Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:318/19.9BELRA
Secção:CA
Data do Acordão:07/21/2020
Relator:ANA CELESTE CARVALHO
Descritores:IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO;
ÓNUS DA PROVA;
NOMEAÇÃO DE INSTRUTOR DE PROCESSO DISCIPLINAR DE PESSOA COLETIVA DIFERENTE;
ARTIGO 208.º, N.ºS 2 E 3 DA LGTFP.
Sumário:I. Recai sobre a Entidade Demandada o ónus da alegação e prova dos factos atinentes aos pressupostos da nomeação do instrutor do processo disciplinar, nos termos do artigo 208.º, n.º 1 da LGTFP, de que não existe no quadro de pessoal do Município trabalhador titular de cargo ou de carreira ou categoria de complexidade funcional superior à do trabalhador visado no processo disciplinar ou, quando impossível, com antiguidade superior no mesmo cargo ou em carreira ou categoria de complexidade funcional idêntica ou no exercício de funções públicas, preferindo os que possuam adequada formação jurídica.

II. Para tanto, é insuficiente a mera junção do mapa de pessoal dos anos de 2017 e de 2018 do Município, por estes serem omissos em relação à antiguidade superior no mesmo cargo ou em carreira ou categoria de complexidade funcional idêntica ou no exercício de funções públicas.

III. O n.º 2 do artigo 208.º da LGTFP permite “em casos justificados” que a Administração possa solicitar ao respetivo dirigente máximo a nomeação de instrutor de outro órgão ou serviço, o que exige que a Entidade Demandada tivesse caracterizado a situação de facto em relação ao quadro de pessoal do Município, de molde a dar por respeitados os pressupostos legais, quer do disposto do n.º 1, quer do disposto do n.º 2, do artigo 208.º da LGTFP, o que não foi feito.

IV. Não se mantendo o ato de nomeação do instrutor, falecem os pressupostos de facto e de direito que determinaram a requisição por este, da colaboração técnica.

Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

I – RELATÓRIO

O Município de Pedrógão Grande, devidamente identificado nos autos, inconformado, veio interpor recurso jurisdicional da decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, datada de 27/02/2020, que no âmbito do processo cautelar de suspensão de eficácia de ato administrativo requerido por J.................., decidiu antecipar o juízo sobre a causa principal, nos termos do artigo 121.º do CPTA e julgou procedente a ação, declarando a nulidade do ato de nomeação do instrutor, do ato de designação de advogado para colaboração técnica e ainda de todo o processado subsequente ao ato de nomeação de instrutor, na parte em que julgou a ação procedente.


*

Formula o aqui Recorrente, nas respetivas alegações, as seguintes conclusões que se reproduzem:

“1. A sentença recorrida considerou como Facto não provado que “O Município de Pedrógão Grande não tem no seu mapa de pessoal um trabalhador titular de cargo ou de carreira ou categoria de complexidade funcional superior à do autor ou com antiguidade superior no mesmo cargo ou em carreira ou categoria de complexidade funcional idêntica ou no exercício de funções públicas.”.

2. A sentença recorrida deveria ter considerado provado esse facto: “O Município de Pedrógão Grande não tem no seu mapa de pessoal um trabalhador titular de cargo ou de carreira ou categoria de complexidade funcional superior à do autor ou com antiguidade superior no mesmo cargo ou em carreira ou categoria de complexidade funcional idêntica ou no exercício de funções públicas.”.

3. O TCA Norte deverá considerar provado o sobredito facto – artº662º CPC.

4. A douta sentença expressa que a Câmara Municipal tem pessoal próprio.

5. O pessoal integra a pessoa colectiva Município e não nenhum dos seus órgãos, designadamente o órgão executivo.

6. A Câmara Municipal não tem mapa de pessoal, mas sim o município., de acordo com o disposto no artº 3º, 25º nº 1 – o) do DL n.º 209/2009, de 03 de Setembro.

7. A Câmara Municipal enquanto órgão representativo executivo não se confunde com a autarquia local município (artº 5º nº 2 da Lei n.º 75/2013, de 12 de Setembro que refere que os órgãos representativos do município são a assembleia municipal e a câmara municipal e artº 235º, 236º e 239º Constituição).

8. O artº 208º da LGTFP ao referir-se a “mesmo órgão ou serviço” é aplicável apenas à administração central e não às autarquias locais as quais não têm mapa de pessoal afectos a “órgão ou serviço” tendo apenas um único mapa de pessoal da autarquia município.

9. Deste modo o acórdão, ao referir-se que é necessário aferir se outros funcionários que preencham os requisitos previstos no artigo 208.º da LGTFP importa considerar não apenas os funcionários afectos à da Câmara Municipal, mas também os afectos à respetiva Assembleia Municipal, segundo o disposto nos artigos 239.° e 250.°, ambos da CRP, por todos eles serem órgãos do Município de Pedrogão Grande, quer dizer que é necessário produzir-se prova testemunhal de que se exista algum funcionário afecto á assembleia municipal que pudesse ter sido nomeado instrutor.

10. Assim, a sentença recorrida incumpriu o decidido no aludido acórdão.

11. Mas a verdade é que o município tem todos os funcionários integrados no quadro e no mapa de pessoal, sendo o mapa de pessoal um único, como decorre da lei.

12. Assim sendo o documento junto com a p. i. é demonstrativo desta prova, que pode ser comprovado por prova testemunhal.

13. Razão pela qual a sentença recorrida deveria ter dado como provado tal facto.

14. A sentença recorrida fez incorrectas interpretação e aplicação do nº 2 do art. 208.º da LGTFP.

15. O nº 2 art. 208.º da LGTFP prevê expressamente a existência de casos justificados, em que pode ter lugar a nomeação de instrutor de outro órgão ou serviço.

16. A sentença recorrida entendeu que a referência a diferente órgão e serviço se aplica á mesma pessoa colectiva e não a outra pessoa colectiva.

17. Todavia, essa referência normativa aplica-se á administração central.

18. No caso das autarquias locais a referência a diferente órgão ou serviço deve entender- se como referindo-se a outra autarquia local.

19. O que se compreende, pois nas autarquias não existem “órgãos” administrativos nem “serviços”, mas sim departamentos e divisões.

20. A argumentação na qual a sentença recorrida se louva para concluir pela obrigatoriedade de o instrutor ser funcionário da mesma autarquia serve precisamente para fundamentar essa possibilidade.

21. As razões subjacentes à citada estipulação normativa prendem-se com a natureza do vínculo e dos interesses que no âmbito da função pública cumpre prosseguir.

22. As autarquias integram o poder local, previsto na Constituição, pelo que os interesses públicos decorrentes da instauração do procedimento disciplinar são assegurados pela nomeação de instrutor de outra autarquia, nos casos especiais revistos na norma em apreço.

