Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:114/11.1BELRS
Secção:CT
Data do Acordão:02/11/2021
Relator:PATRÍCIA MANUEL PIRES
Descritores:GERÊNCIA
CONFISSÃO
PROVA
CHEQUES
NON LIQUET
Sumário:I-Inexiste uma presunção legal da administração de facto, verificada que esteja a administração de direito de uma sociedade por determinada pessoa.
II-O reconhecimento da assinatura de “poucos” cheques sem a devida mensuração, sem a respetiva expressão quantitativa, e concreta densificação das datas de emissão, e cujo reconhecimento está alocado a um total alheamento do interesse e vinculação societária e a pedido, donde sem o necessário animus, não permite inferir pela gerência de facto.
III-A indivisibilidade da confissão complexa tem como consequência a inversão do ónus da prova quanto à parte favorável ao confitente.
IV-Para que se verifique a gerência de facto é indispensável que o gerente use, efetivamente, dos respetivos poderes, que seja um órgão atuante da sociedade, tomando as deliberações consentidas pelo facto, administrando e representando a empresa, realizando negócios e exteriorizando a vontade social perante terceiros, cuja prova compete à Autoridade Tributária.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:

I-RELATÓRIO

O DIGNO REPRESENTANTE DA FAZENDA PÚBLICA (DRFP) veio interpor recurso jurisdicional da sentença proferida pelo Tribunal Tributário de Lisboa, que julgou extinta a instância por inutilidade superveniente da lide, na parte correspondente ao processo de execução fiscal n.º ..... e apensos, e procedente, na parte correspondente ao processo de execução fiscal n.º ..... e apensos, com a consequente extinção do mesmo, quanto à revertida, ora Recorrida, M......

A Recorrente, apresentou alegações tendo concluído da seguinte forma:

“III – CONCLUSÕES:

A- Visa o presente recurso reagir contra a douta sentença proferida nos autos à margem melhor identificados, na parte que julgou procedente a oposição judicial apresentada por M....., julgando a oponente parte ilegítima para a execução.

B- Discorda a Fazenda Pública, com o devido respeito, do entendimento sufragado na douta sentença, e com o mesmo não se conforma, porquanto padece, a douta sentença, de erro de julgamento de facto [por ter errado na valoração da prova] e de direito [por não ter feito uma correta interpretação e aplicação das normas estabelecidas quanto prova do exercício da gerência ínsito na alínea b) do n.1 do art.º 24.º da Lei Geral Tributária (LGT)].

C- Neste âmbito, o thema decidendum, assenta em saber se os autos de oposição contêm prova do exercício da gerência, também denominada ou comummente conhecida como gerência de facto, por parte do revertido, ora oponente.

D- Entende a Fazenda Pública que o Douto Tribunal não levou ao Probatório, como lhe competia, todos os elementos relevantes para a boa decisão da causa e a descoberta da verdade material, pelo que, de molde a subsumir a situação real respigada dos autos à boa decisão da causa, o Probatório deverá ser corrigido de acordo com a verdade factual, ao abrigo do disposto no n.º 1 do art.º 662.º do CPC.

E- Devendo, atenta toda a prova produzida, ser aditado à matéria de facto o seguinte facto:

F. Confessa a oponente na sua petição inicial ter assinado cheques em branco, a pedido do seu co-sócio, desconhecendo as quantias e a quem eram emitidos, devendo os factos ser renumerados tomando em consideração este cuja inclusão se requer.

F- Tal inclusão deve ser levada ao probatório para refutar toda a argumentação expandida pelo tribunal a quo quando tenta afastar a gerência de facto da ora recorrida alegando que não basta a prática de isolados para que os gerentes de direito possam ser considerados gerentes de facto.

G- Consultado os autos, para além do facto dado como provado na al. E) do probatório, a oponente tinha consciência de que quando assinava os “tais cheques” estava-o a fazer na qualidade de gerente da originária devedora, vinculando-a, não tendo renunciado ao cargo para o qual havia sido designada e que aceitou, sem qualquer reserva.

H- As afirmações e considerações da oponente, na sua petição inicial, nomeadamente “com vários postos de trabalho em causa, a ora impugnante procurou, desesperadamente, ultrapassar as dificuldades” [cfr. ponto 75 da P.I.] (…), “Maugrado a aqui oponente ter deitado mão, entretanto, a múltiplas diligências, tentando ultrapassar tão grave problema” [cfr. ponto 77 da P.I.], “Inclusive, ela própria e membros da sua família injetaram capital na empresa” [cfr. ponto 78 da P.I.], , constituem uma confissão implícita do efetivo exercício da gerência de facto da devedora originária revelando factos que só estariam ao alcance de um verdadeiro gerente de facto, ou seja, de um gerente que exercia efetivamente o seu cargo e não de um mero gerente de direito.

I- Ao anuir em apor a sua assinatura em cheques, dando ordens de pagamento em nome e no interesse da sociedade, a oponente assumia as decisões subjacentes, cooperando e co-responsabilizando-se no exercício de uma função própria de gerência, sendo irrelevante o facto de não praticar quaisquer outros atos em nome da sociedade.

J- Sendo a prova por confissão legalmente admissível nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 115.º do CPPT, supletivamente aplicável por força do art.º 211.º, n.º 1 do mesmo diploma, e ainda no art.º 352.º do Código Civil, a mesma deveria ter sido objeto de uma correta e adequada valoração em sede decisória.

