Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:77/20.2BESNT
Secção:CT
Data do Acordão:09/30/2020
Relator:JORGE CORTÊS
Descritores:EMBARGOS DE TERCEIRO;
FORMA DE PROCESSO ADEQUADA À DEFESA DE DIREITO DE TERCEIRO INCOMPATÍVEL COM A PENHORA.
Sumário:i) Os embargos de terceiro constituem o meio processual adequado para fazer a defesa dos direitos de quem for ofendido - na sua posse ou em qualquer direito cuja manutenção seja incompatível com a realização de penhora -, permitindo-se, desse modo, que os direitos atingidos ilegalmente por esses actos possam ser invocados pelo lesado no próprio processo em que a diligência ofensiva teve lugar.
ii) Prevendo a lei um meio processual específico para a defesa do direito de terceiro, é esse e não outro o meio que se impõe utilizar.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
Acórdão



I- Relatório

A..........., Lda., veio deduzir reclamação do acto do órgão de execução fiscal, sindicando, no âmbito do processo de execução fiscal n.º ………., que correu no 2.º Serviço de Finanças de Sintra, o acto que determinou a penhora de um veículo automóvel, em 20.11.2015, por haver adquirido, anteriormente à data da penhora, o bem penhorado ao executado nos autos.

O Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, por despacho proferido a fls. 55 e ss. (numeração do SITAF), datado de 14/02/2020, indeferiu liminarmente a reclamação apresentada, sem possibilidade de convolação, por erro na forma do processo.

A reclamante interpõe recurso jurisdicional contra o despacho, conforme requerimento de fls. 34 e ss. (numeração do SITAF). A recorrente A..........., Lda., alega em síntese nos termos seguintes:

«I. A douta sentença recorrida indeferiu liminarmente a reclamação apresentada, pela Recorrente, contra o despacho proferido em 29/10/2019 pelo Chefe do Serviço de Finanças de Sintra 2, nos termos do qual foi indeferido o pedido apresentado pela ora Recorrente (terceira relativamente à execução) de cancelamento da penhora do veículo automóvel com a matrícula………...

II. A penhora foi concretizada em 20/11/2015 na execução fiscal instaurada contra F..........., encontrando-se demonstrado que a ora Recorrente adquiriu o veículo, como salvado, em data anterior, nomeadamente em 14/02/2015.

III. A douta sentença recorrida confere cobertura a um acto de penhora ilegal, uma vez que se encontra suficientemente demonstrado nos autos que a ora Recorrente adquiriu o veículo em causa em data anterior à penhora, pelo que esta incide sobre um bem de terceiro que não responde pela dívida exequenda.

IV. O erro na forma de processo, estabelecido no art. 130° do CPC, consiste na circunstância de o autor ter lançado mão de uma forma processual inadequada para fazer valer a sua pretensão, pelo que o acerto ou o erro na forma de processo tem de ser aferido pela pretensão ou pedido formulado na acção.

V. Na situação em apreço, a ora Recorrente impugnou judicialmente o acto do órgão de execução fiscal que lhe indeferiu o requerimento de cancelamento da penhora de veículo automóvel, requerendo a sua eliminação da ordem jurídica e a sua substituição por acto de deferimento daquela pretensão.

VI. A reclamação judicial prevista no art. 276° do CPPT é o modo de reacção contra actuações lesivas, que sob o ponto de vista material, afectem direitos e interesses legítimos do executado ou de terceiros, praticadas no âmbito dos processos de execução fiscal.

VII. Este é o meio processual apropriado para impugnar aqueles actos e para obter a sua anulação.

VIII. Pelo que, salvo o devido e merecido respeito, entende a Recorrente que utilizou o meio adequado para atacar judicialmente o referido acto do órgão de execução fiscal e para satisfazer a sua pretensão anulatória do acto reclamado.

IX. Por outro lado, importa saber se o cancelamento da penhora podia ter sido solicitado ao órgão administrativo que tramita a execução, com posterior reclamação do acto de indeferimento para o tribunal,

X. Ou se, pelo contrário, a ora Recorrente teria necessariamente de lançar mão do processo de embargos de terceiro, previsto no art. 237° do CPPT e que só pode ser deduzido no prazo de 30 dias contados do dia da penhora ou daquele em que o embargante da mesma teve conhecimento.

XI. Nada obsta à utilização pelo lesado de acções possessórias de para reconhecimento do seu direito sobre o bem penhorado, ou outros meios aptos a reconhecer o seu direito, por forma a fazer valer os mesmos no processo executivo em que a diligência ofensiva teve lugar, quer para obter o cancelamento de uma penhora, quer para obter a anulação da venda, caso a mesma tenha entretanto sido concretizada.