23. Aliás, só este entendimento (defendido pela entidade demandada) é que está em consonância com a referida norma.

24. Não se compreenderia a referência da norma à solicitação ao dirigente máximo, uma vez que nas autarquias o dirigente máximo para instauração de processo disciplinar é o presidente da câmara municipal.

25. Então, o outro dirigente máximo só poderá ser o presidente da câmara municipal de outra autarquia!!!

26. É um facto público e notório para todos os funcionários da autarquia: consta do mapa de pessoal, aprovado pelos órgãos autárquicos, publicado no Diário da República.

27. Por outro lado, o despacho de nomeação concretiza a previsão a com a contestação, estando invocado que na autarquia não existe outro Chefe de Divisão nem funcionário de categoria superior que possa desempenhar as funções de instrutor do processo disciplinar.

28. Além disso, a natureza das infracções, o melindre das questões e o facto de a autarquia ter poucos funcionários no seu quadro aconselham, e mesmo, impõem, que seja nomeado instrutor funcionário de outra autarquia.

29. Mas a verdade é que o chefe de divisão era o único chefe de divisão da autarquia e era o funcionário mais categorizado da mesma: não há outro chefe de divisão, como consta do mapa de pessoa, bem como consta dos documentos juntos com a contestação e como o próprio Autor o reconhece na sua petição inicial.

30. O Município de Pedrógão Grande não tem no seu mapa de pessoal um trabalhador em regime de funções públicas titular de cargo ou de carreira ou categoria de complexidade funcional superior à do trabalhador.

31. Deste modo, não poderia ser dado cumprimento ao artigo 208.º da LGTFP n.º 1 na parte em que determina que na nomeação do instrutor deve ser escolhido de entre trabalhadores do mesmo órgão ou serviço, titular de cargo ou de carreira ou categoria de complexidade funcional superior à do trabalhador ou, quando impossível, com antiguidade superior no mesmo cargo ou em carreira ou categoria de complexidade idêntica ou no exercício de funções públicas, preferindo os que possuam adequada formação jurídica.

32. O lugar de chefe de divisão é o lugar de maior relevo na hierarquia do mapa de pessoal da autarquia.

33. A nomeação do instrutor foi justificada no despacho.

34. Não tendo sido suscitada no processo disciplinar a suspeição do instrutor, mas tão só invocada a ilegalidade da sua nomeação, tal como no requerimento inicial se refere, inexiste qualquer ilegalidade que se possa imputar a essa nomeação já que, para além da exigência da maior classificação ou antiguidade na categoria, a lei deixa ao livre critério da entidade que decidiu a abertura do processo disciplinar a escolha do instrutor, e o “dever” de escolher um funcionário pertencente ao serviço ou o “poder” de se escolher um funcionário de outro serviço, tem mais a ver com a economia de meios que isso traduz.

35. Mas a verdade é que estariam os sempre perante uma mera irregularidade processual e nunca uma nulidade.

36. A sentença recorrida violou o nº 2 do artº 208º da LGTFP.

37. Neste contexto, não existe ilegalidade, designadamente, in existindo violação do art. 208.º da LTFP.

38. A sentença recorrida também decretou a nulidade do processo disciplinar pelo facto de ter sido efectuada pelo instrutor a requisição de colaboração técnica, o que faz decorrer da violação do n.º 4 do citado art. 208.º da LGTFP, de desvio de poder e da violação do princípio da imparcialidade.

39. A designação de colaborador técnico (advogado) ocorreu por despacho proferido pelo Presidente da Câmara Municipal, ao abrigo da previsão ínsita no artº 208º nº 3 da LTFP, que permite que o instrutor do processo disciplinar possa ser assessorado por colaboradores técnicos.

40. Tendo em conta o facto de as diligências instrutórias de inquirição de testemunhas serem bastante numerosas (cerca de 20 testemunhas indicadas por três arguidos), o colaborador técnico designado apenas auxilia o instrutor em alguns actos de instrução (designadamente e no caso, inquirição de testemunhas) e de opinião jurídica.

41. O processo está por tramitar, tendo em conta a notificação e despacho recebido, no âmbito do presente processo disciplinar, sendo certo que os requerimentos que o requerente apresentou arguido nulidades só poderão ser apreciados após a presente providência cautelar terminar.

42. Pelo que deve a sentença violou o nº 3 do artº 208º da LGTFP, no artº 3º, 25º nº 1 – o) do DL n.º 209/2009, de 03 de Setembro, o artº 5º nº 2 da Lei n.º 75/2013, de 12 de Setembro e os artºs 235º, 236º e 239º Constituição), e deve ser revogada e anulada.”.

Pede que seja concedido provimento ao recurso e revogada a sentença recorrida.


*

O ora Recorrido, notificado, apresentou contra-alegações, em que concluiu do seguinte modo:

“1. O Recorrido atacou o despacho de nomeação de instrutor, o despacho de nomeação do assessor técnico e, ainda sustentou que, tendo-se interposto recurso hierárquico daquele despacho e tendo esse recurso efeitos suspensivos, tudo o mais que se seguiu era nulo - o que foi amplamente acolhido pela douta sentença proferida.

2. Ora, como se vê das alegações do Recorrente, este segmento da decisão recorrida não foi atacado, pelo que o despacho de nomeação do assessor técnico (posterior no tempo) não se pode manter na ordem jurídica - isto é, o objecto do processo é apenas a legalidade ou ilegalidade do despacho de nomeação do instrutor.

3. Além do mais, não tendo tal segmente decisório sido objecto de imputação de erro de julgamento pelo Recorrente, a sentença tem de se manter na ordem jurídica.

4. Posto isto, o Recorrente vem alegar que a douta sentença proferida incorreu em erro na apreciação na matéria de facto, porquanto não levou à factologia provada o facto n.º 1 enunciado nos factos não provados.

5. Todavia, a factologia que o Recorrente pretende ver como provada afigura-se manifestamente irrelevante, desde logo, se atendermos às causas de invalidade julgadas procedentes pelo digno Tribunal a quo e, ainda, ao objecto do litígio na sua globalidade.

6. Isto porque, a sentença proferida julgou que o dito despacho nomeação afronta o art. 208.º da LTFTP, não pelo facto do Réu ter recorrido a um terceiro, quando alegadamente poderia ou deveria ter recorrido a um funcionário seu, mas sim, e determinantemente, pelo facto do art. 208.º da LGTFP não admitir, sob qualquer circunstância, o recurso a um funcionário que não seja do Município para o exercício de funções de instrutor.

7. Sendo ademais incontroverso que este vício, por si só, aniquila o acto impugnado, ficando prejudicadas quaisquer considerações de facto sobre a elegibilidade (ou não) dos funcionários do Recorrente para essa função.

