, que se manterá até à decisão final absolutória, ainda que não transitada em julgado, ou até à decisão final condenatória …”.
Sob a epígrafe de “Efeitos da Pronúncia”, o texto do normativo em causa é o seguinte:
“- artº 38º nº 1 – O despacho de pronúncia ou equivalente com trânsito em julgado em processo penal por infracção a que corresponda pena de prisão superior a três anos determina a suspensão de funções e a perda de um sexto do vencimento base até à decisão final absolutória, ainda que não transitada em julgado, ou até à decisão final condenatória.”
Sob esta problemática da relação entre o princípio da presunção de inocência vazado no artº 32º nº 2 CRP e dos limites de conteúdo das sanções criminais, artº 30º nº 4 CRP, que diz que “Nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos.”
Cabe desde já deixar muito claro que, do ponto de vista técnico-jurídico, a suspensão de funções e perda de 1/6 do vencimento prescritas do artº 38º nº 1 do RD/PSP não configura a cominação de uma pena acessória, antes assumem a natureza de efeito sancionatório consequente da pena abstracta cominada ao tipo de ilícito substanciado na pronúncia penal, o que significa que, enquanto efeito sancionatório, acessório e legalmente imposto, tem o seu campo de eficácia restrito ao âmbito disciplinar.

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A propósito da limitação consagrada no artº 30º nº 4 CRP, específicamente em sede de perda de direitos profissionais por despacho de pronúncia transitado, que é o que nos interessa ao caso dos autos, diz-nos a doutrina constitucional especializada “(..) que não é pelo facto de o legislador associar a um crime (ou a uma pena) de alguma gravidade um “efeito” que atinja esses direitos, que fique violado um qualquer princípio constitucional, desde que seja sempre respeitado o princípio da proporcionalidade, tanto em abstracto, como em concreto, p. ex., através da determinação. Por moldura legal, do tempo de privação do direito ou, então, através da previsão de uma cláusula de salvaguarda por “manifesta desproporção”. (..)” (1)
No caso do artº 38º nº 1 do RD/PSP, o legislador fixou o limite temporal da suspensão de funções e perda de 1/6 do vencimento pelas baias da pronúncia transitada e sentença absolutória ou trânsito em julgado da sentença condenatória.
Pelo que, no que respeita ao efeito automático no domínio disciplinar, consequente da pena de prisão superior a 3 anos inerente à tipicidade penal por pronúncia transitada, a formulação do artº 38º nº 1 RD/PSP respeita o princípio da proporcionalidade.
Do ponto de vista da sua aplicação em concreto, o princípio da proporcionalidade (ou da proibição do excesso) apenas é chamado a intervir no domínio da actuação administrativa ao abrigo da margem de livre decisão, na medida em que constitui um limite interno da discricionariedade administrativa – vd. artºs. 5º nº 2 e 3º CPA. (2)
Pelo que vem de ser dito, não acompanhamos o discurso jurídico fundamentador em sede de sentença, no segmento constante de fls. 238 dos autos em que o Tribunal a quo analisa o despacho proferido pelo Director Nacional da PSP de 17/12/2013 do ponto de vista do princípio da proporcionalidade, o que não tem fundamento legal exactamente porque, nesta vertente, não de trata de exercício de poderes discricionários mas da aplicação de um efeito automático da pronúncia por crime punível com pena de prisão superior a 3 anos.
Como diz a Entidade Recorrente no item 15 das conclusões de recurso, “A aplicação do nº 1 do artigo 38º do RD/PSP não carece de qualquer juízo valorativo a exercer por parte da Administração, pelo contrário, a decisão pela suspensão de funções é determinada por pressupostos totalmente vinculados à lei …”.