K- E não pode, com o devido respeito, vingar a conclusão do tribunal a quo quando afirma tratar-se de “uma mera intervenção isolada” [cfr. primeiro paragrafo da página 20 da referida sentença], uma vez que, como a mesma reconhece, foram várias vezes que assinou cheques em representação da originária devedora.

L- Posto isto, acrescenta-se que, não obstante não ter a Fazenda Publica junto aos autos cópia dos referidos cheques, a existência dos mesmos é do conhecimento do D. Tribunal, conforme alegado pela oponente. E, isso é o bastante para serem relevados enquanto tal.

M- Tendo confessado a oponente que assinou vários cheques enquanto gerente da sociedade e encontrando-se nos autos comprovativos da receção (vulgos AR) de correspondência enviada pela Autoridade Tributária e Aduaneira, teria o tribunal a quo que dar como provado, salvo o devido respeito, o exercício de gerência da oponente.

N- Por conseguinte, salvo o devido respeito, que é muito, o Tribunal a quo lavrou em erro de interpretação e aplicação do direito e dos factos, nos termos supra explanados, levando a que também preconizasse uma errada valoração da factualidade dada como assente violando o direito aplicável, no caso a al. b) do nº 1 do art.º 24º da LGT.

O- Assim, face ao exposto, deve ser dado provimento ao presente recurso e consequentemente revogada a sentença recorrida.

PORÉM V. EX.AS DECIDINDO FARÃO A COSTUMADA JUSTIÇA!”


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A Recorrida optou por não apresentar contra-alegações.

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O Digno Magistrado do Ministério Público (DMMP) neste Tribunal Central Administrativo Sul emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

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Colhidos os vistos dos Exmos Juízes Desembargadores Adjuntos, cumpre, agora, decidir.

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II-FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A sentença recorrida julgou provada a seguinte matéria de facto:

“Com interesse para a decisão a proferir, o Tribunal considera provados os seguintes factos:

A) Em 16.11.1998, foi constituída a sociedade por quotas com a designação “T.....  Lda.”, tendo como únicos sócios J.....  e a ora Oponente, os quais foram designados como seus gerentes (cfr. documento de fls. fls. 28 a 32 dos autos; matéria não controvertida);

B) A sociedade identificada na alínea A) supra obrigava-se com a assinatura de qualquer um dos seus gerentes (cfr. documento de fls. fls. 28 a 32 dos autos e fls. 145 a 147 da certidão do processo de execução apensa);

C) O Serviço de Finanças de Arruda dos Vinhos instaurou contra a sociedade identificada na alínea A) supra o processo de execução fiscal n.º ....., por dívida de coima aplicada por falta de pagamento de IVA do período de 2001/03T, e encargos relativos ao respectivo processo de contra-ordenação, no valor de 876,08 EUR, bem como os processos de execução fiscal infra identificados, entretanto apensos àquele processo de execução:
    


(cfr. documentos de fls. 1 a 4 dos autos e fls. 1 a 3 e 130 a 132 da certidão do processo de execução apensa);

D) No âmbito do processo de execução fiscal n.º ....., mencionado em C) que antecede, foi remetido à sociedade identificada em A) supra, por carta registada em 09.01.2002, ofício de “CITAÇÃO”, tendo em vista a cobrança no valor em dívida naquele processo de execução (cfr. documentos de fls. 3 e 4 da certidão do processo de execução apensa);

E) Em 25.01.2005 e 09.03.2005, a ora Oponente procedeu à aposição da sua assinatura em 2 avisos de recepção relativos a ofícios remetidos à sociedade identificada em A) supra, pelo Serviço de Finanças de Arruda dos Vinhos (cfr. documentos de fls. 35 e 36 dos autos);

F) Em 26.04.2007, foi celebrada escritura de “Cessão de Quotas e Alteração do Pacto”, entre os sócios gerentes da sociedade identificada na alínea A) supra, enquanto primeiros outorgantes, e L....., como segundo outorgante, na qual aqueles declararam ceder a este segundo outorgante as suas quotas na referida sociedade e renunciar à sua gerência, e o segundo outorgante declarou aceitar estas cessões, bem como todo o activo e passivo existente à data na sociedade (cfr. documento de fls. fls. 20 a 25 dos autos);

G) Pelo averbamento ap. 1/20070507, foi registada na Conservatória de Registo Civil/Predial/Comercial de Arruda dos Vinhos a cessão de funções da Oponente como gerente da sociedade identificada na alínea A) supra, por renúncia em 26.04.2007 (cfr. documento de fls. fls. 33 dos autos);

H) Em 29.10.2007, 30.10.2007, 31.10.2007 e 05.11.2007, foram elaboradas notas de diligências por funcionário do Serviço de Finanças de Arruda dos Vinhos, das quais consta que, tendo-se dirigido ao Banco Popular, ao Banco Santander Totta, ao Banco Banif, ao Montepio Geral e ao Banco Espírito Santo, respectivamente, a fim de cumprir mandado de penhora em nome da sociedade identificada em A) supra, tal não foi possível, “em virtude de não existir qualquer conta bancária em que o executado seja titular e/ou co-titular.” (cfr. documentos de fls. 65 a 69 da certidão do processo de execução apensa);

