Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:06285/10
Secção:CA - 2º. JUÍZO
Data do Acordão:10/23/2014
Relator:NUNO COUTINHO
Descritores:INCIDENTE DE INTERVENÇÃO PRINCIPAL
NULIDADE DE DESPACHO
ADMISSIBILIDADE DO INCIDENTE
Sumário:1. Tendo sido requerido, na p.i., incidente de intervenção principal e tendo o R. sido citado para contestar não enferma de qualquer nulidade o despacho que deferiu a pretendida intervenção sem que tivesse existido específica notificação do R. para se pronunciar relativamente ao referido incidente.
2. É de admitir a intervenção principal de Município quando o acto impugnado nos autos coloca em questão a validade de acto anteriormente praticado por órgãos da referida autarquia local.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

I) Relatório

O Instituto da Conservação da Natureza e da Biodiversidade, I.P. recorreu do despacho proferido pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada em 17 de Fevereiro de 2010, no Proc. 1119/08.5BEALM, que deferiu o incidente de intervenção principal do Município de Sesimbra, deduzido pela A. – ora recorrida - na acção administrativa especial intentada pela recorrida e na qual foi peticionada a anulação do despacho da Directora do Departamento de Gestão das Áreas Classificadas Litoral de Lisboa e Oeste, proferido a 15 de Fevereiro de 2008, nos termos do qual foi ordenada a reposição do terreno nas condições pré-existentes à emissão do alvará de loteamento nº ../.., de 16 de Dezembro e indeferida a proposta de suspensão do procedimento constante do parecer dos serviços jurídicos do Parque Natural da Arrábida.

Inconformado com o decidido, o Instituto da Conservação da Natureza e da Biodiversidade, I.P. recorreu para este TCA Sul, tendo formulado as seguintes conclusões:

“1) Nos termos do artigo 326 nº 2 do Código de Processo Civil, deveria ter existido uma notificação específica e expressa (não a citação) para que o R. se pronunciasse sobre a admissão da intervenção principal provocada.
2) Não tendo sido feita a audição do R., encontra-se a admissão da intervenção provocada ferida de nulidade.
3) Por não cumprir o disposto no artigo 325º nº 3 do Código de Processo Civil, deveria a requerida intervenção do Município de Sesimbra ter sido indeferida.
4) Se a presente acção for julgada improcedente, a A., caso pretenda, terá que fazer valer esse direito, que alega (se o tem) nos termos previstos no artigo 70º do RJUE (Decreto-Lei nº 555/99, de 16 de Dezembro) através da competente acção judicial para o efeito.
5) Por não cumprir o disposto no artigo 327º nº 1 do Código de Processo Civil deveria a requerida intervenção do Município de Sesimbra ter sido indeferida.

Contra-alegou a Recorrida nos seguintes moldes:

1 - É por demais óbvio que o artigo 326º, nº 2 do C.P.C. constitui um corolário do princípio do contraditório, apenas exigindo uma notificação específica para o efeito quando a intervenção não tenha sido requerida em qualquer articulado cuja comunicação à outra parte resulta de outras disposições do mesmo código;

2 - No caso dos autos foi assegurada o principio do contraditório previsto na disposição alegada pelo ora Recorrente através de comunicação por acto mais solene do que a notificação, ou seja, tal comunicação - e a consequente oportunidade de pronuncia - ocorreu com a citação.

3 - Em sede de contestação, o ora Recorrente, só não se pronunciou sobre a questão da Intervenção do Município de Sesimbra, suscitada a fls. 5 da petição inicial, porque não quis.

4 - Improcede, assim, em absoluto, a alegada violação do artigo 326, nº 2 do C.P.C.;

5 - É igualmente óbvia e inequívoca a admissibilidade da intervenção do Município de Sesimbra ao abrigo do artigo 325 do C.P.C., não só porque o direito processual o admite como porque tal intervenção decorreria sempre dos princípios gerais inerentes ao Estado de Direito e à actividade administrativa;

6 - O artigo 320º do C.P.C prevê expressamente que um terceiro pode intervir numa causa em que não é parte se tiver um interesse igual a um das partes nos termos do artigo 27º e 28º do mesmo C.P.C.;

7 - Por seu turno os artigos 27º e 28º do C.PC. referidos regulam respectivamente o litisconsórcio voluntário e o litisconsórcio necessário. Sendo certo que, para que se verifique uma situação de litisconsórcio voluntário basta, nos termos do artigo 27º que a relação material controvertida respeite a várias pessoas;