2. princípios da proporcionalidade e presunção de inocência - artºs. 30º nº 4 e 32º nº 2 CRP;

De acordo com este enquadramento jurídico, a suspensão de funções e perda de 1/6 do vencimento prescritas do artº 38º nº 1 do RD/PSP tem de ser analisada na sua conformidade constitucional na medida em que se trata de um efeito automático da pronúncia por crime punível com pena de prisão superior a 3 anos – que já foi o limite da competência de julgamento em tribunal criminal colectivo e não por juiz singular nos então denominados tribunais correccionais - constituindo, assim, uma aplicação vinculada uma vez verificados os pressupostos de aplicação.
Como é o caso, basta ver a moldura penal abstracta do elenco de crimes constantes do despacho de pronúncia dos autos de inquérito nº 56/10 transitado em julgado, em 12-6-2013, a que se refere o probatório nos itens 3 a 5.
Todavia não se verifica nenhuma desconformidade constitucional entre o artº 38º nº 1 do RD/PSP e os artºs. 30º nº 4 ou 32º nº 2 da CRP e, para tal afirmarmos louvamo-nos no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 439/87 de 4.NOV.1987 (Conselheiro Mário de Brito), tirado no caso paralelo do artº 6º do DL 24/84 de 16.01, Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central , Regional e Local, aquando da suspensão de funções de médica do Hospital de Santa Maria com fundamento na pronunciada transitada, em autos de querela, por crimes de roubo, furto qualificado, associação de malfeitores e detenção de armas e explosivos, em que foi invocada a inconstitucionalidade do mencionado artº 6º do DL 24/84 por violação dos artºs. 30º nº 4 e 32º nº 2 CRP.

Lê-se naquele aresto, na parte que ora importa, o seguinte:

“(..)No sentido da não inconstitucionalidade da norma, à luz da pre­sunção de inocência do arguido, escreveu, porém, o Dr. ... (actual representante do Ministério Público neste Tribunal), no comen­tário que fez ao Acórdão do Tribunal Constitucional nº 16/84, de 15 de Fevereiro, e ao Acórdão da Relação de Lisboa de 20 de Junho de 1983 (na Revista do Ministério Público, ano 7º, nº 25, Janeiro - Março de 1986, pp. 111, e nº 26, Abril - Junho de 1986, pp. 161):
“Já vimos que a razão de ser desta medida reside em consi­derações de ordem funcional, na defesa do prestígio dos serviços públicos, não implicando qualquer antecipação de aplicação de pena nem um imediato juízo de censura. Na verdade, não se trata de antecipação, ou aplicação provisória, da pena de demissão, porquanto durante a suspensão ao funcionário continua a ser abonado o vencimento da categoria, apenas lhe sendo retirado o vencimento de exercício.”
Qual a posição preferível?
Uma das garantias do processo criminal é, efectivamente, a presunção de inocência do arguido, consagrada no nº 2 do artigo 32º da Cons­tituição (na redacção resultante da revisão operada pela Lei Constitucional nº 1/82, de 30 de Setembro):
Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em jul­gado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa.
Mas essa garantia não torna ilegítima toda e qualquer suspensão de funções do arguido, que seja funcionário ou agente, aplicada antes do trânsito em julgado da sentença de condenação.
A própria prisão pre­ventiva é admitida pela Constituição, «pelo tempo e nas condições que a lei determinar», no caso de «flagrante delito» ou «por fortes indícios de prática de crime doloso a que corresponda pena maior» [artigo 27º, nºs 2 e 3, alínea a)].
A suspensão só será constitucionalmente ilegítima quando viole o princípio da proporcionalidade, «o qual - como se lê no citado acórdão nº 282/86 - encontra afloramento no artigo 18º, nº 2, da CRP e sempre há-de reputar-se como componente essencial do princípio do Estado de direito democrático (cf. o artigo 2º da CRP)».
Ora, fundando-se a suspensão de funções cominada no nº 1 do artigo 6º do Estatuto Disciplinar - que, como se sabe, foi aprovado ao abrigo da autorização concedida pela Lei nº 10/83, de 13 de Agosto - na «defesa do prestígio dos serviços» - como tem sido entendido uniformemente -, sendo ela consequência de «despacho de pronúncia em processo de querela com trânsito em julgado» e determinando tal suspensão apenas a sus­pensão do «vencimento de exercício» - que é constituído por um sexto do vencimento total (Decreto nº 19 478, de 18 de Março de 1931, ar­tigo 16º, e Decreto-Lei nº 26 115, de 23 de Novembro de 1935, ar­tigo 12º, § 1º) -, não se afigura que com ela saia violado o princípio da proporcionalidade.
Também se não mostra, pois, violado o nº 2 do artigo 32º da Constituição.
3 - Pelo exposto, dá-se provimento ao recurso e, em consequência, ordena-se que os autos sejam remetidos ao tribunal recorrido, a fim de que este reforme a decisão em conformidade com o julgamento sobre a questão da inconstitucionalidade.
Lisboa, 4 de Novembro de 1987. - ... - ... - ... - ... - ... . (..)”.

