Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:713/20.0BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:11/12/2020
Relator:CATARINA VASCONCELOS
Descritores:PROTEÇÃO INTERNACIONAL
SELEÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Sumário:I – Apenas a matéria de facto relevante para o exame e decisão da causa deve integrar a fundamentação de facto (provada ou não provada) da sentença.

II – É infundado o pedido de proteção internacional formulado pela Recorrente motivado pelo receio de ser assassinada, no Brasil, pela mulher do irmão por razões de ciúmes.

Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul

I – Relatório:

B....., cidadão nacional da República Democrática do Congo, intentou, no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, a presente ação administrativa contra o Ministério da Administração Interna impugnando a decisão proferida pelo Diretor Nacional do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras em 18 de março de 2020, nos termos da qual foi considerado infundado o pedido de proteção internacional por si formulado.

No dia 9 de julho de 2020 foi proferido despacho nos termos do qual se julgou que a matéria de facto alegada, com interesse para a decisão da causa, não se encontrava controvertida, sendo desnecessária a realização de quaisquer diligências de prova pelo que se indeferiu a prestação de declarações de parte pelo A.
Seguidamente, no mesmo dia, foi proferida sentença nos termos da qual foi a ação julgada totalmente improcedente e o R. absolvido do pedido.

O A., inconformado com o despacho e com a sentença, apresentou o presente recurso, formulando as seguintes conclusões:

A. O presente recurso versa sobre: (i) o despacho proferido pelo Tribunal a quo, que indeferiu o requerimento de produção de prova por declarações de parte, requerida pela Recorrente; (ii) da Sentença proferida pelo Tribunal a quo que julgou improcedente a ação interposta pela Recorrente.
B. O Tribunal a quo emitiu despacho indeferindo a realização de prova por declarações de parte, pois que considerou estar em condições de decidir, por dispor de todos os elementos necessários para o efeito.
C. No entanto, o Tribunal a quo ignorou, dando por não provados, factos invocados pela Recorrente e que deveriam ter sido dados como provados. Factos que, podiam facilmente ter sido demonstrados através de declarações de parte.
D. No caso concreto, o Tribunal a quo não poderia ter dispensado a prova por declarações de parte requerida pela Recorrente, porquanto tal prova era essencial para demonstrar factos determinantes para o exame e / ou decisão da causa (artigos 8.º a 22.º da petição inicial).
E. Com efeito, o Tribunal a quo incorreu num erro de julgamento ao considerar que não se justifica a produção de prova requerida, já que à Recorrente, tendo em conta o caso concreto e o benefício da dúvida de que beneficiam, bastava alegar os factos e demonstrá-los através do meio de prova oferecido.
F. A factualidade descrita – não considerada provada pelo Tribunal a quo – podia e devia ter sido objeto de prova por declarações de parte, permitindo ao Tribunal a quo concluir indubitavelmente que se encontram verificados os requisitos para a concessão de asilo ou de proteção subsidiária à Recorrente.
G. Com efeito, em virtude de a preterição da prova por declarações de parte não poder ser admitida e tendo tal omissão influído no exame e / ou decisão da causa, o despacho e sentença recorridas são nulas em virtude do disposto no n.º 1 do artigo 195.º do CPC.
H. Sem prejuízo de se considerar que o Tribunal a quo, por não dar como provada a factualidade constante dos artigos 8.º a 22.º da petição inicial, deveria ter, no mínimo recorrido à prova por declarações de parte requerida de modo a aferir da veracidade da mesma, certo é que a Recorrente entende que aquela factualidade estava em condições ter sido dada como assente.
I. De facto, a Recorrente alegou tais factos e os mesmos não foram impugnados pela contraparte no presente processo, o que significa que os mesmos foram confessados.
J. O Tribunal a quo, com o devido respeito, não podia ter ignorado essa confissão, bem como o teor de tais factos porquanto os mesmos eram essenciais para a decisão a proferir.
K. Com efeito, dentro das condições possíveis – dadas as limitações materiais e linguísticas – a Recorrente demonstrou e alegou a factualidade descrita nos artigos 8.º a 22.º da petição inicial, não existindo assim qualquer razão para que a mesma não se considere assente.
L. Por outro lado, tanto o despacho como a sentença recorridas incorreram em erro de julgamento da matéria de direito.
M. No que respeita ao despacho recorrido, que dispensou a produção de prova por declarações de parte, além da nulidade que se entende existir em virtude do disposto no n.º 2 do artigo 195.º do CPC, o Tribunal a quo errou ao considerar desnecessária a referida produção de prova, porquanto a factualidade constante dos artigos 8.º a 22.º da petição inicial – a não ser dada como assente, como se entende que devia – podia ser facilmente provada através do referido meio de prova.
N. A dispensa de produção de prova em causa colocou em causa, irremediavelmente, os direitos de defesa da Recorrente, o direito à tutela jurisdicional efetiva.
O. Por outro lado, a sentença recorrida incorreu num erro de julgamento da matéria de Direito, porquanto não considerou que, com base nos elementos do processo, à Recorrente devia ter sido concedido asilo ou, pelo menos, proteção subsidiária, nos termos, respetivamente, dos artigos 3.º e 7.º da Lei do Asilo – nos termos da instrução a realizar na sequência da admissão a essa fase da Recorrente.
P. Com efeito, como anteriormente se referiu, a factualidade e argumentos jurídicos invocados pela Recorrente, deveria ter levado o douto Tribunal a quo a concluir que, em face da factualidade exposta – não considerada como não provada pelo Tribunal a quo – deveria culminar na concessão de apoio internacional à Recorrente.

