Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:475/16.6BESNT
Secção:CT
Data do Acordão:03/02/2023
Relator:TÂNIA MEIRELES DA CUNHA
Descritores:RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL DE ENTES PÚBLICOS
COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
Sumário:I. O conhecimento das ações sobre responsabilidade civil extracontratual de entes públicos, por danos decorrentes da prática de atos tributários ou de atos administrativos em matéria tributária, compete materialmente aos tribunais administrativos.

II. Independentemente de os tribunais tributários e administrativos de círculo funcionarem separadamente (como sucede em Lisboa) ou de forma agregada (como acontece no resto do país), tal não significa que não estejamos a falar de tribunais distintos, não obstante a designação unitária assumida (“tribunal administrativo e fiscal”) para os tribunais que funcionem agregados.

Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:I. RELATÓRIO

J. F. (doravante Recorrente) veio recorrer da sentença proferida a 18.05.2022, no Tribunal Tributário de Sintra [que, funcionando agregado com o Tribunal Administrativo de Círculo de Sintra, utiliza a designação Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Sintra], na parte em que aquele Tribunal se declarou absolutamente incompetente para conhecer do pedido de indemnização formulado, absolvendo a Fazenda Pública (doravante Recorrida ou FP) da instância, nessa parte, no âmbito da impugnação judicial que apresentou, que versou sobre a liquidação de imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS), atinente ao ano de 2014.

Nas suas alegações, concluiu nos seguintes termos:

“1 - No âmbito dos presentes foi peticionado “(…) deve ser concedido provimento à presente Impugnação: a) Anulando-se a nota de liquidação e corrigindo-a para o valor de 991,87 € nas deduções e no valor a reembolsar por padecer de um erro de identificação e quantificação dos valores. b) Condenar a entidade que elaborou a nota da Demonstração de Liquidação a pagar a título de danos não patrimoniais a quantia de € 4.010,00 (quatro mil e dez euros), acrescida dos juros que se vencerem desde a citação até integral pagamento.

2 - Foi proferida Sentença em 19/05/2022 que julgou “ (…) julga-se a ação totalmente improcedente, absolvendo-se a Fazenda Pública do pedido.”

3 - Salvo o devido respeito, que é muito, não pode o Recorrente conformar-se com aquela decisão plasmada na Sentença sob sindicância, com o todo o respeito pela opinião contrária, não foi devidamente apreciada pelo Tribunal a quo.

4 - O Recorrente está pois convicto que Vossas Excelências, reapreciando a matéria em causa, subsumindo-a nas normas legais aplicáveis, não deixando de deferir o recurso apresentado pelo ora Recorrente.

5 - Com o devido respeito, entende o Recorrente que a Douta Sentença proferida pelo Tribunal a quo, procede a uma errónea apreciação dos factos relevantes nos presentes autos.

6 - A Recorrida tinha na sua oposição referido a “inadequação do meio processual da impugnação judicial no referente ao pedido de indemnização”. Sobre o mesmo o Recorrente pronunciou-se.

7 - Agora vem o Douto Tribunal a quo, referir que “a apreciação de um pedido de indemnização por prática de ato ilícito imputados à entidade que emitiu a liquidação de IRS aqui impugnada, a Autoridade Tributária (…) compete ao tribunal administrativo.

8 - O Recorrente alegou os factos do acto que impugnou e os danos não patrimoniais que teve na sequência do mesmo.

9 - O Recorrente podia e pode alegar os danos não patrimoniais que teve e ser ressarcido pelos mesmos no âmbito dos presentes.

10 - Não está previsto no CPPT nenhum meio específico para o pedido de indemnização.

11 - Em qualquer dos meios processuais previstos no CPPT nomeadamente impugnação judicial, in casu, o Recorrente podia pedir o ressarcimento pelos danos não patrimoniais causados ao mesmo pela Recorrida, o que fez.

12 - A ação intentada foi a própria e os referidos danos terão que ver com os factos e causa de pedir e não com a forma de processo.