I) Em 18.08.2008, deu entrada no Serviço de Finanças de Arruda dos Vinhos ofício do Banco Comercial Português, S.A., sob o assunto “Penhora de Saldos em Conta(s) Bancária(s)”, no qual se comunicou àquele serviço de finanças que não constam nos ficheiros da instituição conta bancária na titularidade da sociedade identificada em A) supra (cfr. documentos de fls. 76 da certidão do processo de execução apensa);

J) Em 20.01.2009, foi elaborado auto de diligências no âmbito dos processos de execução mencionados na alínea C) supra, no qual, pronunciando-se sobre a sociedade mencionada em A), consta o seguinte:

“(…)

1. Tem uma viatura penhorada no SIPA, assim como 10 créditos.

2. Não apresenta declarações de IVA desde 0706T, nem DA em 2007.

3. O TOC desconhece o paradeiro actual da empresa.

4. Não se encontram mais bens susceptíveis de serem penhorados.

Em face do exposto, devolve-se o mandado, para que se proceda às diligências necessárias à reversão.

(…)” (cfr. documentos de fls. 114 da certidão do processo de execução apensa);

K) Em 25.03.2010, foi proferida informação no âmbito dos processos de execução mencionados na alínea C) supra, com o seguinte teor:

“Sustentado nos elementos constantes do sistema informático, informo V.Exª que a firma executada identificada nestes autos, foi constituída em 1998.11.16 com os sócios gerentes J.....  NIF ..... M.....  NIF ..... tendo em 2007.05.07 alterado a sua constituição e sede para o sócio gerente L.....  NIF ..... e para a ..... no Carregado.

Não tendo ainda declarado a cessação de actividade nem a dissolução da mesma, apresenta de forma reiterada conduta faltosa, designadamente, falta de entrega das declarações periódicas do IRC a partir de 2007 e IVA bem como pagamentos em falta de IVA, tanto assim que os referidos processos executivos se instauram para cobrança coerciva de IVA de 2001, 2002, 2003 2004 2005, IRC de 2002 e 2003 bem como feita de entrega nos cofres do Estado de IRS retido na fonte 2004 e 2005.

Não sendo conhecidos bens penhoráveis suficientes para a cobrança da divida executiva e acrescido legal, afigura-se-me ser de reverter a execução contra os referidos sócios gerentes J.....  e M.....  abrangendo os seus períodos de gerência as dividas tributárias identificadas nestes autos” (cfr. documentos de fls. 115 da certidão do processo de execução apensa);

L) Em 25.03.2010, a Chefe do Serviço de Finanças de Arruda dos Vinhos proferiu o denominado “despacho para audição (reversão)”, no qual determinou a notificação da ora Oponente para audição prévia à reversão dos processos de execução fiscal identificados na alínea C) supra, constando do mesmo, na parte relativa à fundamentação da reversão, o seguinte:

“Dos administradores, directores, ou gerentes e outras pessoas que exerçam, ainda que somente de facto, funções de administração ou gestão em pessoas colectivas e entidades fiscalmente equiparadas, por não terem provado não lhes ser imputável a falta de pagamento da dívida, quando o prazo legal de pagamento/entrega da mesma terminou no período do exercício do cargo [art. 24.º/1/b) LGT].

Inexistência de bens penhoráveis na esfera patrimonial da executada originária que permita a cobrança coerciva da dívida executiva e acrescido legal (artigo 153º do Código de Procedimento e de Processo Tributário)” (cfr. documento a fls. 49 dos autos e fls. 120 da certidão do processo de execução apensa);

M) Em cumprimento do determinado pelo despacho mencionado na alínea anterior, o Serviço de Finanças de Arruda dos Vinhos remeteu à Oponente, por carta postal, registada em 29.03.2010, ofício de “notificação audição-prévia (reversão)”, datado de 26.03.2010 (cfr. documentos de fls. 48 a 50 dos autos e fls. 129 a 133 da certidão do processo de execução apensa aos autos);

N) Em 29.04.2010, a Chefe do Serviço de Finanças de Arruda dos Vinhos proferiu despacho de reversão dos processos de execução fiscal identificados em C) supra contra a ora Oponente, com o seguinte teor:

“(…)


(…)” (cfr. documento de fls. 169 da certidão do processo de execução apensa aos autos);

O) No seguimento do despacho mencionado em N) supra, foi remetido à ora Oponente, por carta registada com aviso de recepção, ofício de “CITAÇÃO  (Reversão)”, datado de 29.04.2010 (cfr. documentos de fls. 164 e 165 da certidão do processo de execução apensa);

P) Foi aposta no aviso de recepção mencionado em O) que antecede, no campo destinado ao preenchimento pelo destinatário, a assinatura da Oponente e a data de recepção de 06.05.2010 (cfr. documento de fls. 165 da certidão do processo de execução apensa);

Q) Em 08.06.2010, foi apresentada no Serviço de Finanças de Arruda dos Vinhos a presente oposição (cfr. carimbo aposto no cabeçalho da petição inicial, a fls. 4 dos autos);

R) Por sentença do Tribunal de Comércio de Lisboa – 4.º Juízo –, proferida em 13.10.2010, no processo n.º 491/10.1TYLSB, foi declarada a insolvência da sociedade identificada na alínea A) supra (cfr. documento de fls. 52 dos autos).


***

A decisão recorrida elencou como factualidade não provada o seguinte:

“Não existem factos não provados com interesse para a decisão da causa.”


***

Ficou consignado na decisão recorrida como motivação da matéria de facto provada, que a mesma “[a]ssenta a convicção do tribunal no exame dos documentos constantes dos presentes autos e da certidão do processo de execução apensa, não impugnados, tudo conforme referido a propósito de cada uma das alíneas do probatório.”

