Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:11999/15
Secção:CA- 2º JUÍZO
Data do Acordão:05/14/2015
Relator:PAULO PEREIRA GOUVEIA
Descritores:IMUTABILIDADE DAS PROPOSTAS; DEVER DE FUNDAMENTAÇÃO
Sumário:I- A violação da máxima ou princípio da intangilidade das propostas prevista nos artigos 70º/2-b) e 72º/2 do CCP, decorrente do princípio da igualdade e do princípio da concorrência, conduz à exclusão das propostas em causa (artigo 146º/1-o) do CCP).

II - Toda a Administração tem o dever sindicável de mostrar o caminho mental seguido para avaliar certa proposta ou certo atributo; só assim haverá transparência e juridicidade, só assim poderão os concorrentes fiscalizar a boa ou má atuação administrativa em causa, em defesa da justiça e da legalidade material. É um dever legal material e é uma garantia material dos concorrentes.

III - Nada disto, que tem base constitucional, foi alterado, nem podia ser, pelo Ac. do Supremo Tribunal Administrativo de 21-1-2014 (U.J.), Proc. Nº 01790/13 (A avaliação das propostas apresentadas num concurso tem-se por fundamentada através da valoração por elas obtida nos vários itens de uma grelha classificativa suficientemente densa).

IV – Tal Ac. tratou de um tipo de fundamentação suficiente; não tratou de desvalorizar o que acima referimos sobre este nuclear instituto do Direito Administrativo, nem de olvidar o seguinte:a fundamentação não se pode consumir na própria pontuação, pois que a pontuação é o resultado e o resultado não se pode fundamentar por si próprio.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Central Administrativo Sul:

I. RELATÓRIO

· R……. – RECOLHA …………., com os demais sinais nos autos, intentou

Acção de contencioso pré-contratual contra

· MUNICÍPIO DA GUARDA,

· Sendo contra-interessadas a R……. A………, Engenharia ………., Lda., a E…………….., Silvicultura ………….., S.A., a F…………, Serviços ……………., S.A., a L…………… – Serviços ……….., S.A., a C……….. P…….., S.A., a S…….. – Serviços ………, S.A., a R…………, Serviços …………, S.A., a E………….., S.A., a H……… – Gestão ……….., S.A., e a L…….. – Limpeza ……………………, S.A.

Pediu ao T.A.C. de Castelo Branco o seguinte:

-a anulação do acto de adjudicação do contrato de prestação de serviços de recolha e transporte de resíduos sólidos urbanos e limpeza urbana, no concelho da Guarda, à contra-interessada S…….. – Serviços ………………., S.A.;

-a condenação do réu a excluir a proposta apresentada pela contra-interessada S…….. – Serviços ………………., S.A.;

-a condenação do réu a adjudicar-lhe o contrato e

-caso o contrato já tenha sido celebrado, a anulação do mesmo.

*

Por acórdão de 12-1-2015, o referido tribunal decidiu absolver os demandados dos pedidos.

*

Inconformada, a a. recorre para este Tribunal Central Administrativo Sul, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:

a) No quadro da solicitação de esclarecimentos pelo Júri aos concorrentes, há que distinguir entre, por um lado, a hipotética necessidade da aclaração de um determinado elemento da proposta cuja formulação seja menos clara ou apreensível e, por outro, as possíveis dúvidas interpretativas que possam surgir do conteúdo das propostas apresentadas. Em qualquer dos casos, o pedido de esclarecimento terá sempre por fim exclusivo a estrita compreensão do conteúdo da proposta, em obediência aos ditames do artigo 72º, nº 2 do CCP.

b) Nas situações em que ocorram dúvidas interpretativas - como sucede com a maria dos autos - a interpretação, pelo Júri, das declarações que integram as propostas deverá ser efectuada em conformidade com os preceitos constantes dos artigos 236º e seguintes do Código Civil.

c) Sendo manifesto que as propostas apresentadas no âmbito de um procedimento de contratação pública constituem declarações formais, "não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso" (artigo 238º, 1 do CC).

d) Ao pretender configurar como um "lapso" a violação - que no entender da Recorrente é manifesta - das condições vinculativas do caderno de encargos na proposta da Contra­ Interessada S......., o Júri extravasou os poderes que lhe estão atribuídos polo nº 1 do artigo 72º, desde logo porque o alegado "lapso" não encontra, como atrás se demonstrou, a mais longínqua correspondência verbal com o conteúdo da proposta da S……… - facto que só por si demonstra a gritante inadmissibilidade do pedido de esclarecimentos dirigido pelo Júri.