XII. A ora Recorrente demonstrou, junto do órgão de execução fiscal, que adquiriu o veículo em data anterior à concretização da penhora no processo executivo, pelo que, com base na prova documental carreada para os autos, requereu o cancelamento da penhora sobre esse veículo, o que foi indeferido.

XIII. Pelo que lhe assiste o direito de levar ao conhecimento do órgão de execução fiscal a respectiva propriedade sobre o bem penhorado e, com base nos mesmos, solicitar o cancelamento da penhora que se encontra ainda pendente.

XIV. Perante o indeferimento desse pedido de cancelamento de penhora, não restava outro meio à Recorrente, que não o da apresentação da presente reclamação judicial.

XV. De resto, é incompreensível que a Autoridade Tributária, a coberto pela douta sentença recorrida, insista em manter a penhora de um bem que, comprovadamente, não pertence ao executado (o que nem sequer é questionado pela própria Autoridade Tributária), e que conduzirá à venda de um bem alheio e sujeita a anulação.

XVI. É manifesto que a douta sentença recorrida, injustificadamente, não atendeu, nem interpretou adequadamente o disposto no art. 276° do CPPT, pelo que a mesma deverá ser revogada e substituída por outra que reconheça a legalidade e legitimidade da forma de processo utilizada pela ora Recorrente.

XVII. Face ao exposto, por a reclamação ser legal e tempestiva, deve ser revogada a decisão recorrida e substituída por outra em conformidade com as presentes alegações de recurso, tudo com as demais consequências legalmente aplicáveis.

Nestes termos e nos demais que Vossas Excelências mui doutamente suprirão, dando provimento ao recurso, julgando-o procedente em conformidade com as presentes conclusões e revogando a douta sentença recorrida…».


X
A Fazenda Pública não contra-alegou.
X

O Digno Magistrado do M. P. junto deste Tribunal, notificado para o efeito, emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

X

  Dispensados os vistos legais, cumpre apreciar e decidir, considerando que a tal nada obsta.

X

II- Fundamentação.

2.1. Facto

Com relevo para a decisão do objecto do recurso, mostram-se provados os elementos seguintes:
i) No âmbito do processo de execução fiscal n.º ..........., instaurado em 14/03/2015, contra F..........., em 20/11/2015, foi penhorado o veículo com matrícula……..– fls. 15/16 e fls. 20.
ii) Na data da penhora o veículo automóvel encontrava-se registado em nome de F........... – fls. 19/verso.
iii) Em 13/01/2016, o veículo foi registado em nome de A..........., Lda. –fls. 19/verso.
iv) Em 09/10/2019, a reclamante dirigiu requerimento ao Chefe do Serviço de Finanças de Sintra-2, pedindo o cancelamento da penhora de veículo em causa e juntando documento – fls. 17/18.
v) Em 29/10/2019, a Chefe do Serviço de Finanças de Sintra – 2, indeferiu o requerimento em referência, dado que a requerente não lançou mão do meio processual adequado para fazer valer a posse do veículo objecto de penhora, ou seja, os embargos de terceiro – fls. 21/23.
vi) O despacho referido na alínea anterior foi notificado à recorrente, por meio de ofício, recebido, em 04.11.2019 – fls. 23/verso e 24.
vii) Em 14.11.2019, a recorrente deduziu a presente reclamação.
viii) O despacho de indeferimento liminar recorrido tem o seguinte teor:
«Nos presentes autos veio a interessada, a sociedade “A..........., Lda., deduzir reclamação do acto do órgão de execução fiscal que determinou a penhora de um veículo automóvel, efectuado em 20.11.2015, por haver adquirido anteriormente à data da penhora, o bem assim penhorado ao executado nos autos.
Alegou que aquele se encontra na sua posse, desde 14.01.2015, e que, ao pretender registar essa aquisição durante o mês de Novembro de 2015, verificou que pendia sobre o mesmo a referida penhora, pelo que tal apreensão judicialmente determinada recaiu sobre bem alheio ao executado, devendo, por esse motivo, ser determinado o levantamento da penhora, mais sendo reconhecido o direito do Reclamante sobre o bem.
Por despacho, foi decidido notificar a reclamante para se pronunciar quanto à data em que tomou conhecimento da penhora, “[a]tento a que o presente meio processual não é o adequado para um terceiro defender os seus direitos com fundamento na ofensa da posse e da propriedade pelo acto judicialmente ordenado de apreensão de bens no processo de execução fiscal, o qual deve ser suscitado em sede de incidente de embargos de terceiro, nos termos do disposto na alínea a), do n°1, do art.° 166.°, art.° 167.° e art.° 237°(...) [i]mporta verificar da susceptibilidade de convolar os presentes autos para aquela forma adequada- cfr n° 4, do art.° 98.°, do CPPT.”
Na sequência dessa notificação, veio a reclamante invocar que apenas teve “conhecimento formal da penhora e do respectivo objecto, na data de notificação do despacho recorrido, recebida pelo seu Mandatário em 04/11/2019”, mais invocando “Com efeito, até essa data, a Reclamante desconhecia, in totum, os termos e o objecto da penhora e, como tal, desconhecia os pressupostos efectivos do acto ofensivo do seu direito de propriedade.”
Recuperemos o invocado pela reclamante anteriormente, na PI, “acontece que, após a aquisição do veículo, durante o mês de Novembro de 2015, ao pretender registar a aquisição do veículo, a Reclamante deparou-se com a existência do processo de execução fiscal e com a penhora concretizada sobre o veículo, em data posterior à respectiva aquisição, para garantia da quantia exequenda, instaurado contra o anterior proprietário F...........”,
Ora, perante a contradição nas teses defendidas na PI e na resposta à questão da intempestividade, impendia sobre a reclamante, o ónus de alegar factos, para depois provar, que permitissem concluir pela verdade de ambas, e pela sua compatibilidade.
Tal não aconteceu. Assim sendo podemos concluir que desde 2015 que a reclamante conhecia o acto ofensivo da sua posse e direito de propriedade, e tendo presente que a data para apresentação de embargos é de 30 dias, contados desde o conhecimento pelo embargante do acto ofensivo do direito que se pretende defender através dos embargos, nos termos do artigo 237.°, n.° 3, do CPPT, e 344.° do CPC, nunca poderá a PI relativa a estes autos ser tempestiva para a instauração do incidente de embargos de terceiro.
Em conclusão, cumpre indeferir liminarmente estes autos de reclamação, sem possibilidade de convolação, por erro na forma do processo, nos termos do artigo 193.° do CPC, o que constitui uma nulidade de conhecimento oficioso, decorrente do uso de um meio processual inadequado à pretensão de tutela jurídica formulada em juízo, sem possibilidade de convolação (artigo 130.° do CPC e 127.° do CPC).
Em consequência, vai a reclamante condenada nas custas do processo.
(…)»


