Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:860/19.1 BELSB
Secção:JUIZ PRESIDENTE
Data do Acordão:01/05/2023
Relator:PEDRO MARCHÃO MARQUES
Descritores:CONFLITO
INCOMPETÊNCIA MATERIAL
JUÍZO ADMINISTRATIVO SOCIAL
JUÍZO ADMINISTRATIVO COMUM
Sumário:
Votação:DECISÃO SUMÁRIA
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral: DECISÃO

I. RELATÓRIO

O Exmo. Senhor Juiz do Juízo administrativo social do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa veio, ao abrigo do disposto na alínea t) do n.º 1 do artigo 36.º do ETAF, requerer oficiosamente junto deste Tribunal Central Administrativo Sul, a resolução do conflito negativo de competência em razão da matéria, suscitado entre si e a Exma. Senhora Juíza do Juízo administrativo comum do mesmo Tribunal, visto que os Magistrados Judiciais dos referidos juízos se atribuem mutuamente competência, negando a própria, para conhecer da acção administrativa que J ………………… ali instaurou contra a G …………………, E.M., S.A.

Neste TCA Sul foi cumprido o disposto no artigo 112.º, n.º 1 do CPC, nada tendo sido dito.

Os autos foram com vista ao Ministério Público, conforme dispõe o artigo 112.º, n.º 2, do CPC, tendo a Exma. Senhora Procuradora-Geral-Adjunta emitido pronúncia na qual sustenta que o tribunal materialmente competente para o conhecimento do mérito da presente acção é o Juízo administrativo comum do TAC de Lisboa.



I. 1. Questões a apreciar e decidir:

A questão colocada consiste em saber qual o tribunal materialmente competente para apreciar e decidir a presente acção administrativa: se o Juízo administrativo social do TAC de Lisboa, ou se o juízo administrativo comum do mesmo Tribunal.



II. Fundamentação

II.1. De facto

Para julgamento do presente conflito, julgam-se relevantes as seguintes ocorrências processuais:


1. Em 15.05.2019, J …………………….. intentou no TAC de Lisboa uma acção administrativa contra a G e……………a, E.M., S.A., onde pede que seja“anulado o Acto administrativo que deliberou aprovar a execução coerciva do despejo da A. e dos seus filhos menores da sua habitação própria e permanente sita na Rua ………., Lotes 371-A, Escada ……… Dto, Bairro ……….., ……….. Lisboa “ e que a Entidade Demanda seja condenada a reconhecer o direito dos AA e assim proceder à regularização da situação habitacional, bem como a dos seus filhos menores no referido fogo municipal” (cfr. p.i. e 1 doc.-Proc. no SITAF).


2. Por decisão datada de 22.02.2022 a Senhora Juíza do Juízo administrativo comum do TAC de Lisboa a quem os autos tinham sido atribuídos, excepcionou a incompetência em razão da matéria e determinou a remessa dos autos ao Juízo administrativo social do mesmo Tribunal, por entender ser esse o Juízo competente (cfr. decisão - proc. no SITAF).


3. Nessa sequência, o Senhor Juiz do Juízo administrativo social a quem os autos foram distribuídos, em decisão datada de 21.10.2022, declarou aquele Juízo igualmente incompetente em razão da matéria, cometendo essa competência ao Juízo administrativo comum do mesmo Tribunal. (idem).


4. Em 18.11.2022, o Senhor Juiz do Juízo administrativo social do TAC de Lisboa, requereu a este Tribunal Superior a resolução do conflito negativo de competência aberto entre si e a Senhora Juíza do Juízo administrativo comum do mesmo Tribunal. (cfr. despacho no SITAF).


5. As decisões em conflito transitaram em julgado (consulta do SITAF).



II.2. DE DIREITO

Nos termos do artigo 36.º, n.º 1, alínea t) do ETAF, compete ao Presidente de cada Tribunal Central Administrativo “conhecer dos conflitos de competência entre tribunais administrativos de círculo, tribunais tributários ou juízos de competência especializada, da área de jurisdição do respectivo tribunal central administrativo”, sendo que no âmbito do contencioso administrativo, os conflitos de competência jurisdicional encontram-se regulados nos artigos 135.º a 139.º do CPTA.

Estabelece-se no n.º 1 do artigo 135.º do CPTA que a resolução dos conflitos “entre tribunais da jurisdição administrativa e fiscal ou entre órgãos administrativos” seguem o regime da acção administrativa, com as especialidades resultantes das diversas alíneas deste preceito, aplicando-se subsidiariamente, com as necessárias adaptações, o disposto na lei processual civil (cfr. artigos 109.º e s. do CPC).

Por sua vez, o artigo 136.º do mesmo diploma estatui que “a resolução dos conflitos pode ser requerida por qualquer interessado e pelo Ministério Público no prazo de um ano contado da data em que se torne inimpugnável a última das decisões”. Este preceito corresponde ao artigo 111.º do CPC, que dispõe o seguinte: “1 – Quando o tribunal se aperceba do conflito, deve suscitar oficiosamente a sua resolução junto do presidente do tribunal competente para decidir. 2 – A resolução do conflito pode igualmente ser suscitada por qualquer das partes ou pelo Ministério Público, mediante requerimento dirigido ao presidente do tribunal competente para decidir”.