e) É incorrecta, com o devido respeito, a perspectiva sustentada na Decisão em recurso, no sentido da admissibilidade do pedido de esclarecimento formulado pelo Júri porquanto a mesma é inadmissível face aos critérios de interpretação constantes do artigo 238 do CC e que imperativamente devem presidir às declarações que integram a proposta da Contra-Interessada S....... , sendo consequentemente desacertada a Decisão recorrida quando sustenta a aplicação, in casu, dos critérios interpretativos previstos no artigo 236º do CC (págs. 5 e 6 do Douto Ardão em recurso).

f) Ainda que, por hipótese académica que, sem conceder, se equaciona, se considerasse aplicável o critério interpretativo do artigo 236º como se pretende na Decisão recorrida, e dessa forma se aplicasse à matéria dos autos o critério da impressão do destinatário plasmada nesse preceito, ainda assim a proposta da Contra-Interessada S....... não poderia ser interpretada nas condições descritas na decisão em recurso.

g) Na verdade, constata-se da análise da proposta da Contra-Interessada S....... que nela se declara (i) afectar 1 (um) chefe de serviços (director técnico) e 1 (um) técnico de produção (director adjunto) de acordo com o que se extrai da sua proposta técnica (páginas 261 e 262); e (ii) se declara, no único documento em que expressamente indica a taxa de afectação daqueles técnicos, que os mesmos serão afectados a 5% ao serviço em concurso, como expressamente resulta do documento designado por Mapas Financeiros e Nota Justificativa dos Preços.

h) Deste modo, e atendendo ao conjunto dos elementos que fazem parte integrante da proposta, assim como às deduções lógicas que se podem fazer desses elementos, afigura-se evidente que uma pessoa razoável, normalmente atenta, não pode deixar de concluir que a proposta da S....... afectará aqueles técnicos em 5%, e sendo esse o único sentido possível a extrair da declaração por um destinatário normal e "medianamente instruído e inteligente' , como se expressa na Decisão em recurso.

i) Se a Contra-Interessada S....... pretendesse efectivamente declarar que aquelas taxas de afectação de 5% se referem exclusivamente aos custos operacionais tinha forçosamente de o ter declarado de forma expressa na sua proposta - o que manifestamente não fez em qualquer dos documentos que a integram.

j) Não colhe, igualmente, o argumento sustentado no Douto Acórdão em recurso de que a menção à afectação a 5% daqueles técnicos resulta do documento que a Contra­ Interessada designa de "Mapas Financeiros e Nota Justificativa dos Preços", porquanto a proposta deve ser tida como um conjunto integrado de declarações complementares entre si, o valendo cada um autonomamente dos restantes e muito menos isoladamente.

k) Não pode proceder, com o devido respeito, o entendimento sufragado no Douto Ardão em recurso quando se afirma que "da "Proposta Técnica" consta especificamente que será afectado a 100% um director técnico e um director adjunto" (cfr . págs. 4 e 5 do Douto Acórdão), sendo convicção da Recorrente que o Tribunal a quo interpretou de modo incorrecto e inadmissível a proposta da Contra-Interessada S....... , face ao efectivo contdo da mesma e dos documentos que a integram (pontos 5, 6 e 7 da matéria assente).

l) Com efeito, parte a Decisão em recurso do pressuposto de que da Proposta Técnica da S....... "consta especificamente que será afectado a 100% um director técnico e um director adjunto" (realce nosso) - pressuposto esse que é manifestamente incorrecto, face ao conteúdo da proposta em questão, da qual o se extrai nem sequer longinquamente essa declaração.

m) Na verdade, e se se analisar o conteúdo daquela proposta - mais concretamente o das páginas 261 e 262 da sua "Proposta Técnica" (como assinalado pela Contra­ Interessada S....... na resposta aos esclarecimentos solicitados - ponto 12 da matéria assente) - é ali que se declara afectar ao servo concursado um director técnico e um director adjunto (cfr. Quadro 9), sem nada se dizer , naquela Proposta Técnica, quanto às taxas de afectação desses técnicos, quando essa indicação consistia num aspecto absolutamente essencial da validade da proposta, por constituir um parâmetro vinculativo do Caderno de Encargos que expressamente foi, naquele documento, subtraído à concorrência (cfr. art. 15º, 8 .1. do Caderno de Encargos) .