O Recorrido não contra-alegou.

O Ministério Público junto deste Tribunal, notificado nos termos e para efeitos do disposto no artigo 146.º do CPTA, não se pronunciou.

O processo vai sem vistos dos Exmos. Juízes-Adjuntos, por se tratar de processo urgente, indo à Conferência para julgamento.

II – Objeto do recurso:

Em face das conclusões formuladas, cumpre decidir as seguintes questões:
1. Relativamente ao despacho que indeferiu o requerimento de produção de prova:
-nulidade processual: a preterição de factualidade relevante para a decisão da causa: art.ºs 8º a 22º da petição inicial;

2. Relativamente à sentença:
-erro de julgamento da matéria de direito: o preenchimento dos pressupostos de que depende a concessão de asilo ou de proteção subsidiária

III – Fundamentação De Facto:

Na sentença recorrida foi julgada provada a seguinte factualidade:

A. Em 09/03/2020 a aqui A. B....., cidadã nacional da República Democrática do Congo, apresentou-se no controlo de fronteira de 1ª linha, na zona internacional do Posto de Fronteira do SEF, no aeroporto Humberto Delgado, em Lisboa, fazendo uso de Passaporte ordinário da República Democrática do Congo sem Visto Schengen aposto – cfr. fls. 1-21, do PA.

B. Perante tais factos, foi-lhe recusada a entrada em território nacional, tendo a A. apresentado pedido de protecção internacional – cfr. fls. 1-21, do PA.

C. Em 16/03/2020, no Gabinete de Asilo e Refugiados do SEF, a A. foi questionada sobre as circunstâncias e motivos que a conduziram a efectuar o pedido de protecção internacional, podendo ler-se na “Entrevista/transcrição”, o seguinte:
“(…)


(…)” – cfr. fls. 30-35, do PA.

D. Em 18/03/2020 pelo Inspector do Gabinete de Asilo e Refugiados, do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, foi prestada a Informação nº ....., onde consta o seguinte:
(…)


(…)



(…)” - cfr. fls. 39-50, do PA.

E. Em 18/03/2020, pelo Director Nacional Adjunto do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras foi proferido despacho, nos termos seguintes:
“(…)

(…)” - cfr. fls. 64, do PA

Jugou-se ainda que inexistiam factos não provados com interesse para a causa.