8. É que houvesse ou não houvesse funcionário do Município que pudesse ser designado instrutor, é inequívoco que o funcionário designado não é trabalhador do Município (cfr. ponto 2 da factualidade assente);

9. Aqui chegados e assim sendo, temos que a única matéria de facto que subjaz ao julgamento proferido pelo digno Tribunal a quo, no sentido de que não é admissível a nomeação de instrutor oriundo de pessoa colectiva distinta e que, assim, se afigura essencial, reside na constatação de que o instrutor em causa não integra o Município Recorrente (facto este que se encontra assentadíssimo nos presentes autos).

10. Por outro lado, digamos ainda o facto que a Recorrente pretende ver como provado nem sequer contenderia com o segundo segmento decisório da sentença proferida, em que digno Tribunal a quo pronunciou-se sobre o vício de forma invocado pelo Recorrente, no sentido de que a justificação adiantada no acto impugnado é de tal modo vaga e genérica que sempre o faria incorrer em falta de fundamentação e, bem assim, em afronta do disposto n.º 2, do art. 208.º da LGTFP.

11. Este trata-se, assim, de um vício de carácter formal, distinto do vício principal e de mérito, julgado procedente pela douta sentença, que não o prejudica; antes, sim, reforça-o, decorrendo do julgado uma dupla ilegalidade: o acto impugnado, além de aventar uma solução que não tem acolhimento legal, acrescidamente, não reúne os requisitos anunciados nos n.ºs 1 e 2 do art. 208.º da LGTFP.

12. Com isto queremos dizer, portanto, que mesmo a dar-se como provada a factualidade enunciada, jamais a mesma poderia suprir o não cumprimento dos requisitos legais constantes do art. 208.º, n.º 2, da LGTFP.

13. Sendo certo também que se, num limite, se alterasse este segundo segmento decisório da sentença, considerando-se suficientemente justificado o acto e cumpridos os requisitos do n.º 2, do mencionado art. 208.º, sempre e para todos os efeitos manter-se-ia incólume o juízo principal, de mérito - que, como vimos, prende-se com a evidente impossibilidade de nomear instrutor de distinta pessoa colectiva.

14. Por último, não esqueçamos também que o facto que o Recorrente pretende ver como provado, em momento algum teria a virtualidade de afastar a julgada nulidade do acto de nomeação do colaborador técnico ou o vício de não suspensão da tramitação do procedimento por interposição de recurso hierárquico, também julgados procedentes pela douta sentença.

15. Noutra perspectiva, temos claro que o Recorrente não logrou provar o facto que pretende, pois a realidade é uma e só uma: o Recorrente, nem na oposição, nem quando instado (por duas vezes) pelo digno Tribunal, veio demonstrar que não detinha funcionário de cargo, categoria ou carreira de complexidade funcional superior à do Recorrente ou com maior antiguidade do que este.

16. O Recorrente escuda-se no mapa de pessoal junto com a sua oposição, dizendo que este documento é suficiente comprovar a pretensa impossibilidade de cumprir o comando legal contido no art. 208.º da LGTFP; todavia, sem razão alguma.

17. Pois ainda que o Recorrente alegue que mais nenhum Chefe de Divisão havia (e, assim, funcionário em cargo de superior complexidade funcional), todos os demais critérios ficam por demonstrar.

18. Com efeito, do mapa de pessoal não resulta a antiguidade dos trabalhadores e, assim, afigura-se impossível aferir se existia ou não funcionário que cumprisse o disposto no n.º 1, do art. 208.º, in fine - i.e., com antiguidade superior em cargo, carreira ou categoria idêntica à do Recorrido ou no exercício de funções públicas.

19. Do mesmo modo, do documento em causa não resulta qual a composição e área de formação (sendo a preferencial, a jurídica) dos membros da Assembleia Municipal, este que seriam também elegíveis para instruir o presente procedimento.

20. Todos estes, aliás, factos passíveis de comprovação documental, como é evidente e ao invés do que sustenta o Recorrente.

21. De resto, escusado será dizer que recai sobre a Administração o ónus de demonstração dos pressupostos legais da actuação (cfr. art. 88.º do CPA, a contrario).

22. Destarte, em face do exposto, a decisão prolatada deve ser mantida, não se verificando, pois, qualquer erro de julgamento quanto à matéria de facto sobrelevada para a douta sentença proferida.

23. Passando para as questões de direito suscitadas, como vimos, o Recorrente alega que referência a diferente órgão e serviço constante do art. 208.º da LGTFP aplicar-se-á à Administração Central e que, no caso das autarquias locais, a referência a diferente órgão e serviço deve entender-se como referindo-se a outra autarquia local.

24. Mas sem razão alguma: decorre da literalidade do referido art. 208.º da LGTFP, a inadmissibilidade da nomeação de um instrutor que seja funcionário de uma pessoa colectiva distinta daquela onde tramita o processo disciplinar.

25. Sendo certo que também o seu espírito o impõe, na medida em que sobre o instrutor tem que, necessariamente, recair uma hierarquia.

26. Recorde-se, pois, que LGTFP estabelece o direito do trabalhador de interpor recurso hierárquico (como o próprio nome indica, pressupõe e exige uma relação... hierárquica que, entre o mais, obrigará a acatar a decisão recursiva do superior hierárquico, o que não existe nem pode existir no caso de um funcionário de distinta pessoa colectiva, contratado ad hoc) – cfr. os arts. 203.º, n.º 3 e 225.º da LGTFP.

27. É assim claro e incontroverso que o instrutor do processo só poderia ser um trabalhador em funções públicas, pertencente ao quadro da entidade que instaura o processo disciplinar, id est, com subordinação hierárquica à autoridade que instaura o procedimento, pois só assim esta pode dar ordens e ser obedecida em situações em que se interponha recurso hierárquico – o que não sucede in casu.

28. Mais ainda, só sendo um trabalhador do serviço pode perceber cabalmente a orgânica e funcionamento do próprio serviço, perceber a natureza da suposta infracção e a sua gravidade (ou não), mormente para os interesses públicos prosseguidos em concreto e conhecer a própria necessidade de punir.

29. Aqui chegados, sendo imperativamente inadmissível a nomeação de instrutor que não seja funcionário do Município e sendo certo que o instrutor nomeado pelo Município recorrente não é seu funcionário, temos então, num silogismo simplíssimo e claríssimo, que no caso em apreço, jamais por jamais, o Município poderia ter nomeado o instrutor que nomeou.

30. E, ainda que não se seguisse este entendimento, o que não se concede e por mera hipótese se adianta, mesmo assim, sempre se imporia a anulação do acto de designação do instrutor, pelas razões que amplamente adiantámos acerca do princípio da hierarquia.

