Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:2088/20.9BEPRT
Secção:CA
Data do Acordão:07/28/2021
Relator:LINA COSTA
Descritores:PRÉ-CONTRATUAL
CAUSA DE PEDIR
PEDIDOS
ÓNUS
INEPTIDÃO PARCIAL
Sumário:I. Na petição inicial (p.i.) o autor deve expor os factos e as razões de Direito que servem de fundamento à acção, articulando os factos concretos, objectivos e individualizados que constituem a sua causa ou as suas causas de pedir e deve sustentar juridicamente em termos lógicos, suficientes e adequados os pedidos que formula na acção. A causa de pedir é constituída por esses factos, que ganham relevância jurídica pela aplicação que sobre eles se faz do Direito. Por via dessa aplicação, tornam-se factos jurídicos, emergindo deles a pretensão do autor;

II. A alegação de ilegalidades de normas concursais configura causa de pedir que suporta o pedido de anulação do acto de adjudicação, praticado em conformidade com aquelas;

III. Se os pedidos condenatórios formulados da p.i. estão em contradição com a causa de pedir exposta, a p.i. é parcialmente inepta;

IV. Embora o CPC não refira expressamente a possibilidade de ineptidão parcial da petição inicial, entende-se que também não há razões para sustentar a inexistência da figura e, logo, considera-se que seja admissível quando inexista causa de pedir para parte do pedido.

V. Verificada a causa da ineptidão parcial da p.i., não se impõe ao juiz observar o princípio pro actione ou o dever de gestão processual, designadamente, convidando o autor a aperfeiçoar, nessa parte o articulado, por insusceptível de sanação ou suprimento.

Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam em sessão do Tribunal Central Administrativo Sul:

e....., Lda., devidamente identificada como autora nos autos de contencioso pré-contratual instaurados contra a....., S.A. e Hh....., Lda., na qualidade de contra-interessada, inconformada, veio interpor recurso jurisdicional do saneador-sentença, proferido em 31.3.2021, pelo Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, que declarou nulo todo o processo, por ineptidão da petição inicial devido a contradição entre o pedido e a causa de pedir, e, em consequência, absolveu a Entidade demandada e a Contra-interessada da instância.
Na acção a A./recorrente peticionou:
a) A anulação do acto de adjudicação;
b) Subsidiariamente, caso já tenha sido celebrado o contrato de em causa, deve o mesmo ser anulado, atento o disposto no artigo 283º, nº 2, do CCP;
c) Em consequência, deve a Entidade demandada ser condenada a praticar o acto de adjudicação do procedimento pré-contratual em alusão a seu favor;
d) Subsidiariamente, caso não possa ser adjudicada a sua proposta deverá a Entidade demandada ser condenada a pagar-lhe, a título de lucro cessante, a quantia de €14.957,23, acrescida de juros de mora vencidos e os vincendos, até efectivo e integral pagamento;
e) Deve ser fixado prazo, não superior a dez dias, para o cumprimento da condenação referida em c).