8 - No contencioso administrativo o litisconsórcio voluntário do lado do autor encontra-se especificamente regulado no artigo 12º do CPTA que prevê que podem coligar-se vários autores, não apenas nas acções administrativas comuns - quando se verifiquem os requisitos do nº 1 do artigo 12 - mas também nas acções impugnatórias desde que esteja em causa a impugnação do mesmo acto;

9 - Ora, tanto basta para que possa, in casu, considerar-se verificados os requisitos de admissão da intervenção principal provocada, porquanto, o que aqui está em causa é dar-se ao Município de Sesimbra e possibilidade de, ao lado da A., ora Recorrida, vir igualmente impugnar o acto administrativo do ICNB, ora Recorrente que declarou a nulidade de uma licença emitida por um órgão daquele município;


10º - Sendo certo que, para esse efeito, basta que, em teoria, haja interesse do chamado, cabendo a este, a partir da citação, decidir se quer ou não intervir nos autos.

11º - Ou seja, no caso concreto, basta a constatação, em abstracto de que o Município tem legitimidade para impugnar o acto do ICNB cuja legalidade está em causa nos autos e que por isso poderia ter-se coligado ab initio com a A. - para ter que se considerar que o referido Município tem um interesse igual ao da A., ora Recorrida e que se, verificam, assim, os requisitos da intervenção principal provocada;

12º - É por demais óbvio que, sendo o objecto do presente processo o conhecimento da legalidade de uma ordem de demolição e da inerente declaração de nulidade do licenciamento municipal da construção a demolir, o interesse relevante é o interesse na anulação ou declaração de nulidade dos actos em causa;

13º - É Incontestável e indiscutível o interesse do Município de Sesimbra (igual ao da Autora) em defender a legalidade e manter na ordem jurídica um acto administrativo por si proferido;

14º - Acresce que, o interesse do Município na defesa da legalidade da licença por si emitida resulta também do facto de aquele poder vir a ser responsabilizado, incorrendo no correspondente dever de indemnizar nos termos previstos no artigo 70º do RJUE, se se chegar à conclusão - que se impugna - de que o acto de licenciamento da construção é nulo;

15º - Em suma, ao contrário do sustentado pelo R., ora Recorrente é manifesto que o despacho recorrido, ao admitir a intervenção principal provocada do Município de Sesimbra fez correcta interpretação e aplicação das disposições legais aplicáveis, nomeadamente, das disposições conjugada dos artigos 320º, 325º, 27º do CPTA e 12º do CPTA”

O EMMP emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

II) Para apreciação do presente recurso importa dar como assentes os seguintes factos:

A)
A Câmara Municipal de Sesimbra deliberou, em 02 de Março de 1989, aprovar o pedido de loteamento apresentado pela A. – cfr. doc. 4 junto com a p.i..
B)
Foi emitido, no dia 24 de Novembro de 2005, o alvará de loteamento nº ./.. – cfr. doc. 4 junto com a p.i..
C)
A recorrida foi notificada para se pronunciar quanto ao projecto de decisão de reposição do terreno nas condições pré-existentes, projecto de decisão estribado na seguinte fundamentação:
(…)
“1º A…… – E……., SA é proprietária de um prédio rústico, sito em .……, freguesia de ......, concelho de Sesimbra, descrito na Conservatória do Registo Predial de Sesimbra, sob os nºs …../….. e …../….. da freguesia de ..... e inscrito na matriz sob os artigos .., Secção .. e ..º, Secção .., da mesma freguesia.
2º É titular do alvará de loteamento nº ../.., de 16 de Dezembro, e todavia, o loteamento em questão situa-se em área rural, contrariando o disposto no artº 14º, nº 2 da Portaria nº 26-F/80, de 9/01, onde apenas se permite a construção de edifícios destinados ao apoio das explorações agrícolas, florestais e ou de recreio, com um índice de utilização fundiário de 0,004/ha, com um máximo de 200 m2 reservados para as habitações patronais.
3º O POPNA (RCM nº 141/2005, de 23 /08) não admite loteamentos nas áreas de protecção complementar (arts. 18º a 22 do POPNA).
4º O loteamento titulado pelo alvará nº ../.. viola o regulamento do plano preliminar do Parque Natural da Arrábida (art. 14º, nº 2 da Portaria nº 26-F/80 de 9/01) entretanto revogado pelo POPNA.
5º E viola o POPNA, plano especial de ordenamento do território, com a consequente nulidade prevista no art. 68º, al. a) do DL 555/99, de 16 de Dezembro e artº 2º, nº 2, al. c)do DL nº 380/99, de 22/09 e artº 103º do DL 380/99, de 22/09.
Assim, face ao que antecede os trabalhos efectuados são insusceptíveis de legalização, não restando outra solução, senão a reposição do terreno nas condições pré-existentes” (…) – cfr. doc. 1 junto com a p.i..

