Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:12931/16
Secção:CA- 2º JUÍZO
Data do Acordão:06/30/2016
Relator:PAULO PEREIRA GOUVEIA
Descritores:ATO LEGISLATIVO, ATO ADMINISTRATIVO, COMPETÊNCIA
Sumário:I - A função político-legislativa é a atividade permanente do poder político que corresponde, materialmente, à definição primária, inconstituída, sem programa legal preexistente, do interesse público, interpretando assim os fins do Estado, sob a forma de lei da A.R., de decreto-lei do Governo ou de decreto legislativo regional das assembleias legislativas regionais;

II - A função administrativa do Estado é o conjunto dos atos de execução de atos legislativos, traduzida na produção de bens e na prestação de serviços destinados a satisfazer necessidades coletivas que, por virtude de prévia opção legislativa, se tenha entendido que incumbem ao poder político do Estado-coletividade; corresponde a atos que, em execução direta ou indireta de normas, se destinam a produzirem efeitos jurídicos no âmbito de relações com um objeto especificado entre a Administração e particulares individualizados ou individualizáveis;

III - Os atos administrativos não deixam de o ser pelo facto de estarem inseridos num ato formalmente legislativo ou regulamentar (cfr. assim o artigo 268º, nº 4, da Constituição da República Portuguesa e o artigo 52º, nº 1, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos);

IV - A máxima de que “é ato legislativo todo o ato que provenha de um órgão com competência legislativa e que assuma a forma de lei” só vale para a distinção entre lei e regulamento, não valendo para impedir o controlo jurisdicional dos atos administrativos contidos em atos formalmente legislativos, como, aliás, resulta do previsto no artigo 268º, nº 4, da Constituição da República Portuguesa e no artigo 52º, nº 1, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, no Tribunal Central Administrativo Sul:

I. RELATÓRIO

· ASSOCIAÇÃO ……………., com sede na Rua …………., ............, intentou no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa

Ação administrativa especial contra

· GOVERNO DE PORTUGAL.

Pediu o seguinte:

-Declaração de nulidade ou anulação da decisão de extinção do FUNDO DE PENSÕES DOS MILITARES DAS FORÇAS ARMADAS, contida no Decreto-Lei nº 166-A/2013, de 27 de dezembro (alteração do regime dos complementos de pensão dos militares das Forças Armadas, à transferência da responsabilidade pelo pagamento destes complementos de pensão para a Caixa Geral de Aposentações, I.P., e à fixação das regras de extinção do Fundo de Pensões dos Militares das Forças Armadas).

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Por acórdão de 28-10-215, o referido tribunal decidiu declarar-se sem competência legal para julgar a causa, por estar em causa um decreto-lei, um ato legislativo, e não um ato administrativo, nem uma relação jurídica administrativa (cfr. artigos 198º e 212º/3 da Constituição da República Portuguesa, e artigos 1º/1 e 4º/1/2/a) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais/2002).

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Inconformada com tal decisão, a autora interpôs o presente recurso de apelação, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:

1) Ao contrário do entendimento propugnado pelo douto Acórdão recorrido, estamos, de facto, no domínio do exercício da função administrativa do Governo e não no âmbito do exercício da sua função legislativa, porquanto o ato ora impugnado (decisão de extinção do fundo de pensões dos militares das forças armadas implícita no Decreto­ Lei nº 166-A/2013, de 27 de dezembro) é consequência de um quadro normativo previamente determinado e que instituiu o Governo, no exercício da sua função administrativa, na gestão da despesa pública, conforme resulta, aliás, do preâmbulo do Decreto-Lei nº 166-A/2013, de 27 de dezembro;

2) Na verdade, estamos efetivamente perante o uso da função administrativa do Governo (ainda que a mesma tenha sido exercida mediante a emanação de um Decreto-Lei), enquanto órgão gestor de negócios públicos necessários, pelo menos na sua ótica, à estabilidade económica do executivo governamental [tudo nos termos do disposto no artigo 199º, alíneas d) e g), da CRP], e não perante o exercício da sua função politico-legislativa (enquanto entidade que prima pelo interesse da estabilidade da ordem jurídico-social), pelo que o ato administrativo por si praticado (enquanto ato com eficácia externa e lesivo dos interesses dos beneficiários e participantes do Fundo de Pensões), em forma de Decreto-Lei, assume natureza administrativa e não, como como se decidiu, politico-legislativa;