31. Pois, não se afigura, ao contrário do que é sustentado recursivamente, legalmente possível (lícito) nomear funcionário de outra autarquia para exercer funções de instrutor em processo disciplinar, atenta a evidente e ostensiva distinção de personalidades jurídicas das autarquias entre si e, obviamente, na inexistência de relação hierárquica entre um funcionário de uma autarquia e o Presidente de Câmara de outra - duplo fundamento.

32. Não nos valendo, pois, o considerando do Recorrente no sentido de que, assim teve que ser, por alegadamente não existir pessoa legalmente idónea com os predicados a que se refere a lei - ainda que fosse verdade, o que reitere-se, não se sabe, a solução é perfeitamente evidente e fácil, como já o dissemos, v.g., o Município poderia ter recorrido a uma mobilidade temporária para assegurar estas funções, assim garantindo o princípio da hierarquia e da boa condução do procedimento.

33. Em segundo lugar e sob distinta óptica, a douta sentença determinou, como vimos, uma das razões de anulação do acto de nomeação do instrutor impugnado traduziu-se neste decidir e não só, portanto, naquela impossibilidade de se nomear como instrutor no processo disciplinar um funcionário de outra autarquia - sendo este, portanto, um segmento decisório autónomo e distinto do primeiro, como se referiu supra e, deste modo, estéril à interpretação que se faça dos vocábulos órgão ou serviço.

34. É que se o Recorrente interpretava a norma no sentido de que os outros órgãos ou serviços a que se refere o art. 208.º da LGTFP poderiam ser, também, outras autarquias locais (o que naturalmente não se concede), certo é que não estava isento do dever de fundamentação que impende sobre si e sobre toda e qualquer Entidade Administrativa.

35. Deste modo, constata a inobservância de um pressuposto fundamental do dito acto de nomeação - ou seja, a inexistência da justificação a que se refere o n.º 2, do art. 208.º da LGTFP, nos casos em o instrutor não seja oriundo do órgão ou serviço do infractor (o que vale, quer para a interpretação do Recorrente ou Recorrido) - impõe-se, concluir, mais uma vez, que o acto é ilegal.

36. Para terminar e naturalmente sem prescindir do que vimos de referir supra - no sentido de que o presente recurso apenas e tão-só poderá incidir sobre o despacho de nomeação do instrutor - por extrema cautela de patrocínio, digamos que o despacho de nomeação do colaborador técnico padece de ilegalidades a vários passos.

37. Desde logo, porquanto as razões invocadas pelo instrutor para a requisição de colaboração técnica são atinentes ao desempenho de outras funções e à escassa disponibilidade que daí resulta para o exercício das funções de instrução - isto quando, como é sabido, segundo o disposto no art. 208.º, n.º 4 da LGTFP, “as funções de instrução preferem a quaisquer outras, ficando exclusivamente adstrito àquelas

38. Assim, baseando-se nestas razões para designar o solicitado colaborar técnica, o acto impugnado sustenta-se em motivos que não podem deixar de ser considerados ilegais, a luz do disposto no referido n.º 4, do art. 208.º da LGTFP.

39. Depois, do acto de nomeação do colaborador técnico resulta uma verdadeira transferência de funções do instrutor para o colaborador técnico, pois que essa nomeação se estriba na indisponibilidade do próprio instrutor para realizar as diligências probatórias e o relatório final - estas que são, como vimos, funções próprias do mesmo.

40. Deste modo, esta colaboração técnica determinada tem ínsitos, materialmente, poderes públicos inerentes ao exercício da função de instrutor - o que se afigura inamissível, por afronta aos sobreditos arts. 208.º, 212.º e 213.º da LGTFP, que incubem o instrutor do processo disciplinar e, ainda, por manifesta violação do princípio do exercício de poder (punitivo) público.

41. Numa palavra, o procedimento sancionatório público, como tal, tem de ser exercido na e pela Administração Pública.

42. A isto acresce que este o colaborador técnico, como resulta dos autos, não se encontra, de modo algum relacionado com o exercício de funções públicas, sendo advogado, o que afronta também o art. 208.º, n.º 1 da LGTFP - cfr. doutrina citada.

43. Em suma, em face do exposto, são manifestamente improcedentes os argumentos tecidos pelo Recorrente, não incorrendo a sentença proferida pelo Tribunal a quo em qualquer vício, antes sendo isenta de qualquer censura, pelo que deve manter-se integralmente na ordem jurídica.”.

Pede que seja negado provimento ao recurso jurisdicional interposto e que seja mantida a decisão recorrida.


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O Ministério Público junto deste Tribunal notificado nos termos e para efeitos do disposto no art.º 146.º do CPTA, não emitiu parecer.

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O processo vai, sem vistos dos Exmos. Juízes-Adjuntos, à Conferência para julgamento, por se tratar de um processo urgente.

III. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO - QUESTÕES A APRECIAR

Cumpre apreciar e decidir a questão colocada pelo Recorrente, sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, nos termos dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1, 2 e 3, todos do CPC ex vi artigo 140.º do CPTA, não sendo lícito ao Tribunal ad quem conhecer de matérias nelas não incluídas, salvo as de conhecimento oficioso.

São as seguintes as questões invocadas pelo Recorrente como fundamento do recurso:

1. Erro de julgamento de facto, quanto ao facto não provado;

2. Erro de julgamento de direito, quanto à interpretação e aplicação do artigo 208.º, n.º 2 da LGTFP, quanto à nomeação de instrutor;

3. Erro de julgamento de direito, quanto à interpretação e aplicação do artigo 208.º, n.º 3 da LGTFP, quanto à requisição pelo instrutor de colaboração técnica.

III. FUNDAMENTOS

DE FACTO

O Tribunal a quo deu como assentes os seguintes factos:

A Factos Provados

1. O autor exerce as funções de Chefe da Divisão Administrativa e Financeira do Município de Pedrógão Grande – cf. doc. 3 junto com a oposição e certidão de fls. 155 e ss. do processo administrativo junto aos autos (PA), cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

2. Em 20.03.2018, foi proferido pelo Presidente da Câmara Municipal de Pedrógão Grande despacho pelo qual se determinou a instauração de “processo disciplinar comum” ao autor [que veio a seguir termos sob o n.º 01/2018], dele constando ainda, além do mais, o seguinte:

(…)

O artigo 208.º da LGTFP nº1 determina que na nomeação do instrutor deve ser escolhido de entre trabalhadores do mesmo órgão ou serviço, titular de cargo ou de carreira ou categoria de complexidade funcional superior à do trabalhador ou, quando impossível, com antiguidade superior no mesmo cargo ou em carreira ou categoria de complexidade idêntica ou no exercício de funções públicas, preferindo os que possuam adequada formação jurídica.

