Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1058/11.2BELRS
Secção:CT
Data do Acordão:10/14/2021
Relator:TÂNIA MEIRELES DA CUNHA
Descritores:LIQUIDAÇÃO OFICIOSA
DECLARAÇÃO FORA DE PRAZO
IRS
Sumário:I. A liquidação de IRS pode ser corrigida, mesmo depois de emitida liquidação oficiosa, respeitado que seja o respetivo prazo de caducidade.

II. A liquidação oficiosa emitida pela AT tem natureza provisória, por assentar em presunções, que poderão vir a ser ilididas.

III. O art.º 76.º, n.º 4, do CIRS prevê especificamente, para todos os casos previstos no seu n.º 1, sem exceção, a possibilidade de a liquidação poder ser corrigida.

IV. Apresentada que seja a declaração modelo 3 de IRS fora do prazo legalmente previsto para o efeito, mas dentro do prazo consagrado no art.º 76.º, n.º 4, do CIRS, a AT tem a obrigação de a analisar e agir em conformidade, corrigindo a liquidação oficiosa se for caso disso, sem que sejam de aplicar quaisquer das limitações previstas nos n.ºs 2 e 3 do art.º 76.º do CIRS, limitações essas apenas consagradas para definir os critérios a seguir ao nível das liquidações oficiosas.

Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
Acórdão

I. RELATÓRIO

J... (doravante Recorrente ou Impugnante) veio apresentar recurso da sentença proferida no Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Leiria, na qual foi julgada improcedente a impugnação por si apresentada, que teve por objeto o indeferimento parcial da reclamação graciosa resultante da convolação de declaração modelo 3 de imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS), relativa ao ano de 2009.

O recurso foi admitido, com subida imediata nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

Nesse seguimento, o Recorrente apresentou alegações, nas quais concluiu nos seguintes termos:

I. - Em primeiro lugar, a decisão em crise padece de erro de julgamento quanto à matéria de facto e de direito.

II. - No que respeita à matéria de facto, foi dado como provado no n.° 7 do probatório que: "Em 12/03/2011 o impugnante e M... submeteram uma Declaração Modelo 3 de IRS/2009, no estado civil de "casados", que apuraria caso fosse liquidada, um Rendimento Global de € 12 020,42 proveniente de € 12.020, 42 da Categoria A e € 0,00 da Categoria B/Regime de Contabilidade Organizada (Resultado líquido de rendimentos profissionais, comerciais e industriais de € 363,98) (informação de fls. 69 cujo conteúdo se dá por reproduzido”, ponto que encontra-se, salvo o devido respeito, incorrectamente julgado.

III. - Mais concretamente encontra-se incompleto para a decisão de direito a proferir em relação aos factos.

IV. - Com efeito, a consideração do teor da informação a fls. 57 dos autos devia igualmente ter neste âmbito dado como provado que em tal declaração os impugnantes: 'fizeram constar 2 dependentes com idade superior a 3 anos" e "um anexo H onde fez constar despesas diversas nos quadros 7 e 8”, o que deve conduzir à modificação da decisão quanto à matéria de facto.

V - Todavia, o erro de julgamento estende-se à matéria de direito.

VI. - A este respeito conclui a decisão em crise que: “...o impugnante teve dois prazos para apresentar a declaração: o prazo correspondente ao limite do prazo legal de entrega (Maio/2010 - Art.º 60°/1,ii do CIRS) e o prazo de 30 dias que lhe foi concedido pela A T após conhecimento da falta de declaração.

Precludidos que foram esses dois prazos, a liquidação é efectuada oficiosamente não se atendendo ao disposto no art. 70° e sendo apenas efectuadas as deduções previstas na alínea a) do n. ° 1 do art. 79° e no n. ° 3 do art. 97° (Art. 76. °/3 do CIRS)".

VII - Tal interpretação, não faz também, salvo o devido respeito, correcta interpretação da lei.

VIII - Com efeito, o âmbito de aplicação do art. 76.°, n.° 3 do CIRS respeita às hipóteses em que o sujeito passivo não tenha entregue a sua declaração.