n) Consequentemente, a Decisão recorrida sustenta-se em factos incorrectos, ausentes da matéria assente e do conteúdo dos documentos ali elencados, não podendo deixar de se concluir de modo inverso ao que resulta da decisão em recurso e face à factualidade assente, que a única menção à taxa de afectação do director técnico e do director adjunto é a que resulta do documento designado por Mapas Financeiros e Nota Justificativa dos Preços e, bem assim, que a taxa de afectação ali expressamente declarada é de 5%.

o) Não pode, do mesmo modo, deixar de se concluir, pela leitura conjugada do conteúdo das páginas 261 e 262 da Proposta Técnica da Contra-Interessada S....... com o documento "Mapas Financeiros e Nota Justificativa dos Preços", que a Contra- Interessada S....... declarou afectar ao serviço os técnicos descritos no Quadro 9 da sua proposta técnica com as taxas de afectação expressamente descritas nos Mapas Financeiros e Nota Justificativa dos Preços - de 5%.

p) Os esclarecimentos prestados pela Contra- Interessada S......., a serem aceites (o que só por hipótese académica se admite), introduzem uma gritante incoerência na informação constante daquele quadro, já que de acordo com o esclarecimento prestado, se apenas a taxa de afectação do director técnico e do director adjunto diz respeito aos respectivos custos operacionais , em relação aos restantes técnicos a taxa de afectação ali referida já exprime o grau da sua permanência de afectação ao serviço.

q) Não se pode pois concluir, como na Decisão recorrida, que a Contra-Interessada se limitou a "informar o Júri que, tendo em conta o modo como elaborou a sua proposta, a afectação operacional dos recursos humanos não consta do documento designado por "Mapas Financeiros e Nota Justificativa dos Pros ", pois este documento serve apenas o propósito de demonstrar a imputação dos diferentes custos às diferentes rubricas', como o se poderia ter concluído, face à matéria assente, que a "afectação operacional [resulta] do documento designado por "Proposta Técnica", pela simples e linear razão de que rigorosamente nada se extrai da proposta técnica da S....... que permita concluir que o director técnico e o director adjunto serão afectados a 100%.

r) Decidiu, assim, o Douto Acórdão em recurso de modo desacertado e viciado em erro de julgamento, face às normas legais relevantes in casu.

s) Sustenta-se ainda no Douto Acórdão em recurso que "a Contra- Interessada S....... não alterou nem contrariou o teor do documento designado por "Proposta Técnica", nem contrariou o teor do documento designado por "Mapas Financeiros e Nota Justificativa do Preço". Do mesmo modo, também não alterou os atributos da sua proposta, pois esclareceu que o aspecto não submetido à concorrência, previsto no artigo 15, 8, subponto 8. 1. do Caderno de Encargos (CE), é integralmente respeitado (.. .)" (pág. 5 da decisão), não podendo porem tal entendimento proceder.

t) É manifesto que com os esclarecimentos prestados a Contra- Interessada S....... veio modificar o conteúdo da sua proposta, neles indicando uma taxa de 100% de afectação dos técnicos que não estava antes expressa na sua proposta e, dessa forma, alterando manifestamente os atributos da sua proposta.

u) Dúvidas não existem de que tal modificação é legalmente inadmissível face ao disposto no artigo 72, nº 2 do CCP e ao princípio da imutabilidade das propostas.

v) O Douto Acórdão em recurso de que aqui se reclama aplica incorrectamente as normas legais relevantes à factualidade sub judíce também no que respeita aos vícios de que padece a fundamentação do acto impugnado.

w) Contrariamente ao que se refere na Decisão em recurso, e como se demonstrará, da grelha classificativa que se extrai do critério de avaliação previsto no programa do procedimento não se extraem nem se podem extrair, por si só, as concretas razões subjacentes à pontuação atribuída.

x) Ao limitar-se a atribuir uma pontuação quantitativa a cada uma das propostas em cada um dos factores e subfactores que integram o critério de avaliação, o Júri vedou de modo objectivo a compreensão, mediante a análise dos relatórios preliminar e final, das razões em concreto da avaliação das propostas por referência ao seu conteúdo e em função dos factores de ponderação prescritos no programa do procedimento.

