Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:03302/09
Secção:CT - 2.º JUÍZO
Data do Acordão:02/09/2010
Relator:EUGÉNIO SEQUEIRA
Descritores:RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
IRC
CRÉDITOS À SEGURANÇA SOCIAL
PRIVILÉGIO IMOBILIÁRIO
Sumário:1. Em sede de IRC, o privilégio imobiliário de que goza, actualmente, afere-se pelo ano a que respeita que não pelo ano da sua liquidação e do seu pagamento voluntário, e pela data em que ocorreu a penhora, detendo tal privilégio no ano corrente ao da penhora e nos dois anos anteriores;
2. O privilégio imobiliário é sempre especial, é oponível a terceiro, e na graduação, prefere ao crédito garantido pela hipoteca;
3. Tendo o Tribunal Constitucional pelo seu acórdão n.º 363/02, declarada a inconstitucionalidade da norma que concedia aos créditos da segurança social um privilégio imobiliário (especial) com a graduação dos seus créditos à frente da hipoteca, por violação do princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito democrático, não pode a mesma, naquela interpretação, ser aplicada pelos tribunais.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Tributário (2.ª Secção) do Tribunal Central Administrativo Sul:


A. O Relatório.
1. Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do Nordeste Alentejano, CRL, identificada nos autos, dizendo-se inconformada com a sentença proferida pelo M. Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de Castelo Branco, que reconheceu e graduou os seus créditos atrás dos créditos reclamados pelo IGFSS, e os relativos a IRC e a imposto do selo, veio da mesma recorrer para este Tribunal formulando para tanto nas suas alegações as seguintes conclusões e que na íntegra se reproduzem:


1- Emerge o presente recurso da douta sentença de verificação e graduação de créditos proferida nos presentes autos, datada de 17.03.2009, que graduou (por reconhecidos} os créditos reclamados, em primeiro lugar, os créditos reclamados pela Fazenda Pública relativos ao IMI de 2006 e 2007 e juros, em segundo lugar o crédito reclamados pelo IGFSS, e juros, e os créditos exequendos relativos a IRC e Imposto do Selo, procedendo-se a rateio entre eles, se necessário, em terceiro lugar, os créditos reclamados pela CCAM do Nordeste Alentejano, CRL, em quarto lugar, os demais créditos exequendos que foram verificados, designadamente coimas fiscais e encargos processuais, procedendo-se a rateio entre eles, se necessário.
2- No âmbito dos autos de execução fiscal foi penhorada a fracção autónoma designada pela letra C do prédio urbano sito na freguesia da Sé, concelho de Portalegre, inscrito na matriz sob o artigo 4355 e descrito na CRP de Portalegre sob o n.º 1034,
3- Sobre a qual existe uma hipoteca constituída a favor da ora recorrente para garantia de pagamento do crédito por esta reclamado, devidamente registada pela inscrição C - Ap. 3 de 2005/12/29, com o montante máximo assegurado de € 69.250,00
4- E ainda uma penhora inscrita a favor do IGFSS, I.P., registada pela inscrição F- Ap. 9 de 2008/01/23.
5- Quanto aos créditos reclamados pelo IGFSS, por dívidas de contribuições, cotizações e juros à Segurança Social, gozam de privilégio imobiliário e mobiliário geral (cfr. art. 10 e 11 do Dl 103/80, de 09/05) a que acresce a garantia real conferida pela penhora registada a seu favor pela inscrição F - Ap. 9 de 2008/01/23 (cfr. art 822.º, n.º 1 CC).
6- Os créditos exequendos relativos a IRC e Imposto do Selo, gozam de privilégio imobiliário e mobiliário geral (cfr. artsº. 108 CIRC, 47.º CIS, 747.º e 748.º CC).
7- O crédito reclamado pela ora recorrente, encontra-se garantido pela hipoteca acima referenciada.
8- A hipoteca consiste num direito real de garantia que confere ao respectivo titular o direito de realizar, à custa da coisa sobre que incide, o valor de certo crédito, com preferência sobre os demais credores que não disponham de garantia anterior ou prevalente sobre a coisa certa e determinada (cfr. artigos 686°, nº1, e 604°, nº2, ambos do Código Civil).
9- Mais confere ao credor o direito de ser pago pelo valor do imóvel hipotecado com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo; de igual garantia beneficiam os acessórios do crédito que constem do registo, abrangendo juros relativos a três anos (art. 693.º do Código Civil).
10- O crédito da ora recorrente prefere sobre os créditos reclamados pelo IGFSS, e juros, e os créditos exequendos relativos a IRC e Imposto do Selo.
11- Ao graduar o crédito da recorrente em terceiro lugar, ou seja, sem ter em conta o privilégio imobiliário e a prioridade do registo que resulta da hipoteca sobre o bem penhorado constituída a seu favor e registada em 29/12/2005, a douta sentença recorrida violou, por interpretação e aplicação, o disposto nos artigos 604.º n.º 2, 686.º, 687.º, 710°, 733.º, 735.º, 747.º, 748.º, 822.º n.º 1 , 832.º e 868.º todos do Código Civil, arts.º 108 CIRC, 47.º CIS, e art. 10.º e 11.º do Dl l03/80, de 09/05.