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III-FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

In casu, a Recorrente não se conforma com a decisão proferida pelo Tribunal Tributário de Lisboa, que julgou procedente a presente oposição, na parte correspondente ao processo de execução fiscal n.º ..... e apensos, com a consequente extinção do mesmo.

Cumpre, desde já, relevar que em ordem ao consignado no artigo 639.º, do CPC e em consonância com o disposto no artigo 282.º, do CPPT, as conclusões das alegações do recurso definem o respetivo objeto e consequentemente delimitam a área de intervenção do Tribunal ad quem, ressalvando-se as questões de conhecimento oficioso.

Atento o exposto e as conclusões das alegações do recurso interposto importa, assim, decidir se ocorre o apontado erro de julgamento sobre a matéria de facto arguido pela Recorrente porquanto não valorou toda a factualidade alegada e tendente a demonstrar que a Recorrida foi gerente de facto da sociedade devedora originária e, com base nesse julgamento, se deve ser revogada a sentença na medida em que, por virtude desse erro, conclui pela ilegitimidade daquela para contra si prosseguir a execução a que se opôs.

Vejamos, então.

A Recorrente sustenta que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento de facto visto que não ponderou factos, desde logo, reconhecidos na sua petição inicial, os quais se tivessem sido, devidamente, valorados e face à demais prova carreada para os autos ter-se-ia de ter concluído que a Oponente, ora Recorrida, é parte legítima.

Aduz, para o efeito, que a lei não exige que os gerentes, exerçam uma administração continuada, bastando-se, tão-só, que pratiquem atos vinculativos da sociedade, exercitando desse modo a gerência de facto, o que sucedeu no caso vertente, dimanando tal asserção da assinatura de vários cheques.

Ademais, enfatiza, que a Recorrente ao anuir em apor a sua assinatura em cheques, dando ordens de pagamento em nome e no interesse da sociedade, assumia as decisões subjacentes, cooperando e coresponsabilizando-se no exercício de uma função própria de gerência, sendo irrelevante o facto de não praticar quaisquer outros atos em nome da sociedade.

Concluindo, assim, que tendo a Recorrida confessado que assinou vários cheques enquanto gerente da sociedade e encontrando-se nos autos comprovativos da receção de correspondência enviada pela Autoridade Tributária, teria o Tribunal a quo que dar como provado o exercício da gerência de facto.

Apreciando.

Comecemos, então, pelo erro de julgamento de facto.

Para o efeito importa, desde já, convocar o teor do artigo 640.º do CPC, aplicável ex vi artigo 281.º do CPPT.

Preceitua o aludido normativo que:

“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;

b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.

3 - O disposto nos n.os 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.”

Com efeito, no que diz respeito à disciplina da impugnação da decisão de primeira Instância relativa à matéria de facto, a lei processual civil impõe ao Recorrente um ónus rigoroso, cujo incumprimento implica a imediata rejeição do recurso, quanto ao fundamento em causa. Tem, por isso, de especificar, obrigatoriamente, na alegação de recurso, não só os pontos de facto que considera incorretamente julgados, mas também os concretos meios probatórios, constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizadas que, em sua opinião, impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados, diversa da adotada pela decisão recorrida ou o aditamento de novos factos ao acervo probatório dos autos[1].

No caso vertente, compulsado o teor das alegações coadjuvado com o teor das conclusões, ajuizamos, em termos de exigência mínima, que se encontram reunidos os requisitos contemplados na lei, porquanto evidencia qual o facto que pretende que seja aditado e o respetivo meio probatório.

Ab initio, importa ter presente que a seleção da matéria de facto só pode integrar acontecimentos ou factos concretos, que não conceitos, proposições normativas ou juízos jurídico-conclusivos, sendo que as asserções que revistam tal natureza devem ser excluídas do acervo factual relevante ou indeferido o seu aditamento.

 “[q]uestão de facto é (..) tudo o que se reporta ao apuramento de ocorrências da vida real e de quaisquer mudanças ocorridas no mundo exterior, bem como à averiguação do estado, qualidade ou situação real das pessoas ou das coisas” e que “(..) além dos factos reais e dos factos externos, a doutrina também considera matéria de facto os factos internos, isto é, aqueles que respeitam à vida psíquica e sensorial do indivíduo, e os factos hipotéticos, ou seja, os que se referem a ocorrências virtuais”.[2]

“As afirmações de natureza conclusiva devem ser excluídas do elenco factual a considerar, se integrarem o thema decidendum, entendendo-se como tal o conjunto de questões de natureza jurídica que integram o objeto do processo a decidir, no fundo, a componente jurídica que suporta a decisão. Daí que sempre que um ponto da matéria de facto integre uma afirmação ou valoração de factos que se insira na análise das questões jurídicas a decidir, comportando uma resposta, ou componente de resposta àquelas questões, tal ponto da matéria de facto deve ser eliminado.”[3].

Vejamos, então.

A Recorrente pretende que seja aditado à matéria de facto a seguinte factualidade: “Confessa a oponente na sua petição inicial ter assinado cheques em branco, a pedido do seu co-sócio, desconhecendo as quantias e a quem eram emitidos.”

Importa, desde já, relevar que o aludido facto, da forma como se encontra redigido não reveste a roupagem de um facto, sendo conclusivo, e reportando-se a meios de prova que, como visto, se encontra vedado.