3) Acresce que o conteúdo do ato impugnado demonstra de forma inequívoca que estamos na presença de uma decisão de carácter individual, com destinatários concretamente identificados (os beneficiários e participantes do Fundo de Pensões) a regular uma situação de vida em concreto (a beneficiação e participação no Fundo de Pensões por partes daqueles que já eram beneficiários e/ou participantes do Fundo), pelo que o mesmo só poderia ser impugnado enquanto ato administrativo;

4) Assim, são os Tribunais Administrativos competentes para apreciar o mérito de uma ação de impugnação do ato administrativo de extinção do Fundo de Pensões dos Militares das Forças Armadas, conforme demonstrado na p.i. e nas presentes alegações de recurso, pelo que, e salvo o devido respeito, mal andou o Tribunal a quo ao julgar em sentido contrário, padecendo o douto Acórdão recorrido de manifesto erro de julgamento.

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O recorrido contra-alegou, concluindo:

1) Vem o presente recurso interposto do douto acórdão proferido nos presentes autos, no qual os M.mos Juízes do tribunal coletivo, reunidos em conferência, julgaram procedente a exceção de incompetência absoluta do Tribunal e, em consequência, absolveram da instância o demandado.

2) Pretende o recorrente que seja decidido serem os Tribunais Administrativos os competentes para apreciar o mérito de uma ação de uma impugnação do ato administrativo de extinção do Fundo de Pensões dos Militares das Forças Armadas.

3) Inexiste qualquer erro de julgamento, ao contrário do que alega o recorrente, pois fora do domínio da justiça administrativa ficam as questões de validade de atos praticados no exercício da função política e da função legislativa estadual.

4) No que concerne aos atos legislativos, enuncia o art.º 112, n 1da CRP (sob a epígrafe "atos normativos ") que "são atos legislativos as leis, os decretos-leis e os decretos-legislativos ".

5) A jurisprudência e doutrina dominantes definem a "função legislativa" como a atividade permanente do poder político consistente na elaboração de regras de conduta social de conteúdo primacialmente político, revestindo determinadas formas previstas na Constituição.

6) A "função administrativa" integrará, pelo contrário, "o conjunto de atos de execução dos legislativos, traduzida na produção de bens e na prestação de serviços destinados a satisfazer necessidades coletivas que, por virtude da prévia opção legislativa, se tenha entendido que incumbem ao poder político do Estado-coletividade" (neste sentido, Marcelo Rebelo de Sousa, in Lições de Direito Administrativo, 1999, 12 Vol., pág. 11 e 12, e Acórdão do STA de 16.03.2004, proc. Nº 01343/03).

7) A aprovação de decretos-lei é, pois, claramente, matéria da "competência política e legislativa" do Governo -art.º 198º da C.R.P.

8) Quanto muito, sem conceder, caso se entendesse que o Decreto-Lei em apreço não contem disposições gerais e abstratas, o que não se admite, sempre seria de entender, nesse caso, que estaríamos perante uma "lei-medida", igualmente não impugnável perante os tribunais administrativos (neste sentido, Vieira de Andrade, in "A Justiça Administrativa, Lições", 2015, 14ª ed., pág. 53).

9) A jurisprudência tende a considerar que à luz do direito vigente, ena falta de um critério de definição da fronteira material entre o domínio legislativo e o domínio regulamentar (ou administrativo), teremos que considerar o plano formal e orgânico, pelo que deve entender-se que "é lei todo o ato que provenha de um órgão com competência legislativa e que assuma a forma de lei ou decreto-lei"; estamos perante uma lei quando, em particular, a norma em questão tem carácter inovador (v.g. por imposição constitucional) e não se apresenta corno simples desenvolvimento ou concretização de qualquer lei anterior (cfr., entre muitos outros, os Acórdãos do STA de 16.03.2006, Processo nº 01343/03 - de 05.12.2007, Processo nº 1111/06 - de 21.01.2009; Gomes Canotilho e Vital Moreira - "Constituição Anotada" , 3ª Ed. , pág. 503).