IX - Deste modo, a interpretação que o recorrente reputa de acertada é a seguinte, caso o sujeito passivo não apresente declaração no prazo de 30 dias, a liquidação oficiosa deve ser realizada nos termos previstos do art. 76.°, n.° 3 do CIRS.

X - Sendo certo que se essa inacção terminar nos prazos a que alude o art. 76.°, n.° 4 do CIRS, a liquidação oficiosa não pode subsistir.

XI - Mais concretamente, em relação ao teleológico da interpretação, a finalidade legislativa aponta no sentido de que a omissão do sujeito passivo não obsta à liquidação de imposto, embora com os dados que a Administração Fiscal disponha e tendo em consideração o n.° 3 do art. 76.° do CIRS.

XII- Sendo certo que, caso o contribuinte apresente a declaração e a Administração não questione investigue os valores apostos na declaração, deve a situação real (a declarada) substituir a que foi apurada (com base nos elementos que a Administração Tributária disponha).

XIII - Nesta linha também aponta o elemento sistemático que obriga o intérprete a atender a todas as normas conexas com a matéria de facto relevante, mormente o art. 76.°, n.° 1, al. b). n.° 2, n.° 3 e n° 4. todos do CIRS.

XIV – Mais, relativamente ao elemento histórico da interpretação, dispunha o anterior art. 78.°, n.° 1, al. b) e n.° 2 do CIRS(artigo que se encontra na origem do actual art. 76 do CIRS) que a liquidação de IRS processar-se-á: “Pela totalidade do rendimento colectável do ano mais próximo que se encontre determinado e em cujo apuramento tenham sido considerados rendimentos da categorias B,C ou D, se, não tenha sido ainda declarada a respectiva cessação de actividade, a declaração a que se refere a alínea b) do n.° 1 do art. 60.°, não tiver sido apresentada dentro do prazo legal, salvo se for possível efectuar a liquidação com base em declaração entretanto apresentada;..." e em relação ao n.° 2 “ Em todos os casos previstos no número anterior, a liquidação poderá ser corrigida, se for caso. dentro dos 5 anos seguintes àquele a que o imposto respeita, cobrando-se ou anulando-se as diferenças apuradas''.

XV. Relativamente ao referido art. 78.° anota o Professor André Salgado de Matos, Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares - Anotado, Instituto Superior de Gestão, 1999, pág. 389: “No n.° 1, b) regula-se a liquidação primária oficiosa provisória. Esta tem como pressupostos seguintes: a) Que no ano fiscal anterior ao ano do imposto liquidado o sujeito passivo tenha auferido rendimentos das categorias B, C ou D; b) Que não tenha declarado a cessação de actividade nos termos do art. 106.°; c) Que a declaração de rendimentos de trabalho independente não tenha sido apresentada no prazo legal; d) Que a declaração não tenha sido entretanto apresentada, caso em que se seguirá o regime da alínea a). A liquidação provisória é pela totalidade do rendimento colectável do ano mais próximo que se encontra determinado e em que aquele sujeito passivo tenha auferido rendimentos das categorias B, C ou D”.

XVI - Por outras palavras, a liquidação oficiosa é provisória.

XVII - Também no regime actual entende o recorrente que, a liquidação oficiosa não é definitiva quando, como dispõe o n.° 4 do art. 76.° do CIRS, o sujeito passivo apresente a declaração com vista à correcção.

XVIII- Se assim não fosse, qual seria o sentido útil do n.° 4 do art. 76 .°do CIRS?

XIX - Crê o recorrente que nenhum.

XX - Razão pela qual, a decisão em crise viola o art. 76°, n.° 1. al. b), n.° 2, n.° 3 e 4. todos do CIRS.

XXI - Acrescenta ainda o Tribunal a quo que "É certo que o n.° 4 do art. 76 CIRS permite a correcção da liquidação dentro dos prazos a que aludem os art.s 45.° e 46.º LGT (...) Afigura-se-me que a correcção permitida deve respeitar os limites impostos pelo n.° 3, pois não faria sentido a lei proibir (art. 76. °/3) e simultaneamente permitir (Art. 76/4 CIRS).

