Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:3183/13.6BELSB
Secção:JUIZ PRESIDENTE
Data do Acordão:05/15/2023
Relator:PEDRO MARCHÃO MARQUES
Descritores:CONFLITO
INCOMPETÊNCIA MATERIAL
JUÍZO ADMINISTRATIVO COMUM
JUÍZO DE CONTRATOS PÚBLICOS
Sumário:
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
DECISÃO


I. Relatório

A Senhora Juíza do Juízo administrativo comum do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa veio, ao abrigo do disposto nos artigos 110.º, n.º 2 e 111.º, n.ºs 1 e 3, ambos do CPC e 36.º, n.º 1, al. t) do ETAF, requerer oficiosamente junto deste Tribunal Central Administrativo Sul a resolução do conflito negativo de competência, em razão da matéria, suscitado entre si e a Senhora Juíza do Juízo de contratos públicos. Ambas as magistradas se atribuem, mutuamente, competência, negando a própria, para conhecer e decidir da indemnização a atribuir ao abrigo do regime previsto nos artigos 102.º, n.º 5, e 45.º do CPTA, na redação anterior à actualmente vigente, pedida ao Município de…… pela U……. – Sociedade ……………………, S.A., (ou U……., S.A) em cumprimento do acórdão exequendo deste TCA Sul de 21.11.2019.

Neste TCA Sul foi cumprido o disposto no artigo 112.º, n.º 1, do CPC, nada tendo sido dito ou requerido.

Os autos foram com vista à Digna Procuradora-Geral Adjunta, conforme dispõe o artigo 112.º, n.º 2, do CPC, que emitiu pronúncia no sentido de a competência material caber ao Juízo de contratos públicos.



I. 1. QUESTÕES A APRECIAR E DECIDIR:

A questão colocada consiste em saber qual o tribunal materialmente competente para apreciar e decidir o pedido de indemnização formulado ao abrigo dos artigos 102.º, n.º 5, e 45.º do CPTA, na sequência do determinado por acórdão do TCA Sul que, reconhecendo o direito da A. U........, SA, ordenou a baixa dos autos para efeitos de as partes acordarem no montante da indemnização: se o juízo administrativo comum do TAC de Lisboa ou se o juízo administrativo social do mesmo Tribunal.

II. Fundamentação

II.1. De facto

Para julgamento do presente conflito, julgam-se relevantes as seguintes ocorrências processuais (documentalmente comprovadas):

1. Por despacho de 15.09.2014, foi apensado a estes autos a acção de contencioso pré-contratual, com o nº 7/14.0BELSB, a qual fora instaurada pela "U........ - Sociedade …………………………, SA" contra o Município de Lisboa, na qual se visava também a anulação da adjudicação à "N……., SA" do contrato de fornecimento de refeições às Escolas Básicas do 1° ciclo e aos Jardins-de-Infância da rede pública da cidade de Lisboa, objeto do Concurso Público com Publicidade Internacional n°………………., bem como a sua exclusão deste procedimento concursal, pedindo ainda a condenação do Município de …….. a adjudicar do contrato em causa à "U........, SA", por ser esta a "concorrente titular da proposta admissível classificada em primeiro lugar no procedimento adjudicatório". (cfr. fls. 783, numeração do SITAF)

2. Em 21.11.2019, o Tribunal Central Administrativo Sul proferiu acórdão, a fls. 1408 a 1482, numeração do SITAF, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, mediante o qual decidiu, entre o mais, “ (…) C) Determinar a remessa dos autos ao TAC de Lisboa, a fim de aí ser cumprido o disposto no n° 5 do artigo 102° do CPTA, na redacção à data aplicável, nomeadamente a notificação das partes para acordarem, no prazo de 20 dias, no montante da indemnização que a autora "U........, SA" tem direito, nos termos sobreditos”.

3. Em 19.06.2020, a U………., s.a. veio a apresentar requerimento, nos termos do artigo 45º, nº 3, aplicável ex vi artigo 102.º, n.º 5, ambos do CPTA, em que peticiona a condenação do Município de …….. a pagar-lhe a quantia de EUR 384.244,56, acrescida de juros vencidos no montante de EUR 128.226,62, e capitalização dos juros vencidos, e ainda juros vincendos à taxa legal até efetivo e integral pagamento (cfr. fls. 1882 a 1887, numeração do SITAF).

