Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:185/17.7 BEALM
Secção:CA- 2º JUÍZO
Data do Acordão:03/15/2018
Relator:PAULO PEREIRA GOUVEIA -Relator por vencimento
Descritores:SUSPENSÃO DE EFICÁCIA
ATO JÁ EXECUTADO
Sumário:I - O processo cautelar só perde interesse se todos os efeitos nocivos do ato já se tiverem consumado. Ou seja, se a execução do ato administrativo foi de molde a consumar inteiramente a lesão.

II - Caso contrário, persistindo situações lesivas ou o risco da produção de novos danos, pode ser decretada a suspensão da eficácia do ato administrativo, sendo ainda certo que a suspensão tem eficácia retroativa.
Votação:COM VOTO DE VENCIDO
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Central Administrativo Sul:

I - RELATÓRIO

FRANCISCO …………………….., assistente hospitalar graduado de ortopedia ……………………… EPE, residente em Urbanização …………….., lote 50, ............, intentou no Tribunal Administrativo de Círculo de LISBOA

Processo cautelar

contra MINISTÉRIO DA SAÚDE,

e como contra-interessados IGAS – INSPECÇÃO GERAL DE ACTIVIDADES EM SAÚDE, com sinais nos autos e CENTRO HOSPITALAR DE SETÚBAL, corretamente identificado nos autos.

A pretensão apresentada foi: suspensão da eficácia do despacho do Ministro da Saúde datado de 6 outubro de 2016 que corroborou a decisão de fls 319 do P.15/2014-DIS e lhe aplicou a pena de suspensão de 180 dias.

Por despacho de 04-09-2017, o referido tribunal veio a prolatar a decisão ora recorrida, julgando extinta a instancia, por inutilidade superveniente da mesma, uma vez que o requerente já cumpriu a pena.

*

Inconformado com tal decisão, o requerente interpôs o presente recurso de apelação, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:

« Texto no original»

*

O recorrido contra-alegou, concluindo assim:

« Texto no original»

*

Cumpridos os demais trâmites processuais, importa agora apreciar e decidir em conferência.

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DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO:

Os recursos, sendo dirigidos contra a decisão do tribunal recorrido e respetivos fundamentos, têm o seu âmbito objetivo delimitado pelo recorrente nas conclusões da sua alegação de recurso (cfr. artigos 144º/2 e 146/4 do CPTA, 5º, 608º/2, 635º/4/5, e 639º do CPC/2013, “ex vi” artigos 1º e 140º do CPTA), alegação que apenas pode incidir sobre as questões de facto e ou de direito (1) que tenham sido apreciadas pelo tribunal recorrido ou que devessem ser aí oficiosamente conhecidas. Sem prejuízo das especificidades do contencioso administrativo (cf. J. C. VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça Administrativa – Lições, 15ª ed., pp. 411 ss; artigos 73º/4, 141º/2/3, 143º e 146º/1/3 do CPTA).

Por outro lado, nos termos do artigo 149.º do CPTA, o tribunal “ad quem”, em sede de recurso de apelação, não se limita a cassar a decisão judicial recorrida, porquanto, ainda que a revogue ou a anule (isto no sentido muito amplo utilizado no CPC), deve decidir o objeto da causa apresentada ao tribunal “a quo”, conhecendo de facto e de direito, desde que se mostrem reunidos nos autos os pressupostos e condições legalmente exigidos para o efeito.

Assim, as questões a resolver neste recurso - contra a decisão recorrida – são as identificadas no ponto II.2, onde as apreciaremos.

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II - FUNDAMENTAÇÃO

II.1 - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

1. A pena de suspensão de 180 dias aplicada ao Requerente, corroborada pelo despacho do Ministro da Saúde datado de 6 de outubro de 2016, foi cumprida pelo Requerente e teve o seu terminus a 27 de agosto de 2017. (cfr. fls 121 e segs dos autos em suporte físico)

2. O Requerente iniciou as suas funções a 28 de agosto de 2017. (cfr. fls 121 e segs dos autos em suporte físico)

3. O presente procedimento cautelar foi instaurado a 15 de março de 2017. (carimbo oposto na petição inicial).

4. Não foi emitida resolução fundamentada. (cfr. prova documental).

5. O Centro Hospitalar de Setúbal E.P.E. foi citado nos presentes autos a 5 de abril de 2017 (cfr. fls 48 dos autos em suporte de papel).