X

2.2. Direito

2.2.1. Nos presentes autos, está em causa o despacho proferido pelo tribunal recorrido que indeferiu liminarmente a reclamação judicial deduzida pela recorrente contra o despacho do Chefe do Serviço de Finanças de Sintra -2, que havia indeferido o pedido de cancelamento da penhora que incide sobre o veículo matrícula…………, com base no erro na forma de processo escolhida e na caducidade do direito de deduzir a acção adequada, a qual corresponde aos embargos de terceiro.

2.2.2. A presente intenção recursória centra-se sobre o alegado erro de julgamento quanto ao direito aplicável em que terá incorrido o despacho recorrido. A recorrente sustenta que utilizou o meio processual à sua pretensão, a qual reside no deferimento do pedido de cancelamento da penhora por parte do órgão de execução fiscal.

Apreciação. Estatui o artigo 237.º/1, do CPPT, que «[q]uando o arresto, a penhora ou qualquer outro acto judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens ofender a posse ou qualquer outro direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular um terceiro, pode este fazê-lo valer por meio de embargos de terceiro». // «O prazo para dedução de embargos de terceiro é de 30 dias contados desde o dia em que foi praticado o acto ofensivo da posse ou direito ou daquele em que o embargante teve conhecimento da ofensa, mas nunca depois de os respectivos bens terem sido vendidos» (n.º 3).

«[O]s embargos são processados por apenso à causa em que haja sido ordenado o ato ofensivo do direito do embargante» e «[o] embargante deduz a sua pretensão, mediante petição, nos 30 dias subsequentes àquele em que a diligência foi efetuada ou em que o embargante teve conhecimento da ofensa, mas nunca depois de os respetivos bens terem sido judicialmente vendidos ou adjudicados, oferecendo logo as provas»[1].

A questão que se suscita nos autos consiste em saber se a recorrente, alegando a ofensa da posse por parte da penhora em crise, pode lançar mão do incidente de cancelamento da penhora e de posterior reclamação do acto do órgão de execução fiscal (artigo 276.º do CPPT), com vista a obter a restituição da posse do veículo que afirma lhe pertencer.