4. Em 23.11.2020, o Mmo. Juiz do Juízo dos Contratos Públicos do TAC de Lisboa proferiu decisão, no sentido de terminar a convolação da forma de processo em acção administrativa (1ª espécie) no usando os poderes previsto no nº3 do artigo 193º do CPTA ( cfr. fls. 2131 a 2133, numeração do SITAF)

5. As partes foram notificadas e a U......... S.A. não se opôs à convolação ( cfr. fls. 2140 a 2142, numeração do SITAF).

6. Por decisão de 18.01.2021, a Senhora Juiz do Juízo de Contratos Públicos determinou a convolação de todo o processado em acção administrativa comum (1ªespécie) e excepcionou a incompetência em razão da matéria daquele juízo, determinando a remessa dos autos ao Juízo administrativo comum do mesmo Tribunal, por entender ser esse o juízo competente para apreciar a presente acção ( cfr. fls. 2140 a 2142, numeração do SITAF). (cfr. despacho no SITAF).

7. Nessa sequência, os autos foram remetidos ao Juízo administrativo comum, o qual por decisão datada de 10.01.2023, declarou aquele juízo igualmente incompetente, em razão da matéria, cometendo a competência para apreciar a acção ao Juízo de Contratos Públicos (cf. fls. 2380 a 2389 numeração do SITAF).

8. Em 13.03.2023, a Senhora Juíza do Juízo administrativo comum do TAC de Lisboa requereu a este Tribunal Superior a resolução do conflito negativo de competência aberto entre si e a Senhora Juíza do Juíza do Juízo de contratos públicos (cfr. fls. 2261 numeração do SITAf).

9. As decisões em conflito transitaram em julgado (cfr. consulta do SITAF).



II.2. DE DIREITO

Nos termos do artigo 36.º, n.º 1, alínea t) do ETAF, compete ao Presidente de cada Tribunal Central Administrativo “conhecer dos conflitos de competência entre tribunais administrativos de círculo, tribunais tributários ou juízos de competência especializada, da área de jurisdição do respectivo tribunal central administrativo”, sendo que no âmbito do contencioso administrativo, os conflitos de competência jurisdicional e de atribuições se encontram regulados nos artigos 135.º a 139.º do CPTA.

Estabelece-se no n.º 1 do artigo 135.º do CPTA que a resolução dos conflitos “entre tribunais da jurisdição administrativa e fiscal ou entre órgãos administrativos” seguem o regime da acção administrativa, com as especialidades resultantes das diversas alíneas deste preceito, aplicando-se subsidiariamente, com as necessárias adaptações, o disposto na lei processual civil (cfr. artigos 109.º e s. do CPC).

Por sua vez, o artigo 136.º do mesmo diploma estatui que “a resolução dos conflitos pode ser requerida por qualquer interessado e pelo Ministério Público no prazo de um ano contado da data em que se torne inimpugnável a última das decisões”. Este preceito corresponde ao artigo 111.º do CPC, que dispõe o seguinte: “1 – Quando o tribunal se aperceba do conflito, deve suscitar oficiosamente a sua resolução junto do presidente do tribunal competente para decidir. 2 – A resolução do conflito pode igualmente ser suscitada por qualquer das partes ou pelo Ministério Público, mediante requerimento dirigido ao presidente do tribunal competente para decidir”.

Continuando, sob a epígrafe “[c]onflito de jurisdição e conflito de competência” estatui o artigo 109.º do CPC, aqui aplicável “ex vi” artigo 135º do CPTA, que:

1 – Há conflito de jurisdição quando duas ou mais autoridades, pertencentes a diversas actividades do Estado, ou dois ou mais tribunais, integrados em ordens jurisdicionais diferentes, se arrogam ou declinam o poder de conhecer da mesma questão: o conflito diz-se positivo no primeiro caso e negativo no segundo.

2 – Há conflito, positivo ou negativo, de competência quando dois ou mais tribunais da mesma ordem jurisdicional se consideram competentes ou incompetentes para conhecer da mesma questão.

3 – Não há conflito enquanto forem susceptíveis de recurso as decisões proferidas sobre a competência.