XXII – Ora, como resulta da interpretação que o recorrente estima por correcta e já supra concretizada, o n.° 3 do art. 76.° do CIRS estabelece o modo/forma como deve ser realizada a liquidação oficiosa, quando o sujeito passivo não a apresente, apesar de notificado para o efeito.

XXII - Relevando ainda a previsão do n.° 4 do art. 76.° de tal diploma quando afirma que: " Em todos os casos previstos no n ° 1 (nosso sublinhado)...".

XXIII - Ora, a hipótese de não entrega de declaração deve também respeitar ao modo de actuação a que Administração Tributária se encontra vinculada, quando não seja apresentada a declaração a que alude o n.° 3 do art. 76.° do CIRS. Ou, dito de outro modo, a parte final do n.° 3 do art. 76.° do CIRS estipula esse modus operandi.

XXIV - Não existindo assim neste âmbito, salvo o devido respeito, qualquer permissão (n.° 4) e proibição (n.° 3) a que alude a decisão em crise.

XXV- Os limites do n.° 3 do art. 76.° do CIRS respeitam à liquidação oficiosa.

XXVI - E não à correcção, efectuada ao abrigo do n.° 4 do art. 76.° do CIRS.

XXVII - Consequentemente, devem no caso em apreço ser extraídas todas consequências jurídicas da declaração de IRS relativa ao exercício de 2009 apresentada pelo sujeito passivo em 12/03/2011 no prazo de caducidade do direito à liquidação.

XXVIII - Acredita o recorrente que é precisamente este o sentido do oficio-circulado n.° 20142 de 03/12/009 ao afirmar-se neste que: “ 2 - Caso a declaração não tenha sido apresentada, o titular dos rendimentos é notificado por carta registada para cumprir a obrigação em falta no prazo de 30 dias, findo o qual é efectuada a liquidação. Nos termos do disposto da alínea b) do n° 1 e n.° 3 do art. 76.° do Código do IRS (nosso sublinhado)...", junto sob o n.° 2 do requerimento apresentado em 9/11/2011.

XXIX - Ora, se o art. 78.°, n.° 4 faz referência ao n.° 1 do CIRS é porque é admissível a correcção de acordo com o declarado pelo sujeito passivo.

XXX - O que conduz, também por aqui, à revogação da decisão em crise.

XXXI - Termina-se imputando erro de julgamento à decisão em crise.

Termos em que, deve a decisão do Tribunal a quo ser revogada nos termos supra expostos, declarando-se a ilegalidade da liquidação subjacente”.

A Fazenda Pública (doravante Recorrida ou FP) apresentou contra-alegações, nas quais formulou as seguintes conclusões:

“1. Na tese do Recorrente a decisão recorrida incorre em erro de julgamento quanto à matéria de facto assente como provada e do direito aplicado relativamente à interpretação da lei - art° 76° n° 3 do CIRS.

a) Quanto ao alegado erro de julgamento da matéria de facto assente como provada

2. O Recorrente imputa à decisão recorrida, erro de julgamento quanto à matéria de facto dada como provada, no n° 7 do probatório, porquanto encontra-se incompleto, em consideração ao teor da informação constante de fls.57 dos autos, na qual se refere que os Impugnantes “fizeram constar 2 dependentes com idade superior a 3 anos” e “um anexo H onde fez constar despesas diversas nos quadros 7 e 8”.

3. A sentença sob censura refere no ponto 10 da matéria assente como provada os referidos dois dependentes e deixou implícito a apresentação do anexo H referindo não terem sido consideradas as deduções à colecta do mesmo constantes.Donde, resulta inequívoco da matéria de facto assente como provada o teor da informação aludida pelo ora Recorrente, devendo, por isso, ser mantida a sentença, julgando-se pelo não provimento do recurso nesta parte.

b) Relativamente ao alegado erro de julgamento quanto ao direito aplicado e sua interpretação

4. Assaca ainda o ora Recorrente, que incorre a sentença sob censura em erro de julgamento por incorrecta interpretação do n° 3 do art° 76° do CIRS.

5. Alega o Recorrente, que a interpretação efectuada pelo douto Tribunal a quo não faz uma correcta interpretação da lei já que, o âmbito de aplicação do art° 76° n° 3 do IRS respeita às hipóteses em que o sujeito passivo não tenha entregue a sua declaração, referindo o seu n° 4 que a liquidação pode ser corrigida em todos os casos referidos no n°1.