II.2 - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

A)

A fundamentação de direito do TAC foi a seguinte:

“Nos presentes autos é peticionada a suspensão da eficácia do despacho do Ministro da Saúde datado de 6 outubro de 2016 que corroborou a decisão de fls 319 do P.15/2014-DIS e aplicou a pena de suspensão de 180 dias ao Requerente.

Constata-se que o despacho suspendo já foi totalmente executado (cfr. factos provados nº1 e 2), na medida em que, na presente data, o Requerente cumpriu na totalidade da pena disciplinar, tendo voltado a exercer funções no Centro Hospitalar.

Ora, como facilmente se compreende não pode ser decretada a suspensão da eficácia de um ato administrativo que já foi executado, pelo que o presente procedimento cautelar se encontra sem objeto.

Na verdade, ao contrário do alegado pelo Requerente os efeitos prolongados no tempo sobre a antiguidade, o cadastro do mesmo e a possibilidade de este influenciar v.g. a decisão de um concurso a que queira habilitar-se e até o tempo para a reforma não reportam ao objeto do presente procedimento cautelar, mas sim ao objeto da ação principal que em caso de procedência da mesma decretará a remoção da ordem jurídica do ato administrativo agora executado.

Assim, os presentes autos encontram-se sem objeto pelo que importa declarar extinta a presente lide nos termos do artigo 277º alínea d) do Código de Processo Civil, ex vi do artigo 1º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.”.

B)

Embora a alegação de recurso seja um pouco confusa, exagerada em argumentos e atabalhoada, o essencial resume-se ao seguinte (sem prejuízo de outros pontos secundários que abordaremos na alínea seguinte): no contexto factual apurado, o TAC errou ao ignorar a aplicação efetiva do artigo 129º do CPTA e ao concluir logo pela perda de utilidade deste processo cautelar?

Respondemos que sim.

Diz-nos tal artigo 129º que a execução de um ato não obsta à suspensão da sua eficácia quando desta possa advir, para o requerente ou para os interesses que este defenda ou venha a defender, no processo principal, utilidade relevante no que toca aos efeitos que o ato ainda produza ou venha a produzir.

Isto significa que o processo cautelar, nestes casos, só fica sem interesse processual do requerente se todos os efeitos nocivos do ato já se tiverem consumado. I. e., se a execução do ato administrativo foi de molde a consumar inteiramente a lesão. Caso contrário, persistindo situações lesivas ou o risco da produção de novos danos, pode ser decretada a suspensão da eficácia do ato administrativo, sendo ainda certo que a suspensão tem eficácia retroativa (cf. assim MÁRIO AROSO/C.C., Comentário…, 4ª ed., pp. 1031 ss, e jurisprudência e doutrina ali referidos).

Ora, no caso presente, apesar de o requerente ter cumprido já a pena disciplinar cit., o pedido cautelar mantém interesse ou utilidade, porque, se o juiz cautelar der razão ao requerente, a pena em causa será irrelevante de imediato em toda a sua amplitude, e não só após o fim de um processo principal com a procedência eventual do mesmo.

É que, de acordo com o artigo 129º cit., o eventual decretamento da providencia cautelar ora solicitada implicará de imediato que todos os próximos passos na carreira do requerente (por ex., calculo da antiguidade para progressões ou promoções, ou aposentações, registos biográfico e disciplinar, para tal efeito ou outros efeitos profissionais) não sejam influenciados por esta decisão administrativa punitiva. O que é obviamente importante e essencial para a vida profissional atual e próxima futura do requerente.

É essa a utilidade relevante de que nos fala o artigo 129º. Que aqui se verifica.