D)
No dia 15 de Fevereiro de 2008 foi proferido pela Directora do Departamento de Gestão de Áreas Classificadas Litoral de Lisboa e Oestes, despacho com o seguinte teor:
“Visto.
Não se concorda com o projecto, de suspensão do procedimento de reposição do terreno nas condições pré-existentes, pelo que se reitera o projecto de decisão. Notifique-se a interessada” (…) – cfr. doc. 1 junto com a p.i..
E)
A ora recorrida – A…… – E……, S.A. – intentou a presente acção administrativa especial tendo formulado pedido de anulação do despacho da Directora de Departamento de Gestão de Áreas Classificads Litoral de Lisboa e Oeste, datado de 15 de Fevereiro de 2008 que “…confirmou o projecto de decisão de declaração de nulidade da licença de loteamento a que corresponde o alvará nº ../.. de que a Autora é titular indeferindo simultaneamente a proposta de suspensão do procedimento constante do parecer do serviço jurídico do Parque Natural da Arrábida” tendo ainda formulado pretensão de “…reconhecimento da validade da licença de loteamento, datada de 2 de Março de 1989, emitida no processo de loteamento nº ../..-L da Câmara Municipal de Sesimbra, que deu origem ao alvará de loteamento nº ../..”– cfr. respectiva p.i..
F)
A ora recorrida, formulou na p.i. pedido de intervenção principal do Município de Sesimbra – cfr. aludida p.i..
G)
O R. – ora recorrente – foi citado para contestar – cfr. fls. 48/49 dos autos.
H)
O recorrido apresentou contestação não tendo emitido pronúncia quanto ao pedido de intervenção referido em F) – facto provado face ao consulta efectuada, através do SITAF, ao Proc. nº 1119/08.5BELSB que corre termos no Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada.
I)
No dia 5 de Fevereiro de 2009, foi proferido pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada, despacho com o seguinte teor:
“Compulsados os autos verifico que, na douta petição inicial, vem requerida a intervenção provocada da Câmara Municipal de Sesimbra, ao abrigo do artigo 325º do CPC ex vi artigo 1º do CPTA (cfr. artigos 18º a 20º) e a final na al. b) de fls. 46.

A A. alega para o efeito estar em causa a validade de acto praticado pela Câmara Municipal de Sesimbra devendo esta vir aos autos em defesa da validade do acto.

Em sede de contestação, a entidade demandada – Instituto da Conservação da Natureza e da Biodiversidade, I.P. não se pronunciou sobre tal requerimento.

Face ao exposto:
Admito a intervenção provocada do Município de Sesimbra (cfr. artigo 10º nº 2 e nº 4 do CPTA e artigo 327º nº 1 do CPC ex vi artigo 1º do CPTA) – despacho recorrido – cfr. fls. 50 dos autos
III) Fundamentação jurídica

Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações de recurso importa conhecer, em primeiro lugar, da invocada nulidade do despacho.

O recorrente invocou a nulidade do despacho recorrido com fundamento na violação do preceituado no artº 326º nº 2 do C.P.C. (na redacção vigente à data da prolação do mesmo), tendo referido não ter sido dado cumprimento ao mesmo.

Prescrevia o nº 1 do artº 326º do C.P.C. que “o chamamento para intervenção só pode ser requerido, em articulado da causa ou em requerimento autónomo, até ao momento em que se podia deduzir a intervenção espontânea em articulado próprio, sem prejuízo do disposto no artigo 269º, nº 1 do artigo 329º e nº 2 do artigo 869º”, prevendo o nº 2 que “ouvida a parte contrária, decide-se da admissibilidade do chamamento”.