10) Determina o art.º 212 n 3 da CRP que compete "... aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais ...".

11) O Tribunal Constitucional também adaptou, há muito, um conceito puramente formal de norma, para clarificar os órgãos de controlo e para impedir dificuldades na separação de poderes: são atos normativos todos os atos emitidos pelos respetivos órgãos competentes sob as formas constitucionais de lei, decreto-lei, decreto legislativo regional e regulamento administrativo - dr. Ac. TC nº 26/85, in AcTC, Vol. 5, 1985, pág. 18.

12) No caso sub judice, como já referimos, no que respeita ao Decreto-Lei que o recorrente pretende impugnar, encontramo-nos perante ato praticado no exercício da função político-legislativa - é um ato político que decide, perante determinado circunstancialismo fáctico, qual o modo adequado para regulamentar determinado interesse público, ato este da competência do Governo e, como tal discricionário.

13) Nesta linha de pensamento, dispõe o art.º 4º, n 2, alínea a) do ETAF (atual art.º 4º, nº 3, al. a) do ETAF) que está excluída do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto a impugnação de atos praticados no exercício das funções legislativa e política.

14) Assim, temos por certo que muito bem se decidiu no douto acórdão recorrido ao julgar procedente a exceção de incompetência absoluta do Tribunal e, em consequência, ao absolver da instância o demandado.

15) Por isso, improcedem as alegações do recorrente, não sendo o douto acórdão recorrido merecedor de qualquer censura, devendo o mesmo, como tal, ser integralmente confirmado.

16) Face ao exposto, entende o R. Estado Português, representado pelo Ministério Público, que não houve erro de julgamento, nem errada interpretação e aplicação do disposto no art.º 4 nº 2, al. a) do ETAF (atual art.º 4º, n.º 3, al. a) do ETAF).

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Cumpridos os demais trâmites processuais, importa agora apreciar e decidir em conferência.

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II. FUNDAMENTOS

A.

Está muito claro que o Decreto-Lei nº 166-A/2013, emitindo ao abrigo da competência legislativa do Governo, extingue o Fundo de Pensões dos Militares das Forças Armadas.

Tal Fundo foi criado pelo Decreto-Lei nº 269/90, em consequência do artigo 14º do Decreto-Lei nº 34-A/90.

A autora pretende que esta Jurisdição (Administrativa), com base no alegado facto de haver inconstitucionalidades em tal decisão, a anule.

E fá-lo perante um Tribunal Administrativo de Círculo, porque considera que a extinção contida no cit. Decreto-Lei nº 166-A/2013 é um verdadeiro ato administrativo (cfr. artigos 120º do Código do Procedimento Administrativo de 1991 e 148º do Código do Procedimento Administrativo de 2015; e artigo 199º da Constituição da República Portuguesa) e não um verdadeiro ato legislativo (cfr artigo 198º/1/a) da Constituição da República Portuguesa).

Supõe-se que, para a autora, se trata de um ato (administrativo) do tipo coletivo (cfr. D. Freitas do Amaral, Curso…, II, 2ª ed., 2011, pág. 256).

B.

A função político-legislativa é a atividade permanente do poder político consistente na elaboração de regras de conduta social de conteúdo primacialmente político, revestindo determinadas formas previstas na Constituição. Ou melhor (cfr. Jorge Miranda, Manual…, V, 4ª ed., nº 5), corresponde à definição primária e global do interesse público, interpretando os fins do Estado, sob a forma de lei da A.R., de decreto-lei do Governo ou de decreto legislativo regional das assembleias legislativas regionais;

A função administrativa do Estado é o conjunto dos atos de execução de atos legislativos, traduzida na produção de bens e na prestação de serviços destinados a satisfazer necessidades coletivas que, por virtude de prévia opção legislativa, se tenha entendido que incumbem ao poder político do Estado-coletividade. Corresponde a atos que, em execução direta ou indireta de normas, se destinam a produzirem efeitos jurídicos no âmbito de relações com um objeto especificado entre a Administração e particulares individualizados ou individualizáveis.