IV – Fundamentação De Direito:

1. Do recurso do despacho que indeferiu a produção de prova:

Por despacho proferido em 9 de julho de 2020, em momento imediatamente anterior à prolação da sentença, decidiu, o Tribunal a quo, o seguinte:

Visto que a matéria de facto alegada, com interesse para a decisão da causa, não se mostra contravertida, julgo desnecessária a realização de quaisquer diligências de prova, pelo que indefiro a prestação de declarações de parte pela A..

Entende o Recorrente que este despacho é nulo porque preteriu uma formalidade prevista na lei e tal preterição influiu no exame e decisão da causa.
Considera que, caso lhe tivesse sido dada oportunidade de provar a factualidade vertida nos artigos 8º a 22º da petição inicial – designadamente a invocada perseguição de que alegadamente, foi vítima no Brasil – a decisão teria sido outra, por força até do “benefício da dúvida” a que se refere o art.º 18º, n.º 4 da Lei do Asilo.
Em primeiro lugar, importa reter que, ao contrário do repetidamente afirmado pela A. nas suas alegações, o Tribunal a quo não julgou “não provada” qualquer factualidade. O que julgou foi que a matéria de facto relevante para a decisão da causa não se encontrava controvertida. A restante matéria de facto alegada pelo A. – independentemente de se encontrar assente ou controvertida – não foi julgada relevante para a decisão da causa.
E é contra este juízo – de seleção da matéria de facto – que, na verdade, o Recorrente se insurge.
A factualidade em questão é a vertida nos art.ºs 8º a 22º da petição inicial.
O Tribunal a quo julgou que tal factualidade não interessava à decisão da causa (de acordo com as várias soluções plausíveis de direito) e que, portanto, não faria sentido inclui-la na fundamentação de facto da sentença (provada ou não provada).
A Recorrente entende que essa matéria é relevante e que, uma vez, provada (por confissão ou por declaração de parte) conduziria à procedência da ação.
Tendo presente que a fundamentação fáctica de uma decisão judicial só deve abranger os factos relevantes para o exame e decisão da causa e que a instrução tem por objeto apenas aqueles factos que devam considerar-se controvertidos ou necessitados de prova (nos termos do art.º 90º, n.º 1 do CPTA), atentemos à específica matéria em causa que transcreveremos:


Começou por indicar os motivos que a levaram para o Brasil:
“Sai da RDC no dia 01/04/2017, fui de avião para o Brasil com escala em Marrocos, fui ter com o meu irmão que vivia com os padres na RDC, o meu irmão já vivia no Brasil desde 2003, em São Paulo, depois também vivi no Rio de Janeiro, no Brasil fiquei dois anos e onze meses, depois vim de avião para Lisboa”.

9.º
Questionada sobre os motivos que a conduziram a fugir do Brasil para Portugal, referiu o seguinte:
“Quando cheguei ao Brasil, encontrei o meu irmão casado com uma brasileira, vivi com eles na mesma casa em São Paulo, a mulher dele não acreditava que nós eramos irmãos, como eu não percebia bem a língua portuguesa, não entendia o que eles discutiam, perguntei ao meu irmão, ele disse-me que a mulher dele tinha ciúmes meus, pensava que eu era uma mulher que tinha casado com o meu irmão no Congo, o meu irmão tentou explicar-lhe a nossa vida no Congo, mas a sua mulher não acreditou.
Um dia uma amiga da mulher do meu irmão, disse-me para ser prudente, porque a mulher do meu irmão tinha um plano para me fazer mal.
Durante algum tempo ela desapareceu de casa, mais tarde apareceu e ficamos a viver juntos, até que passado alguns o meu irmão desapareceu, fui pedir ajuda a uma brasileira que falava um pouco de francês, expliquei o que se passava, pedi para ela ir comigo à policia apresentar queixa, a policia fez a investigação chamaram a mulher do meu irmão, ela confessou que tinha enviado pessoas para matar o meu irmão e pago, apresentou como motivo para o crime, o fato de ter casado com outra mulher, que era eu.
A mulher ficou presa, mas depois foi libertada, porque disseram que não havia provas do crime porque ela depois negou ter mandado matar o meu irmão. Ela disse-me que este era o país dela e que podia fazer qualquer coisa sem a policia lhe fazer nada porque ela era brasileira e eu era estrangeira.
Depois falei com uma senhora da igreja da assembleia de deus a quem eu trançava o cabelo e explicava os meus problemas, ela levou-me à igreja, no final de cada culto ficava para falar com o responsável para falar dos meus problemas, o pastor perguntou-me se eu queria voltar à RDC, eu disse que não, ele tentou procurar um país para onde eu pudesse ir, Itália ou França, mas eu preferi vir para Portugal.
Depois ele mandou-me para uma igreja no Rio de Janeiro, onde fiquei dois ou três meses, e o pastor da igreja no Rio de Janeiro perguntou-me se eu tinha cartão de residência, eu disse que sim, e comprou-me o bilhete de avião”. (cfr. Documento n.º 2 aqui junto)