y) Designadamente, da leitura da grelha classificativa e da ordenação das propostas expressas no relatório não se consegue compreender qual o percurso cognitivo que esteve subjacente às pontuações atribuídas, e muito menos se compreende porque é que, exemplificando, uma da"1"' proposta obtém a pontuação de 8 no subfactor VT1 e outra obtém 7, ou porque é que a pontuação global de uma dada proposta no factor "Valia Técnica" é de 7,80 e a de outra é de 7,35.

z) Mais grave ainda, se se atentar nos intervalos de pontuação estabelecidos nas grelhas classificativas, ainda mais imperscrutável se mostra o percurso cognitivo do Júri quando atribui uma dada pontuação a uma proposta, e, a outra, uma diversa pontuação superior ou inferior, apesar de ambas estarem situadas no mesmo intervalo de pontuação.

aa) Ora, se se tiver em conta os parâmetros classificativos que resultam do critério de avaliação em relação a cada um dos seus factores e subfactores, é objectivamente impossível, sobretudo sempre que as pontuações atribuídas se situam no mesmo intervalo de pontuação, compreender quais as razões em que o Júri se baseou para atribuir determinadas pontuações a cada uma das propostas .

bb) Pelas razões aduzidas não pode deixar de se concluir que a avaliação das propostas o se sustenta em fundamentação suficiente e, consequentemente , que o Douto Acórdão em recurso fez uma errada interpretação dos factos e do Direito também quanto a esta matéria.

cc) A Decisão recorrida omite qualquer referência ou apreciação à doutrina uniformizada que se extrai do Acórdão do STA nº 2/2014 (processo nº 1790/ 13 - Pleno da 1 Secção, publicado no Diário da República, 1º Série, em 21-03-2014), que uniformizou a jurisprudência a respeito da matéria sub judice.

dd) A grelha classificativa constante do critério de avaliação do procedimento dos autos não cumpre manifestamente os requisitos estabelecidos naquele aresto.

ee) Como expressamente se extrai do citado Aresto, só considerará devidamente fundamentada a avaliação mediante a atribuição de pontuação quantitativa por referência aos vários itens da grelha classificativa que resulta do critério de adjudicação se aquela se mostrar "suficientemente densa" (realce nosso).

ff) Esclarece ainda o STA nessa mesma Decisão que "seguiríamos um terceiro modo de enfrentar o vício de forma se devêssemos concluir que a grelha classificativa do concurso continha insuficiências originárias que comprometiam um cabal esclarecimento, "in fine", das classificações atribuídas às propostas', acrescentando ainda que "o dever de fundamentar os actos administrativos cumpre fuões múltiplas, em que se sobressaem, para além do acréscimo da imparcialidade e da transparência, o esclarecimento (auto e hetero) do processo decirio e do seu resultado" .

gg) No caso dos autos, é manifesto que a grelha classificativa para a avalião dos vários itens descritivos em que se desdobram os quatro subfactores de ponderação do factor "Valia Técnica da Proposta" não se mostra, de modo algum, "suficientemente densa" para permitir que a avaliação das propostas se realize, como pretende o Júri, mediante uma mera operação de subsunção aos diversos itens ali expressos.

hh) Contrariamente ao que se sustenta no Douto Acórdão recorrido, não se trataria, in casu, do recurso à "fundamentação de 2º grau" ou 'fundamentação secundária", mas antes da verdadeira e própria fundamentação das pontuações atribuídas, que como se demonstrou não se retira em termos suficientes dos descritivos consagrados no critério de avaliação.

ii) o pode, pois, deixar de se concluir que o acto impugnado é inlido, também por vício de fundamentação, incorrendo consequentemente a Douta Decisão cm recurso em manifesto erro de julgamento.

*

O recorrido MUNICIPIO contra-alegou, concluindo:

1. O douto acórdão objecto do presente recurso não merece qualquer reparo ou censura uma vez que decidiu de acordo com a Lei, a jurisprudência unânime e os mais consagrados princípios de Direito.

2. O douto acórdão recorrido não cometeu qualquer violação do disposto nos artigos 70º n°2, alínea b), 72º e 146º nº l, alínea o) do Código dos Contratos Públicos.