Como sabemos, a competência jurisdicional dos tribunais administrativas está prevista principalmente para o controlo da função administrativa, isto é, para as “relações jurídicas em que os sujeitos atuam ao abrigo de poderes ou deveres públicos conferidos por normas de direito administrativo (normas que atribuam prerrogativas de autoridade ou imponham deveres, sujeições ou limitações especiais a todos ou a alguns dos intervenientes, por razões de interesse público)” (1), como resulta expressamente dos artigos 212º/3 da Constituição da República Portuguesa e 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.

Em tal competência não se incluem os litígios referentes a atos materialmente políticos ou materialmente legislativos.

Confirmam-no, clara e expressamente, o artigo 268º/4 da Constituição da República Portuguesa e o artigo 52º/1 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos/2002 («A impugnabilidade dos atos administrativos não depende da respetiva forma»), de onde resulta que o que releva é a materialidade da decisão pública em causa; a forma do ato jurídico é secundária (cfr. assim Mário Aroso, Manual…, 2ª ed., pág. 264; Marcelo Rebelo de Sousa/A.S.M., D. Adm. Geral, I, 2004, págs. 32 ss; Gomes Canotilho/V.M., Constituição da República Portuguesa Anotada, 4ª ed., no comentário ao artigo 268º/4; Jorge Miranda, Manual…, V, 4ª ed., nº 44, págs. 159 ss, e nº 59, págs. 225 ss).

Daqui se conclui ser irrelevante que seja uma decisão da A.R.; ou do Governo com a invocação do artigo 198º da Constituição da República Portuguesa.

Note-se, por outro lado, que (i) o modo de distinguir ou de “equiparar para efeitos de competências do Tribunal Constitucional” a “norma legislativa” em relação à “norma administrava” é diferente (ii) do modo de distinguir a “decisão legislativa” da “decisão administrativa”.

No 1º caso, basta atender aos aspetos formais e orgânicos de cada ato jurídico-público, como faz o Tribunal Constitucional para efeitos de clarificar o controlo da constitucionalidade das “normas legislativas” e das “normas regulamentares” (cfr. assim D. Freitas do Amaral, Curso…, II, 2ª ed., 2011, págs. 192 ss; Jorge Miranda, Manual…, V, 4ª ed., nº 44, págs. 159 ss; e, v.g., o Ac. do Tribunal Constitucional nº 26/85).

Só neste âmbito (da distinção de norma legislativa e norma administrativa, para efeitos de atuação do Tribunal Constitucional) é que se pode dizer que é “ato legislativo” todo aquele que conste de um ato juspúblico oriundo da A.R. ou do Governo, respetivamente, sob as formas de lei ou de decreto-lei.

Mas, no 2º caso, não. O artigo 268º/4 da Constituição da República Portuguesa (acompanhado pelo cit. artigo 52º/1 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos), impõe esta conclusão, ao desvalorizar expressamente a forma dada ao ato administrativo; obriga-nos a prosseguir um critério não formal, um critério material de ato administrativo, isto é, independente da forma do ato público que contenha a decisão (cfr. Jorge Miranda, Manual…, V, 4ª ed., nº 44-V, págs. 164-165; e Mário Aroso, Manual…, 2ª ed., pág. 264).

E o artigo 51º/2 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos/2002 («São igualmente impugnáveis as decisões materialmente administrativas proferidas por autoridades não integradas na Administração Pública e por entidades privadas que atuem ao abrigo de normas de direito administrativo»), por seu lado, não invalida, nem poderia, esta conclusão de base constitucional; apenas inculca o óbvio, de um ponto de vista material:

-a atuação em causa, independentemente do seu autor e da sua forma (lei, decreto-lei, portaria, etc.), tem de ser feita ao abrigo de normas de direito administrativo, isto é, tem de corresponder ao exercício da função administrativa do Estado (ou seja, a uma decisão adotada ao abrigo de lei anterior, em cujos pressupostos já se encontram assumidas as opções políticas primárias do legislador, sendo que o seu eventual conteúdo inovador se circunscreve a aspetos secundários, menores ou instrumentais).

E daí (ex vi artigo 268º/4 da Constituição da República Portuguesa) ser incorreto dizer, sem mais (como faz a decisão recorrida e alguma outra jurisprudência), que, à luz do direito positivo vigente, é ato legislativo todo o ato que provenha de um órgão com competência legislativa e que assuma a forma de lei (ou decreto-lei ou decreto legislativo regional).