10.º
Indicou, além disso, que tem a sua residência no Brasil regularizada.

11.º
Considerando que assassinaram o seu irmão e que os autores do crime estão em liberdade e procuram vingança, a Autora receia voltar ao seu país de origem.
É certo que a Autora tem nacionalidade congolesa, contudo, a mesma provém do Brasil, país no qual tem residência.

12.º
Face aos factos supra melhor explanados cumpre demonstrar a necessidade e a verificação dos requisitos de concessão de proteção subsidiária à Autora. Assim,

II. DO DIREITO
13.º Conforme se demonstrará, o indeferimento do pedido de proteção internacional, na modalidade de proteçao subsidiária é manifestamente ilegal, já que se encontram verificados os pressupostos legais necessários ao reconhecimento daquele estatuto.

14.º Nos termos do n.º 1 do artigo 7.º da Lei do Asilo, “[é] concedida autorização de residência por proteção subsidiária aos estrangeiros e aos apátridas a quem não sejam aplicáveis as disposições do artigo 3.º e que sejam impedidos ou se sintam impossibilitados de regressar ao país da sua nacionalidade ou da sua residência habitual, quer atendendo à sistemática violação dos direitos humanos que aí se verifique, quer por correrem o risco de sofrer ofensa grave”.

15.º Nos termos do n.º 2 do mesmo artigo, considera-se ofensa grave, “(...) a ameaça grave contra a vida ou a integridade física do requerente, resultante de violência indiscriminada em situações de conflito armado internacional ou interno ou de violação generalizada e indiscriminada de direitos humanos”.

16.º Da factualidade anteriormente exposta, decorre de forma cristalina que a Autora corre o risco de sofrer ofensa grave, traduzida na perda da sua própria vida.

17.º Facto que, pura e simplesmente, foi ignorado pelo decisor.

18.º Acresce que, o Brasil é um país de terceiro mundo, com a maior taxa de criminalidade mundial 2, onde existe uma violação generalizada e indiscriminada de direitos humanos, cometida, essencialmente, por agentes não estatais (pessoas criminosas, como aquelas que assassinaram o irmão da Autora)3, não tendo aquele Estado (brasileiro) a capacidade para adotar medidas que impeçam aquela agressão.
2 Entre os países que não se encontram em conflitos armados, derivados de guerras internacionais ou civis, incluindo conflitos com milícias, o Brasil é aquele que regista um maior número de homicídios (cfr. relatório da ONU, acessível em
https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/272596/9789241565585-eng.pdf?ua=1&ua=1).
3 Segundo dados de 2019, ocorreram até maio daquele ano, 17,9 mil mortes violentas (cfr. https://g1.globo.com/monitor-da-violencia/noticia/2019/07/13/em-cinco-meses-brasil-registra-179-mil-mortes-violentas-queda-e-de-22percent-em-relacao-ao-ano-passado.ghtml). Em 2018 ocorreram naquele país 51 589 homicídios
(cfr. https://g1.globo.com/monitor-da-violencia/noticia/2019/02/27/queda-no-no-de-assassinatos-em-2018-e-a-maior-dos-ultimos-11-anos-da-serie-historica-do-fbsp.ghtml).