6. Porém, o prazo dado pelo legislador para a correcção da liquidação (art. 76/4 do CIRS), tem por sua vez os limites impostos pelo n° 3 do citado preceito legal.

7. Ou seja:

“Caso a declaração não tenha sido apresentada, o titular dos rendimentos é notificado por carta registada para cumprir a obrigação em falta no prazo de 30 dias, findo o qual é efectuada a liquidação.

Nos termos do disposto na alínea b) d n° 1 e n° 3 do artigo 76o do Código do IRS, esta liquidação terá por base os elementos de que a Direcção-Geral dos Impostos disponha, sem se atender ao mínimo de existência (artigo 70o) e sendo apenas efectuadas as deduções previstas na alínea a) do n° 1 do artigo 79o (dedução pessoal do sujeito passivo) e no n° 3 do artigo 97o (retenções na fonte e pagamentos por conta). (cfr. Ofício-Circulado n° 20142 de 3/12/2009 emanado da DSIRS/DC)

8. Pelo que, bem andou a sentença recorrida por aderência ao preceituado legal supra referenciado, não se detectando qualquer das violações aduzidas pelo Recorrente na sentença recorrida.

9. A esta luz, nenhuma censura merece a sentença recorrida, que esta RFP faz questão de acompanhar inteiramente, rebatidos que ficam os argumentos apresentados pelo Recorrente, e, consequentemente, prejudicada a sua pretensão, e, consequentemente, o presente recurso julgado improcedente, in totum.

Nestes termos deve o presente recurso ser julgado não provido, mantendo-se a douta sentença do Tribunal a quo, que nenhuma censura merece atento os elementos probatórios constantes dos autos”.

Foram os autos com vista ao Ilustre Magistrado do Ministério Público, nos termos do então art.º 289.º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), que emitiu parecer, no sentido de ser negado provimento ao recurso.

Colhidos os vistos legais (art.º 657.º, n.º 2, do CPC, ex vi art.º 281.º do CPPT) vem o processo à conferência.

São as seguintes as questões a decidir:

a) A decisão proferida sobre a matéria de facto padece de erro?

b) Verifica-se erro de julgamento, na medida em que a liquidação oficiosa é uma liquidação provisória, não sendo in casu aplicáveis as limitações previstas nos n.ºs 2 e 3 do art.º 76.º do Código do IRS (CIRS)?

II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

II.A. O Tribunal recorrido considerou provada a seguinte matéria de facto:

“1. Os impugnantes no ano de 2009 não entregaram a a declaração modelo3 de IRS no mês de maio de 2010 (informação de fls. 68 cujo conteúdo se dá por reproduzido).

2. A AT notificou os impugnantes nos termos e para efeitos do Art.° 76º/3 do CIRS (informação de fls. 68 cujo conteúdo se dá por reproduzido).

3. Mas o reclamante não entregou no prazo de 30 dias a declaração de rendimentos em falta.

4. Em 10/11/2010 e 02/12/2010, a Administração Tributária procedeu à recolha das declarações oficiosas ao abrigo do artigo 76.°, n.°s 1, alínea b), 2 e 3 do Código do IRS, constando os sujeitos passivos no estado civil de “solteiros” (informação de fls. 69 cujo conteúdo se dá por reproduzido).

5. A declaração em nome do impugnante apurou um Rendimento Global de € 34.316,43 proveniente de € 34.316,43 da Categoria B/Regime Simplificado (Prestações de serviços e outros rendimentos no montante de € 49.023,47, às quais foi aplicado o factor de 0,70 (informação de fís. 69 cujo conteúdo se dá por reproduzido).

6. A liquidação da declaração (n.° 2011 5000066061) foi notificada ao impugnante em 14-02-2011, (registos postais n.°s RY 5201 ... 1 PT e RY 5202 ... 5 PT -juros compensatórios), da qual resultou € 8.673,27 de imposto e € 178,69 de juros compensatórios, no valor total de € 8.851,96 (informação de fls. 69 cujo conteúdo se dá por reproduzido).