*
Aplicando a doutrine e jurisprudência citadas ao caso dos autos conclui-se que não padecem de inconstitucionalidade por violação dos princípios constitucionais vazados nos artºs. 40º nº 4 e 32º nº 2 CRP a suspensão de funções e perda de 1/6 do vencimento prescritas do artº 38º nº 1 do RD/PSP, ordenadas em despacho proferido pelo Director Nacional da PSP de 17/12/2013.
Cabe analisar, de seguida, quais as consequências jurídicas no domínio do pressuposto cautelar da aparência do bom direito na formulação do fumus non malus iuris – artº 120º nº 1 b) CPTA, segmento da sentença sob recurso que também não acompanhamos, pelas razões que seguem.

3. summario cognicio - fumus boni iuris em matéria administrativa;

Pela circunstância de as providências cautelares se limitarem a fornecer uma composição provisória que se destina a ser substituída por aquela que resultar da acção principal, relativamente à qual são dependentes em termos de acessoriedade visando garantir a sua utilidade prática, tal implica, primeiro, a distinção de objectos entre o meio cautelar e a acção principal que lhe corresponda, posto que não há identidade de pedidos nem de causas de pedir, na medida em que “(..) a dependência das providências cautelares do meio principal, pela própria natureza e relativa autonomia das primeiras, não pode equivaler a uma coincidência do direito que se pretende tutelar nem à alegação do mesmo circunstancialismo fáctico integrador da causa de pedir de ambos os meios. Mas implica, pelo menos, que o facto que serve de fundamento ao requerimento da adopção de uma providência cautelar, integra a causa de pedir da acção principal (..)”. (3)
É em razão da provisoriedade e instrumentalidade da tutela cautelar que no domínio deste meio adjectivo a lei se limita a exigir a prova sumária da situação de facto (summario cognicio) e a suficiência da mera justificação do direito alegado (fumus boni iuris), circunstâncias que têm por consequência a insusceptibilidade de a decisão proferida em processo cautelar produzir qualquer efeito de caso julgado na acção principal, ou seja, não tem efeitos de caso julgado material erga omnes - cfr. artº 383º nº 4 CPC. (4)
A acessoriedade para além da limitação de eficácia temporal da sentença cautelar subordinada à prolação da sentença no processo principal, tem um segundo vector consequencial que é a sumariedade de cognição efectuada em sede de apreciação dos requisitos de concessão da providência.
O tribunal limita-se a exercer o que se designa por summario cognitio, no sentido de que a apreciação da factualidade carreada para os autos e para efeitos decisórios sobre os requisitos da aparência da existência de um direito e provável ilegalidade da actuação administrativa (fumus boni iuris) faz-se por recurso a um juízo de verosimilhança ou mera previsibilidade e razoabilidade dos indícios, sendo que a apreciação dos perigos de retardamento ou infrutuosidade (periculum in mora) se faz em moldes mais exigentes de “fundado receio” diz a lei, isto é, de probabilidade mais forte e convincente da gravidade ou difícil reparabilidade dos danos, salvo se já se tiverem verificado na prática e se pretenda sustar a continuidade de superveniência de novos dados, tal como no tocante à ponderação de interesses contrapostos em presença.
Em sede cautelar administrativa “(..) a apreciação do fumus boni iuris requer não apenas a emissão de um juízo sobre a aparência da existência de um direito ou interesse do particular a merecer tutela, como também da probabilidade da ilegalidade da actuação lesiva do mesmo (..)” (5)
O que significa que a apreciação do fumus boni iuris se estende à aparência de ilegalidade da actuação administrativa alegada pela parte interessada no decretamento da providência como lesiva de um direito que lhe assiste.
Acresce, ainda, que o regime da summaria cognicio, tanto em sede cível como administrativa – cfr. artºs. 303º nº 1 g) CPTA e 384º nº 1 CPC – reflecte-se no domínio da prova, isto é, no “(..) grau de prova que é suficiente para a demonstração da situação jurídica que se pretende acautelar ou tutelar provisoriamente.
Uma prova stricto sensu (ou seja, a convicção do tribunal sobre a realidade dessa situação) não seria compatível com a celeridade própria das providências cautelares e, além disso, repetiria a actividade e a apreciação que, por melhor se coadunarem com a composição definitiva da acção principal, devem ser reservadas para esta última.
É por isso que as providências cautelares exigem apenas a prova sumária do direito ameaçado, ou seja, a demonstração da probabilidade séria da existência do direito alegado (..) bem como do receio da lesão (..). As providências só requerem, quanto ao grau de prova, uma mera justificação, embora a repartição do ónus de prova entre o requerido e o requerente observe as regras gerais. (..)” (6)