O legislador do ETAF plasmou no artigo 44.º-A, aditado pela Lei n.º 114/2019, de 12 de Setembro, e para os casos em que tenha havido desdobramento em juízos de competência especializada, os critérios de eleição para determinar a sua habilitação funcional. De acordo com o citado artigo 44.º-A do ETAF, sob a epígrafe “Competência dos juízos administrativos especializados”, passou a dispor-se o seguinte:

1- Quando tenha havido desdobramento em juízos de competência especializada, nos termos do disposto no artigo 9.º, compete:

a) Ao juízo administrativo comum conhecer de todos os processos do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal que incidam sobre matéria administrativa e cuja competência não esteja atribuída a outros juízos de competência especializada, bem como exercer as demais competências atribuídas aos tribunais administrativos de círculo;

b) Ao juízo administrativo social, conhecer de todos os processos relativos a litígios emergentes do vínculo de trabalho em funções públicas e da sua formação, ou relacionados com formas públicas ou privadas de proteção social, incluindo os relativos ao pagamento de créditos laborais por parte do Fundo de Garantia Salarial, e das demais matérias que lhe sejam deferidas por lei;

c) Ao juízo de contratos públicos, conhecer de todos os processos relativos à validade de atos pré-contratuais e interpretação, à validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes, e à sua formação, incluindo a efetivação de responsabilidade civil pré-contratual e contratual, e das demais matérias que lhe sejam deferidas por lei;

d) Ao juízo de urbanismo, ambiente e ordenamento do território, conhecer de todos os processos relativos a litígios em matéria de urbanismo, ambiente e ordenamento do território sujeitos à competência dos tribunais administrativos, e das demais matérias que lhe sejam deferidas por lei.

2- Quando se cumulem pedidos entre os quais haja uma relação de dependência ou subsidiariedade, deve a ação ser proposta no juízo competente para a apreciação do pedido principal.

Daqui resulta que o juízo administrativo comum funciona como juízo de competência material residual: caso as matérias em dissídio não estejam incluídas no âmbito dos juízos especializados, a competência para as apreciar cabe ao juízo administrativo comum. A competência material especializada prevalece, assim, sob a competência material comum, precisamente porque esta é residual.

A competência, como medida de jurisdição atribuída a cada tribunal para conhecer de determinada questão a ele submetida, e enquanto pressuposto processual, determina-se pelos termos em que a acção é proposta, isto é, pelos pedidos e causas de pedir.

É entendimento generalizado da Jurisprudência dos Tribunais Superiores e da Doutrina que a competência do tribunal “afere-se pelo quid disputatum (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum)” (…) A competência do tribunal não depende, pois, da legitimidade das partes nem da procedência da acção. É ponto a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do Autor compreendidos aí os respectivos fundamentos, não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão” - MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, p. 91 e, por todos, o acórdão do Tribunal de Conflitos de 4.07.2006, proc.11/2006.

Em suma, a competência afere-se pela substância do pedido formulado e pela relação jurídica subjacente ou factos concretizadores da causa de pedir. E em conformidade com o disposto no artigo 13.º do CPTA, o seu conhecimento é oficioso e precede o conhecimento das demais questões.

Diremos, desde já, que a competência para dirimir a questão objecto de litigio nesta acção cabe ao Juízo de Contratos Públicos do TAC de Lisboa, em plena sintonia com a pronúncia do Ministério Público nesta instância, a qual dá resposta cabal à questão objecto dos autos. Subscrevendo a mesma, passaremos a transcrevê-la nas suas partes relevantes:

“(…)

Efetivamente, dispõe o art. 44º-A, nº 1, alínea c), do ETAF, que compete ao juízo de contratos públicos, conhecer de todos os processos relativos à validade de atos pré-contratuais e interpretação, à validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes, e à sua formação, incluindo a efetivação de responsabilidade civil pré-contratual e contratual, e das demais matérias que lhe sejam deferidas por lei.

No presente caso, dúvidas não há que o objeto da ação instaurada inicialmente e da que lhe foi apensa, assentes nos respetivos pedidos e causa de pedir tal como configurados pelas Autoras nas respetivas petições iniciais, contendia com a validade de atos pré-contratuais, visando a anulação do ato de adjudicação emanado no âmbito de um procedimento encetado para a formação de um contrato de aquisição de serviços aberto à concorrência, através de concurso público, e, assim, submetido às regras da contratação pública, previstas no CCP, visando a satisfação de uma necessidade coletiva através de uma procura pública de natureza concorrencial.

Cabendo, pois, na previsão daquele preceito legal.