Ademais, e não obstante a Recorrente aludir na sua p.i. à assinatura de “poucos” cheques - e não a vários “cheques” como é aduzido, erradamente, em K) das suas conclusões, sendo que são expressões, ainda que manifestamente conclusivas, distintas- a verdade é que tal assunção de realidade para revestir acuidade e figurar no probatório carecia da competente substanciação espácio-temporal, ou seja, seria imperioso que fossem identificados os cheques, e bem assim as correspondentes datas de emissão, de forma a alocar, sendo caso disso, ao período de gerência de direito. O que, como visto, não é, de todo, a situação em apreço.

Note-se que o juiz não está vinculado à fixação de toda a factualidade alegada na sua petição inicial, mas tão-só a valorar e ponderar aquela que tenha relevo para a presente lide. Noutra formulação, dir-se-á, que nem todos os factos alegados pelas partes, ainda que provados, carecem de integrar a decisão atinente à matéria de facto, porquanto apenas são de considerar os factos cuja prova (ou não prova) seja relevante face às várias soluções plausíveis de direito. Por outro lado, cumpre distinguir entre factos provados e meios de prova, sendo que uns não se confundem com os outros.

Com efeito, cabe ao julgador formular livremente a sua convicção, sopesando as provas apresentadas pelas partes, dando a cada uma o relevo que entender que lhe cabe, que pode ser total ou nenhum, assim como às razões e argumentos formulados pelas partes.

In casu, como é bom de ver, o Juiz do Tribunal a quo, não fixou a aludida factualidade porquanto entendeu que a mesma não revestia relevância para a presente lide, tendo, designadamente, feito alusão a essa mesma assunção genérica, ou seja, à falta de concretização, mormente, em termos de expressão numérica e temporal. Entendimento que, conforme veremos em sede própria, este Tribunal valida.

Acresce, outrossim, que a confissão é indivisível (artigo 360.º do CC), sendo que, conforme analisaremos aquando do erro sobre o julgamento de direito, existindo na aludida confissão factos que são favoráveis e factos desfavoráveis ao confitente, tal determina que a parte contrária, se não quiser ser prejudicada pela parte da confissão favorável ao confitente, tem de provar que ela não é verdadeira.

Face a todo o exposto, improcede o aludido aditamento à matéria de facto.


***

Aqui chegados, uma vez estabilizada a matéria de facto, atentemos, ora, no erro de julgamento de direito, competindo aferir se o Tribunal a quo errou ao decidir que a Recorrida é parte ilegítima porquanto não foi feita prova da gerência de facto.

Apreciando.

A oposição à execução fiscal funciona como contestação à pretensão do exequente e respeita aos fundamentos supervenientes que podem tornar ilegítima ou injusta a execução, devido a falta de correspondência com a situação material subjacente no momento em que se adotam as providências executivas, tendo por efeito paralisar a eficácia do ato tributário corporizado no processo executivo[4].

Sendo que, os fundamentos da execução fiscal são os taxativamente indicados nas várias alíneas do n.º 1 do artigo 204.º do CPPT.

Quanto à questão da ilegitimidade, dispõe o artigo 204.º, n.º 1, al. b), do CPPT, que a oposição pode ter como fundamento a “[i]legitimidade da pessoa citada por esta não ser o próprio devedor que figura no título ou seu sucessor ou, sendo o que nele figura, não ter sido, durante o período a que respeita a dívida exequenda, o possuidor dos bens que a originaram, ou por não figurar no título e não ser responsável pelo pagamento da dívida”.

Encontramo-nos, assim, face a leis sobre a prova de atos ou factos jurídicos que simultaneamente afetam o fundo ou substância do direito, repercutindo-se, assim, sobre a própria viabilidade deste, pertencendo, por isso, ao direito substancial.

É, com efeito, pacífica a jurisprudência que a responsabilidade subsidiária dos gerentes é regulada pela lei em vigor na data da verificação dos factos tributários geradores dessa responsabilidade, e não pela lei em vigor na data do despacho de reversão nem ao tempo do decurso do prazo de pagamento voluntário dos tributos[5].

No caso sub judice, face ao período temporal das dívidas revertidas e em contenda e melhor evidenciadas em C) e D), é aplicável o regime constante na LGT, concretamente o consignado no artigo 24.º, do citado diploma legal.

Convoquemos, então, o regime jurídico aplicável.

De harmonia com o disposto no artigo 24.º, n.º 1, da LGT:

“[o]s administradores, diretores e gerentes e outras pessoas que exerçam, ainda que somente de facto, funções de administração ou gestão em pessoas coletivas e entes fiscalmente equiparados são subsidiariamente responsáveis em relação a estas e solidariamente entre si:

a) Pelas dívidas tributárias cujo facto constitutivo se tenha verificado no período de exercício do seu cargo ou cujo prazo legal de pagamento ou entrega tenha terminado depois deste, quando, em qualquer dos casos, tiver sido por culpa sua que o património da pessoa coletiva ou ente fiscalmente equiparado se tornou insuficiente para a sua satisfação;

b) Pelas dívidas tributárias cujo prazo legal de pagamento ou entrega tenha terminado no período do exercício do seu cargo, quando não provem que não lhes foi imputável a falta de pagamento.”