O que dizemos aqui é confirmado pela fonte inspiradora de tal afirmação genérica: D. Freitas do Amaral, in Curso…, II, 2ª ed., 2011, pág. 195.

É que o ilustre administrativista está ali a tratar da distinção entre lei e regulamento, apenas (cfr. págs. 192-196).

Aquela síntese, portanto, diz respeito apenas à distinção entre lei e regulamento, em sede de fiscalização da constitucionalidade.

Ou seja, tal regra, fixada pelo Tribunal Constitucional por razões de segurança jurídica e garantia da fiscalização da constitucionalidade, só vale para efeitos da declaração de inconstitucionalidade de normas (legislativas ou administrativas), e não também para efeitos de anulação ou declaração de nulidade, ainda que com base em violação da lei fundamental, de atos jurídico-públicos não normativos, como é o caso das decisões administrativas com efeitos externos concretos.

Com efeito, existe uma “reserva constitucional de função administrativa”; o legislador (tal como o juiz) não pode nunca “usurpar” aquilo que constitucionalmente cabe à Administração (cfr. Paulo Otero, Legalidade e Adm. Pública, 2003, págs. 286 ss e 749 ss; Mário Aroso, T.G.D.A., 3ª ed., pág. 25).

Também irreleva que a causa de pedir da ação administrativa seja uma inconstitucionalidade, pois que, como é consabido, uma decisão concreta materialmente administrativa pode e deve ser invalidada também, ou sobretudo, no caso de violar diretamente um comando da Constituição da República Portuguesa (cfr. artigos 204º e 268º/4 da Constituição da República Portuguesa).

O ato administrativo sob forma de lei é uma simples decisão de um caso concreto e individual e que deve (ou deveria) ser simples aplicação de regra preexistente e só válido se com ela se conforma.

Já a lei, em sentido material, é ato da função política e sujeita imediatamente à Constituição. «Sem essa localização, sem a ponderação prospetiva do interesse geral, sem a visão ampla da comunidade política, sem a discricionariedade que lhe é inerente, não existe lei» (cfr. assim Jorge Miranda, “Algumas considerações sobre a lei”, in Revista Administração, nº 40, 2º de 1998, Vol. XI, Macau, junho de 1998, pág. 380; igualmente em Manual…, V, 4ª ed., nº 41, págs. 143 ss).

O que interessa, em sede de Constituição da República Portuguesa, de Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e de Código de Processo nos Tribunais Administrativos, para efeitos de apurar se estamos ante uma decisão de natureza administrativa concreta ou uma decisão de natureza legislativa é, portanto, o conteúdo material do ato jurídico-público:

(i) se um conteúdo próprio da função administrativa do Estado (isto é, decisão adotada ao abrigo de lei anterior, em cujos pressupostos já se encontram assumidas as opções políticas primárias do legislador, sendo que o seu eventual conteúdo inovador se circunscreve a aspetos secundários, menores ou instrumentais) ou

(ii) se um conteúdo próprio da função legislativa do Estado (isto é, opção primária de política, inconstituída, com um conteúdo inovador expressivo de uma intencionalidade especifica de formulação de opção primária da comunidade, sendo fonte inicial de direito, com apelo à consciência ético-social vigente na comunidade; e que pode até ter um conteúdo concreto – uma a “lei-medida” (2), mas sendo sempre nota distintiva a natureza inovadora ou primária, com um sentido geral ou de princípio geral).

Na 1ª hipótese, e cabendo nas previsões do nº 1 do artigo 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (por exemplo, na muito abrangente al. a), relevante no caso presente – vd. a petição inicial), a competência jurisdicional pertence aos tribunais administrativos.

Na 2ª, não, porque será ato materialmente legislativo.

C.

Face ao explanado, considerando que o Fundo de Pensões dos Militares das Forças Armadas foi previsto/exigido numa norma materialmente legislativa (artigo 14º do Decreto-Lei nº 34-A/90) e foi criado por lei (Decreto-Lei nº 269/90), vindo agora a ser expressa e circunstanciadamente extinto pelo Decreto-Lei nº 166-A/2013, concluímos que esta extinção configura um ato materialmente legislativo nos termos acima definidos.