Constata-se que nesta autarquia não existe outro Chefe de Divisão nem funcionário de categoria superior que possa desempenhar as funções de instrutor do processo disciplinar.

Além disso, a natureza das infracções, o melindre das questões e o facto de a autarquia ter poucos funcionários no seu quadro aconselham, e mesmo, impõem, que seja nomeado instrutor funcionário de outra autarquia.

O nº. 2 do citado art.º 208º permite que, em casos justificados, nomeação de instrutor possa recair em funcionário de outtro órgão ou serviço.

Neste contexto, designo para instrutor do processo disciplinar o Sr. Dr. A.................., trabalhador em funções públicas na Câmara Municipal de Ansião com a categoria de Director do Departamento Administrativo e Financeiro. (…) – cf. doc. 1 junto com o requerimento inicial, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

3. Por requerimento apresentado por correio electrónico em 03.01.2019, dirigido aos serviços do réu, o autor arguiu a nulidade do processo disciplinar identificado no ponto antecedente, com fundamento na ilegalidade do acto de nomeação de instrutor – cf. fls. 380 e ss. do PA, cujo teor se dá por reproduzido.

4. Por requerimento expedido por fax em 07.01.2019, dirigido ao “Exm.º Sr. Instrutor A..................”, o autor apresentou defesa no âmbito do processo disciplinar identificado em “2” – cf. fls. 404 e ss. do PA, cujo teor se dá por reproduzido.

5. Através do ofício com a referência S/034/2019, o instrutor do processo disciplinar expôs e requereu ao Presidente da Câmara Municipal de Pedrógão Grande o seguinte:

“1) No identificado processo disciplinar, exercendo o seu direito de defesa, os arguidos J.................. e I.................., apresentaram extenso rol de testemunhas cuja audição se impõe.

2) Como é do conhecimento de V. Exa., o signatário e instrutor do processo desempenha actualmente as funções de Director do Departamento Administrativo e Financeiro da Câmara de Ansião.

3) Funções estas que lhe não deixam disponibilidade para, dentro dos prazos legalmente estabelecidos, proceder à produção da prova oferecida pelos arguidos e elaboração do respectivo relatório final.

Pelo exposto e tendo em vista a conclusão do processo sem falhas nem incidentes, requer V. Exa. que, nos termos do disposto no art. 208º, nº3, da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (Lei nº35/2014, de 20 de Janeiro), seja requisitada a colaboração de técnico para o efeito, permitindo-se sugerir que a escolha recaia, preferencialmente, em pessoa de advogado. (…)” – cf. doc. 2 junto com o requerimento inicial, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

6. Em 04.02.2019 foi proferido pelo Presidente da Câmara Municipal de Pedrógão Grande despacho com o seguinte teor:

Por ter sido fundamentadamente requerido pelo Sr. Instrutor do processo, no uso dos poderes que me são conferidos pelo art.208º, nº3, da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (Lei n.º35/2014, de 20 de Janeiro), para prestar a requerida colaboração técnica. Na fase de produção da prova oferecida pelos arguidos e respectivo relatório final, designo o Sr. Dr. R…………., advogado (…).” – cf. doc. 2 junto com o requerimento inicial, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

7. Por requerimento expedido por fax em 13.02.2019, dirigido ao “Exm.º Sr. Presidente da Câmara Municipal de Ansião”, o autor interpôs “recurso hierárquico”, relativamente à omissão de decisão do requerimento referido em “3” – cf. fls. 580 e ss. do PA, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

8. Por requerimento expedido por fax em 13.02.2019, dirigido ao “Exm.º Sr. Instrutor A..................”, o autor informou acerca da interposição do recurso hierárquico referido no ponto antecedente e requereu, invocando impedimento do mandatário, o adiamento de diligência de inquirição de testemunhas agendada para dia 22.02.2019 – cf. fls. 582 e ss. do PA, cujo teor se dá por reproduzido.

9. Em 22.02.2019 teve lugar a inquirição de testemunhas arroladas pelo autor, no âmbito do processo disciplinar identificado em “1”, diligência a que presidiu “R………, advogado”, na qualidade de “colaborador técnico designado” – cf. autos de inquirição de testemunhas constantes de fls. 611 e ss. do PA, cujo teor se dá por reproduzido.

10. Na diligência referida no ponto antecedente, destinada à inquirição da testemunha I………………., e em momento antecedente à inquirição propriamente dita, o mandatário do autor arguiu nulidades relativas à omissão de decisão do recurso hierárquico referido em “7”, à omissão de notificação do despacho “que legitime o (…) Dr. R…………. para, por si só, ouvir as testemunhas arroladas” e ainda à violação do princípio da mediação, “uma vez que quem irá fazer o relatório final não assistiu às [diligências de produção de prova]” – cf. auto de inquirição de testemunha constante de fls. 611 e ss. do PA, cujo teor se dá por reproduzido.

11. Na diligência referida nos pontos antecedentes, o “colaborador técnico designado” determinou o prosseguimento das diligências programadas – cf. auto de inquirição de testemunha constante de fls. 611 e ss. do PA, cujo teor se dá por reproduzido.

12. Ainda no âmbito da mesma diligência, e na sequência da determinação referida no ponto antecedente, o mandatário do autor expos e requereu o seguinte:

O nosso ilustre colega, assessor técnico no presente processo, não tem atribuições ou competências para deferir ou indeferir o que quer que seja nos presentes autos, pelo que se verifica nova nulidade que expressamente se argúi. (…)” – cf. auto de inquirição de testemunha constante de fls. 611 e ss. do PA, cujo teor se dá por reproduzido.

13. Ao autor foi diagnosticada doença depressiva major, com predominância de insónia, pensamentos ruminativos sobre a sua situação socio- profissional e o seu futuro próximo, com dificuldades cognitivas e intelectuais, apatia, indiferença ideoafectiva e lentificação psicomotora – cf. informação clínica junta aos autos por ofício de 26.06.2019, a fls. 186 dos autos, cujo teor se dá por reproduzido.

14. O autor teve um episódio de reagudização do quadro clínico em Fevereiro de 2019, com agravamento da sintomatologia depressiva, do desinteresse, apatia e anedonia – cf. informação clínica junta aos autos por ofício de 26.06.2019, a fls. 186 dos autos, cujo teor se dá por reproduzido.

15. No início do presente mês de Julho, e pelo menos entre 05 e 12 deste mês, o autor encontrava-se internado no Serviço de Psiquiatria do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, em virtude de quadro depressivo – cf. informações clínicas juntas aos autos por ofícios de 08.07.2019 e 15.07.2019, constantes de fls. 195 e ss. e 200 e ss. dos autos, cujo teor se dá por reproduzido.