Afigurando-se-nos certo que a instância se inicia no momento em que a ação se considera proposta, é nosso entendimento que, ressalvada a alteração da lei reguladora da competência (v. art. 61º, do CPC), será nesse momento que se fixa a competência do tribunal e que, portanto, serão irrelevantes para o efeito quaisquer ulteriores vicissitudes processuais, designadamente, a ulterior modificação objetiva da instância nos termos do disposto nos arts. 102º, nº 5, e 45º, do CPTA, na redação aplicável.

Afigurando-se-nos ainda que o requerimento indemnizatório que, com base nestes preceitos legais, veio a ser apresentado nos autos pela 2ª Autora radica, em última instância, na invalidade de um ato pré-contratual (ato de adjudicação), praticado no âmbito de um procedimento para a formação de contrato sujeito às regras da contratação pública.

De facto, como decorre desse requerimento, o pedido de indemnização formulado funda-se no “ato de adjudicação ilegal à N……….praticado pelo Réu”, nele sendo sustentado que a 2ª Autora “tem direito a que lhe sejam indemnizados os danos decorrentes da impossibilidade da reconstituição natural, isto é, da impossibilidade de ser colocada na situação em que estaria se não tivesse sido praticado o ato ilegal pelo Réu”.

Assim, independentemente, de se poder considerar – como no despacho de 18/01/2021 – que o meio processual próprio a usar pela 2.ª Autora era o previsto no n.º 5 do art. 45.º do CPTA, por via da dedução de pedido autónomo, não se nos oferece dúvidas que, no caso, face à forma como a Autora a configurou, está em causa uma pretensão indemnizatória que visa a reparação de danos resultantes da atuação ilegal da Administração.

E, nessa medida, e independentemente do juízo quanto à adequação do respetivo meio processual (v. Ac. do Tribunal dos Conflitos de 17/05/2007, Conflito nº 5/07), é nosso entendimento, que estamos perante a efetivação de responsabilidade civil pré-contratual, emergente de um ato ilícito pré-contratual.

E, por isso, enquadrável no âmbito da competência material do Juízo dos Contratos Públicos.

Efetivamente, afigura-se-nos que o facto de essa responsabilidade se encontrar expressamente consagrada no art. 7º, nº 2, do regime anexo à Lei nº 67/2007, de 31/12, segundo o qual: 2 - É concedida indemnização às pessoas lesadas por violação de norma ocorrida no âmbito de procedimento de formação dos contratos referidos no artigo 100.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, de acordo com os requisitos da responsabilidade civil extracontratual definidos pelo direito comunitário, não a transmuta a sua natureza pré-contratual. Apenas, e tão-só, o legislador estabeleceu, desse modo, que a responsabilidade civil decorrente da violação de normas ocorrida no âmbito dos procedimentos de formação de contratos referidos no art. 100º, do CPTA, e, por isso, de natureza pré-contratual, depende da verificação dos requisitos da responsabilidade civil extracontratual definidos pelo direito comunitário.

(…).”

Tanto basta para concluir, tendo presente a fundamentação acabada de transcrever e considerando que a fonte da obrigação de indemnizar decorre de uma ilicitude no procedimento pré-contratual, geradora de um acto inválido, que em face do teor da alínea c) do n.º 1 do artigo 44.º-A do ETAF e tendo presente o objecto do litígio – o qual radica, repete-se, na invalidade de um acto pré-contratual (o acto de adjudicação) - que a competência material para apreciar a natureza da relação em conflito não cabe ao Juízo administrativo comum do TAC de Lisboa, mas sim ao Juízo de contratos públicos do TAC de Lisboa, por força da conjugação do disposto nos artigos 9.º, n.ºs 4 e 5 e 44.º-A, n.º 1, alínea a) do ETAF (na versão que lhe foi dada pela Lei n.º 114/2019, de 12 de Setembro), artigo 2.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 174/2019, de 13 de Dezembro e artigo 1.º, alínea a), da Portaria n.º 121/2020, de 22 de Maio.



III. Decisão

Pelo exposto, decide-se o presente conflito pela atribuição de competência para a tramitação e decisão do processo ao Juízo de contratos públicos do TAC de Lisboa.

Sem tributação.

Notifique.

Lisboa, 15 de Maio de 2023


O Juiz Presidente do TCA Sul

Pedro Marchão Marques