Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:344/13.1BELLE
Secção:CT
Data do Acordão:06/24/2021
Relator:ISABEL FERNANDES
Descritores:IRS;
MAIS-VALIAS;
DIVÓRCIO;
VALOR;
RECTIFICAÇÃO DE ESCRITURA.
Sumário:I – Na construção do conceito de rendimento tributário o C.I.R.S. adopta a concepção de rendimento-acréscimo, segundo a qual a base de incidência deste tributo abrange todo o aumento do poder aquisitivo do contribuinte, incluindo nela as mais-valias e, de um modo geral, as receitas irregulares e ganhos fortuitos, os quais também devem ser considerados manifestações de capacidade contributiva.

II - A mais-valia deve definir-se, em princípio, pela diferença entre o valor de realização e o valor de aquisição, especialmente quando o facto gerador do imposto se descreve como uma alienação onerosa, assim estando sujeita ao princípio da realização.

Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes que compõem a 1ª Sub-Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul

I – RELATÓRIO

J..., deduziu impugnação judicial contra a liquidação de IRS do ano de 2011, emitida com o n.° 2012 500..., que apurou a quantia a pagar de € 23.521,02, e que considerou rendimentos de mais-valias resultantes de partilha por divórcio na proporção de 50% do valor atribuído ao imóvel na respetiva escritura pública.

O Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé, por decisão de 07 de março de 2016, julgou a impugnação improcedente.

Não concordando com a sentença, J... veio interpor recurso da mesma, tendo nas suas alegações formulado as seguintes conclusões:

«1. O ora recorrente impugnou judicialmente o ato de liquidação de IRS do ano de 2011, porquanto realizou uma escritura, mas não recebeu qualquer importância financeira, tendo realizado nova escritura, e corrigido a situação.

2. Tendo o douto tribunal “a quo” proferido o seguinte-despacho sentença que julgou improcedente a presente ação de impugnação judicial, mantendo-se na ordem jurídica o ato de liquidação de IRS do ano de 2011.

3. Andou mal o douto tribunal “ a quo” ao considerar que in casu está em causa um facto ocorrido em data muito posterior àquela em que a Administração Tributária emitiu a liquidação impugnada, e que por isso, não pode servir de parâmetro à aferição da legalidade do acto.

4. Ou seja, embora o tribunal “ a quo” até reconhece que o imposto foi apurado com base em fundamentos erróneos e o próprio acto de liquidação constitui uma injustiça grave e notória, o certo é que decide julgar improcedente a presente ação de impugnação judicial.

5. Optando, e mal em nosso entender, por manter na ordem jurídica um acto que não retrata fielmente a realidade.

6. Por outro lado, nem se pode dizer que tal erro é imputável a comportamento negligente do contribuinte, pois o mesmo tentou alertar a Autoridade Tributária por diversas vezes, porém sempre sem sucesso.

7. Motivo pelo qual andou mal o tribunal “a quo” ao decidir como decidiu, e decidir num sentido lesivo para o contribuinte, pois o comportamento erróneo da autoridade tributária consolida-se de forma indevida no ordenamento jurídico, tomando-se insidicável.

8. Ao sufragar-se a posição do Tribunal “ a quo” estar-se-á a aplicar uma norma inconstitucional, por violação dos preceitos constitucionais tipificados no artigo 18°, conjugado com o disposto no artigo 20°, 266° e 268° da CRP, por tal constituir uma restrição não expressamente prevista na lei e manifestamente desproporcionada dos direitos fundamentais.

9. O entendimento sufragado na decisão recorrida traduz-se, na prática, numa diminuição das garantias de igualdade e defesa do contribuinte perante a administração fiscal.

10. Entende o ora recorrente que a sentença subjudice enferma do vício de ilegalidade, por errónea aplicação do direito ao caso em apreço.

11. Nesse sentido, deverá ser julgada procedente a presente impugnação e em consequência ser anulado o acto de liquidação do IRS do ano de 2011, porquanto o art. 44° n-° 2 do CIRS deve ser entendido de acordo com o decidido pelo douto Acórdão de 594/13 com a analogia que o caso necessite.

12. Dado que foi estipulado pelas partes que iria ser vendido o bem, o que não chegou a ocorrer, tendo posteriormente sido revista tal situação, e realizada nova escritura pública, onde se retratou a verdade.

13. Devendo em todo o caso, a decisão recorrida ser revogada, por violação dos princípios da tutela jurisdicional efetiva e da justiça, constitucionalmente previsto no artigo 20.° e no artigo 268.°, n.° 4 da CRP e no artigo 6.° da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

14. Termos em que deverá o tribunal “ ad quem” revogar a sentença recorrida, e julgar procedente a presente impugnação e em consequência ser anulado o acto de liquidação do IRS do ano de 2011.