Continuando, sob a epígrafe “[c]onflito de jurisdição e conflito de competência” estatui o artigo 109.º do CPC, aqui aplicável “ex vi” artigo 135º do CPTA, que:

1 – Há conflito de jurisdição quando duas ou mais autoridades, pertencentes a diversas actividades do Estado, ou dois ou mais tribunais, integrados em ordens jurisdicionais diferentes, se arrogam ou declinam o poder de conhecer da mesma questão: o conflito diz-se positivo no primeiro caso e negativo no segundo.

2 – Há conflito, positivo ou negativo, de competência quando dois ou mais tribunais da mesma ordem jurisdicional se consideram competentes ou incompetentes para conhecer da mesma questão.

3 – Não há conflito enquanto forem susceptíveis de recurso as decisões proferidas sobre a competência.

O legislador do ETAF plasmou no artigo 44.º-A, aditado pela Lei n.º 114/2019, de 12 de Setembro, e para os casos em que tenha havido desdobramento em juízos de competência especializada, os critérios de eleição para determinar a sua habilitação funcional. De acordo com o citado artigo 44.º-A do ETAF, sob a epígrafe “Competência dos juízos administrativos especializados”, passou a dispor-se o seguinte:

1- Quando tenha havido desdobramento em juízos de competência especializada, nos termos do disposto no artigo 9.º, compete:

a) Ao juízo administrativo comum conhecer de todos os processos do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal que incidam sobre matéria administrativa e cuja competência não esteja atribuída a outros juízos de competência especializada, bem como exercer as demais competências atribuídas aos tribunais administrativos de círculo;

b) Ao juízo administrativo social, conhecer de todos os processos relativos a litígios emergentes do vínculo de trabalho em funções públicas e da sua formação, ou relacionados com formas públicas ou privadas de proteção social, incluindo os relativos ao pagamento de créditos laborais por parte do Fundo de Garantia Salarial, e das demais matérias que lhe sejam deferidas por lei;

c) Ao juízo de contratos públicos, conhecer de todos os processos relativos à validade de atos pré-contratuais e interpretação, à validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes, e à sua formação, incluindo a efetivação de responsabilidade civil pré-contratual e contratual, e das demais matérias que lhe sejam deferidas por lei;

d) Ao juízo de urbanismo, ambiente e ordenamento do território, conhecer de todos os processos relativos a litígios em matéria de urbanismo, ambiente e ordenamento do território sujeitos à competência dos tribunais administrativos, e das demais matérias que lhe sejam deferidas por lei.

2- Quando se cumulem pedidos entre os quais haja uma relação de dependência ou subsidiariedade, deve a ação ser proposta no juízo competente para a apreciação do pedido principal.

Daqui resulta que o juízo administrativo comum funciona como juízo de competência material residual, i.é, caso as matérias em dissídio não estejam incluídas no âmbito dos juízos especializados, a competência para as apreciar cabe ao juízo administrativo comum. A competência material especializada prevalece, assim, sob a competência material comum, precisamente porque esta é residual.

E na delimitação de competências entre o juízo comum e os diferentes juízos especializados dos tribunais administrativos (e estes entre si), afigura-se-nos evidente que o legislador atendeu ao objecto material das causas, relevando as especificidades que decorrem do direito substantivo que regula as correspondentes relações jurídicas, associando, no que aqui importa, as áreas de competência do juízo administrativo social ao conhecimento dos litígios emergentes do vínculo de trabalho em funções públicas e da sua formação, ou relacionados com formas públicas ou privadas de protecção social, incluindo os relativos ao pagamento de créditos laborais por parte do Fundo de Garantia Salarial. Este entendimento é aquele que tem sido sucessivamente reiterado neste TCA Sul e no TCA Norte, em posição jurisprudencial conhecida.

A competência, como medida de jurisdição atribuída a cada tribunal para conhecer de determinada questão a ele submetida, e enquanto pressuposto processual, determina-se pelos termos em que a acção é proposta, isto é, pelos pedidos e causas de pedir.

É entendimento generalizado da Jurisprudência dos Tribunais Superiores e da Doutrina que a competência do tribunal “afere-se pelo quid disputatum (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum)” (…) A competência do tribunal não depende, pois, da legitimidade das partes nem da procedência da acção. É ponto a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do Autor compreendidos aí os respectivos fundamentos, não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão” - MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, p. 91 e, por todos, o acórdão do Tribunal de Conflitos de 4.07.2006, proc.11/2006.

Em suma, a competência afere-se pela substância do pedido formulado e pela relação jurídica subjacente ou factos concretizadores da causa de pedir. E em conformidade com o disposto no artigo 13.º do CPTA, o seu conhecimento é oficioso e precede o conhecimento das demais questões.