Nas respectivas alegações, a Recorrente formulou as conclusões que seguidamente se reproduzem:
« A. A A., ao abrigo da faculdade consagrada disposto no n.º 2 do artigo 265.º do CPC, aplicável ex vi artigo 1.º do CPTA, por terem sido levantadas dúvidas quanto à possibilidade de o pedido c) estar em contradição com a causa de pedir, e ao abrigo do princípio pro actione, reduziu o pedido;
B. Pelo que o petitório passou apenas a ser constituído pelos pedidos identificados na petição inicial pelas letras a) e b);
C. Em face do exposto, deixou de haver qualquer fundamento para a tese, em que assentou a douta Sentença impugnada, da contradição entre o pedido c) e a causa de pedir;
D. Assim, na eventualidade de o douto Tribunal a quo manter a decisão recorrida, em apreciação do requerimento de recurso, deve a mesma ser revogada, determinando-se o prosseguimento dos autos, a partir do momento imediatamente anterior ao da prolação daquela decisão;
E. Acresce que, salvo o devido respeito, o douto Tribunal a quo violou o princípio pro actione, pois nos pedidos formulados pelo A., há um pedido principal e pedidos subsidiários.
F. O pedido principal foi identificado pela letra a) (“Deve ser anulado o acto de adjudicação praticado pela Ré”), e relativamente a este pedido, nenhuma contradição pode, mesmo em tese, identificar-se relativamente à causa de pedir.
G. Ora, na eventualidade de haver essa contradição em pedidos subsidiários, a atitude do Tribunal, deveria ser a de, levando os autos para o conhecimento do mérito, os considerar (a todos ou a alguns apenas) improcedentes, pois aquele pedido principal permite, só por si, e sem contradição de espécie alguma, tal desiderato.
H. Ainda que assim não se entendesse, sempre deveria o douto Tribunal a quo, salvo o devido respeito, no cumprimento do princípio pro actione (cfr., por todos, o Ac. do STA de 29/01/2014, proferido no Proc. 01233/13, disponível em www.dgsi.pt), lançar mão do cumprimento do dever de gestão processual (que não está consagrado no artigo 6.º do CPC como letra morta), e promover as diligências necessárias ao normal prosseguimento da acção;
I. Isto ainda que o douto Tribunal a quo considerasse necessário adaptar a tramitação, para, então, em audiência prévia ou despacho pré-saneador, e respeitando o contraditório, indagar junto da A. os termos da precisão da sua peça processual, concretamente, quanto à natureza (cumulativa, subsidiária ou alternativa) dos pedidos formulados com as letras b) a e) do petitório;
J. Não o tendo feito, o douto Tribunal a quo deitou por terra uma acção que poderia perfeitamente chegar ao conhecimento do mérito, ao menos no que respeita ao pedido principal.
K. Ainda que o douto Tribunal a quo chegasse à conclusão que existia efectivamente uma contradição entra alguns pedidos e a causa de pedir, a decisão que se impunha era a da ineptidão parcial da petição inicial, com o efeito de a nulidade produzir efeitos apenas quanto ao pedido ou pedidos em que se verificasse a referida contradição.
L. Esta ineptidão parcial da petição inicial é hoje pacificamente aceite na jurisprudência (cfr., por todos, o Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 15/12/2016, proferido no Proc. 28286/15.9T8PRT.P1, disponível em www.dgsi.pt), o que foi ignorado, salvo o devido respeito, pela douta sentença impugnada.
Normas violadas: artigos 89.º, nº 1, 2 e 4, al. b), do CPTA, 6.º, 186.º, nº 1, 278.º, nº 1 al. b) e 577.º al. b), todos do CPC.».

A Entidade demandada recorrida contra-alegou, formulando as seguintes conclusões:
«1. A autora apresentou, depois de proferido o Saneador-Sentença, um requerimento visando reduzir o pedido.
2. Este requerimento ignora o sentido inequívoco do Saneador-Sentença, afirmando a disponibilidade para esclarecer e suprir as “dúvidas” existentes nos autos.
3. Este requerimento também afirma o seu contrário, quando assinala que afinal diverge quanto à tese assumida no Saneador-Sentença.
4. Este requerimento representa o reconhecimento da existência de contradição entre o pedido e a causa de pedir.
5. Ao pedir que o procedimento seja anulado e simultaneamente que a adjudicação seja revertida a seu favor, a autora contradiz-se quanto ao resultado da anulabilidade suscitada como causa de pedir.
6. Ao suscitar, em momento superveniente ao Saneador-Sentença, a redução do pedido em concordância com o entendimento do Tribunal, a autora está a confirmar a legalidade do Saneador-Sentença.
7. Existe, portanto, contradição entre o pedido e a causa de pedir, que constitui exceção dilatória, com absolvição da instância.».