7. Em 12/03/2011 o impugnante e M... submeteram uma Declaração Modelo 3 de IRS/2009, no estado civil de “casados”, que apuraria, caso fosse liquidada, um Rendimento Global de € 12.020,42 proveniente de € 12.020,42 da Categoria A e € 0,00 da Categoria B/Regime de Contabilidade Organizada (Resultado líquido de rendimentos profissionais, comerciais e industriais de € 363,98) (informação de fls. 69 cujo conteúdo se dá por reproduzido).

8. Tal declaração foi convolada em reclamação graciosa (fls. 4 do apenso de reclamação graciosa n.° 2089201104000919 (fls. 2 do apenso cujo conteúdo se dá por reproduzido).

9. A qual foi deferida parcialmente nos termos que constam de fls. 33 do apenso cujo conteúdo se dá por reproduzido.

10. Deferimento parcial que implicou o reconhecimento do estado civil (casado), os dois dependentes e o valor de € 49 023,47 no anexo B à taxa máxima para os serviços prestado. E não foram consideradas as deduções à colecta constantes do anexo H (fls. 32 do apenso cujo conteúdo se dá por reproduzido)”.

II.B. Refere-se ainda na sentença recorrida:

“FACTOS NÃO PROVADOS.

Com interesse para a decisão da causa nada mais se provou”.

II.C. Foi a seguinte a motivação da decisão quanto à matéria de facto:

A convicção do tribunal baseou-se nos documentos juntos aos autos, referidos nos «factos provados» com remissão para as folhas do processo onde se encontram”.

II.D. Da impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto

Considera o Recorrente que a decisão proferida sobre a matéria de facto padece de erro, na medida em que o facto 7 se mostra incompleto, devendo, face à prova produzida nos autos, do mesmo constar a que na declaração modelo 3 apresentada “fizeram constar 2 dependentes com idade superior a 3 anos" e "um anexo H onde fez constar despesas diversas nos quadros 7 e 8”.

Considerando o disposto no art.º 640.º do CPC, ex vi art.º 281.º do CPPT, a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto carateriza-se pela existência de um ónus de alegação a cargo do Recorrente, que não se confunde com a mera manifestação de inconformismo com tal decisão (1).

Assim, o regime vigente atinente à impugnação da decisão relativa à matéria de facto impõe ao Recorrente o ónus de especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considere incorretamente julgados [cfr. art.º 640.º, n.º 1, al. a), do CPC];

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impõem, em seu entender, decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida [cfr. art.º 640.º, n.º 1, al. b), do CPC], sendo de atentar nas exigências constantes do n.º 2 do mesmo art.º 640.º do CPC;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas [cfr. art.º 640.º, n.º 1, al. c), do CPC].

Como tal, não basta ao Recorrente manifestar de forma não concretizada a sua discordância com a decisão da matéria de facto efetuada pelo Tribunal a quo, impondo­-se-lhe os ónus já mencionados (2).

Transpondo estes conceitos para o caso dos autos, verifica-se que tais ónus foram cumpridos, pelo que se irá proceder à apreciação do requerido.

O Tribunal a quo, no seu facto 7., considerou provado que:

“7. Em 12/03/2011 o impugnante e M... submeteram uma Declaração Modelo 3 de IRS/2009, no estado civil de “casados”, que apuraria, caso fosse liquidada, um Rendimento Global de € 12.020,42 proveniente de € 12.020,42 da Categoria A e 0,00 da Categoria B/Regime de Contabilidade Organizada (Resultado líquido de rendimentos profissionais, comerciais e industriais de € 363,98) (informação de fls. 69 cujo conteúdo se dá por reproduzido)”.

Efetivamente, atenta a prova constante dos autos, resulta que, na mencionada declaração, o Recorrente fez constar 2 dependentes com idade superior a 3 anos e, bem assim, um anexo H, com despesas nos quadros 7 e 8.

Ademais, verifica-se ser mais percetível uma reformulação da estrutura do facto, para melhor apreensão do declarado (tanto mais que a informação na qual se sustentou o Tribunal a quo tem um lapso, na medida em que procedeu ao somatório do rendimento da categoria A com o da C, tratando-o como se fosse apenas da categoria A), o que sempre este Tribunal poderia fazer, ao abrigo do art.º 662.º do CPC.