16. O autor era uma pessoa conhecida e bem reputada em Pedrógão Grande.

17. Os factos que subjazem à instauração do processo disciplinar e do processo-crime que contra o autor se encontram a correr estão na base ou contribuem para o agravamento do estado de saúde mental do autor.

18. Os presentes cautelares deram entrada em juízo em 08.03.2019 – cf. registo constante de fls. 1 dos autos.

19. A acção principal a que estes autos cautelares se encontram apensos, que corre termos sob o n.º 329/19.4BELRA, deu entrada em juízo em 11.03.2019 – cf. registo constante de fls. 1 desses autos.


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B Factos não provados

1. O Município de Pedrogão Grande não tem no seu mapa de pessoal um trabalhador titular do cargo ou de carreira ou categoria de complexidade funcional superior à do autor ou com antiguidade superior no mesmo cargo ou em carreira ou categoria de complexidade funcional idêntica ou no exercício de funções públicas.


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Os factos elencados foram dados como provados com base no acordo das partes, apurado mediante a posição por si assumida nos respectivos articulados, bem como com base no teor dos documentos juntos aos autos, indicados por referência a cada concreto ponto da matéria.

No que concerne à prova testemunhal produzida nos autos, esta teve essencialmente o alcance de confirmar a factualidade relativa às circunstâncias em que decorreu a inquirição de testemunhas, no âmbito do processo disciplinar instaurado contra o autor, e ao seu estado de saúde, reiterando as testemunhas I.................. e P.................. a realidade que se deixou apurada para os números 9-12 e 13-15, respectivamente. Decisivamente, depuseram as testemunhas referidas de forma segura e coerente sobre a factualidade que se deixou vertida sob os números 16 e 17 do probatório.

Nada mais se provou com relevo para a solução jurídica da causa e.”.

DE DIREITO

Considerada a factualidade fixada, importa agora entrar na análise das questões colocadas para decisão.

1. Erro de julgamento de facto, quanto ao facto não provado

Vem o Recorrente a juízo invocar o erro de julgamento de facto da sentença recorrida no respeitante aos factos não provados, defendendo que, ao contrário do decidido, tal facto julgado não provado, deve ser julgado provado, nos termos do artigo 662.º do CPC.

Defende que a sentença recorrida expressa que a Câmara Municipal tem quadro de pessoal próprio, mas a Câmara Municipal não tem mapa de pessoal, mas sim o Município.

Sustenta que o acórdão ao referir-se que é necessário aferir se outros funcionários preencham os requisitos previstos no artigo 208.º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (LGTFP) importa considerar não apenas os funcionários afetos à Câmara Municipal, mas também os afetos à Assembleia Municipal, quer dizer que é necessário produzir prova testemunhal de que se existe algum funcionário afeto à Assembleia Municipal que pudesse ter sido nomeado instrutor.

Donde, entender que a sentença recorrida incumpriu o decidido no acórdão.

Alega que o Município tem todos os funcionários integrados no quadro e no mapa de pessoal, sendo o mapa de pessoal único, como decorre da lei.

Pelo que, segundo o Recorrente o documento junto com a petição inicial é demonstrativo desta prova, que pode ser comprovado por prova testemunhal.

Razão porque defende o Recorrente que a sentença deveria ter dado tal facto como provado.

Vejamos.

Como decorre do próprio teor da sentença recorrida, após a prolação do acórdão deste TCAS, o ora Recorrente foi notificado, por duas vezes, para esclarecer a factualidade sobre a existência ou não de funcionário do Município de Pedrogão Grande que possa dar cumprimento ao ditame no artigo 208.º da Lei Geral de Trabalho em Funções Públicas (LGTFP), aprovada pela Lei n.º 35/2014, de 20/06, na redação em vigor à data da prática dos factos, considerando o pessoal que integre quer a Câmara Municipal, quer a Assembleia Municipal, por ser o Município, enquanto pessoa coletiva de direito público, a entidade demandada na ação.

O Recorrente nada disse ou requereu em juízo, remetendo-se ao silêncio, determinando que tivesse sido condenado ao pagamento de multa, por violação do princípio da cooperação.

Não podem existir dúvidas de ser a Entidade Demandada, ora Recorrente, a parte onerada com o ónus da prova quanto à verificação dos pressupostos de facto e de direito da sua atuação, ou seja, de recair sobre o Município de Pedrogão Grande o ónus de demonstrar que não tem trabalhador que satisfaça os requisitos legais, previstos no artigo 208.º da LGTFP, para poder ser nomeado instrutor do processo disciplinar de outra autarquia local, como defende.

Decorre dos autos que o ora Recorrente alegou no artigo 5.º da oposição, que não tem no seu mapa de pessoal um trabalhador em regime de funções públicas titular de cargo ou de carreira ou categoria de complexidade funcional superior à do trabalhador alvo do processo disciplinar.

Defendeu não poder dar cumprimento ao disposto no artigo 208.º da LGTFP, por o lugar de chefe de divisão ser o lugar de maior relevo na hierarquia do mapa de pessoal da autarquia e que a mesma tem poucos funcionários.

E no que respeita à demonstração dos factos alegados, o Requerente apresentou prova documental com a oposição, juntando cópia do Mapa de Pessoal para o ano de 2017 e para o ano de 2018, juntos sob os documentos 1 e 2.

Tudo isto fora desconsiderado na primeira sentença, o que determinou o julgamento constante do Acórdão deste TCAS, proferido em 10/12/2019:

Compulsando o julgamento de facto nada resulta provado e não provado a respeito do mapa de pessoal do Município de Pedrogão Grande, nem sobre a existência ou não de trabalhadores da autarquia local que possam ser designados instrutores do processo disciplinar em causa nos autos.

Assim, no que respeita aos factos apurados em juízo, nada se pode extrair que sustente a posição assumida na sentença, de que pode existir funcionário com antiguidade superior no mesmo cargo ou em carreira ou categoria de complexidade funcional idêntica ou no exercício de funções públicas.”.

Convidado na presente instância a apresentar ou requerer a produção de outros meios de prova, o Requerente remeteu-se ao silêncio ou inércia, nada mais tendo produzido ou requerido.

Verifica-se, assim, que a prova documental apresentada pelo ora Recorrente que não havido sido considerada no julgamento de facto da primeira sentença, por nela ter sido omitida a apreciação desse meio de prova, foi agora apreciada na sentença ora recorrida em sentido negativo, por ter sido julgado não provado o facto que tais documentos visavam comprovar.