Nestes termos e nos melhores de direito, deverá ser concedido provimento ao presente recurso e consequentemente deverá ser revogada a sentença recorrida, e julgada procedente a presente impugnação e em consequência ser anulado o acto de liquidação do IRS de 2011, assim se fazendo JUSTIÇA!»


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A recorrida, devidamente notificada para o efeito, optou por não contra-alegar.

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A Exma. Magistrada do Ministério Público junto deste Tribunal Central Administrativo, devidamente notificada para o efeito, ofereceu parecer no sentido da improcedência do recurso.
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Com dispensa de vistos, vem o processo submetido à conferência desta 1ª Sub-Secção do Contencioso Tributário para decisão.



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II – FUNDAMENTAÇÃO

- De facto

A sentença recorrida considerou provados os seguintes factos:

«A) Em 24.02.2011 o ora Impugnante e M..., no estado de divorciados, outorgaram escritura pública de “partilha por divórcio, confissão de dívida e hipoteca”, da qual consta como “verba um” do ativo o prédio sito em Alvisquer, freguesia de Conceição, concelho de Tavira, inscrito na matriz sob o artigo 3..., a que foi atribuído, para efeitos de partilha, o valor de € 261.939,22 - cfr. fls. 60 a 62 dos autos.

B) Na mesma escritura que antecede ficou estipulado no ponto “Quarto” que o ora Impugnante “assume o pagamento da dívida da verba dois do passivo... pelo que leva a menos ao seu direito o valor de cem mil euros” - cfr. fls. 60 a 62 dos autos.

C) No mesmo ponto “Quarto” da referida escritura de partilha ficou ainda estipulado que à outorgante M... “são-lhe adjudicados todos os bens identificados no activo, no valor total de [€ 276.939,22]., destinando o imóvel identificado na verba um a sua habitação própria permanente’ - cfr. fls. 60 a 62 dos autos.

D) Ficou ainda consignado na escritura de partilha que “do valor de cem mil euros de tornas ao primeiro outorgante pela segunda, foram já pagos dez mil euros”, e que “a segunda outorgante se obriga a entregar o valor remanescente… no prazo de quatro anos e onze meses... ” - cfr. fls. 60 a 62 dos autos.

E) Em 31.05.2012 foi entregue pelo Impugnante declaração de rendimentos modelo 3, respeitante ao ano de 2011, com o anexo G onde declarou a alienação do referido imóvel identificado em A) pelo valor de € 100.000,00, indicando o valor de aquisição de € 12.469,94 em julho de 1993 e despesas e encargos no valor de € 58.764,37 — cfr. fls. 15 a 17 dos autos.

F) Não foi preenchido o quadro 5 do anexo G, relativo ao valor do reinvestimento da realização — cfr. fls. 15 a 17 dos autos.

G) Em 18.07.2012, e com base na declaração que antecede, foi emitida a liquidação n.° 2012 5004... que apurou imposto a pagar no montante de € 3.658,72 — cfr. fls. 18/19 dos autos.

H) Em 31.07.2012 o Impugnante apresentou declaração de substituição, alterando o anexo G, retirando o valor das despesas e encargos e preenchendo o quadro 5 onde declara a intenção de reinvestimento de € 97.540,06 do valor de realização — cfr. fls. 20 a 22 dos autos.

I) Em 20.08.2012, o Serviço de Finanças de Tavira notificou o ora Impugnante para retificar o anexo G da declaração mod. 3 no sentido de “corrigir o valor de alienação de € 100.000,00 para € 130.969,50, correspondente a metade do valor atribuído na escritura de partilha de divórcio’” — cfr. fls. 23 dos autos.

J) Na sequência da notificação que antecede, por requerimento de 23.10.2012 o ora Impugnante reiterou, além do mais, que “o valor realizado na escritura foi de 100.000,00 e não de 130.969,91” requerendo que “seja mantida inalterada a declaração”” — cfr. fls. 25 a 29 dos autos.

K) Por ofício de 08.11.2012 foi o Impugnante informado da convolação da declaração identificada em H) em reclamação graciosa, e notificado para apresentar os documentos relativos aos factos declarados — cfr. fls. 30 dos autos.

L) A reclamação foi objeto de indeferimento por despacho de 29.11.2012 com os fundamentos constantes de fls. 40 dos autos, que aqui se dão por reproduzidos, tendo o Impugnante sido notificado em 03.12.2012 - cfr. fls. 40 dos autos e fls. 92 a 93-A do processo RG apenso.