4. fumus non malus iuris – artº 120º nº 1 b) CPTA; despacho de pronúncia, artº 308º nº 1 CPP;

A providência requerida foi qualificada como conservatória o que significa que, de acordo com o disposto no artº 120º nº 1 b) CPTA, o critério de apreciação da necessidade da tutela cautelar há-de assentar num juízo sumário de procedibilidade da pretensão, isto porque “(..) a par da urgência no decretamento da providência, justificada pelo periculum in mora, … há que aferir: - estando em causa a paralisação dos efeitos de uma actuação administrativa, o fumus non malus iuris da pretensão do requerente, ou seja, a não manifesta falta de fundamento desta; (..)” (7)
Como é sabido, nos termos do artº 120º nº 1 b) CPTA para dar como verosímil a formulação negativa da aparência do bom direito, ou fumus non malus iuris, basta que não seja evidente a improcedência da pretensão de fundo formulada no processo principal. (8)
No caso trazido a recurso nenhuma das citadas exigências jurídicas estão preenchidas.
Desde logo, o juízo de verosimilhança em sede de fumus non malus iuris não tem a mínima base probatória, desde logo, dada a insustentabilidade do juízo de inconstitucionalidade formulado em sede de sentença, nos termos de direito supra expostos.
Em segundo lugar, a automaticidade da suspensão de funções a agente da PSP arguido em processo penal por despacho de pronúncia transitado, além de se fundamentar na natureza jurídica da suficiência de indícios de cometimento em autoria de crime com moldura penal abstracta superior a 3 anos, tem por finalidade a “defesa do prestígio dos serviços públicos, não implicando qualquer antecipação de aplicação de pena nem um imediato juízo de censura”, conforme se afirma no citado Acórdão do Tribunal Constitucional tirado no procº nº 439/87 de 4.NOV.1987.
Ainda que não se tratasse de pronúncia plúrima de tipos de ilícito, basta a pronúncia por autoria de cometimento do crime de tráfico de droga em que o arguido é agente da PSP, para que se imponha ex lege a aplicação do mecanismo constante do artº 38º nº 1 do RD/PSP por razões exclusivamente centradas na defesa do prestígio da corporação investida em funções públicas de autoridade de prevenção criminal.
Acresce o fundamento adjectivo de emissão do despacho de pronúncia.
Como nos diz a doutrina da especialidade a propósito do artº 308º nº 3 CPP, “(..) o juiz só deve pronunciar o arguido quando pelos elementos de prova recolhidos nos autos forma a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que não o tenha cometido (..) A lei só admite a submissão a julgamento desde que da prova dos autos resulte uma probabilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força delas, uma pena ou medida de segurança (artº 283º nº 2 CPP); não impõe a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento final.
Não se basta a lei, porém, com um mero juízo subjectivo, mas antes exige um juízo objectivo fundamentado nas provas dos autos. (..)” (9)
Neste domínio do processo penal em curso e na medida em que no artigo 12 da petição cautelar a questão vem mencionada, cabe referir que a extinção da medida de coacção por despacho judicial de 09.12.2013 do 4º Juízo Criminal da Comarca de Cascais, se fundamentou em que “(..) Nos termos do artº 218º nº 1 do CPP, a medida de coacção de suspensão do exercício de funções, prevista no artº 199 do CPP, extingue-se quando, desde o início da sua execução, tiverem decorrido 0s prazos referidos no nº 1 do artº 215, elevados ao dobro, ou seja, in caso, 2 anos e 4 meses. Assim, tendo em conta a data de aplicação das medidas de suspensão do exercício de funções - 15.05.2011 – verifica-se que no dia 15.09.2013 as mesmas se extinguiram pelo decurso do seu prazo máximo de aplicação, o que se declara. (..)” – vd. fls. 391 do processo administrativo apenso.