13 – Aliás, o próprio Tribunal é “Tribunal Administrativo e Fiscal”, sendo competente para as duas matérias.

14- Assim o presente Tribunal e no presente processo é competente para apreciar o pedido de indemnização por prática de ato ilícito.

Nestes termos e nos melhores de Direito Mui Doutamente Supridos, deve ser dado provimento ao presente Recurso

Fazendo-se assim a ACOSTUMADA JUSTIÇA”.

A FP não apresentou contra-alegações.

O recurso foi admitido, com subida imediata nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

Em momento anterior, já o Recorrente apresentara recurso de despacho, de 09.10.2017, que indeferiu o pedido de produção de prova, no qual concluiu nos seguintes termos:

“21º.Vem o presente recurso na sequência do Douto Despacho que indeferiu o requerimento de prova apresentado na petição inicial.

22º.A fundamentação do Douto Despacho assenta em síntese no entendimento segundo o qual: “Atenta a factualidade de que cabe conhecer, por referência à forma de processo que seguem os presentes autos, constata-se que as questões a dirimir dependem, no essencial, da interpretação e aplicação aos mesmos das normas legais relativas às regras de liquidação do IRS, sendo certo que aqueles que são essenciais para a decisão do mérito da causa, além não se mostrarem controvertidos, encontram suporte nos documentos constantes dos autos”.

23º.Com o devido respeito, entende o Recorrente que o Douto Despacho proferido pelo Tribunal a quo, procede a uma errónea apreciação dos factos relevantes nos presentes autos.

24º.É referido que as questões a dirimir dependem, no essencial, da interpretação e aplicação aos mesmos das normas legais relativas às regras de liquidação do IRS. Porém,

25º.É certo que, é o pedido do Impugnante que delimita ação bem como a prova pretendida e que o Tribunal deve conhecer de todos os pedidos deduzidos.

26º.Consta na petição, um pedido a título de danos não patrimoniais.

27º.Tal pedido não consegue ser decidido com base na interpretação e aplicação das normas legais sendo essencial ouvir as declarações do Impugnante, ora Recorrente.

28º.A prestação de declarações do mesmo é essencial para a correta compreensão dos factos em causa, constantes dos autos dos artigos 1º a 30º da petição iniciale bem assim a realização da prova pericial conforme requerido na petição inicial.

29.É necessário, útil e essencial à boa descoberta material da verdade e dos factos, sua prova e boa decisão da causa.

30º.A prescindir de tal diligência injustificadamente, o Douto Despacho recorrido, violou os artigos 99º da LGT 114º e 115º do CPPT e 7º do CPC.

31º.Por decorrência do princípio da verdade material, a lei admite todos os meios de prova, sendo que os mesmos não são dilatórios.

32º.No limite, a não se produzir a indispensável prova pericial e as declarações do Recorrente, solicitada pelo Impugnante, irão certamente persistir dúvidas sobre o enquadramento dos referidos factos essenciais que sustentam a relação controvertida.

33º.De acordo com o princípio da verdade material e (investigação do juiz) não deve ser vedado ao Recorrente na mais nobre cooperação com a Justiça a prestação de declarações do mesmo que auxiliam o Tribunal na descoberta da verdade.

34º.Está em causa a necessidade imperativa de levar ao conhecimento do Tribunal, em benefício da boa decisão da causa, todos os elementos que concretizem e materializam os factos alegados, de modo a que, no momento da decisão, o Tribunal possa dispor de uma visão completa e integrada do quadro factual em que foi realizada a operação cuja análise errónea sustenta os actos impugnados.

35º.A prestação de declarações e a prova pericial ora denegada afigura-se essencial para a boa decisão da causa e, a não se realizar, onerará a decisão final com uma distorcida perceção dos factos e, no limite uma grave omissão de pronúncia.

36º.Afigura-se essencial o imediato conhecimento do recurso para evitar o recurso de uma decisão final que venha a ser proferida eivada de tais ilegalidades.

37º.Tal justifica, à luz do disposto no nº 2 do artigo 285º do CPPT, a subida imediata do presente recurso e a consequente pronúncia em face do mesmo, de forma a evitar actos e recursos supérfluos, em prol da economia processual.