3. O douto acórdão recorrido não cometeu qualquer violação dos artigos 124º do CPA, 146º, nº l e 148° do CCP e 266º nº2 da CRP.

4. Ao presente recurso deve ser negado provimento, mantendo-se o douto acórdão recorrido e a douta sentença reclamada nos seus precisos termos.

*

A recorrida S....... contra-alegou, concluindo:

« (Imagem)»

*

O Exmº representante do Ministério Público junto deste Tribunal foi notificado para se pronunciar como previsto na lei de processo.

Cumpridos os demais trâmites processuais, importa agora apreciar e decidir em conferência.

*

Este tribunal tem sempre presente o seguinte: (i) o primado do Estado democrático e social de Direito material, num contexto de uma vida socioeconómica submetida ao bem comum e à suprema dignidade de cada pessoa; (ii) os valores ético-jurídicos do ponto de vista da nossa lei fundamental (1); (iii) os princípios estruturantes do Estado de Direito (ex.: a juridicidade, a segurança jurídica (2) e a igualdade (3)); (iv) as normas que exijam algo de modo definitivo e ou as normas que exijam uma otimização das possibilidades de facto e de direito existentes no caso concreto (4), através de uma ponderação racional e justificada; e (v) a máxima da unidade e coerência do nosso sistema jurídico (5), bem como, sempre que possível e necessário, as máximas metódicas da igualdade e da proporcionalidade.

*

QUESTÕES A RESOLVER

Os recursos, que devem ser dirigidos contra a decisão do tribunal a quo e seus fundamentos, têm o seu âmbito objetivo delimitado pelo recorrente nas conclusões da sua alegação de recurso, alegação que apenas pode incidir sobre as questões que tenham sido apreciadas pelo tribunal recorrido (ou que devessem ser aí oficiosamente conhecidas).

Temos, pois, de apreciar o seguinte contra a decisão do tribunal a quo:

1-erro de julgamento de direito, uma vez que o ato administrativo impugnado assenta na violação da máxima da imutabilidade das propostas concursais (cfr. artigos 70ª/2, 72º e 146º/1-o) do CC), em sede da afectação a 5% (cfr. texto do "mapa financeiro e nota justificativa dos preços da S.......) ou a 100% (cfr. esclarecimento solicitado à S.......) do tempo do director técnico e do director adjunto da S.......;

2-erro de julgamento de direito, uma vez que o ato administrativo impugnado tem fundamentação insuficiente e assenta numa grelha pouco densa, não se podendo apreender o percurso cognitivo do júri na avaliação das propostas.

*

II. FUNDAMENTAÇÃO

II.1. FACTOS PROVADOS segundo o tribunal recorrido

«(Imagem)»

Continuemos.

II.2. APRECIAÇÃO DO RECURSO

Aqui chegados, há melhores condições para se compreender o recurso e para, de modo facilmente sindicável, apreciarmos o seu mérito.

Vejamos, pois.

QUESTÃO 1 - Do erro de julgamento de direito, uma vez que o ato administrativo impugnado assentaria na violação da máxima da imutabilidade das propostas concursais (cfr. artigos 70ª/2, 72º e 146º/1-o) do CCP (6)), em sede da afectação a 5% (cfr. texto do "mapa financeiro e nota justificativa dos preços" da concorrente S.......) ou a 100% (cfr. esclarecimento solicitado à S.......) do tempo do director técnico e do director adjunto da S.......

Cabe aqui apurar se, após o júri falar num "lapso" supostamente existente na proposta da S....... quanto à taxa de afectação dos directores relativamente à actividade em causa, a S....... veio modificar ou não o conteúdo da sua proposta ao dizer que a afectação de tais trabalhadores é a 100% e não a 5%.

O princípio da intangibilidade das propostas impõe que com a entrega da proposta o respectivo concorrente fique vinculado à mesma, não a podendo retirar ou alterar até que seja proferido o acto de adjudicação, ou até decorrer o respectivo prazo de validade. O princípio da intangibilidade das propostas apresenta-se como um princípio fundamental dos procedimentos concorrenciais e vale em todos os procedimentos concorrenciais.

O artigo 72º do CCP prevê um desvio, rigoroso, ao princípio da intangibilidade, permitindo que o júri do procedimento possa pedir aos concorrentes esclarecimentos sobre as propostas apresentadas desde que os considere necessários para efeito da análise e da avaliação das mesmas.