Do teor do normativo legal supra transcrito resultam dois regimes distintos da responsabilidade do gestor, classificados de acordo com o fundamento pelo qual o gestor é responsabilizado, a saber, a responsabilidade pela diminuição do património e a responsabilidade pela falta de pagamento.

Concretizando.

Enquanto, a responsabilidade pela diminuição do património se encontra regulada na alínea a), do nº1, do artigo 24.º da LGT, a responsabilidade pela falta de pagamento está consagrada na alínea b), do nº1, do artigo 24º da LGT.

O citado artigo 24.º da LGT, introduziu nas suas alíneas a) e b), uma repartição do ónus da prova da culpa, distinguindo entre:

- as dívidas vencidas no período do exercício do cargo relativamente às quais se estabelece uma presunção legal de culpa na falta de pagamento (cfr. a parte final da alínea b) do n.º 1 do artigo 24.º da LGT);

- as demais previstas como geradoras de responsabilidade, concretamente, aquelas cujo facto constitutivo se tenha verificado no período do exercício do cargo (e não se vençam neste) e aquelas cujo prazo legal de pagamento ou entrega termine já após o termo do exercício do cargo. Nestas situações o ónus da prova impende sobre a Administração Tributária, ou seja, os gerentes ou administradores podem ser responsabilizados desde que seja feita prova de culpa dos mesmos na insuficiência do património social.

Convoque-se, neste particular, o Acórdão do STA proferido no recurso nº 0944/10, de 2 de março de 2011, disponível para consulta em www.dgsi.pt, que refere que:

“I - Nos termos do artigo 24.º, n.º 1, da LGT, não basta para a responsabilização das pessoas aí indicadas a mera titularidade de um cargo, sendo indispensável que tenham sido exercidas as respetivas funções.

II - Não existe presunção legal que imponha que, provada a gerência de direito, por provado se dê o efetivo exercício da função, na ausência de contraprova ou de prova em contrário.

III - A presunção judicial, diferentemente da legal, não implica a inversão do ónus da prova.

IV - Competindo à Fazenda Pública o ónus da prova dos pressupostos da responsabilidade subsidiária do gerente, deve contra si ser valorada a falta de prova sobre o efetivo exercício da gerência.”

Como doutrinado no citado Aresto, não existe presunção legal que imponha que, provada a gerência de direito, por provado se dê o efetivo exercício da função, na ausência de contraprova ou de prova em contrário, resultando apenas uma presunção legal, mas apenas da culpa do administrador pela insuficiência do património da sociedade originária devedora.

Visto o direito, atentemos, ora, no acervo probatório dos autos.

In casu, a 16 de novembro de 1998, foi constituída a sociedade por quotas com a designação “T.....  Lda.”, tendo como únicos sócios J.....  e a ora Recorrida, tendo ambos sido designados gerentes, obrigando-se a sociedade com a assinatura de qualquer um dos evidenciados gerentes de direito.

Mais dimana do probatório que, a 26 de abril de 2007, a Recorrida cedeu a sua participação social a L....., tendo, igualmente, renunciado à mencionada gerência, cujo registo na Conservatória do Registo Comercial ocorreu, a 26 de abril de 2007.

Logo, atentando no probatório (alínea C), verifica-se que os factos tributários e consequentemente os respetivos prazos legais expiraram em data anterior à cedência e respetiva renúncia, logo com subsunção jurídica na alínea b), do nº1, do artigo 24.º, da LGT.

De todo o modo, como visto, para efeitos de preenchimento dos pressupostos da reversão é curial a demonstração inequívoca da gestão por parte do gerente de direito, cujo ónus se circunscreve na esfera jurídica da Administração Tributária.

Sendo que, in casu, o Tribunal a quo entendeu que face à prova carreada aos autos a Administração Tributária não tinha logrado provar a gerência de facto que a Recorrida, expressamente, nega.

E, de facto, não se vislumbra qualquer erro de julgamento, tendo o Tribunal a quo interpretado adequada e corretamente os pressupostos da reversão à realidade fática dos autos e efetuado um correto exame crítico da prova produzida, permitindo-nos concluir pela falta de prova da gerência de facto da sociedade executada originária, por parte da Recorrida no período a que se reportam as dívidas exequendas revertidas enquanto pressuposto da reversão das execuções fiscais contra o responsável subsidiário.

Atentemos, então, nas razões que nos permitem concluir pelo acerto da decisão recorrida.

Para o efeito, importa, desde logo, relevar que, contrariamente ao que pretende evidenciar a Recorrente nas suas alegações, a Recorrida nega, de forma expressa, a gerência de facto da sociedade devedora originária, não tendo a Administração Tributária carreado para os autos elementos de prova que permitam extrair, de forma inequívoca e segura, que a mesma exerceu, efetivamente, a gerência da sociedade devedora originária.

Neste particular, atente-se, designadamente, nas alegações constantes nos artigos 83.º a 99.º da p.i, onde a Recorrida expressamente evidencia que “apesar de a oponente ter sido nomeada gerente da já aludida sociedade jamais exerceu de facto, as respectivas funções.”, sublinhando, neste âmbito, que se quedou “[p]or uma mera gerência de direito”, e que “[d]e gerente recebeu tão-só o nome”.

É certo que a Recorrente convoca a assinatura de vários cheques e, designadamente, o alegado em 93, para concluir que tal confissão permite, per se, inferir pela gerência de facto.

Porém, sem razão. Senão vejamos.