Nestes termos e nos melhores de Direito Mui Doutamente supridos, deve ser dado provimento ao presente recurso e o Douto Despacho interlocutório revogado/anulado e consequentemente:

-Serem tomadas as declarações do Impugnante; e

-A realização da prova pericial.

Fazendo-se assim a ACOSTUMADA JUSTIÇA”.

A FP também aqui não contra-alegou.

O recurso foi admitido, com subida a final e com efeito meramente devolutivo.

Foram os autos com vista ao Ilustre Magistrado do Ministério Público, nos termos do art.º 288.º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), que emitiu parecer, no sentido de ser negado provimento ao recurso.

Com dispensa dos vistos legais (art.º 657.º, n.º 4, do CPC, ex vi art.º 281.º do CPPT), vem o processo à conferência.

São as seguintes as questões a decidir:

a) Verifica-se erro de julgamento, porquanto o Tribunal a quo é competente em razão da matéria para conhecer do pedido indemnizatório formulado?

b) Verifica-se erro de julgamento, em virtude de ser essencial a realização das diligências requeridas, face ao pedido de indemnização formulado?

II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

II.A. Para a apreciação do presente recurso, considera-se provado o seguinte:

1) O Recorrente apresentou, junto do TAF de Sintra, petição inicial, relativa a ação de impugnação judicial atinente à liquidação de IRS do ano de 2014, na qual formulou os seguintes pedidos:

“Nestes termos e nos melhores de Direito Doutamente supridos, deve ser concedido provimento à presente Impugnação:

a) Anulando-se a nota de liquidação e corrigindo-a para o valor de 991,87 € nas deduções e no valor a reembolsar, por padecer de um erro de identificação e quantificação dos valores.

b) Condenar a entidade que elaborou a nota da Demonstração de Liquidação a pagar a título de danos não patrimoniais a quantia de € 4.010,00 (quatro mil e dez euros), acrescida dos juros que se vencerem desde a citação até integral pagamento” (cfr. documento com o n.º de registo no SITAF neste TCAS 004566868).


*

Inexistem quaisquer outros factos relevantes, provados ou não provados, para a apreciação do recurso.

A motivação do facto provado sustenta no elemento documental supra identificado.

III. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

III.A. Do erro de julgamento, no tocante à incompetência absoluta

Considera o Recorrente que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, na medida em que o mesmo é absolutamente competente para conhecer do pedido indemnizatório formulado.

Antes de mais, cumpre referir que a sentença proferida se pode segmentar em duas partes: a decisão de incompetência absoluta, objeto de recurso, e a decisão em torno da legalidade da liquidação, de improcedência da pretensão. Apenas a primeira constitui objeto do presente recurso – aliás, considerando o valor dos presentes autos, inferior a 5.000,00 Eur. (cfr. art.º 280.º do CPPT), apenas é admissível o presente recurso por força do disposto na al. a) do n.º 2 do art.º 629.º do CPC, ex vi art.º 281.º do CPPT.

Feito este introito, cumpre apreciar.

Nos termos do art.º 212.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa (CRP):

“Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.

Por sua vez, ao nível da lei ordinária, determina o art.º 1.º, n.º 1, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF; redação vigente à época, a que correspondem futuras referências ao ETAF), que:

“1 - Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.º deste Estatuto”.

A este propósito, é de atentar no art.º 49.º do ETAF, nos termos do qual:

“1 - Sem prejuízo do disposto no artigo seguinte, compete aos tribunais tributários conhecer:

a) Das ações de impugnação:

i) Dos atos de liquidação de receitas fiscais estaduais, regionais ou locais, e parafiscais, incluindo o indeferimento total ou parcial de reclamações desses atos;

ii) Dos atos de fixação dos valores patrimoniais e dos atos de determinação de matéria tributável suscetíveis de impugnação judicial autónoma;

iii) Dos atos praticados pela entidade competente nos processos de execução fiscal;

iv) Dos atos administrativos respeitantes a questões fiscais que não sejam atribuídos à competência de outros tribunais;

b) Da impugnação de decisões de aplicação de coimas e sanções acessórias em matéria fiscal;

c) Das ações destinadas a obter o reconhecimento de direitos ou interesses legalmente protegidos em matéria fiscal;

d) Dos incidentes, embargos de terceiro, reclamação da verificação e graduação de créditos, anulação da venda, oposições e impugnação de atos lesivos, bem como de todas as questões relativas à legitimidade dos responsáveis subsidiários, levantadas nos processos de execução fiscal;

e) Dos seguintes pedidos:

i) De declaração da ilegalidade de normas administrativas de âmbito regional ou local, emitidas em matéria fiscal;

ii) De produção antecipada de prova, formulados em processo neles pendente ou a instaurar em qualquer tribunal tributário;

iii) De providências cautelares para garantia de créditos fiscais;

iv) De providências cautelares relativas aos atos administrativos impugnados ou impugnáveis e as normas referidas na subalínea i) desta alínea;

v) De execução das suas decisões;

vi) De intimação de qualquer autoridade fiscal para facultar a consulta de documentos ou processos, passar certidões e prestar informações;

f) Das demais matérias que lhes sejam deferidas por lei.

2 - Compete ainda aos tribunais tributários cumprir os mandatos emitidos pelo Supremo Tribunal Administrativo ou pelos tribunais centrais administrativos e satisfazer as diligências pedidas por carta, ofício ou outros meios de comunicação que lhe sejam dirigidos por outros tribunais tributários”.

Já quanto à competência dos tribunais administrativos de círculo, o art.º 44.º, n.º 1, do ETAF prescreve que:

“1 - Compete aos tribunais administrativos de círculo conhecer, em primeira instância, de todos os processos do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal que incidam sobre matéria administrativa e cuja competência, em primeiro grau de jurisdição, não esteja reservada aos tribunais superiores”.

Neste seguimento, cumpre aferir o conceito de questão fiscal, chamando-se, a este respeito, à colação o Acórdão do Plenário do Supremo Tribunal Administrativo, de 29.10.2003 (Recurso n.º 0937/03):

“[P]or questões fiscais deve entender-se tanto as resultantes de imposições autoritárias que postulem aos contribuintes o pagamento de toda e qualquer prestação pecuniária, em ordem à obtenção de receitas destinadas à satisfação de encargos públicos dos respectivos entes impositores, como também das que as dispensem ou isentem, ou, numa perspectiva mais abrangente, as respeitantes à interpretação e aplicação de normas de direito fiscal, com atinência ao exercício da função tributária da Administração Pública, em suma, ao regime legal dos tributos”.

Como referido por Jorge Lopes de Sousa (Código de Processo e de Procedimento Tributário, Vol. I, 6.ª Edição, Áreas Editora, Lisboa, 2011, pp. 229 e 230):

“[A] repartição da competência entre os tribunais fiscais e os tribunais administrativos para o conhecimento das acções de impugnação de actos administrativos faz-se tendo em atenção o objecto do acto impugnado: se o acto é respeitante a uma questão fiscal serão competentes os tribunais tributários; se o acto impugnado respeita a uma questão que não tem aquela natureza, serão competentes os tribunais administrativos (…)

A jurisprudência do STA tem-se pronunciado frequentemente sobre o conceito de questão fiscal, para efeitos da delimitação de competência entre tribunais fiscais e tribunais administrativos.

Nessa jurisprudência desenham-se, em linhas gerais, duas teses essenciais:

- numa delas, está-se perante uma questão fiscal «toda a que emerge de resolução autoritária que imponha aos cidadãos o pagamento de qualquer prestação pecuniária com vista à obtenção de receitas destinadas à satisfação de encargos públicos do ente respectivo», admitindo-se, por vezes a sua extensão ao «conjunto de relações jurídicas que surjam em virtude do exercício de tais funções ou que com elas estejam objectivamente conexas ou teleologicamente subordinadas»;

- noutra linha, entende-se, mais amplamente, que é «questão fiscal a que exija a interpretação e aplicação de quaisquer normas de direito fiscal substantivo ou adjectivo, para resolução de questões sobre matérias respeitantes ao exercício da função tributária da Administração Pública.