No caso em apreço a intervenção do Município de Sesimbra foi requerida na p.i., tendo o ora recorrente sido citado para contestar, o que fez, tendo omitido pronúncia quanto à requerida intervenção do Município, pelo que não se pode dizer que o ora recorrente não foi ouvido para se pronunciar quanto ao incidente de intervenção suscitado pela ora recorrida, dado a mesma ter sido requerida com a p.i. – cujo teor foi conhecido pelo recorrente conforme resulta da contestação que apresentou - pelo que, ao contrário do invocado, não foi omitida qualquer formalidade exigida por lei, pelo que o despacho impugnado não padece da nulidade que lhe é imputada.

Apreciando agora o acerto do despacho em apreço:

Nos termos do disposto no art. 325º do CPC, qualquer das partes pode chamar a juízo o interessado com direito a intervir na causa, seja como seu associado seja como associado da parte contrária.

Tal pressupõe a cumulação no próprio processo da apreciação de uma relação jurídica própria do interveniente, substancialmente conexa com a relação material controvertida entre as partes primitivas, em termos de tornar possível um hipotético litisconsórcio ou coligação iniciais, caracterizando-se por uma igualdade ou paralelismo de interesse do interveniente com a parte a que se associa, passando a intervir no processo com a qualidade de autor ou de réu.

A intervenção principal “stricto sensu” visa permitir a participação de um terceiro que é titular (activo ou passivo) de uma situação subjectiva própria, mas paralela à alegada pelo autor ou pelo réu (cfr. art. 321.º do CPC).

No caso em apreço importa recordar ter sido emitido pela Câmara Municipal de Sesimbra o alvará de loteamento nº ../.., ao abrigo do qual a recorrida iniciou as obras de urbanização, tendo o acto recorrido ordenado a reposição do terreno nas condições pré-existentes previamente ao início das referidas obras, pelo que embora o acto objecto da acção administrativa especial onde foi proferido o despacho recorrido não declare, expressamente, a nulidade do alvará de loteamento nº ../.., ou da deliberação camarária que o antecedeu, o certo é que, conforme se retira da fundamentação constante do projecto de decisão, o mesmo parte do entendimento de que o mesmo será nulo dado expressamente referir que o loteamento em questão se situa em área rural, contrariando o disposto no artigo 14º nº 2 da Portaria 26-F/80, de 9/01, onde apenas se permite a construção de edifícios destinados ao apoio das explorações agrícolas, florestais e ou de recreio; que o Plano de Ordenamento do Parque Nacional da Arrábida – aprovado pela R.C.M. nº 141/2005, de 23 de Agosto – não admite loteamentos nas áreas de protecção complementar; que o loteamento titulado pelo Alvará nº ../.. viola o regulamento do plano preliminar do Parque Natural da Arrábida, entretanto revogado pelo referido Plano de Ordenamento e violando o referido Plano de Ordenamento é nulo, nos termos do disposto no artº 68 alínea a) do D.L. nº 555/99, de 16 de Dezembro e artº 2, nº 2, alínea c) do D.L.nº 380/99, de 22 de Setembro a artigo 103º do D.L. nº 380/99, de 22 de Setembro.

Tendo o despacho impugnado ordenado a reposição do terreno na situação pré-existente e tendo as obras de urbanização sido executadas ao abrigo do aludido alvará de loteamento – emitido pela Câmara Municipal de Sesimbra – é de concluir que o Município de Sesimbra – face ao teor da fundamentação transcrita no item C) dos factos apurados – tem interesse igual ao do A. – a defesa da validade do acto que levou à emissão do alvará de loteamento nº ../.. – validade essa que é, inequivocamente, posta em causa pelo despacho impugnado, pelo que é incontestável a existência de causa do chamamento, que foi alegada pela ora recorrida, que justificou o interesse que pretende acautelar, sendo que a solução oposta é que seria de repudiar dado impedir que o Município tivesse intervenção em processo no qual está em causa acto administrativo que concluiu – embora não a declare expressamente – pela nulidade de deliberação que levou à emissão de alvará de loteamento nº ../.. emitido pela Câmara Municipal de Sesimbra, pelo que o despacho impugnado não violou o disposto nos artigos 325º nº 3 e nº1 do artigo 327º, ambos do C.P.C. na versão em vigor à data em que foi proferido, pelo que improcede o presente recurso.

III) Decisão

Assim, face ao exposto, acordam em conferência os juízes da secção de contencioso administrativo do TCA Sul, em julgar improcedente o recurso, confirmando o despacho recorrido.
Custas pelo recorrente.
Lisboa, 23 de Outubro de 2014


Nuno Coutinho


Carlos Araújo


Rui Belfo Pereira