M) Em 30.11.2012 foi elaborada “Declaração Oficiosa/DC” fazendo constar do anexo G como valor de alienação a quantia de € 130.969,91, retirando a intenção de reinvestimento - cfr. fls. 41 a 43 dos autos.

N) Ato impugnado: Com base no documento de correção que antecede, em 21.12.2012 foi efetuada a liquidação n.° 2012 500... que apurou imposto no valor de € 21.237,16 e juros compensatórios de € 131,89, resultando a pagar, após compensação, a quantia de € 19.862,30 - cfr. fls. 44/45 dos autos.

O) Em 04.01.2013 o Impugnante recorreu hierarquicamente da decisão identificada em L), com os mesmos fundamentos da reclamação graciosa, onde insiste, além do mais, que o valor de realização foi de € 100.000,00 - cfr. fls. 109 a 118 dos autos.

P) Em 19.04.2013 apresentou a presente ação - cfr. fls. 4 dos autos.

Q) Por despacho de 29.10.2013 foi indeferido o recurso hierárquico com os fundamentos constantes da informação de fls. 144 a 149 do recurso hierárquico apenso, os quais se dão aqui por reproduzidos - cfr. fls. 144 a 149 do recurso hierárquico apenso.

R) Em 19.11.2013 o Impugnante foi notificado da decisão que antecede - cfr. fls. 158/159 do recurso hierárquico apenso.

S) O prédio identificado em A) foi adquirido pelo ora Impugnante e M..., em 22.06.1993, no estado de casados no regime da comunhão de adquiridos - cfr. fls. 27/28 da RG apensa.

T) Em 08.05.2014 foi outorgada entre o ora Impugnante e M... escritura pública na qual, fazendo referência à escritura pública de partilhas realizada em 24.02.2011, supra identificada em A), é declarado que «...houve lapso nessa escritura quanto ao valor atribuído à verba um que consiste no prédio urbano...inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo 3...» procedendo à sua retificação, no sentido de passar a constar que atribuem ao imóvel o valor de € 191.939,22 - cfr. fls. 166 a 169 dos autos.

Não existem outros factos, com relevo para a decisão da causa, que importe dar como provados ou não provados.

Motivação de facto:

A decisão da matéria de facto provada efetuou-se com base no exame dos documentos, não impugnados, que constam dos autos, referenciados em cada uma das alíneas do probatório.



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- De Direito

Conforme entendimento pacífico dos Tribunais Superiores, são as conclusões extraídas pelo Recorrente, a partir da respectiva motivação, que operam a fixação e delimitação do objecto dos recursos que àqueles são submetidos, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que, face à lei, sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer.

Lidas as conclusões das alegações de recurso apresentadas pelo Recorrente, resulta que está em causa saber se se verifica erro de julgamento, por errada aplicação do preceituado no nº2 do artigo 44º do CIRS, bem como aplicação de norma inconstitucional por violação dos princípios da igualdade e das garantias de defesa.

A presente impugnação judicial (resultante de convolação de oposição à execução) foi deduzida contra o acto de liquidação de IRS referente ao ano de 2011, pugnando o Impugnante, ora Recorrente, pela sua ilegalidade resultante da errada consideração do montante por si recebido por força de escritura de partilhas outorgado na sequência de divórcio.

A sentença recorrida julgou improcedente a impugnação judicial em virtude de ter considerado que bem andou a AT quando, em face dos elementos de facto de que dispunha à data da correcção efectuada aos rendimentos de 2011, emitiu a liquidação objecto de impugnação nestes autos, considerando, para efeitos das mais- valias imputáveis ao rendimento do Impugnante, 50% do valor que os outorgantes na partilha atribuíram ao prédio, não lhe podendo, por isso, ser assacada qualquer ilegalidade.

O Recorrente, nas suas alegações de recurso, depois de transcrever a sentença na sua totalidade, refere que embora o tribunal a quo até reconheça que o imposto foi apurado com base em fundamentos erróneos e o próprio acto de liquidação constitui uma injustiça grave e notória, o certo é que decide julgar improcedente a impugnação judicial.

Esta afirmação do Recorrente não corresponde à verdade, já que não foi esse o entendimento preconizado na sentença recorrida.

Efectivamente, o que na sentença se disse, foi que, e porque a lei substantiva assim o impõe, à data da emissão da liquidação, em função do valor que as partes atribuíram na escritura de partilha ao bem que foi adquirido na constância do casamento, a quota-parte que devia ser tida em conta para efeitos de determinação dos rendimentos da categoria G a englobar na declaração de rendimentos de IRS do ano de 2011 era, sem dúvida, de metade daquele valor: no caso, € 130.969,61, conforme decorre do provado em A) - cfr. os artigos 44.°, n.° 2, e 44.°, n.° 1, al. f), ambos do CIRS.