Se antes o Tribunal a quo havia desconsiderado a prova documental apresentada pelo ora Recorrente, não incluindo no elenco dos factos provados, nem nos factos não provados, o facto relativo à existência de trabalhador da autarquia local – Município de Pedrogão Grande – que possa ser designado instrutor do processo disciplinar, nos termos do julgamento da matéria de facto da sentença ora recorrida, o Tribunal a quo passou a valorar a prova documental produzida em termos que conduziram ao juízo de não prova do facto alegado.

É contra este julgamento que o Recorrente se insurge, com o duplo fundamento de entender que em face da prova produzida, tal facto deve ser considerado provado ou, pelo menos, ser produzida prova testemunhal.

Em primeiro lugar, apreciando a prova documental produzida, dela se podem extrair os seguintes factos:

a) Mapa de pessoal de 2017:

1 posto de trabalho nos Serviços de Apoio à Câmara Municipal, Gabinete Jurídico, no Cargo/Carreira/Categoria de Técnico Superior, na Área de Formação Académica do Direito;

– vários Técnicos Superiores noutras Áreas de Formação;

b) Mapa de pessoal de 2018:

1 posto de trabalho de Chefe de Divisão na Direção da Divisão do Urbanismo, Planeamento, Obras Municipais, Serviços Urbanos e Ambiente, na Área de Formação Académica do Urbanismo e Planeamento;

– 1 posto de trabalho nos Serviços de Apoio à Câmara Municipal, Gabinete Jurídico, no Cargo/Carreira/Categoria de Técnico Superior, na Área de Formação Académica do Direito;

– vários Técnicos Superiores noutras Áreas de Formação.

Em segundo lugar não foi produzida prova sobre as modalidades da relação jurídica de emprego pública referentes a qualquer dos trabalhadores que integram estes postos de trabalho, nem sequer a sua respetiva antiguidade.

Desconhece-se, por isso, por não ter sido produzida qualquer prova, se existem ou não trabalhadores do quadro de pessoal do Município de Pedrogão Grande que estejam integrados no Cargo/Carreira/Categoria de Técnico Superior com antiguidade superior à do ora Recorrido.

Em terceiro lugar não logrou ser produzida prova sobre os trabalhadores da Câmara Municipal de Pedrogão Grande destacados na Assembleia Municipal, nos termos do artigo 56.º do Regimento da Assembleia Municipal de Pedrogão Grande.

Em face do antecede, não pode proceder o erro de julgamento de facto contra a sentença recorrida, pois a mera apresentação do Mapa de Pessoal referente aos anos de 2017 e 2018, não permite só por si comprovar que não exista trabalhador do Município de Pedrogão Grande titular de cargo ou de carreira ou categoria de complexidade funcional superior à do trabalhador visado no processo disciplinar ou, quando impossível, com antiguidade superior no mesmo cargo ou em carreira ou categoria de complexidade funcional idêntica ou no exercício de funções públicas, preferindo os que possuam adequada formação jurídica.

Além de que a lei não veda que possa ser nomeado trabalhador sem formação jurídica, permitindo que possa ser nomeado instrutor sem formação jurídica, não obstante estabelecer essa preferência.

Recaindo sobre a Entidade Demandada, ora Recorrente, o ónus da prova sobre os pressupostos de facto e de direito da sua atuação, nos termos do disposto no artigo 342.º, n.º 1 do CC, in casu, que não existe no Município de Pedrogão Grande qualquer trabalhador titular de cargo ou de carreira ou categoria de complexidade funcional superior à do trabalhador visado no processo disciplinar ou, quando impossível, com antiguidade superior no mesmo cargo ou em carreira ou categoria de complexidade funcional idêntica ou no exercício de funções públicas, preferindo os que possuam adequada formação jurídica, forçoso se impõe manter o julgamento da matéria de facto não provada.

Assim, onerado o Recorrente sobre a prova dos factos, o mesmo não logrou dar cumprimento, implicando que sofra as consequências decorrentes da falta de prova dos factos alegados em juízo e em que alicerçou a decisão administrativa impugnada, de nomeação de instrutor integrado no quadro de outro Município.

Além de que, em rigor, o ora Recorrente não denega que exista esse trabalhador, pois da sua alegação o que se extrai é que “não tem no seu mapa de pessoal um trabalhador em regime de funções públicas titular de cargo ou de carreira ou categoria de complexidade funcional superior à do trabalhador” (artigo 5.º da oposição) e que “o lugar de chefe de divisão é o lugar de maior relevo na hierarquia do mapa de pessoal da autarquia” (artigo 7.º da oposição).

Nada mais se mostra alegado pelo ora Recorrente, não sendo consequentemente negado que não exista trabalhador com antiguidade superior no mesmo cargo ou em carreira ou categoria de complexidade funcional idêntica ou no exercício de funções públicas.

Em face do todo que antecede, com base nas razões invocadas, não se encontram demonstrados os pressupostos em que a Entidade Demandada fundou a decisão de nomeação de instrutor, pelo que a factualidade impugnada deverá continuar a ser julgada não provada.

Pelo que, improcede, por não provado, o erro de julgamento do facto não provado, determinando que se mantenha integralmente o julgamento de facto da sentença recorrida.

2. Erro de julgamento de direito quanto à interpretação e aplicação do artigo 208.º, n.º 2 da LGTFP, quanto à nomeação de instrutor

No demais, insurge-se o Recorrente contra a sentença recorrida no respeitante à interpretação e aplicação do artigo 208.º, n.º 2 da LGTFP.

Discorda o Recorrente da sentença recorrida, assacando-lhe o erro de julgamento porquanto o artigo 208.º, n.º 2 da LGTFP admite a existência de casos justificados, em que pode ter lugar a nomeação de instrutor de outro órgão ou serviço, o qual só se refere à mesma pessoa coletiva no caso de se tratar da administração central, pois no caso das autarquias locais outro órgão ou serviço tem de referir-se a outra autarquia local, por nestas não existirem outros órgãos ou serviços, mas antes departamentos e divisões.

Invoca que nas autarquias locais, outro dirigente máximo do serviço só pode ser o presidente da Câmara Municipal de outra autarquia, por o presidente da Câmara Municipal ser o dirigente máximo e não haver outro.

Mais alega que o despacho de nomeação do instrutor concretiza que na autarquia não existe outro Chefe de Divisão, nem funcionário de categoria superior que possa desempenhar as funções de instrutor do processo disciplinar, que o Chefe de Divisão visado no processo disciplinar é o único chefe de divisão da autarquia e é o funcionário mais categorizado da mesma, o que decorre do mapa de pessoal da autarquia e dos documentos juntos com a contestação e que o próprio Autor reconhece na petição inicial.