Nestes termos e nos mais de direito que V. Exas. doutamente suprirão, concedendo provimento ao presente recurso, deve ser revogada a sentença recorrida na parte em que graduou os créditos reclamados à frente da quantia exequenda, e, alterando tal graduação, deve ser determinado que, após as custas da execução, sejam pagos (pelo produto do bem penhorado) os créditos provenientes de IMI, em seguida o crédito reclamado pela Caixa de Crédito Agrícola do Nordeste Alentejano, CRL e só depois os demais créditos e demais quantia exequenda.
Com o que se fará, Justiça.


Foi admitido o recurso para subir imediatamente, nos próprios autos e no efeito meramente devolutivo.


A Exma Representante do Ministério Público (RMP), junto deste Tribunal, no seu parecer, pronuncia-se por ser concedido provimento ao recurso, por o crédito da recorrente garantido por hipoteca preferir aos créditos do IGFSS, de IMI e de imposto do selo.


Foram colhidos os vistos dos Exmos Adjuntos.


B. A fundamentação.
2. A questão decidenda. A única questão a decidir consiste em saber se os créditos relativos a quotizações a favor do IGFSS, a IRC e a imposto do selo, devem ser graduados atrás do crédito garantido por hipoteca.


3. A matéria de facto.
Em sede de probatório o M. Juiz do Tribunal “a quo” fixou a seguinte factualidade, a qual igualmente na íntegra se reproduz, subordinando-a às seguintes alíneas:
A) A execução corre por dívidas de IRC de 2006, IMI de 2006 e 2007, Imposto de Selo e coimas fiscais de diversos anos anteriores e seus encargos processuais sendo o valor 6.716,73 €.
B) A penhora data de 7 de Abril de 2008, incidindo sobre o seguinte imóvel: fracção C do prédio urbano sito na freguesia da Sé, concelho de Portalegre, inscrito na matriz sob o art. 4355 e descrito na CRP de Portalegre sob o n° 1034, já identificado supra e sobre o qual incidem uma hipoteca e uma penhora.


4. Para graduar os créditos reclamado e exequentes da forma em que o fez, considerou o M. Juiz do Tribunal “a quo”, em síntese, que o IRC do ano de 2006 beneficia do privilégio imobiliário geral, bem como o IMI relativo ao prédio vendido e dos anos de 2006 e de 2007 e ainda, os créditos relativos a quotizações à Segurança Social, e que a hipoteca confere ao credor o direito de ser pago com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo.

Para a recorrente de acordo com a matéria das conclusões das alegações do recurso e que delimitam o seu objecto, veio insurgir-se contra esta ordem de graduação na medida em que pretende que o seu crédito garantido pela hipoteca deve ser graduado à frente dos créditos do IGFSS e dos créditos exequendos relativos a IRC e a imposto de selo.

Vejamos então.
Ao tempo em que foi elaborado e entrou em vigor o Código Civil, na realidade, o ano da inscrição para cobrança da contribuição ou do imposto, é que constituía o quid relevante para certo crédito gozar de privilégio mobiliário ou imobiliário, independentemente do ano a que dissesse respeito, conforme constam das suas normas dos art.ºs 736.º n.º1 e 744.º n.º1.

Regime que estava de acordo com o regime de cobrança dos impostos de então: virtual ou eventual, nos termos dos art.ºs 18.º e segs do Código de Processo das Contribuições e Impostos. E os impostos de então, como o imposto complementar, mandava aplicar quanto ao privilégio creditório de que gozava a Fazenda Nacional, o regime do art.º 736.º do Código Civil (seu art.º 55.º), bem como para igual norma do Código Civil remetia a norma do art.º 108.º do Código da Contribuição Industrial, quanto a igual privilégio, impostos que em todo o caso, apenas gozavam do privilégio mobiliário geral constante do mesmo Código Civil.

Porém, esse regime de cobrança foi alterado pela entrada em vigor do Código de Processo Tributário, em 1.7.1991, e em geral, os impostos têm um prazo de pagamento voluntário, findo o qual começam a vencer juros de mora e é extraída certidão de dívida (art.ºs 107.º, 108.º, 109.º e 110.º deste CPT), tendo deixar de existir aqueles regimes de cobrança dos impostos previstos no CPCI.