De facto no aludido artigo da p.i., a Recorrida aduz que “apenas assinou poucos cheques, em branco, desconhecendo as quantias e a quem eram emitidos, a pedido do seu co-sócio”.

Mas a verdade é que, não só a aludida alegação é genérica e manifestamente conclusiva, não permitindo identificar os mesmos, mensurar a sua expressão quantitativa, nem, tão-pouco, as datas em que foram emitidos, circunstâncias essas, naturalmente, vitais para se poder inferir, sendo caso disso, pela prática de atos de vinculação societária.

Como, em bom rigor, tal alegação não pode ser descontextualizada de todo o mais alegado e conforme pretende a Recorrente, e isto porque a aludida alegação vem na sequência deste arrazoado “nunca praticou actos relacionados com a gerência da primitiva executada, nomeadamente documentos fiscais, contratos de trabalho, contratos de fornecimento de serviços, etc.”, e de depois desfechar que “jamais assinou qualquer documento em seu nome e representação, de mero expediente que fosse”.

Até porque, como bem evidenciou o Tribunal a quo,:

“[e]m nenhum momento a Oponente confirma que a assinatura de cheques ocorreu durante o período a que respeita a dívida exequenda ou em que esta se venceu.

Por outro lado, estamos perante a prática de um único tipo de acto subscrito pela ora Oponente em nome da sociedade devedora originária, pelo que, sem mais elementos, não poderá deixar de se entender aquela assinatura de cheques, nas circunstâncias descritas, como uma mera decorrência da gerência nominal, não tendo a virtualidade de comprovar a eventual gerência de facto para o período em causa.”

Acresce que, “[a] indivisibilidade da confissão complexa tem, pois, como consequência a inversão do ónus da prova quanto à parte favorável ao confitente”, conforme resulta do Aresto do Supremo Tribunal de Justiça, proferido no processo nº 311/11.0TCFUN.L1.S1, datado de 9 de outubro de 2014.

Destarte, ter-se-á de valorar que a mesma pese embora reconheça que assinou poucos cheques- e não vários com aduz a Recorrente-a verdade é que evidencia que o fez totalmente alheada do interesse e vinculação societária e a pedido, donde sem o necessário animus[6].

Sendo, que para se verifique a gerência de facto é indispensável que o gerente use, efetivamente, dos respetivos poderes, que seja um órgão atuante da sociedade, não podendo a mesma ser atestada pela prática de atos isolados, mas antes pela existência de uma atividade continuada. Dir-se-á, portanto, que a gerência é, assim, antes do mais, a investidura num poder [7].

Aliás, face às alegações da Recorrida na sua p.i, e tendo, outrossim, presente que a Administração Tributária não carreou aos autos qualquer elemento que indicie, inequivocamente, a gestão, nem tão-pouco os evidenciados cheques, cujo ónus se circunscrevia na sua esfera jurídica, tal falta de prova terá de ser contra si valorada.

Neste particular, vide o Aresto do TCA Norte, proferido no processo nº 01389/04, de 25 de maio de 2016:

“ III. A distinção entre o mero gerente nominal do gerente efectivo reside no poder subjacente à realização dos actos. O gerente nominal, ou «meramente de direito», pode praticar actos aparentes de gerência, mas fá-lo desacompanhado dos inerentes poderes, normalmente a «mando» de alguém que na organização societária se resguarda de «assinar» e comprometer-se, mas que ainda assim detém o poder efectivo de controlar os destinos da sociedade incluindo os de «mandar assinar» documentos da sociedade, como gerente, alguém que, de facto, o não é.

IV - Estas situações ocorrem na maior parte das vezes num contexto em que, de um lado, está o «gerente efectivo», regra geral o detentor do capital e do poder que lhe subjaz, que oculta essa qualidade (normalmente por dificuldades de financiamento junto da banca devido a antecedentes de incumprimento, ou por restrição do uso de cheques, etc.; do outro lado, está (quase sempre) um sujeito numa relação de dependência (filho, empregado, cônjuge) ou de favor, que por isso aceita «assinar», ou «dar o nome».

V - Quando assim procede, quando «assina» ou «dá o nome», não o faz no uso de qualquer critério de oportunidade ou prossecução de interesse estatutário que não domina, mas sim para satisfazer um interesse pessoal alheio ao qual está vinculado ou subordinado por razões «não estatutárias».

VI - Neste cenário, o mero gerente de direito pratica actos formais de gerência; porém, fá-lo na dependência do gerente efectivo que lhe determina a «oportunidade», o «que», o «como» e o «quando» fazer. A sua função «esgota-se» nas assinaturas e não «pode» (porque não tem o poder) ir para além disso .”

É certo, outrossim, que a Recorrente aduz em abono da sua pretensão que do teor da assinatura dos avisos de receção evidenciados em E), se infere a gerência de facto da Recorrida, encontrando-se, portanto, legitimada a presunção do exercício efetivo e continuado dos poderes de administração e representação de que era titular face à mesma sociedade.

Mas a verdade é que nos encontramos perante a mera assinatura de dois avisos de receção, não se conseguindo, sem mais, extrapolar a gerência de facto, conforme faz a Recorrente. Ademais, e conforme já evidenciado anteriormente e no sentido propugnado pelo Tribunal a quo, a gerência não se presume tem, efetivamente, de ser cabalmente demonstrada, não podendo, por isso, consubstanciar-se em inferências decorrentes de atos que consubstanciam meros atos materiais que podem ser executados por quaisquer funcionários, não implicando qualquer poder de vinculação ou que permita extrapolar a gestão, a administração e poder decisório.