Segundo o Recorrente, o Município de Pedrógão Grande não tem no seu mapa de pessoal um trabalhador em regime de funções públicas titular de cargo ou de carreira ou categoria de complexidade funcional superior à do trabalhador, pelo que, não pode ser dado cumprimento ao artigo 208.º, n.ºs 1 e 2 da LGTFP, quando determina que na nomeação do instrutor deve ser escolhido de entre trabalhadores do mesmo órgão ou serviço, titular de cargo ou de carreira ou categoria de complexidade funcional superior à do trabalhador ou, quando impossível, com antiguidade superior no mesmo cargo ou em carreira ou categoria de complexidade idêntica ou no exercício de funções públicas, preferindo os que possuam adequada formação jurídica, sendo o lugar de chefe de divisão o lugar de maior relevo na hierarquia do mapa de pessoal da autarquia.

Vejamos.

Considerando o anteriormente decidido sobre o invocado erro de julgamento de facto, no sentido da sua improcedência, o presente fundamento do recurso não tem qualquer sustento.

Resultando do julgamento da matéria de facto que resultou não provado o facto de existir trabalhador no Município de Pedrogão Grande que possa ser nomeado instrutor do processo disciplinar instaurado contra o ora Recorrido, não se pode imputar o erro de julgamento de direito, por violação do artigo 208.º, n.ºs 1 e 2 da LGTFP à sentença recorrida.

Para além do que dispõe o n.º 1 do citado preceito legal, o seu n.º 2 permite “em casos justificados” que a entidade referida no número anterior possa solicitar ao respetivo dirigente máximo a nomeação de instrutor de outro órgão ou serviço, pressupostos de facto que não lograram ser provados em juízo.

Além do facto julgado não provado, do julgamento da matéria de facto provada não se pode extrair qualquer facto que permita dar por verificado o pressuposto normativo do artigo 208.º, n.º 2 do LGTFP, de no caso, se justificar a nomeação de instrutor de outro órgão ou serviço, entendido pelo Recorrente como dizendo respeito a trabalhador de outro Município.

Cabia à Entidade Demandada caracterizar a situação de facto em relação ao quadro de pessoal do Município de Pedrogão Grande de molde a dar por respeitados os pressupostos legais, quer do disposto do n.º 1, quer do disposto do n.º 2, do artigo 208.º da LGTFP, o que não se verifica, desconhecendo-se a real situação do pessoal da Entidade Demandada.

Nem se pode invocar que o Recorrido não teve a oportunidade para o efeito, pois para além do momento inicial da apresentação da oposição em que deveria ter produzido ou requerido toda a prova pertinente, na sequência do acórdão por este TCAS, o ora Recorrente foi notificado, por duas vezes, para proceder ao cabal esclarecimento da situação de facto, tendo optado por nada fazer ou requerer em juízo.

O que implica que, em face do julgamento de facto da sentença recorrida, quer quanto aos factos provados, quer quanto ao facto não provado, não se encontrem demonstrados os pressupostos de facto que permitam alicerçar a decisão de nomeação de instrutor do processo disciplinar instaurado contra o Recorrido por trabalhador de outro Município que não o de Pedrogão Grande.

Tal julgamento da matéria de facto da sentença recorrida afigura-se, por isso, determinante para a apreciação a dar sobre o fundamento do recurso, sobre o invocado erro de julgamento de direito.

De resto, o ora Recorrente não se insurgiu contra o julgamento dos factos provados, não requerendo o aditamento de qualquer outra facto, sendo com base na factualidade concretamente apurada que tem de recair o julgamento de direito.

Nestes termos, em face do que antecede, será de julgar improcedente, por não provado, o fundamento do recurso.

3. Erro de julgamento de direito, quanto à interpretação e aplicação do artigo 208.º, n.º 3 da LGTFP, quanto à requisição pelo instrutor de colaboração técnica

Em consequência do anteriormente decidido fica prejudicado o conhecimento e decisão sobre o invocado erro de julgamento de direito quanto à interpretação e aplicação do disposto no artigo 208.º, n.º 3 da LGTFP, quanto à requisição pelo instrutor nomeado, de colaboração técnica.

Não se podendo manter o instrutor nomeado, falecem os pressupostos de facto e de direito que determinaram a requisição por este, da colaboração técnica.

O que implica, que não possa proceder o fundamento do recurso, nos termos invocados pelo Recorrente, antes decorrente o mesmo ficar prejudicado em face do anteriormente decidido.

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Termos em que, será de negar provimento ao recurso jurisdicional interposto pelo Recorrente, improcedente, por não provados os fundamentos do recurso, assim como não provadas a violação das normas legais invocadas pelo Recorrente, em alguns casos totalmente insubstanciadas, sem a alegação de qualquer razão ou motivo pelo Recorrente que determine a sua invocação no presente recurso, como se extrai do teor da conclusão 42 do recurso.
O que determina a manutenção da sentença recorrida, embora com uma fundamentação não inteiramente coincidente.
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Sumariando, nos termos do n.º 7 do artigo 663.º do CPC, conclui-se da seguinte forma:

I. Recai sobre a Entidade Demandada o ónus da alegação e prova dos factos atinentes aos pressupostos da nomeação do instrutor do processo disciplinar, nos termos do artigo 208.º, n.º 1 da LGTFP, de que não existe no quadro de pessoal do Município trabalhador titular de cargo ou de carreira ou categoria de complexidade funcional superior à do trabalhador visado no processo disciplinar ou, quando impossível, com antiguidade superior no mesmo cargo ou em carreira ou categoria de complexidade funcional idêntica ou no exercício de funções públicas, preferindo os que possuam adequada formação jurídica.

II. Para tanto, é insuficiente a mera junção do mapa de pessoal dos anos de 2017 e de 2018 do Município, por estes serem omissos em relação à antiguidade superior no mesmo cargo ou em carreira ou categoria de complexidade funcional idêntica ou no exercício de funções públicas.

III. O n.º 2 do artigo 208.º da LGTFP permite “em casos justificados” que a Administração possa solicitar ao respetivo dirigente máximo a nomeação de instrutor de outro órgão ou serviço, o que exige que a Entidade Demandada tivesse caracterizado a situação de facto em relação ao quadro de pessoal do Município, de molde a dar por respeitados os pressupostos legais, quer do disposto do n.º 1, quer do disposto do n.º 2, do artigo 208.º da LGTFP, o que não foi feito.

IV. Não se mantendo o ato de nomeação do instrutor, falecem os pressupostos de facto e de direito que determinaram a requisição por este, da colaboração técnica.


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Por tudo quanto vem de ser exposto, acordam os Juízes do presente Tribunal Central Administrativo Sul, em negar provimento ao recurso e em manter a sentença recorrida, que julgou a ação procedente, embora sob fundamentação não inteiramente coincidente.

Custas pelo Recorrente.

Registe e Notifique.


(Ana Celeste Carvalho - Relatora)

(Carlos Araújo)

(Ana Pinhol)