19.º Em especial, refira-se que o Estado de São Paulo, onde residia a Autora, é o Estado com maior número de assassinatos 4.
4 Em 2018, 33,1% dos homicídios cometidos no Brasil ocorreu no Estado de São Paulo
(cfr. https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2019/09/10/1-em-cada-3-assassinatos-ocorridos-na-cidade-de-sp-foi-praticado-por-policiais-diz-anuario.ghtml).

20.º Neste Estado de São Paulo, muitos dos homicídios são praticados pela própria polícia (11% em 2018)5.
5 Cfr. https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2019/09/10/1-em-cada-3-assassinatos-ocorridos-na-cidade-de-sp-foi-praticado-por-policiais-diz-anuario.ghtml.

Ora:
A matéria factual vertida nos artigos 8º, 9º e 10º supra transcritos está contida no facto descrito sob a alínea c) da “Fundamentação de Facto” da sentença recorrida. Trata-se, na verdade, da reprodução das declarações prestadas pela A. em 16.03.2020 no Gabinete de Asilo e Refugiados do SEF.
O que foi alegado nos artigos 12º, 13º, 14º, 15º, 16º e 17º da petição inicial não consubstancia qualquer facto. Trata-se de matéria conclusiva e de direito e, portanto, insuscetível de prova.
Como bem evidenciado na sentença recorrida, a restante matéria de facto alegada (a que não foi elencada na fundamentação de facto) respeita a “meros juízos conclusivos, de valor ou considerações de direito” que não são “suscetíveis de ser objeto de juízo probatório (pese embora a sua pertinência no respetivo articulado)”.

O facto do irmão da A ter sido assassinado e dos autores do crime estarem em liberdade e procurarem vingança não tinha, efetivamente, relevância, para a decisão da causa.
Nos termos do artº 3º, nº 1, da Lei nº 27/2008, de 30 de Junho, é garantido o direito de asilo aos estrangeiros e aos apátridas perseguidos ou gravemente ameaçados de perseguição, em consequência de actividade exercida no Estado da sua nacionalidade ou da sua residência habitual em favor da democracia, da libertação social e nacional, da paz entre os povos, da liberdade e dos direitos da pessoa humana.
Têm ainda direito à concessão de asilo os estrangeiros e os apátridas que, receando com fundamento ser perseguidos em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, opiniões políticas ou integração em certo grupo social, não possa ou, por esse receio, não queiram voltar ao Estado da sua nacionalidade ou da sua residência habitual (n.º 2 do mesmo preceito legal).
Nos termos do art.º 5º, n.º 1 da Lei n.º 27/2008, de 30 de junho, para efeitos do artigo 3.º, os atos de perseguição suscetíveis de fundamentar o direito de asilo devem constituir, pela sua natureza ou reiteração, grave violação de direitos fundamentais, ou traduzir-se num conjunto de medidas que, pelo seu cúmulo, natureza ou repetição, afetem o estrangeiro ou apátrida de forma semelhante à que resulta de uma grave violação de direitos fundamentais.
Tais atos de perseguição podem, nomeadamente, assumir as seguintes formas: (n.º 2 do mesmo preceito legal)
a) Atos de violência física ou mental, inclusive de natureza sexual;
b) Medidas legais, administrativas, policiais ou judiciais, quando forem discriminatórias ou aplicadas de forma discriminatória;
c) Ações judiciais ou sanções desproporcionadas ou discriminatórias;
d) Recusa de acesso a recurso judicial que se traduza em sanção desproporcionada ou discriminatória;
e) Ações judiciais ou sanções por recusa de cumprir o serviço militar numa situação de conflito na qual o cumprimento do serviço militar implicasse a prática de crime ou ato suscetível de provocar a exclusão do estatuto de refugiado, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 9.º;
f) Atos cometidos especificamente em razão do género ou contra menores.
Nos termos do art.º 7º do mesmo diploma legal: “É concedida autorização de residência por proteção subsidiária aos estrangeiros e aos apátridas a quem não sejam aplicáveis as disposições do artigo 3.º e que sejam impedidos ou se sintam impossibilitados de regressar ao país da sua nacionalidade ou da sua residência habitual, quer atendendo à sistemática violação dos direitos humanos que aí se verifique, quer por correrem o risco de sofrer ofensa grave (n.º 1).
Nos termos do n.º 2 “para efeitos do número anterior, considera-se ofensa grave, nomeadamente: a) A pena de morte ou execução; b) A tortura ou pena ou tratamento desumano ou degradante do requerente no seu País de origem; ou c) A ameaça grave contra a vida ou a integridade física do requerente, resultante de violência indiscriminada em situações de conflito armado internacional ou interno ou de violação generalizada e indiscriminada de direitos humanos.
Em face deste quadro normativo, era inequívoco que a A. não teria direito a asilo nem proteção subsidiária por ser perseguida, no Brasil, por pessoas indeterminada que assassinaram o seu irmão e que procuram vingança.
Não interessa, por isso, apurar se tal alegação é verdadeira ou falsa.
Essa factualidade não era, efetivamente, relevante para o exame e discussão da causa, a sua prova em nada alteraria o sentido da decisão e, por isso, não se impunha a sua inclusão na matéria de facto provada (considerando a confissão decorrente da falta de contestação, nos termos dos art.ºs 83º, n.º 4 a contrario do CPTA e 567º, n.º 1 do CPC) e, muito menos qualquer atividade instrutória sobre a mesma (designadamente a requerida prestação de declarações de parte), a qual aliás era vedada por força do art.º 130º do CPC.
Foi, por isso, também acertado o juízo ínsito no despacho recorrido no sentido da irrelevância da factualidade vertida no artigo 11º da petição inicial.