Destas duas teses, a segunda é a que está mais em sintonia com a razão de ser da repartição de competência em razão da matéria entre os vários tipos de tribunais, que assenta, essencialmente, em procurar incrementar a melhoria da qualidade das decisões judiciais, que se crê ser um corolário natural da especialização.

Por isso, valendo esta razão de ser da repartição de competência sempre que esteja em causa a interpretação e aplicação de quaisquer normas de direito fiscal substantivo ou adjectivo e a resolução de questões sobre matérias respeitantes ao exercício da função tributária da Administração Pública, deverá adoptar-se esta segunda tese” (sublinhado nosso).

Como sumariado no Acórdão do Plenário do Supremo Tribunal Administrativo, de 21.03.2012 (Processo: 0189/11):

“O conceito de questão fiscal tem oscilado entre a tese restritiva ou redutora e a tese ampliativa.

A tese ampliativa é a que é hoje seguida na jurisprudência e abrange todas as questões cuja resolução exige a interpretação e a aplicação de quaisquer disposições de direito fiscal, desde que se situe no campo da actividade tributária do Estado.

(…) É "questão fiscal" a que exija a interpretação e aplicação de quaisquer normas de direito fiscal, substantivo ou adjectivo, para resolução de questões sobre matérias respeitantes ao exercício da função tributária da Administração Pública” (sublinhados nossos).

Sobre a questão da competência material para o conhecimento de um pedido de indemnização formulado, por alegada prática de ato ilícito, considerando o regime da responsabilidade extracontratual do Estado, já a nossa jurisprudência se pronunciou abundantemente.

A este respeito, veja-se o Acórdão do Plenário do Supremo Tribunal Administrativo, de 15.10.2014 (Processo: 0873/14), onde se refere:

“Trata-se de uma acção tendente a obter a condenação do Estado no pagamento de uma indemnização pelos prejuízos que a autora sofreu com a persistência da garantia bancária que prestara para sustar uma execução fiscal fundada num acto de liquidação mais tarde anulado «in judicio».

É sabido que as acções do género – de responsabilidade civil extracontratual dos entes públicos – costumam correr nos tribunais administrativos, e não nos tributários. E essa prática – cuja repetição, por si só, nada garante – tem um genuíno fundamento legal.

Concede-se que o ETAF não é perfeitamente claro na repartição de competências entre as subjurisdições administrativa e tributária. Mas, se cotejarmos os arts. 44º e 49º do diploma, atentando na minuciosa previsão, no último deles, dos assuntos cujo conhecimento incumbe aos Tribunais Tributários, logo recolheremos aí um forte indício de que o ETAF recortou as competências dessas subjurisdições por forma a conferir à administrativa uma competência que se pode qualificar como residual ou por exclusão. Sendo assim, o próprio ETAF inculca que a apreciação das acções de responsabilidade civil propostas na jurisdição administrativa e fiscal compete ordinariamente aos tribunais administrativos – conclusão que negativamente se extrai do pormenor de elas não estarem directamente previstas no art. 49º do diploma.

E isso, para que o ETAF aponta, é confirmado pelo CPTA. Os destinatários imediatos deste código são os tribunais administrativos («vide» o seu art. 1º), aplicando-o os tribunais tributários de um modo apenas subsidiário (art. 2º, al. c), do CPPT). Ora, o art. 37º, n.º 2, al. f), do CPTA é explícito no sentido de que a responsabilidade do Estado deve ser pedida através uma acção administrativa comum – a interpor nos tribunais que o diploma tem em vista e que são os administrativos.