A Contra-interessada recorrida apresentou contra-alegações, pugnando para que seja negado provimento ao recurso.

O juiz a quo viu e entendeu nada ter a pronunciar sobre o requerimento de redução do pedido porque com a prolação de saneador-sentença ficou esgotado o poder jurisdicional do juiz.

O Ministério Público, junto deste Tribunal, notificado nos termos e para efeitos do disposto nos artigos 146º e 147°, do CPTA, não emitiu parecer.

Com dispensa de vistos, atenta a sua natureza urgente, vem o processo submetido à sessão para julgamento.

A questão suscitada pela Recorrente, delimitada pelas alegações de recurso e respectivas conclusões, nos termos do disposto no nº 4 do artigo 635º e nos nºs 1 a 3 do artigo 639º, do CPC ex vi nº 3 do artigo 140º do CPTA, consiste, no essencial, em saber se a decisão recorrida incorreu em erro de julgamento ao julgar a petição inicial inepta.
A título prévio importa verificar se, como afirma no recurso, a Recorrente reduziu o pedido inicial aos identificados pelas letras a) e b).

A sentença recorrida não fixou matéria de facto, o que se compreende por não ter entrado na apreciação do mérito da causa.

Com interesse para a decisão a proferir é de atender ao seguinte circunstancialismo processual evidenciado nos autos no SITAF [para cujas fls. remetemos e aqui damos por integralmente reproduzidas] e no teor da decisão recorrida:

1. Em 6.11.2020, a A. instaurou a presente acção de contencioso pré-contratual contra A....., S.A. e H....., contra-interessada, formulando os seguintes pedidos:
«a) Deve ser anulado o acto de adjudicação praticado pela Ré;
b) Subsidiariamente, caso a Ré já tenha celebrado, com a Contrainteressada o contrato de em causa, deve o mesmo ser anulado, atento o disposto no art. 283.º, n.º 2, do CCP;
c) Em consequência, deve a Ré ser condenada a praticar o acto de adjudicação do procedimento pré-contratual em alusão a favor da Autora;
d) Subsidiariamente, caso não possa ser adjudicada a proposta da A., deverá a Ré ser condenada a pagar-lhe, a título de lucro cessante, a quantia de €14.957,23, acrescida de juros de mora vencidos e os vincendos, até efectivo e integral pagamento;
e) Deve ser fixado prazo, não superior a dez dias, para o cumprimento da condenação referida em c);» - cfr. de fls. 5 a 16;

2. Alegando na petição inicial, designadamente, que:
«II – Da violação dos mais elementares princípios atinentes à contratação pública
8. O presente procedimento constituiu um “fato à medida” para a contrainteressada.
9. Os Anexos I e II do Caderno de Encargos e o ficheiro de Excel contendo a Lista de Preços Unitários, correspondente ao Anexo III do Programa de Procedimento, contém a identificação concreta dos equipamentos e materiais que deveriam ser fornecidos pelos concorrentes, e, portanto, que deveriam constar da lista que integra a sua proposta.
10. Lendo a lista dos materiais a fornecer, é possível constatar o seguinte: a Lista de Preços Unitários, por exemplo, logo nos primeiros artigos tem como referência produto HQd “Medidor e sonda robusta pH (kit completo) HQD40”, ou “Cabo USB HQD 40”, e assim sucessivamente – cfr. Doc. n.º 6.
11. Ou seja, todos os itens dessa Lista de Preços Unitários são produzidos pela contra-interessada, como se pode constatar com uma simples pesquisa no respectivo website …
(…)
15. Ou seja, a contra-interessada produz e comercializa, em exclusivo no mercado nacional e internacional, os produtos e equipamentos a fornecer no âmbito do contrato a celebrar na sequência do presente procedimento, tendo por isso, superior vantagem.
16. De tal forma assim é que a A., para poder concorrer, teve de pedir uma proposta de aquisição dos produtos à contra-interessada, o que, de forma mais do que evidente, a impediu de apresentar uma proposta que pudesse concorrer lealmente com ela – cfr. Doc. n.º 9.
17. O presente Concurso Público verdadeiramente não o é, mas sim um Ajuste Directo à contra-interessada, travestido de procedimento aberto!
(…)
32. Ora, em face do exposto, ao lançar o procedimento como lançou, e ao redigir as especificações técnicas dos equipamentos a fornecer, nos Anexos I e II do Caderno de Encargos, e no Anexo II do Programa do Procedimento, a Ré condicionou de forma injustificável a possibilidade de alargar o leque dos potenciais concorrentes, e preparou o procedimento em total benefício da contra-interessada.
33. Fica, assim, claro que a conduta da Ré encerra um absoluto desrespeito pelos princípios basilares da contratação pública, designadamente, da concorrência e imparcialidade e igualdade.
34. O Caderno de Encargos e o Programa do Procedimento, por referência aos seus anexos I e II e III, respectivamente, são ilegais por violarem o disposto no artigo 1.º-A e no artigo 49.º, n.º 4 do CCP,
(…)”; - idem;