Até porque, aduza-se em abono da verdade, o que “[i]mporta para possibilitar a reversão contra as oponentes não é que, em termos jurídico civilísticos os actos praticados obriguem a sociedade, ou mesmo o desconto para a segurança social como membros de órgão estatutário, mas sim que efectivamente exista em termos naturalísticos, uma relação com a sociedade que permita traçar ou determinar o rumo desta[8].” (destaque e sublinhado nosso).

Não podendo, outrossim, lograr provimento o expendido em H), quando a mesma, como visto, expressamente nega a gerência de facto. De resto, no mínimo, está-se perante uma situação de non liquet, que se resolve contra quem tem o ónus da prova do facto, ou seja, no caso a Fazenda Pública.

Neste particular, convoque-se o Acórdão do STA, prolatado no âmbito do processo: 0580/12, datado de 31 de outubro de 2012[9], o qual, claramente, doutrina que:

“[P]ersistindo dúvida acerca do efectivo exercício de funções o ‘non liquet’ não poderá deixar de ser valorado contra a Administração fiscal, que invoca o direito a responsabilizar o gerente, pois que inexiste presunção legal no sentido de que o gerente de direito exerça de facto as suas funções”.

Ora, como visto, in casu, a Recorrida sempre negou essa relação com a sociedade e sempre sublinhou o seu total alheamento, pelo que competia à Administração Tributária fazer prova que a Recorrida era o órgão de gestão atuante que a mesma, expressamente, refutou.

Em face do referido, e conforme resulta expresso da factualidade provada, é manifesto que a Entidade Exequente não alegou, nem provou factos, que indiciem, de forma segura e inequívoca, o exercício da gerência de facto. Acresce que da demais documentação carreada para os autos, concretamente, dos elementos constantes no processo de execução fiscal apenso, não resulta qualquer documento que permita extrair a conclusão de que a Recorrida exerceu, de facto, a gerência da sociedade à data da prática dos factos tributários e do seu vencimento.

Como já devidamente evidenciado anteriormente, a gerência de facto de uma sociedade comercial consiste no efetivo exercício das funções que lhe são inerentes e que passam pela vinculação e representação da sociedade, nomeadamente, através das relações com os clientes, com os fornecedores, com as instituições de crédito e com os trabalhadores, tudo em nome, no interesse e em representação dessa sociedade. Porquanto, para se verifique a gerência de facto é indispensável que o gerente use, efetivamente, dos respetivos poderes, que seja um órgão atuante da sociedade, tomando as deliberações consentidas pelo facto, administrando e representando a empresa, realizando negócios e exteriorizando a vontade social perante terceiros.

Resulta, assim, que face à prova produzida nos autos, a Administração Tributária não estava legitimada a efetivar a reversão contra a Recorrida devido a falta de prova dos pressupostos da reversão no âmbito do processo de execução fiscal nº..... e apensos, assim se devendo confirmar a decisão recorrida.


***

IV. DECISÃO

Face ao exposto, ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, OS JUÍZES DA SEGUNDA SUBSECÇÃO DE CONTENCIOSO TRIBUTÁRIO deste Tribunal Central Administrativo Sul em:

-NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO E CONFIRMAR A DECISÃO RECORRIDA, a qual, em consequência, se mantém na ordem jurídica.

Custas pela Recorrente.

Registe. Notifique.


Lisboa, 11 de fevereiro de 2021

[A Relatora consigna e atesta, que nos termos do disposto no artigo 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13.03, aditado pelo artigo 3.º do DL n.º 20/2020, de 01.05, têm voto de conformidade com o presente Acórdão os restantes Desembargadores integrantes da formação de julgamento, os Desembargadores Susana Barreto e Vital Lopes]

Patrícia Manuel Pires

___________________
[1] António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 5ª edição, pp 165 e 166; José Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, CPC anotado, Volume 3º., Tomo I, 2ª. Edição, Coimbra Editora, 2008, pág.61 e 62; Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 9ª. edição, Almedina, 2009, pág.181; Vide, designadamente, Acórdão do TCA Sul, proferido no processo nº 6505/13, de 2 de julho de 2013.
[2] Henrique Araújo: “A matéria de facto no processo civil”, publicado no site do Tribunal da Relação do Porto, acessível em www.trp.pt
[3] Ac. do Tribunal da Relação do Porto, de 11 de julho de 2018, proferido no processo nº 1193/16.1T8PRT.P1
[4] Cfr. Ac. do Supremo Tribunal Administrativo datado de 04/06/2008, proferido no recurso n.º 179/08, disponível para consulta em www.dgsi.pt.
[5] vide, designadamente, Acórdãos do Pleno do STA, proferidos nos processos nºs 58/09, e 945/09, datados de 24.03.2010 e 07.07.2010.
[6] Vide, designadamente, Acórdão do TCAN, prolatado no processo nº 0116/11.3BEPRT datado de 25.05.2018.
[7] Sobre o traço distintivo entre gerente de direito e gerente de facto, vide, designadamente, Acórdão proferido pelo TCAN, no processo01417/05.0BEVIS, de 16 de abril de 2015
[8] In Acórdão do TCAN, proferido no processo nº 00520/12.4 de 02.03.2017.
[9] No mesmo sentido, vide o recente Aresto deste Tribunal, prolatado no processo nº 1978/05, de 08.10.2020.