E nenhuma estranheza há num tal desfecho. É que a determinação da competência material para conhecer dessas acções de responsabilidade costuma abstrair da natureza do assunto em que se inscreveu a conduta ilícita e danosa imputada ao Estado – como mostra o facto de ele responder nos tribunais administrativos por actos relacionados com o exercício das funções jurisdicional e legislativa (art. 4º, n.º 1, al. g), do ETAF). E, se o Estado responde nos tribunais administrativos em tais casos, nada, «a fortiori», obsta a que possa civilmente responder na mesma sede por condutas ligadas a questões jurídico-fiscais”.

Neste sentido, v., a título exemplificativo, os seguintes Acórdãos, todos do Plenário do Supremo Tribunal Administrativo:

¾ De 18.04.2018 (Processo: 01274/17);

¾ De 14.12.2016 (Processo: 01257/16);

¾ De 29.09.2016 (Processo: 01574/15);

¾ De 29.09.2016 (Processo: 0290/16);

¾ De 01.06.2016 (Processo: 0417/16);

¾ De 01.06.2016 (Processo: 079/16);

¾ De 01.10.2015 (Processo: 0576/15);

¾ De 03.06.2015 ((Processo: 0520/15).

Como tal, são competentes os tribunais administrativos de círculo, em razão da matéria, para a apreciação de um pedido indemnizatório como o formulado in casu, ainda que conexo com a atividade da administração tributária (AT).

A este propósito, cumpre ainda elucidar que, independentemente de os tribunais tributários e administrativos de círculo funcionarem separadamente (como sucede em Lisboa) ou de forma agregada (como acontece no resto do país), tal não significa que não estejamos a falar de tribunais distintos, ao contrário do que defende o Recorrente.

Com efeito, como resulta do ETAF e já deixamos plasmado, existem, na jurisdição administrativa e fiscal, tribunais administrativos de círculo e tribunais tributários.

Nesse seguimento, o DL n.º 325/2003, de 29 de dezembro, no seu art.º 3.º, n.º 1, prescreve que:

“1 - Os Tribunais Administrativos de Círculo e os Tribunais Tributários têm sede em Almada, Aveiro, Beja, Braga, Castelo Branco, Coimbra, Funchal, Leiria, Lisboa, Loulé, Mirandela, Penafiel, Ponta Delgada, Porto, Sintra e Viseu.

(…) 3 - Quando funcionem agregados, os tribunais administrativos de círculo e os tribunais tributários assumem a designação unitária de tribunais administrativos e fiscais.

4 - Nos tribunais administrativos e fiscais agregados cujo quadro de juízes seja em número superior a dois, os lugares do quadro são identificados por referência à matéria especializada, administrativa ou tributária, em que cada juiz irá exercer funções”.

No concreto caso de Sintra, como decorre do mencionado DL n.º 325/2003, de 29 de dezembro, o tribunal tributário e o tribunal administrativo de círculo funcionam agregadamente, no TAF de Sintra, mas, como se depreende do explanado, não perdem a sua individualidade.

Logo, estando nós perante uma impugnação judicial, que tramitou junto do Tribunal Tributário de Sintra (funcionando agregado com o Tribunal Administrativo de Círculo de Sintra, sob a designação TAF de Sintra), aquele Tribunal era apenas competente, em razão da matéria, para o conhecimento do pedido de anulação da liquidação (o que fez), não o sendo para o conhecimento do pedido de indemnização por danos não patrimoniais.

Face ao exposto, carece de razão o Recorrente.

III.B. Do recurso do despacho interlocutório

Quanto ao recurso do despacho interlocutório, verifica-se que o mesmo se centra na questão relacionada com a prova dos danos não patrimoniais, matéria para a qual, como vimos em III.A., o Tribunal Tributário de Sintra, a funcionar agregado no TAF de Sintra, não é materialmente competente.

Logo, carece de razão o Recorrente.

IV. DECISÃO

Face ao exposto, acorda-se em conferência na 2.ª Subsecção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:

a) Negar provimento a ambos os recursos;

b) Custas pelo Recorrente, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário;

c) Registe e notifique.


Lisboa, 02 de março de 2023

(Tânia Meireles da Cunha)

(Susana Barreto)

(Patrícia Manuel Pires)