3. A Entidade demandada deduziu contestação, pugnando pela improcedência da acção e que não seja atribuída a compensação reclamada pela A. [alegando, no ponto 37., que a acção não é o meio próprio para pedir a condenação em lucros cessantes] - cfr. de fls. 113 a 119;

4. A Contra-interessada apresentou contestação, defendendo-se por excepção, suscitando a ineptidão da petição inicial, por contradição entre a causa de pedir e os pedidos formulados, e a impropriedade do meio processual quanto ao pedido indemnizatório, e por impugnação, pugnando pela improcedência da acção - cfr. de fls. 141 a 158;

5. A A. veio responder à matéria de excepção, sustentando a sua improcedência - cfr. de fls. 171 a 173;

6. Pelo despacho saneador-sentença recorrido, de 31.3.2021, foi declarado nulo todo o processo, por ineptidão da petição inicial devido a contradição entre o pedido e a causa de pedir, e, em consequência, foi absolvidas a Entidade demandada e a Contra-interessada da instância - cfr. de fls. 192 a 201;

7. Por notificação electrónica de 1.4.2021 foram as partes notificadas da decisão que antecede - cfr. de fls. 203, 204 e 205;

8. Em 16.4.2021 a A. apresentou requerimento dirigido ao juiz a quo, pedindo a redução do pedido inicial às alíneas a) e b), ao abrigo do disposto no nº 2 do artigo 265º do CPC, ex vi artigo 1º do CPTA - cfr. de fls. 209 a 211;

9. Na mesma data a A. interpôs o presente recurso jurisdicional da decisão, indicada em 6) - cfr. de fls. 215 a 222;

10. A Contra-interessada pronunciou-se pela inadmissibilidade do requerimento de redução do pedido ou pelo seu indeferimento - cfr. de fls. 233 a 238;

11. Em 11.5.2021 o juiz a quo proferiu, designadamente, o seguinte despacho: «- Requerimento de fls. 209, do SITAF apresentado pela A. // Visto. // Atenta a prolação de saneador-sentença ficou esgotado o poder jurisdicional do juiz, pelo que nada há a pronunciar (artº 613º, nº 1, do CPC). // Notifique.» - cfr. de fls. 264.

Da questão prévia:

Alega o Recorrente que, por terem sido levantadas dúvidas quanto à possibilidade de o pedido c) estar em contradição com a causa de pedir e ao abrigo do princípio pro actione, reduziu o pedido inicial aos identificados pelas letras a) e b), pelo que deixou de haver fundamento para a tese em que assentou a decisão recorrida.