A A. não fundou a sua pretensão no facto do Brasil ser um país perigoso, atenta a sua taxa de criminalidade mas no receio de ser assassinada por motivos de vingança relacionados com o homicídio do seu irmão.
Carecia, portanto, de fundamento a produção de prova sobre a factualidade vertida nos artigos 18º, 19º e 20º da petição inicial.

Em suma, o Tribunal a quo selecionou devidamente a matéria de facto relevante para a decisão da causa, não tendo omitido qualquer ato suscetível de gerar a nulidade do despacho em questão (nos termos do art.º 195º, n.º 1 do CPC), sendo acertado o seu juízo ao considerar desnecessária produção de prova.
Improcedendo, portanto, o recurso, nesta parte.

2. Do Recurso da Sentença:
Entende o Recorrente que “a sentença recorrida incorreu num erro de julgamento da matéria de Direito, porquanto não considerou que, com base nos elementos do processo, à Recorrente devia ter sido concedido asilo ou, pelo menos, proteção subsidiária, nos termos, respetivamente, dos artigos 3.º e 7.º da Lei do Asilo – nos termos da instrução a realizar na sequência da admissão a essa fase da Recorrente”.
Mais considera que “como anteriormente se referiu, a factualidade e argumentos jurídicos invocados pela Recorrente, deveria ter levado o douto Tribunal a quo a concluir que, em face da factualidade exposta – não considerada como não provada pelo Tribunal a quo – deveria culminar na concessão de apoio internacional à Recorrente”.
Este fundamento de recurso tinha por pressuposto o reconhecimento de um défice instrutório que, como vimos supra, não se reconhece.
Reitera-se que a factualidade que a A. alegou e que não foi selecionada pelo Tribunal a quo não era efetivamente matéria relevante para a decisão da causa.
Em primeiro lugar porque o que interessava apurar era se, em face das declarações prestadas no procedimento administrativo, o R. errou ao decidir que não estavam preenchidos os pressupostos da proteção internacional requerida.
Em segundo lugar porque a factualidade em causa (isto é, o facto do irmão da A. ter sido efetivamente assassinado e dos autores do crime estarem em liberdade e procurarem vingança conjugado com a elevada taxa de criminalidade do Brasil), não teria a virtualidade de alterar a decisão em análise já que nem o Brasil é um país onde existe uma violação generalizada e indiscriminada de direitos humanos nem a situação relatada consubstancia um risco efetivo da A. vir a sofrer ofensa grave.
A A. não reúne as condições para a concessão de asilo já que, como bem decidiu o Tribunal a quo, não foi demonstrada (nem alegada) qualquer situação de perseguição ou grave ameaça de perseguição em consequência de atividade exercida no Estado da sua nacionalidade ou da sua residência habitual em favor da democracia, da libertação social e nacional, da paz entre os povos, da liberdade e dos direitos da pessoa humana (art.º 3º, n.º 1 da Lei n.º 27/2008, de 30 de junho) ou fundando receio de perseguição em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, opiniões políticas ou integração em certo grupo social (n.º 2 do mesmo preceito legal).