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Na medida em que o decretamento da providência depende da verificação cumulativa dos três requisitos legais enunciados no artº 120º CPTA, o decaimento em sede de formulação negativa da aparência do bom direito alegado (fumus non malus iuris) importa a improcedência da causa, sendo que as considerações tecidas em sede de sentença acerca do artº 74º do ED/PSP – vd. fls. 238 a 240 dos autos - configuram claramente uma intervenção indevida do Tribunal no domínio da fiscalização do dever-ser de mérito do agir da actuação pública segundo parâmetros de oportunidade e conveniência, que não competem aos Tribunais, indo para além da fiscalização das vinculações legais e respectivos limites jurídicos impostos – vd. artºs. 201º nº 2 e 266º nºs. 1 e 2 CRP. (10)

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Pelo que vem dito procedem todas as questões trazidas a recurso nos itens 1 a 17 das conclusões.


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Termos em que acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul em julgar procedente o recurso e revogar a sentença proferida.

Custas a cargo do Recorrente.

Lisboa, 06.AGO.2014



(Cristina dos Santos) ……………………………………………………………………

(Ana Celeste Carvalho) …………………………………………………………………

(Benjamim Barbosa) ……………………………………………………………………



1- Damião da Cunha in Constituição Portuguesa Anotada, Jorge Miranda/Rui Medeiros, Tomo 1, 2ª ed./ 2010 Coimbra Editora, pág. 687.
2- Mário Esteves de Oliveira, Pedro Gonçalves, Pacheco de Amorim, CPA – Comentado, Almedina/1998, págs.103/104; Marcelo Rebelo de Sousa, André Salgado de Matos, Direito Administrativo Geral, Tomo I, 3ª ed. D.Quixote/2008, págs.214/215.
3- Ana Gouveia Martins, A tutela cautelar no contencioso administrativo, Almedina/2005, págs. 47/48
4- Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o novo processo civil, LEX/1997, págs. 250 e 569.
5- Ana Gouveia Martins, A tutela cautelar no contencioso administrativo – em especial nos procedimentos de formação dos contratos, Coimbra Editora/2005, pág.43 nota (40).
6- Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o novo processo civil, Lex/1997, págs.233/234.
7- Carla Amado Gomes, O regresso de Ulisses: um olhar sobre a reforma da justiça cautelar administrativa, CJA/39, pág. 9.
8- Mário Aroso de Almeida, Carlos Fernandes Cadilha, Comentário ao CPTA, Almedina/2005, pág. 609.
9- Germano Marques da Silva, Curso de processo penal, Vol. III, Verbo/1994, pág183.
10- Marcelo Rebelo de Sousa, André Salgado de Matos, Direito Administrativo Geral, Tomo I, 3ª ed. D.Quixote/2008, págs. 138, 185, 203.