Portanto, o recorrente tem razão nesta questão.

C)

Quanto ao mais referido na alegação de recurso, sublinhando que está apenas em causa uma decisão de inutilidade superveniente da lide cautelar e o artigo 129º cit., consideramos que o TAC não desrespeitou:

- o princípio constitucional (artigos 20º e 268º/4 da CRP) e infraconstitucional da tutela jurisdicional efetiva (definido no artigo 2º do CPTA); é que, embora o recorrente confunda tal princípio com erros de direito da decisão cautelar, o certo é que nenhuma das exigências contidas no artigo 2º/1 do CPTA foi desrespeitada no TAC, como aliás se conclui da vaga alegação de recurso (cf., em geral, os 21 princípios gerais do processo – e suas concretizações - elencados em LEBRE DE FREITAS, Introdução…, 4ª ed., parte II; e VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça Adm., 15ª ed., pp. 147 ss);

- o princípio do contraditório (artigo 3º/3/4 do CPC; aqui seria por excesso), porque tal princípio como definido nos nº 3 e 4 do artigo 3º do CPC foi plenamente respeitado e, segundo o recorrendo, utilizado em excesso no TAC (cf. LEBRE DE FREITAS, Introdução…, 4ª ed., pp. 126 ss);

- o princípio (a regra) do dispositivo (artigo 5º/1 do CPC; cf. LEBRE DE FREITAS, Introdução…, 4ª ed., pp. 157 ss); porque é manifesto ou notório que o tribunal a quo considerou a factualidade principal alegada pelas partes;

- o princípio (a regra) da economia processual e da celeridade processual (artigo 7º-A/1 do CPTA; artigos 130º e 131º/1 do CPC), porque não ocorreu nem a prática de atos inúteis, nem os atos processuais praticados se desviaram dos fins das normas processuais, como, aliás, resulta claro da alegação de recurso (cf. LEBRE DE FREITAS, Introdução…, 4ª ed., pp. 205 ss);

- a regra da summaria cognitio (artigo 120º/1 do CPTA; cf. VIEIRA DE ANDRADE, A Just. Adm., 15ª ed., pp. 328-330), porque o tribunal a quo simplesmente não fez qualquer julgamento, não chegou á fase de aplicar o artigo 120º cit.;

- um suposto princípio do favorecimento (artigo 7º do CPTA) do processo cautelar, porque não há nenhuma norma processual interpretada de modo a impedir ou dificultar o conhecimento do mérito (da causa principal, onde se julga o mérito); aqui basta respeitar a natureza urgente do processo, que não julga de mérito;

- o princípio (a regra) da igualdade das partes (artigo 6º do CPTA; cf. LEBRE DE FREITAS, Introdução…, 4ª ed., pp. 157 ss), porque é notório que as tratou de modo igual ou equitativo durante o processo.

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III - DECISÃO

Por tudo quanto vem de ser exposto e de harmonia com os poderes conferidos no artigo 202º da Constituição, acordam os juizes da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul em conceder provimento ao recurso e revogar a decisão recorrida, devendo o TAC dar seguimento ao processo se a tal nada mais obstar.

Custas do recurso a cargo do contra-alegante.

Registe-se e notifique-se.

Lisboa, 15-03-2018

Paulo H. Pereira Gouveia

Catarina Jarmela

Carlos Araújo (Voto de vencido: Vencido por entender, salvo o devido respeito, que devia ser confirmada a sentença recorrida, considerando que o recorrente"optou" por cumprir a pena disciplinar, não lançando mão do incidente previsto no artigo 128º/4 do CPTA e mostrando-se executada tal pena, não há lugar à aplicação do disposto no artigo 129º daquele Código, por não ser possível ficcionar que tal acto ainda produza ou venha a produzir efeitos, havendo, naturalmente, que aguardar a decisão do processo principal que poderá, eventualmente, reverter a situação profissional do recorrente, para efeitos, nomeadamente, da sua antiguidade.)

(1)Tendo sempre presente que o Direito é uma ciência social especialmente condicionada pela linguagem.