O tribunal a quo, a quem o pedido de redução foi dirigido, considerou, nos termos do nº 1 do artigo 613º do CPC, encontrar-se esgotado o poder jurisdicional sobre a matéria, uma vez que anulou todo o processo [petição inicial incluída] e absolveu os demandados da instância por ineptidão.
Significando que o pedido em causa não foi admitido ou deferido pelo que, ao contrário do que alega no recurso, a Recorrente não reduziu os pedidos nos termos que indica.
Não tendo a A. recorrido deste despacho, e não se tratando de uma questão de conhecimento oficioso, não pode a mesma ser apreciada nesta sede.

Do recurso:

Alega a Recorrente que a decisão recorrida deve ser revogada, por violação do princípio pro actione, por existir um pedido principal e pedidos subsidiários, e relativamente ao primeiro nenhuma contradição se verificar com a causa de pedir, pelo que deveria ter sido conhecido do respectivo mérito e, a manter-se o entendimento de que os demais pedidos estão em contradição, deveriam estes ter sido julgados improcedentes. E se assim não se entendesse, deveria o juiz a quo ter lançado mão do dever de gestão processual, consagrado no artigo 6º do CPC, e promovido as diligências ao normal prosseguimento da acção, em despacho pré-saneador indagando junto de si, A., os termos da precisão da sua peça processual, concretamente quanto à natureza cumulativa, subsidiária ou alternativa dos pedidos formulados com as letras b) a e) e, se ainda assim, concluísse pela existência de contradição, a decisão que se impunha era a da ineptidão parcial, hoje aceite pela jurisprudência.