Feito este enquadramento inicial, vejamos o caso concreto, devidamente recortado pela factualidade que deixámos fixada.

Na presente acção administrativa a autora, J …………………….., veio pedir ao Tribunal que declarasse a anulação da decisão administrativa da Vogal do Conselho de Administração da G………., EM, S.A., comunicada a coberto do ofício com a Refª SAÍDA/…………, de 25.03. – Documento junto com a contestação -, na qual se determinou que esta procedesse à desocupação, em prazo não inferior a três dias úteis, da habitação municipal sita na Rua ………., Lotes ….. Escada ……, Bairro …………, 1900 Lisboa.

A fundamentar o seu pedido alega, em síntese útil, não ter qualquer outra alternativa habitacional, em face dos rendimentos do agregado familiar, e, que a decisão de desocupação do fogo municipal, é ilegal e ilegítima por colidir com estatuído no artigo 11º e al.c) do nº3 de 10º, ambos da Lei 81/2014, de 19.12, visto que o seu agregado familiar, composto por si, mãe solteira, e as três filhas menores de idade, a seu cargo, é uma das situações familiares que a Lei nº 81/2014, mais concretamente o seu artigo 11º, inscreve na ordem dos critérios para a atribuição de fogos habitacionais, reunindo, outrossim os requisitos para que lhe seja atribuído o direito a habitar um fogo municipal.

Tendo presente o pedido formulado pela autora e a causa de pedir exposta, é possível desde já afirmar que a questão em discussão na presente acção administrativa se prende com matéria relativa à ocupação não autorizada - sem título - de um fogo municipal integrado no património edificado habitacional que o Município de Lisboa afecta ao arrendamento social, sob gestão da Entidade Demandada.

E como nestes autos está em causa apenas apurar se encontra ou não sustento legal, ao abrigo do artigo 4.°, do Regulamento das Desocupações de Habitações Municipais (RDHM) e do n.° 2, do artigo 35°, da Lei n.° 81/2014, alterada pela Lei n.° 32/201, a decisão notificada à autora para desocupar o referido fogo municipal, somos a entender que o objecto dos presentes autos não se reporta a um litígio que caia dentro da previsão da alínea b) do n.º 1 do artigo 44.º-A do ETAF, na redacção dada pela Lei nº 114/2019, de 12 de Setembro.

O mesmo é dizer que a matéria aqui em dissídio está excluída do âmbito da competência material do Juízo administrativo social do TAC de Lisboa.

Ao juízo administrativo social incumbe dirimir todos dos processos relativos a matérias de emprego público e de protecção social, que correspondem àquilo que já é um corpo autónomo e muito especializado da legislação substantiva, que gira em torno da Lei Geral de Trabalho em Funções Públicas e de toda a legislação em matéria de protecção social.

Como se sumariou na nossa decisão de 14.10.2022, proferida no âmbito do processo 26/21.03BESNT:”

II. A norma vertida na alínea b) do n.º 1 do artigo 44.º-A do ETAF, segundo a qual ao juízo administrativo social compete dirimir, para além das demais matérias que lhe sejam deferidas por lei, os processos relativos a litígios (i) emergentes do vínculo de trabalho em funções públicas e da sua formação ou (ii) relacionados com formas públicas ou privadas de protecção social, deve ser interpretada no sentido mais restrito de atribuir competência para dirimir apenas os litígios relacionados com formas públicas ou privadas de protecção social associada ao trabalho.

III. Apesar da vastidão de questões relacionadas com a protecção social, cujo contencioso cabe no âmbito da competência dos tribunais administrativos, designadamente as previstas na Lei n.º 4/2007, que aprovou a Lei de Bases da Segurança Social, a opção do legislador, para efeitos de especialização, foi associar apenas as questões relacionadas com o sistema previdencial.10/2022.

IV. Nem tudo o que é “social”, integra o conceito de “protecção social” e muito em particular cabe no conceito assumido pelo legislador que procedeu à criação dos juízos de competência especializada.

Assim sendo, tendo presente o teor da norma da alínea b) do n.º 1 do artigo 44.º-A do ETAF e o objecto do litígio- a desocupação de um fogo municipal ocupado sem autorização- a competência material para apreciar a natureza da relação em conflito não cabe ao juízo administrativo social do TAC de Lisboa, mas sim ao juízo administrativo comum do mesmo Tribunal, por força da conjugação do disposto nos artigos 9.º, n.ºs 4 e 5 e 44.º-A, n.º 1, alínea a) do ETAF (na versão que lhe foi dada pela Lei nº 114/2019, de 12 de Setembro), artigo 2º, nº1, al. a) do Decreto-Lei nº174/2019, de 13.12, e alínea a) do artigo 1º da Portaria nº121/2020, de 22.05.



III. Decisão

Pelo exposto, decide-se o presente conflito pela atribuição de competência para a tramitação e decisão do processo ao juízo administrativo comum do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa.

Sem custas.

Notifique.

O Juiz Presidente do TCA Sul

Pedro Marchão Marques