Face ao exposto, altera-se a redação do facto 7., que passará a ser a seguinte:

7. Em 12.03.2011 o impugnante e M... submeteram uma Declaração Modelo 3 de IRS, relativa ao ano de 2009, da qual consta designadamente o seguinte:

a) Indicação do estado civil de “casados”;

b) Indicação de 2 dependentes com idade superior a 3 anos;

c) Anexo A, com indicação de rendimento no valor de 11.656,44 Eur.;

d) Anexo C, com lucro apurado de 363,98 Eur.;

e) Anexo H, com deduções à coleta e benefícios fiscais no valor de 358,50 Eur. e despesas de saúde e educação no valor de 938,43 Eur. (cfr. fls. 42 a 49 e 69 do processo administrativo).

III. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

III.A. Do erro de julgamento

Considera o Recorrente que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, na medida em que, caso seja apresentada declaração de rendimentos de IRS dentro do prazo previsto no n.º 4 do art.º 76.º do CIRS, a liquidação oficiosa não pode subsistir, por ser uma liquidação provisória, não sendo ainda in casu aplicáveis as limitações previstas nos n.ºs 2 e 3 do art.º 76.º do mencionado código.

Vejamos então.

Nos termos do art.º 57.º do CIRS, cabe ao sujeito passivo a apresentação da declaração periódica de rendimentos.

Sendo apresentada declaração dentro do prazo legal previsto para o efeito, a liquidação de IRS é efetuada com base na mesma [cfr. art.º 76.º, n.º 1, al. a), do CIRS].

Não sendo apresentada a declaração e não se tratando de situação de exclusão da obrigação de apresentação da declaração (cfr. art.º 58.º do CIRS), a liquidação é oficiosamente emitida, nos termos do mesmo n.º 1 do art.º 76.º do CIRS, com base em elementos de que a administração tributária (AT) disponha [cfr. art.º 76.º, n.º 1, als. b) e c), do CIRS].

Atento o disposto no referido art.º 76.º, nos seus n.ºs 3 e 4 (redação vigente à data da emissão da liquidação):

“3 - Quando não seja apresentada declaração, o titular dos rendimentos é notificado por carta registada para cumprir a obrigação em falta no prazo de 30 dias, findo o qual a liquidação é efetuada, não se atendendo ao disposto no artigo 70.º e sendo apenas efetuadas as deduções previstas na alínea a) do n.º 1 do artigo 79.º e no n.º 3 do artigo 97.º

4 - Em todos os casos previstos no n.º 1, a liquidação pode ser corrigida, se for caso disso, dentro dos prazos e nos termos previstos nos artigos 45.º e 46.º da lei geral tributária”.

Portanto, este n.º 4 consagra expressamente a possibilidade de haver correções à liquidação, desde que respeitado o prazo de caducidade.

Como se menciona no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 05.12.2018 (Processo: 0220/11.2BEVIS 0286/18), “o disposto no artº 76º nº 4 do CIRS, vigente à data dos factos, que alguma razão de ser, na harmonia do sistema legislativo, há-de ter (…) [, a] nosso ver possibilita/impõe à Administração Tributária a correcção da liquidação oficiosa por si elaborada quando seja suprida pelo sujeito passivo a sua falta declarativa dentro dos prazos ali previstos”.

Refira-se, ainda, que a circunstância de ter sido emitida liquidação oficiosa, na sequência de omissão declarativa, não implica que essa mesma liquidação não possa ser posta em causa, graciosa ou contenciosamente [cfr., a título meramente ilustrativo, os acórdãos deste TCAS de 16.12.2020 (Processo: 837/09.5BELRS), de 04.06.2020 (Processo: Processo: 2072/07.8BELSB), de 20.02.2020 (Processo: 751/11.4BELRS), de 25.06.2019 (Processo: 506/14.4BEBJA) e de 10.11.2016 (Processo: 06790/13)].

Aliás, a este propósito quer a doutrina (3) quer a jurisprudência (4) qualificam mesmo esta liquidação oficiosa como de natureza provisória, justamente por assentar em presunções, que poderão vir a ser ilididas.