Da fundamentação da decisão recorrida extrai-se o seguinte:
«(…)
Dispõe o artº 89º, nº 4, do CPTA que são dilatórias, entre outras, a exceção de nulidade de todo o processo [cfr. al. b)].
Esta nulidade surge quando a petição inicial é inepta.
Dispõe o artº 186º, nº 1, do CPC que "é nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial", especificando, no seu nº 2, que tal ocorrerá, "b) quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir".
O pedido constitui o efeito jurídico que o autor pretende obter, como resulta do artº 581º, nº 3, do CPC.
A causa de pedir é o facto jurídico que serve de fundamento ao pedido (artº 581º, nº 4, do CPC).
Como referem ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA em anotação ao artº 186º, nº 2, al. b), do CPC, “se o pedido deve ser a consequência ou o corolário lógico da causa de pedir, numa ideia de silogismo, a contradição entre esses dois elementos implica a impossibilidade de a petição cumprir a sua função; em rigor, este motivo de ineptidão resulta de um verdadeiro antagonismo entre o pedido e a causa de pedir, e não de uma mera desadequação entre uma coisa e outra (Castro Mendes, Direito Processual Civil, vol. III, p. 49). A petição inicial, assim como a sentença final, deve apresentar-se sob a forma de um silogismo, ao menos implicitamente enunciado, que estabeleça um nexo lógico entre as premissas e a conclusão; em tal silogismo, a premissa maior é constituída pelas razões de direito invocadas, a premissa menor é integrada pelas razões de facto e o pedido corresponderá à conclusão. Por isso mesmo, a causa de pedir não deve estar em contradição com o pedido, (…)” – cfr. ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA, Código de Processo Civil anotado, vol. I, Almedina 2019 – reimpressão, p. 220.
Na presente ação de contencioso pré-contratual a A. formula vários pedidos sob várias alíneas:
- nas al. a) e b) pede a anulação do ato de adjudicação à Contrainteressada, e do contrato, se entretanto celebrado.
- “Em consequência”, conforme consta no início da al. c), pede a condenação do R. “a praticar o acto de adjudicação do procedimento pré-contratual em alusão a favor da Autora”,
- e na al. d) “Subsidiariamente, caso não possa ser adjudicada a proposta da A., deverá a Ré ser condenada a pagar-lhe, a título de lucro cessante, a quantia de €14.957,23, acrescida de juros de mora vencidos e os vincendos, até efectivo e integral pagamento;”.
A causa de pedir assenta na invocada ilegalidade das especificações técnicas dos equipamentos a fornecer, constantes nos Anexos I e II do Caderno de Encargos, e no Anexo III do Programa do Procedimento, sustentando a A. que o procedimento pré-contratual lançado pela R. para a Aquisição de equipamentos de medição, sondas e material de desgaste, para as infraestruturas da A..... (Procedimento com a referência .....) constituiu um “fato à medida” para a contrainteressada.
É a contrainteressada H..... quem produz e comercializa, em exclusivo no mercado nacional e internacional, os produtos e equipamentos a fornecer no âmbito do contrato a celebrar na sequência do presente procedimento, tendo por isso, superior vantagem.
Tanto assim que a A. para poder concorrer, teve de pedir uma proposta de aquisição dos produtos à contrainteressada, o que a impediu de apresentar uma proposta que pudesse concorrer lealmente com ela.
Sustenta que as especificações técnicas dos equipamentos a fornecer, constantes nos Anexos I e II do Caderno de Encargos, e no Anexo III do Programa do Procedimento, condicionam de forma injustificável a possibilidade de alargar o leque dos potenciais concorrentes, e em total benefício da contrainteressada, violando os princípios da concorrência, imparcialidade e igualdade.
Mais aduz que o Caderno de Encargos e o Programa do Procedimento, por referência aos seus anexos I e II e III, respetivamente, são ilegais por violarem o disposto no artigo 1.º-A e no artigo 49.º, n.º 4 do CCP.
Conclui a A. que tal situação torna consequentemente ilegal o ato de adjudicação, impondo-se a condenação da R. a anular o ato de adjudicação e a praticar o ato administrativo que determine a adjudicação da proposta da A., devendo, ainda, ser fixado um prazo não superior a dez dias para o cumprimento de tal condenação, nos termos do disposto nos artigos 3.º, n.º 2 e 95.º, n.º 4 ex vi art. 97º, n.º 1, todos do CPTA.
Do que vem de referir-se resulta que a A. argui a ilegalidade dos documentos conformadores do procedimento, peticionando a anulação do ato administrativo de adjudicação à Contrainteressada, e conclui pela condenação da R. a adjudicar-lhe o contrato emergente desse mesmo procedimento.
Resulta evidente que tal pedido “briga” com a causa de pedir, opondo-se-lhe.
Com efeito, se o objeto do processo assenta na ilegalidade das especificações técnicas dos equipamentos a fornecer, constantes nos Anexos I e II do Caderno de Encargos, e no Anexo III do Programa do Procedimento, não é naturalmente possível à A. formular um pedido de adjudicação da proposta por si apresentada.
Tal conclusão pressupõe uma premissa oposta àquela de que se partiu, isto é, que o procedimento é legal.
Assim, tem de concluir-se pela contradição entre o pedido e causa de pedir, o que gera a ineptidão da petição inicial, importando a nulidade de todo o processo, que por sua vez leva à absolvição da R. e da Contrainteressada da instância por se tratar de uma exceção dilatória (cfr. artº 89º, nº 1, 2 e 4, al. b), do CPTA, 186º, nº 1, 278º, nº 1 al. b) e 577º al. b), todos do CPC).

Vejamos.
Na petição inicial o Autor deve expor os factos e as razões de Direito que servem de fundamento à acção, articulando os factos concretos, objectivos e individualizados que constituem a sua causa ou as suas causas de pedir e deve sustentar juridicamente em termos lógicos, suficientes e adequados os pedidos que formula na acção. A causa de pedir é constituída por esses factos, que ganham relevância jurídica pela aplicação que sobre eles se faz do Direito. Por via dessa aplicação, tornam-se factos jurídicos, emergindo deles a pretensão do A.[v. acórdão desse Tribunal, de 26.11.2020, no proc. 635/05.5BELSB].