Há que ler cada proposta concursal no seu conjunto e de acordo com a Língua Portuguesa, o bom senso e os importantes artigos 236º ss do CC (nomeadamente o 236º e o 238º).

Ora, lendo assim a factualidade provada, donde consta os teores escritos da "Proposta Técnica" da S....... e do "Mapa Financeiro e Nota Justificativa dos Preços" da S......., não se descortina o lapso que júri descortinou, também porque a declaração formal (genérica) de aceitação do caderno de encargos não tem aptidão a fazer surgir "lapsos" sempre que a proposta concursal propriamente dita contrarie o caderno de encargos.

Mas, mais importante, é que, ao contrário do esclarecimento prestado pela S....... (que não admitiu qualquer lapso, note-se), a sua Proposta Técnica nada diz sobre a taxa de afectação daqueles trabalhadores ser 5% ou 100%; nada. Tal tema é abordado apenas no "mapa financeiro e nota justificativa dos preços" e de modo muito claro e explícito pela S.......: 5% de afectação do director técnico e do director adjunto ao serviço a adjudicar e com o valor anual total de 2160,00 euros para o director técnico. Não havia dúvida ou lapso.

Houve sim violação do nº 8.1 da Cl. 15 do C.E., que prevê a afectação a tempo integral, a 100%.

Se dúvidas houvesse, e não há, bastaria compararmos com todos os números indicados (cfr. taxa de afectação e preço/custo anual) para os restantes trabalhadores, menos qualificados, para se concluir que, neste negócio formal e salvo manifesta incoerência, a S....... escreveu e quis mesmo dizer que aqueles dois directores estariam afectos ao serviço em 5% do tempo, custando aqueles preços (remunerações) anuais ali indicados, que seriam notoriamente baixos (e ilegais, com violação do salário mínimo nacional).

Portanto, o esclarecimento dado pela S....... e aceite pelo júri, após o "lapso" afirmado oficiosamente pelo júri e não admitido pela S......., modificou a proposta apresentada, contrariando elementos constantes do referido "mapa e nota justificativa": os cit. 5% passaram para 100% de taxa de afectação ao serviço pelos referidos directores. Assim, violou-se a máxima ou princípio da intangilidade das propostas previsto nos artigos 70º/2-b) e 72º/2 do CCP, decorrente do princípio da igualdade e do princípio da concorrência.

Assim, a proposta deveria ter sido excluída, ao abrigo do artigo 146º/1-o) do CCP.

Cfr. Ac. TCA-Sul de 17-3-2011, Pr. nº 07196/11; Mário/Rodrigo Esteves de Oliveira, Concursos…, pp. 600 ss; J. Andrade da Silva, C.C.P., 4ª ed., 2013, anot. aos artigos 70º e 72º.

Procede, pois, este ponto das conclusões do recurso.

QUESTÃO 2 – Do erro de julgamento de direito, uma vez que o ato administrativo impugnado teria fundamentação insuficiente e assentaria numa grelha pouco densa, não se podendo apreender o percurso cognitivo do júri na avaliação das propostas

Este segundo ponto é muito complexo, sobretudo porque se confunde muitas vezes "poderes-deveres discricionários" com arbítrio ou com desnecessidade de fundamentação. Mas, sobre o dever constitucional de fundamentação dos actos administrativos concursais relevam, além do nº 3 do artigo 268º da Constituição, os artigos 124º do CPA/91 e 148º/1 do CCP.

Está aqui em causa saber se a fundamentação da deliberação do júri do concurso foi suficiente para os concorrentes poderem aprender como é que o júri chegou às conclusões (aqui pontuações) a que chegou quanto a cada factor e subfactor.

Toda a A.P. tem o dever sindicável de mostrar o caminho mental seguido para avaliar certa proposta e certo atributo (7); só assim haverá transparência e juridicidade, só assim poderão os concorrentes fiscalizar a boa ou má actuação administrativa em causa, em defesa da justiça e da legalidade material. É um dever legal material e é uma garantia material dos concorrentes.