In casu, como não é controvertido, o Recorrente não apresentou tempestivamente a declaração modelo 3 de IRS relativa ao ano de 2009.

Nessa sequência, a AT procedeu à respetiva liquidação oficiosa, como legalmente previsto, nos termos já explanados supra.

Nesse seguimento, foram fixados os rendimentos, nos termos mencionados em 5. do probatório, e foi emitida a liquidação referida em 6.

Ficou ainda provado que, a 12.03.2011, o Recorrente e a mulher apresentaram declaração modelo 3 de IRS relativa ao ano de 2009, a qual foi convolada pela AT em reclamação graciosa, que foi considerada parcialmente procedente.

Pela análise desta decisão, verifica-se que a AT considerou que nem todas as alterações efetuadas na declaração modelo 3 apresentada eram admissíveis, entendendo que apenas poderia ser considerado o estado civil, os dois dependentes e o valor de 49.023,47 Eur. no anexo B à taxa máxima, não se podendo considerar as deduções à coleta.

A AT sustentou-se no entendimento constante de uma instrução administrativa, concretamente o Ofício Circulado 20142/2009, de 3 de dezembro, no fundo considerando que o tratamento a dar à declaração de rendimentos apresentada pelos administrados tem as limitações constantes dos n.ºs 2 e 3 do art.º 76.º do CIRS, entendimento que o Tribunal a quo secundou.

Decorre da mencionada instrução administrativa [que não vincula se não a própria AT – cfr. a este propósito o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 16.09.2020 (Processo: 02483/10.1BELRS), relativo a esta instrução administrativa]:

“1 - Os sujeitos passivos devem apresentar, anualmente, uma declaração modelo 3, acompanhada dos anexos respectivos, relativa aos rendimentos do ano anterior e a outros elementos informativos relevantes para a sua concreta situação tributária. Após a apresentação da declaração dentro dos prazos legalmente estabelecidos, a liquidação é efectuada tendo por base os elementos declarados pelos sujeitos passivos.

2 - Caso a declaração não tenha sido apresentada, o titular dos rendimentos é notificado por carta registada para cumprir a obrigação em falta no prazo de 30 dias, findo o qual é efectuada a liquidação. Nos termos do disposto na alínea b) do nº 1 e nº 3 do artigo 76º do Código do IRS, esta liquidação terá por base os elementos de que a Direcção-Geral dos Impostos disponha, sem se atender ao mínimo de existência (artigo 70º) e sendo apenas efectuadas as deduções previstas na alínea a) do n.º 1 do artigo 79º (dedução pessoal do sujeito passivo) e no n.º 3 do artigo 97º (retenções na fonte e pagamentos por conta).

3 – Tratando-se de uma liquidação realizada com base em pressupostos e condicionalismos especiais (parte final do nº 3 do artigo 76º do CIRS), também uma eventual reclamação terá necessariamente de se cingir às especificidades dessa mesma liquidação. Assim, estando em causa uma liquidação efectuada a um sujeito passivo individualmente considerado, a revisão da liquidação só pode ser fundamentada em erro na sua situação pessoal, bem como nos elementos tidos em consideração na própria liquidação (rendimento do contribuinte, a dedução pessoal que lhe seja imputável e as retenções na fonte e pagamentos por conta, não se tendo em consideração o mínimo de existência).

4 – Conclui-se assim que, num eventual pedido de revisão da liquidação através do mecanismo da reclamação graciosa, somente poderão ser objecto de revisão os seguintes aspectos:

• Estado civil do sujeito passivo (invocando que é casado, não relevando assim a indicação de unido de facto, por esta se tratar de uma opção e não de regime regra);

• Rendimento bruto e correspondente dedução específica (com excepção dos rendimentos da categoria B, aos quais se aplica sempre o coeficiente mais elevado previsto no nº 2 do artigo 31º, conforme disposto no artigo 76º nº 2);

• Retenções na fonte e pagamentos por conta”.

Desde já se adiante que não se subscreve tal entendimento, que não encontra respaldo na disciplina aplicável.