Trata-se, com efeito, de uma opção primária, inconstituída, sem programa legal preexistente, com um conteúdo inovador expressivo de uma intencionalidade especifica de formulação de opção primária da comunidade, sendo fonte inicial de direito (aqui extintiva), com apelo à consciência ético-social vigente na comunidade, em sede de finanças públicas e da segurança ou previdência social dos cidadãos militares das Forças Armadas.

O Governo pretendeu ali, por razões explanadas, de ordem financeira, de finanças públicas gerais e de igualização na segurança social portuguesa, eliminar algo que fora previsto em 1990 por uma norma materialmente legislativa (ato da função legislativa).

Por este motivo, queda aqui competência jurisdicional aos tribunais administrativos, para apreciar o pedido feito na petição inicial, tudo em obediência aos artigos 212º/3 da Constituição da República Portuguesa e 1º/1 e 4º/2/a) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais/2002.

D.

Uma nota suplementar esclarecedora: em rigor, não estamos preocupados com o pedido constante da petição inicial (o que, normalmente, determina a forma de processo e a competência); o objeto do processo (constituído pelo pedido e pela causa de pedir) tem aqui um quid excluído do controlo difuso ou incidental de constitucionalidade, pertencente aos tribunais diferentes do Tribunal Constitucional, qual seja a validade jurídico-constitucional de uma norma materialmente legislativa (a dita extinção).

Para julgarmos o pedido feito na petição inicial teríamos, não de aferir a validade constitucional de uma decisão materialmente administrativa (para o que seríamos competentes), mas teríamos sim de aferir da validade jurídico-constitucional de uma norma materialmente legislativa (e não materialmente administrativa); ora, esta aferição está reservada ao Tribunal Constitucional (cfr. os artigos 223º e 277º ss da Constituição da República Portuguesa).

*

III. DECISÃO

Por tudo quanto vem de ser exposto e de harmonia com os poderes conferidos no artigo 202º da Constituição, acordam os Juizes da 1ª Secção do Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso.

Custas a cargo da recorrente.

Lisboa, 30-6-2016


(Paulo Pereira Gouveia - relator)

(Nuno Coutinho)

(Carlos Araújo)

(1) Cfr. D. FREITAS DO AMARAL, Curso…, I, 3ª ed., págs. 138-149 e 161; MÁRIO AROSO, Manual…, 2ª ed., págs. 172 ss.
(2) O caso das “leis-medida” implica que, para o caso específico da lei, a abstração recue a favor da generalidade como propriedade natural da lei. Leis concretas e gerais, leis de intervenção em situações concretas, para precisos efeitos e que se traduzem, pois, em medidas ou providências dirigidas à resolução destes ou daqueles problemas em tempo útil.
O legislador, querendo intervir a dirigir a economia e a conformar a sociedade, para dar satisfação aos direitos económicos, sociais e culturais dos cidadãos, tem de atuar, sob uma forma fragmentária e assistemática, descendo ao particular, ao diferente, ao concreto, ao contingente, ao territorialmente circunscrito, ao adequado e ao graduado, prescindindo dos atos administrativos de execução e realizando ele mesmo o efeito ou resultado desejado. Note-se que elas não saem do campo da função legislativa, porque estribam-se em opções políticas, alheias à Administração e, ainda quando autoexequíveis, não são (ou quase nunca são) consuntivas de atos de aplicação às situações da vida.
As "leis-medida" ou "leis-providência" traduzem a necessidade de intervenção direta do poder legislativo na gestão político-administrativa hoje exigida ao Estado, as quais se caracterizam, pelo menos em larga escala do seu conteúdo, por uma índole concreta e individualizada, distinguindo-se das leis-norma, pois que enquanto estas são gerais, destinando-se a uma pluralidade indefinida de cidadãos, aquelas são individuais, visando uma só pessoa ou um grupo de pessoas, e ao passo que as leis norma regulam em abstrato determinados factos, as leis-medida destinam-se especialmente a certos factos concretos – Ac. do Supremo Tribunal Administrativo de 12-1-1999, Proc. Nº 044490.
Vejam-se ainda os casos das leis orçamentais ou de amnistia ou de declaração do estado de sítio.
Cfr. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª ed., Coimbra, 2003, pp. 717 segs.