Ou seja, a sentença recorrida considerou correcta a forma de cálculo da liquidação impugnada, porque decorrente da lei, realçando que, considerando o valor atribuído pelo Recorrente e sua ex-cônjuge ao bem em causa, a quota-parte do Recorrente seria, sem dúvida, metade daquele valor.

Não houve, assim, qualquer comportamento ilegal por parte da AT, nem o Tribunal o assim considerou.

Como, aliás, a sentença disso deu conta, e que aqui replicamos:

“(…), como resultou provado em C) e D) do probatório, na escritura de partilha ficou estipulado que à outorgante M... seriam adjudicados todos os bens do ativo, destinando o imóvel em apreço nos autos a sua habitação própria permanente, e não a venda a terceiros, mais tendo as partes consignado que do valor de tornas atribuídas ao ora Impugnante € 10.000,00 já estavam pagos, obrigando-se o ex cônjuge a pagar o remanescente no prazo de 4 anos e 11 meses.

Depois, sendo a partilha o processo a utilizar para obter a divisão da coisa ou universalidade entre os seus vários titulares, tudo de acordo com o princípio geral de que ninguém é obrigado a permanecer na situação de contitularidade indivisa, salvo convenção em contrário (cfr. art.° 1412.°, do CC), deve conceber-se tal facto não com uma natureza meramente declarativa mas antes como um verdadeiro ato modificativo da titularidade do bem, devendo ter-se por concretizada a transferência da respetiva propriedade no momento da celebração do contrato, no caso concreto, a escritura de partilha. Assim, e de acordo com o disposto no n.° 3 do art.° 10.° do Código do IRS, o rendimento do Impugnante, resultante das tornas pela partilha do bem imóvel que fazia parte do património comum do casal, considera-se obtido na data da celebração de contrato de partilha, devendo, em conformidade com o disposto também no art.° 22.° do CIRS, ser tributado em conjunto com os demais rendimentos obtidos em 2011, independentemente da data em que efetivamente receba a totalidade da quantia acordada.(…)

Concordamos com o entendimento acolhido na sentença, já que, como ali se diz, não é relevante o momento em que as tornas foram pagas, sendo determinante para efeito da transferência da propriedade do bem o momento da celebração do contrato, no caso concreto, a escritura de partilha.

Acresce que a alteração ao valor do bem decorrente da escritura de rectificação posteriormente realizada não podia ser conhecida à data em que foi emitida a liquidação impugnada, sendo certo que a AT a efectuou com base nos elementos de que dispunha, nomeadamente o valor do bem declarado pelo Recorrente e sua ex-cônjuge na escritura de partilha.

Pretende o Recorrente que seja tida em conta a interpretação do nº2 do artigo 44º do CIRS acolhida em Acórdão que cita, proferido no âmbito do processo nº 594/13. Porém, pelo menos do excerto que vem transcrito, o que ressalta é que ali se tratava de um contrato de permuta por bens futuros, situação que não é a dos presentes autos, pelo que não tem aqui aplicação.

Finalmente, no que respeita à invocada diminuição dos direitos de defesa do Recorrente, dizer que não vem infirmada a conclusão da sentença de que o Recorrente sempre poderia ter requerido o procedimento de revisão do acto tributário, previsto no nº4 do artigo 78º da LGT, mecanismo que lhe permitiria alterar a sua situação tributária. Nem há notícia nos autos de que tenha sido requerido pelo Recorrente, o que significa que não se verifica qualquer diminuição dos direitos de defesa do contribuinte, que optou por não utilizar os meios legais ao seu dispor.

Não se verifica, pois, a invocada inconstitucionalidade decorrente de aplicação de norma inconstitucional, a qual, aliás, o Recorrente não identifica.

Assim, improcede a alegação recursiva, devendo ser negado provimento ao recurso.


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III- Decisão

Face ao exposto, acordam, em conferência, os Juízes da 1ª Sub-Secção de Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso.

Custas pelo Recorrente.

Registe e Notifique.

Lisboa, 24 de Junho de 2021

A Relatora consigna e atesta, que nos termos do disposto no artigo 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13/03, aditado pelo artigo 3.º do DL n.º 20/2020, de 01/05, têm voto de conformidade com o presente Acórdão os restantes Desembargadores integrantes da formação de julgamento, os Desembargadores Jorge Cortês e Lurdes Toscano


(Isabel Fernandes)

(Jorge Cortês)

(Lurdes Toscano)