Com efeito, e independentemente de o Recorrente não ter apresentado a declaração de rendimentos dentro do prazo legalmente previsto para o efeito, tal não significa que não deve ser considerada, no seu todo, a declaração de rendimentos apresentada, ainda que fora do prazo legal (desde que respeitado, desde logo, o prazo de caducidade do direito à liquidação). Isto independentemente de a mesma não gozar de presunção de veracidade, uma vez que, não obstante esta circunstância, no caso dos autos de modo algum a AT pôs em causa o declarado, limitando-se a entender não ser admissível a consideração de parte dos valores nos termos assinalados.

Na verdade, não se entende que a consideração do teor da declaração apresentada fora de prazo esteja limitada aos termos dos n.ºs 2 e 3 do art.º 76.º - isto sem prejuízo de a AT poder pôr em causa a correção dos elementos constantes daquela declaração, o que não sucedeu in casu.

Como já se referiu supra, o art.º 76.º, n.º 4, do CIRS prevê especificamente, para todos os casos previstos no n.º 1, sem exceção, a possibilidade de a liquidação poder ser corrigida, respeitado que seja o respetivo prazo de caducidade.

Portanto, apresentada a declaração mencionada em 7. do probatório, a AT tinha o poder-dever de a analisar e agir em conformidade, corrigindo a liquidação oficiosa emitida, mas sem que sejam de aplicar quaisquer das limitações previstas nos n.ºs 2 e 3 do art.º 76.º, limitações essas apenas consagradas para definir os critérios a seguir ao nível das liquidações oficiosas – liquidações que, como referimos, são provisórias por natureza, devendo as mesmas ceder perante a declaração efetiva e correta dos rendimentos (e respetivas deduções).

Aliás, quer o n.º 2 quer o n.º 3 do art.º 76.º expressamente referem serem aplicáveis nos casos de falta de apresentação de declaração, nada decorrendo do n.º 4 que estenda tais limitações em situações como a dos autos.

Trata-se, aliás, da interpretação mais consentânea com o princípio da capacidade contributiva, princípio basilar do nosso ordenamento jurídico-tributário.

Com efeito, dispõe o art.º 104.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP), que “… [o] imposto sobre o rendimento pessoal visa a diminuição das desigualdades e será único e progressivo, tendo em conta as necessidades e os rendimentos do agregado familiar”, ou seja, prevê o princípio da capacidade contributiva, que determina que a tributação seja efetuada em função dos rendimentos efetivos.

Interpretação em sentido distinto, como refere o Recorrente na sua petição, implicaria uma dupla penalidade, na medida em que, face ao atraso na apresentação da declaração, já é punido em sede contraordenacional, não havendo sustentação para se ignorar o rendimento efetivamente obtido.

Aliás, reiteramos, a AT em momento algum põe em causa a adesão à realidade dos valores declarados.

Como tal, assiste razão ao Recorrente, padecendo o ato impugnado de vício, conducente à sua anulação.

IV. DECISÃO

Face ao exposto, acorda-se em conferência na 2.ª Subsecção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:

a) Conceder provimento ao recurso, revogar a sentença recorrida, julgando-se procedente a impugnação e, em consequência, anulando-se o ato impugnado;

b) Custas pela Recorrida em ambas as instâncias;

c) Registe e notifique.


Lisboa, 14 de outubro de 2021

(Tânia Meireles da Cunha)

(Susana Barreto)

(Patrícia Manuel Pires)


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(1) Cfr. António dos Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2018, p. 169.
(2) V., a título exemplificativo, o Acórdão deste TCAS, de 27.04.2017 (Processo: 638/09.0BESNT) e ampla doutrina e jurisprudência no mesmo mencionada.
(3) Cfr. Manuel Faustino, «A tributação do rendimento das pessoas singulares», Lições de Fiscalidade, vol. I, 2.ª Ed., Almedina, Coimbra, 2013, p. 210.
(4) Cfr. o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 05.12.2018 (Processo: 0220/11.2BEVIS 0286/18), e os Acórdãos do Tribunal Central Administrativo Sul, de 28.01.2021 (Processo: 3145/12.0BELRS) e de 27.05.2021 (Processo: 53/10.3BEALM).