Questionada sobre as razões que a levaram a deixar a RDC e depois o Brasil e a solicitar proteção internacional, a A. referiu que em 2017 saiu da RDC e foi viver para o Brasil com o seu irmão, “para não estar a viver em casa de amigas”. No que concerne aos motivos que a levaram a sair do Brasil referiu que o seu irmão casou com uma cidadã brasileira que tinha muitos ciúmes seus, porque pensava que a A. era a mulher dele no Congo. Foi avisada por uma amiga do irmão para ser prudente, porque a mulher do seu irmão tinha um plano para lhe fazer mal. Referiu ainda que o seu irmão desapareceu e foi à polícia apresentar queixa. A polícia fez a investigação e a mulher do irmão confessou que tinha enviado pessoas para o matar. Apresentou como motivo para o crime o facto de ele ter casado com outra mulher, a A.. A mulher do irmão foi presa e depois libertada por não haver provas do crime.
Estas declarações não refletem também qualquer situação de sistemática violação de direitos humanos ou de risco de ofensa grave – designadamente numa situação de conflito armado ou violação generalizada indiscriminada de direitos humanos suscetível de fundamentar o direito a proteção subsidiária prevista no art.º 7º da Lei n.º 27/2008, de 30/06.
Em suma, a motivação da A. para sair da RDC foi um pedido do seu irmão para se juntar a si no Brasil e a motivação para deixar o Brasil foi o receio de que a mulher do seu irmão a assassinasse. Tratam-se inequivocamente de questões não pertinentes para a análise do cumprimento das condições para ser considerado refugiado ou pessoa elegível para proteção subsidiária.
Assim sendo, a decisão do SEF no sentido de considerar o seu pedido infundado nos termos do art.º 19º, n.º 1, al. e) da Lei n.º 27/2008, de 30 de junho foi acertada, não tendo o Tribunal a quo, que nesse sentido decidiu, incorrido em qualquer erro de julgamento,
*
Concluindo, improcedem todos fundamentos do recurso, impondo-se a manutenção da sentença recorrida.

*
O processo está isento de custas, nos termos do artigo 84º da Lei n.º 27/2008, de 30/06.
*
*
V – Decisão:
Nestes termos, acordam, em conferência, as Juízas da Secção de Contencioso Administrativo deste Tribunal, em negar provimento ao recurso, mantendo a sentença recorrida.

Sem custas.


Lisboa, 12 de novembro de 2020


Catarina Vasconcelos

Ana Celeste Carvalho (em substituição)

Catarina Jarmela

Nos termos e para os efeitos do artigo 15º-A do DL nº10-A/2020, de 13.03, a Relatora atesta que as Juízas Adjuntas - Excelentíssimas Senhoras Juízas Desembargadoras Ana Celeste Carvalho (em substituição do Juiz Desembargador Paulo Gouveia, ausente ao serviço) e Catarina Jarmela - têm voto de conformidade.