Nada disto, que tem base constitucional, foi alterado, nem podia ser, pelo cit. Ac. do Supremo Tribunal Administrativo de 21-1-2014 (U.J.), Proc. nº 01790/13 (A avaliação das propostas apresentadas num concurso tem-se por fundamentada através da valoração por elas obtida nos vários itens de uma grelha classificativa suficientemente densa). Este Ac. tratou de um tipo de fundamentação suficiente; não tratou de desvalorizar algo tão óbvio como o que acima referimos sobre este nuclear instituto do Direito Administrativo, nem de olvidar o seguinte: «A fundamentação não se pode consumir na própria pontuação, pois que a pontuação é o resultado e o resultado não se pode fundamentar por si próprio» - Ac. do Supremo Tribunal Administrativo de 26-10-2004, Proc. Nº 043240.

Tem de haver sempre uma exposição do itinerário cognoscitivo e valorativo percorrido pelo júri. E o júri tem sempre de explicitar, de modo suficiente, as razões concretas, coerentes e congruentes por que atribui a pontuação de 4 ou 5 e a classificação de bom ou mau a certo atributo concursal.

Não se confunda, por facilitismo, aquele dever legal com uma (rara) exigência de fundamentação da fundamentação; para isso teria de haver, previamente, a fundamentação legalmente exigida; e esta é apenas a justificação (e eventual motivação) que seja expressa, com exposição dos fundamentos de facto e de direito da decisão, clara, coerente e completa (i.e., suficiente, embora não exaustiva).

Obtida tal fundamentação expressa, com a exposição clara, coerente e completa dos fundamentos de facto e de direito da decisão, então sim, é que poderá haver (i) o controlo judicial para defesa dos princípios constitucionais da Administração Pública e (ii) o controlo judicial contra erros (de facto ou de direito) notórios ou grosseiros do acto administrativo.

Ora, no caso presente, tivemos, nesta sede, dois momentos. Primeiro, o júri contentou-se em preencher uma grelha pouco ou nada densa (facto provado nº 8), como vimos atrás, violando nesse momento os citados requisitos legais e constitucionais do dever de fundamentação. Depois da audiência prévia, o júri escreveu no relatório final algo mais como texto fundamentador (facto provado nº 13-II), após aqui e ali exemplificar (!) algumas explicações fundamentadoras. É este facto provado nº 13-II (com as suas grelhas e sinais de +/qualidade inferior, ++/qualidade média e +++/qualidade superior) que tem de ser agora sindicado, para aferir da sua suficiência ou completude, requisito que é posto em causa pela autora/recorrente.

Assim, lendo tais grelhas constantes do facto nº 13 (e sua legenda), tendo presente a explicação para cada pontuação em cada subfactor e parâmetro através de "+/qualidade inferior, ++/qualidade média e +++/qualidade superior", deve-se concluir que a fundamentação é suficiente, explicando o caminho avaliativo seguido pelo júri.

Improcede, pois, este ponto das conclusões do recurso.

*

III. DECISÃO

Por tudo quanto vem de ser exposto, acordam os Juizes do Tribunal Central Administrativo Sul, de harmonia com o disposto nos artigos 202º e 205º da Constituição, em conceder provimento ao recurso, revogar a decisão recorrida e, em consequência da exclusão da S......., que ficara em 1º lugar, condenar o réu a adjudicar o contrato à concorrente que havia ficado em 2º lugar, a ora recorrente RRI.

Custas a cargo das contestantes e contra-alegantes em ambos os tribunais.

Lisboa, 14-5-2015

(Paulo H. Pereira Gouveia - relator)

(Nuno Coutinho)

(Carlos Araújo)


(1) Cfr. PAULO OTERO, Manual de Direito Administrativo, Coimbra, Almedina, Vol. I, 2013, pp. 345-355 e 432-449.
(2) Cfr. Ac. do T.C. Nº 128/2009.
(3) Cfr. Acs. do T.C. Nº 39/88, Nº 186/90, Nº 310/2000, Nº 491/2002 e Nº 187/2013.
(4) Cfr. ROBERT ALEXY, “Direitos fundamentais e princípio da proporcionalidade”, trad., in: revista O Direito, Ano 146º (2014), IV, Lisboa, pp. 817-834, com dogmática e exemplos jurisprudenciais.
(5) Cfr., modernamente, MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, Introdução ao Direito, Coimbra, Almedina, 2012, pp. 359 ss, 426 ss, 451 ss e 461 ss.
(6) E artigo 65º CCP.
(7) Atributo da proposta é aquele elemento ou característica da mesma que diga respeito a um aspecto da execução do contrato submetido à concorrência pelo caderno de encargos.