A causa de pedir expressa na petição inicial (p.i.), em apreciação, respeita à ilegalidade de normas concursais, mormente, as referentes às especificações técnicas dos equipamentos a fornecer, constantes nos Anexos I e II do Caderno de Encargos, e no Anexo III do Programa do Procedimento, que correspondem aos que são produzidos pela Contra-interessada, conferindo superior vantagem a esta nos preços que pode oferecer, em clara violação dos princípios que regulam a contratação pública, como o da concorrência, imparcialidade e igualdade, e “(…)isso torna consequentemente ilegal o acto de adjudicação aqui colocado em crise.” [cfr. alegado na p.i.].
E essa causa de pedir pode suportar o pedido de anulação do acto de adjudicação e do contrato, se celebrado?
Afigura-se-nos que a resposta é positiva.
No mesmos sentido v. Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, em Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 2017, 4ª Edição, pág.s 831 e 832, na anotação ao nº 3 do artigo 103º do CPTA, de que se extrai:
«(…) O limite temporal do nº 3, fixado por referência à pendência do procedimento, afigura-se justificado pelas razões apontadas na nota precedente. Considerando o efeito útil da impugnação de documentos conformadores do procedimento – que é o de evitar a prática de atos administrativos ilegais por ilegalidade das disposições regulamentares -, não tem qualquer consequência prática a apresentação de um pedido de impugnação dessas disposições quando o procedimento já tenha chegado ao seu termo e já tenham sido praticados os atos procedimentais que poderiam afetar a posição jurídica do interessado. Além de que, como também já se observou, o interessado sempre poderá impugnar os atos de aplicação das disposições regulamentares, com fundamento na ilegalidade dessas mesmas disposições, de modo que não existe, nesse caso, qualquer défice de efetividade de tutela.
6. O n.º 3 impõe, na sua segunda parte, um ónus de impugnação autónoma dos atos de aplicação dos documentos conformadores do procedimento.
Tal significa que a impugnação dos documentos conformadores do procedimento não dispensa o interessado de impugnar automamente os respetivos atos de aplicação. E evidencia que a impugnação das disposições regulamentares constitui uma mera faculdade, que, como foi referido na nota 4, o interessado pode ter interesse em utilizar por antecipação à prática dos atos procedimentais que por elas devam guiar-se, no propósito de evitar, caso venha a ser proferida decisão judicial de procedência em tempo útil, que venha a consumar-se a prática de atos administrativos ilegais por ilegalidade das disposições que lhes serviram de suporte normativo.
Trata-se, na verdade, de uma faculdade, cujo não exercício não preclude a possibilidade - rectius, o ónus - da impugnação dos atos administrativos que venham a dar aplicação concreta ao que naqueles documentos se encontra determinado. Com efeito, desde que é imposto à parte o ónus de impugnar os atos de aplicação, torna-se claro que a ausência de impugnação tempestiva de uma disposição contida num documento conformador do procedimento não retira ao interessado a possibilidade de proceder à impugnação do ato administrativo que, no decurso do procedimento, venha a dar aplicação concreta a essa disposição, pela linear razão de que o interessado sempre teria de impugnar esses atos, independentemente de ter reagido ou não contra a disposição em causa.
(…)
(…). De facto, quando um interessado impugna o ato concreto de aplicação de uma norma contida num documento conformador de um procedimento pré-contratual, ele não está a impugnar por outra via a norma que não impugnou, visto que o objeto da impugnação é diferente, pois não incide sobre a norma, mas sobre o ato administrativo que a aplicou. E, por outro lado, um ato administrativo não pode ser qualificado como meramente confirmativo da disposição normativa a que dá aplicação, para o efeito de ser subtraído à garantia de impugnação que decorre do n.º 4 do artigo 268.º da CRP. A possibilidade de impugnação direta dos documentos conformadores do procedimento pré-contratual, constituindo uma modalidade inovadora de tutela preventiva, em aplicação da Diretiva recursos, dirigida a procurar evitar a prática de atos administrativos lesivos no decurso do procedimento, não arreda, pois, o principio geral da impugnabilidade dos atos de aplicação ou de execução de normas regulamentares ilegais, fundado no pedido de apreciação incidental da ilegalidade das normas aplicadas (…).» [sublinhados nossos].