O momento relevante para que certo imposto, como o IRC, no caso, beneficie do privilégio creditório passou o ser o do ano a que o mesmo respeita, independentemente do ano em que seja liquidado e ocorra o respectivo prazo de pagamento voluntário, como resulta da norma da norma do art.º 108.º do CIRC (anterior art.º 93.º do mesmo Código), que já nenhuma referência faz ao anterior regime de cobrança, a qual sob a epígrafe Privilégios creditórios, dispõe:

Para pagamento do IRC relativo aos três últimos anos, a Fazenda Pública goza de privilégio mobiliário geral e privilégio imobiliário sobre os bens existentes no património do sujeito passivo à data da penhora ou outro acto equivalente.

Nos termos do disposto no art.º 686.º do Código Civil (CC), a hipoteca confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis, ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo.

Nos termos do disposto no art.º 733.º do mesmo CC, privilégio creditório é a faculdade que a lei, em atenção à causa do crédito , concede a certos credores, independentemente do registo, de serem pagos com preferência a outros.

E do art.º 735.º, são de duas espécies os privilégios creditórios: mobiliários e imobiliários (seu n.º1), e os privilégios imobiliários são sempre especiais (seu n.º3).

Por sua vez a norma do art.º 751.º do mesmo CC, na redacção introduzida pelo Dec-Lei n.º 38/2003, de 8 de Março dispõe que os privilégios imobiliários especiais são oponíveis a terceiros que adquiram o prédio ou um direito real sobre ele e preferem à consignação de rendimentos, à hipoteca ou ao direito de retenção, ainda que estas sejam anteriores.

Assim nos termos do disposto nas normas anteriores, por força das quais o IRC em causa, relativo ao ano de 2006, porque relativo ao 2.º ano anterior ao da data da penhora, goza de privilégio imobiliário, que é sempre especial (n.º3 do art.º 735.º do CC), desta forma, nos termos do disposto nos art.ºs 686.º n.º1 e 751.º do mesmo CC, na graduação prefere à hipoteca, ou seja, vem graduado à sua frente, contrariamente ao invocado e pretendido pela recorrente, que nesta parte o seu recurso não logra provimento.

O mesmo, porém, já não acontece com o imposto do selo exequendo, o qual, nos termos do disposto no art.º 47.º do Código do imposto do Selo (redacção do Dec-Lei n.º 287/2003, de 12 de Novembro), o qual apenas goza de privilégio mobiliário e imobiliário quanto ao devido pelas aquisições dos bens aquando da venda desses bens transmitidos, pelo que apenas será graduado como crédito exequendo e por força da penhora sobre tal bem imóvel inscrita.

Também o mesmo não acontece com os créditos reclamados e relativos a quotizações e respectivos juros do IGFSS que, embora, nos termos do disposto no art.º 11.º do Dec-Lei n.º 103/80, de 9 de Maio, a lei lhes atribua privilégio imobiliário sobre os bens imóveis existentes no património das entidades patronais à data do processo executivo, a que, assim, se aplicaria também o regime supra, esta interpretação desta norma do art.º 11.º conjugada com a do citado art.º 751.º do CC, nesta dimensão seria inconstitucional, por violação do princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito democrático, consagrado no art.º 2.º da CRP, conforme foi já declarado pelo tribunal Constitucional pelo seu acórdão n.º 363/02, de 17/9/2002, pelo que a mesma não pode ser sufragada por este Tribunal nos termos do disposto nos art.ºs 282.º da CRP, 2.º e 66.º da Lei do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro) e art.º 1.º, n.º2, do ETAF.

Assim, procede o recurso nesta parte, na medida em que tais créditos relativos a imposto do selo e a quotizações a favor do IGFSS, aquele sem privilégio imobiliário e estes, para além do citado privilégio que não pode ser atendido nos termos supra, apenas beneficia de uma penhora, mas de data muito posterior à data em que a ora recorrente fez registar tal hipoteca a seu favor (penhora de 18.1.2008 e registo da hipoteca de 29.12.2005), pelo que seu crédito não goza de privilégio especial e nem de prioridade de registo, não podendo ser graduado à frente da hipoteca nos termos do disposto nos art.ºs 686.º e 751.º do CC.


Nestes termos, é de conceder parcial provimento ao recurso e em sua conformidade graduar os créditos da seguinte forma:

1.º - Os créditos reclamados pela Fazenda Pública relativos ao IMI de 2006 e de 2007 e juros;
2.º - Os créditos exequendos relativos a IRC;
3.º - Os créditos reclamados pela CCAM do Nordeste Alentejano, CRL, e juros;
4.º - O crédito reclamado pelo IGFSS e juros;
5.º - Os demais créditos exequendos que foram verificados, designadamente o imposto do selo e coimas fiscais e encargos processuais.


C. DECISÃO.
Nestes termos, acorda-se, em conceder parcial provimento ao recurso e em ordenar a graduação nos termos supra referidos.


Custas pela recorrente, na medida do decaimento.


Lisboa, 09/02/2010

EUGÉNIO SEQUEIRA
ROGÉRIO MARTINS
LUCAS MARTINS