No despacho recorrido entendeu-se que o meio processual adequado para dirimir a questão da alegada ofensa da propriedade da recorrente em relação ao veículo reside na acção de embargos de terceiro, pelo que, com vista à convolação dos autos no meio processual adequado, importa determinar se a recorrente estava (ou não) em tempo para deduzir a presente acção de embargos de terceiro. O despacho considerou que o presente direito de acção se mostrava caduco, porquanto a recorrente alegou na petição inicial que adquiriu o veículo em 14.01.2015 e que, ao pretender registar o mesmo em Novembro de 2015, deparou-se com a existência de penhora à ordem do processo de execução fiscal n.º ..........., instaurado contra F..........., anterior proprietário do mesmo. O que significa que o prazo de trinta dias a contar da data da realização da diligência ou do conhecimento que o embargante teve da mesma já se havia esgotado.

A recorrente não se conforma com o presente entendimento, porque considera que, com vista à satisfação da sua pretensão de restituição da posse sobre veículo que invoca pertencer-lhe, através do levantamento da penhora contestada, nada impede que deduza requerimento nesse sentido junto do órgão de execução fiscal e, em caso de indeferimento, reclamação judicial contra o acto do órgão de execução fiscal.

Ponderadas as teses em confronto, é de referir que o decidido na instância deve ser confirmado, por não incorrer no erro de julgamento que lhe vem imputado.

Como se refere no Acórdão do STA, de 19.09.2018, P. 0765/18, [p]erante a causa de pedir gizada e o pedido formulado na petição inicial, o meio processual adequado para este terceiro defender o seu alegado direito de propriedade sobre o bem penhorado e obter o peticionado levantamento da penhora é o processo de embargos de terceiro, em conformidade com o disposto no art.º 237º do CPPT, segundo o qual "Quando o arresto, penhora ou qualquer outro ato judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens ofender a posse ou qualquer outro direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência de que seja titular um terceiro, pode este fazê-lo valor por meio de embargos de terceiro". // Donde resulta que os embargos de terceiro constituem o meio processual adequado para fazer a defesa dos direitos de quem for ofendido - na sua posse ou em qualquer direito cuja manutenção seja incompatível com a realização ou o âmbito da diligência judicial - por um acto de arresto, de penhora ou de outro acto judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens, permitindo-se, desse modo, que os direitos atingidos ilegalmente por esses actos possam ser invocados pelo lesado no próprio processo em que a diligência ofensiva teve lugar, em vez de o obrigar à propositura de acções possessórias ou de reivindicação. Com o que se pretende obstar, no caso de os embargos se revelarem fundados, à venda de bens de um terceiro e prevenir a necessidade de ulterior anulação da venda no caso de procedência da reivindicação. // Deste modo, e em suma, prevendo a lei um meio processual específico para a defesa do direito de propriedade de que seja titular um terceiro relativamente à execução, é esse e não outro (como a reclamação prevista art.º 276º do CPPT) o meio que se impõe utilizar».
No mesmo sentido, afirma-se, no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa[2], que «[a] reclamação dos actos do agente de execução constitui um “meio de revogação de actos processuais decisórios e não decisórios do agente de execução com fundamento em ilegalidade ou em erro de julgamento de factos que não sejam objecto de meio processual especial. // A reclamação de acto do agente de execução não pode ser deduzida quando a lei preveja um meio processual mais adequado ao fundamento invocado pelo interessado, prevalecendo, nessa situação, o meio processual de âmbito especial».

Sendo os embargos de terceiro o meio processual adequado à pretensão restituitória da recorrente, não pode a mesma fazer valer tal pretensão através de outro meio processual, no caso, a reclamação judicial, prevista no artigo 276.º do CPPT. E decorrendo dos autos que entre a instauração da acção e o conhecimento da diligência por parte da recorrente decorreu um lapso temporal superior a trinta dias[3] (prazo que a lei estabelece para deduzir o incidente em apreço – artigo 237.º/3, do CPPT), o respectivo direito mostra-se caduco.

Ao assim decidir, o despacho impugnado não incorreu em erro de julgamento, pelo que deve ser mantido na ordem jurídica.

Termos em que se julgam improcedentes as presentes conclusões de recurso.


Dispositivo

Face ao exposto, acordam, em conferência, os juízes da secção de contencioso tributário deste Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso e confirmar o despacho recorrido.

Custas pela recorrente.

Registe.

Notifique.


(Jorge Cortês - Relator)

(1ª. Adjunta)



 (2ª. Adjunta)



[1] Artigo 344.º/1 e 2, do CPC.
[2] Acórdão do TRL, de 19-11-2019, P. 23151/16.5T8SNT.L1-7.
[3] V. pontos vii) e viii), do probatório.