A saber, praticado o acto de adjudicação, o interessado pode instaurar acção de impugnação desse acto com fundamento na ilegalidade das normas concursais a que o mesmo dá aplicação.
Dito de outro modo, o pedido anulatório em apreciação encontra-se suportado na causa de pedir invocada na p.i. e não está em contradição com a mesma.
Se vier a ser julgado procedente, implicará para o Recorrido o dever de reconstituição da situação legal hipotética, consistente no reiniciar do procedimento com outras normas concursais (ou as mesmas expurgadas dos vícios encontrados), com especificações técnicas que não se reconduzirão aos ou apenas aos equipamentos produzidos pela Contra-interessada, em observância dos invocados princípios que conformam a contratação pública.

No que respeita aos pedidos condenatórios é de manter a argumentação e decisão do tribunal recorrido.
Com efeito, se, como alega a A./recorrente, as normas das peças do concurso são ilegais e, por consequência, o procedimento concursal e o acto proferido no seu termo, padecem das mesmas ilegalidades, não podendo ser mantidos na ordem jurídica, é manifestamente contraditório pedir a condenação da Entidade demandada à adjudicação da sua proposta (ou, subsidiariamente, no pagamento de lucros cessantes, independentemente da suscitada inidoneidade do meio) que, necessariamente, só seria sustentável e poderia proceder se o concurso fosse válido, legal.
Pelo que a p.i. é parcialmente inepta nos termos da indicada alínea b) do nº 2 do mesmo artigo 186º do CPC.
É que, apesar de neste artigo não vir consagrada expressamente esta possibilidade, a jurisprudência tem vindo a entender que do mesmo também não resulta que se possa sustentar a inexistência da figura da ineptidão parcial, quando ocorra qualquer das circunstâncias previstas nas alíneas do respectivo nº 2. [v. acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães, de 6.2.2020, proc. 2087/16.5T8CHV-A.G1, do Tribunal da Relação do Porto, de 15.12.2016, proc. 28286/15.9T8PRT.P1 in www.dgsi.pt].
A contradição verificada não é suprível, pelo que não são aqui aplicáveis os invocados princípio pro actione e dever de gestão processual ou de convidar ao aperfeiçoamento, nos termos do disposto no artigo 87º ex vi nº 1 do artigo 102º, ambos do CPTA.

Atendendo ao que não pode o recurso proceder nesta parte.

São responsáveis pelas custas a Recorrente e as Recorridas em partes iguais [1/3 para cada].

Por tudo quanto vem exposto acordam os Juízes deste Tribunal Central Administrativo Sul, em conceder parcial provimento ao recurso, considerando verificada a ineptidão parcial da petição inicial por contradição entre a causa de pedir e os pedidos condenatórios formulados, revogando a sentença recorrida na parte referente ao pedido anulatório, determinando a baixa dos autos para prosseguimento dos ulteriores termos com vista à sua apreciação, se a tal nada obstar.

Custas pelas Recorrente e Recorridas – 1/3 para cada.

Registe e Notifique.

Lisboa, 28 de Julho de 2021.

(Lina Costa – relatora que consigna e atesta, que nos termos do disposto no artigo 15.º-A do Decreto-Lei nº 10-A/2020, de 13 de Março, aditado pelo artigo 3.º do Decreto-Lei nº 20/2020, de 1 de Maio, têm voto de conformidade com o presente Acórdão os restantes Juízes integrantes da formação de julgamento, em turno, os Desembargadores Jorge Martins Pelicano e António Augusto Patkoczy).