Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:596/17.8BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:01/24/2019
Relator:SOFIA DAVID
Descritores:REVOGAÇÃO OU CADUCIDADE DA PROVIDÊNCIA CAUTELAR DECRETADA
ACTO DE LICENCIAMENTO
DEMOLIÇÃO DO EDIFICADO
INTERESSES URBANÍSTICOS
Sumário:I – Determinada a suspensão de eficácia de um acto de licenciamento municipal de uma obra de construção, fundada na muito provável nulidade desse acto - por permitir a demolição do edifício existente sem respeito pelo art.º 45.º, n.º 1, al. e), do Regulamento do Plano Director Municipal (RPDM), por ser muito provável a violação dos arts.º 26.º, n.ºs. 1, al. a), ii) e 8 e 29.º, n.º 1, als. a) e b), do RPDM de Lisboa, por a operação urbanística em apreço não ter sido precedida de vistoria, de parecer patrimonial e de um estudo de caracterização histórica, construtiva, arquitectónica que justificasse a adequação da intervenção proposta e, ainda, por ser provável a violação do art.º 29.º, n.º 9, do RPDM - a demolição do edificado existente na pendência dos autos não altera os pressupostos de facto e de direito em que se alicerçou a decisão;
II- Ainda que o edifício existente tenha sido demolido, por força do preceituado nos art.ºs 26.º, n.º 2, 27.º, n.ºs. 1 a 7, 28.º, n.º 1, 29.º, 30.º, e ponto 22.10 do Anexo III do RPDM de Lisboa, da eventual declaração de nulidade do acto de licenciamento poderá resultar a obrigação de se alterar o projecto apresentado, com a reconstrução, total ou parcial, do edificado pré-existente, por forma a respeitar-se os citados preceitos legais;
III- Assim, a alteração fáctica que decorre da demolição do edificado, verificada na pendência dos autos, não altera os pressupostos em que se fundou a decisão cautelar quando apreciou o fumus boni iuris;
IV - Porém, aquela mesma demolição já releva para a apreciação do critério periculum in mora, constituindo, efectivamente, uma alteração nos pressupostos de facto em que se fundou a decisão, porquanto, entre os danos que se quis evitar com o decretamento da providência incluíam-se os advenientes de uma possível demolição do edificado e a impossibilidade de se reerguer tal edifício, nos seus precisos termos, caso a causa principal obtivesse vencimento;
V - No entanto, porque aquele prejuízo não era o único que se queria salvaguardar, pretendendo-se igualmente garantir a não ocorrência dos prejuízos que decorriam da “dificuldade na reconstituição da situação anterior”, que “também derivará da muito provável execução da obra conforme o projecto aprovado”, ainda que demolido o edifício pré-existente, manter-se-á verificado o periculum in mora necessário para a manutenção da providência cautelar que foi decretada;
VI- Se a obra prosseguir conforme o projecto aprovado, vindo a declarar-se a nulidade do correspondente licenciamento, a reposição da legalidade tornar-se-á um facto muito mais oneroso para todos os intervenientes no litígio.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:I - RELATÓRIO
G..., Lda e o Município de Lisboa, vêm apresentar recurso da sentença que julgou improcedente o pedido de revogação ou de caducidade da providência decretada.
Em alegações são formuladas pelo Recorrente G..., as seguintes conclusões:”

(“texto integral no original; imagem”)

”.
A Associação P….. nas contra-alegações formulou as seguintes conclusões:”

(“texto integral no original; imagem”)

“.
O Recorrido Município não contra alegou.
No seu recurso, o Recorrido Município formulou as seguintes conclusões: “A. Por sentença proferida nos autos em 19/10/2018 foi julgado improcedente o pedido de revogação da providência cautelar decretada, em recurso, por este mesmo Tribunal Central Administrativo Sul, mediante acórdão prolatado em 28/06/2018.
B. Para tanto, e em síntese, foi entendido na decisão sob recurso, que a demolição superveniente do edifício objecto do acto de licenciamento suspendendo, sito na Praça…., , não configura uma alteração dos pressupostos de facto suficiente para determinar a declaração da caducidade ou a revogação da providência cautelar suspensiva da eficácia decretada.
C. Isto porque, no douto entender da Mm.ª de primeira instância, ainda que da fundamentação do aresto de 28/06/2018 pudesse resultar a ideia de que o decretamento da providência visou, essencialmente, obstar à demolição do edifício existente, o que ali se decidiu foi suspender o acto de licenciamento da obra de construção do novo edifício projectado para o local, sem que se tivesse circunscrito tal suspensão aos trabalhos de demolição do edifício.
D. A Entidade Requerida, ora Recorrente, não pode conformar-se com tal decisão, porquanto entende que a mesma enferma de erro de julgamento, por ter sido feita errada interpretação dos fundamentos do acórdão de 28/06/2018, que decretou a providência, bem como errada aplicação do disposto no art. 124.º, n.º 1, do CPTA.
E. Conforme transparece da fundamentação do referido aresto de 28/06/2018, o mesmo assentou em duas ordens de fundamentos:
F. Em primeiro lugar, e no que à demolição do referido edifício respeita, foi entendido neste aresto ser manifesta a violação pelo despacho suspendendo de 07/09/2015, do disposto nos artigos 26.º, n.ºs 1, alínea a), ii) e 8 e 29.º, nº 1, alíneas a) e b) do RPDM de Lisboa, que proíbem a demolição do existente na área em que se localiza o prédio dos autos.
G. Tendo-se inclusivamente, neste aresto, considerado em sede de verificação do periculum in mora, que “(…) resulta evidente que sendo recusada a providência, por certo seguir-se-á a demolição do imóvel existente, sendo depois muito difícil a reconstituição da situação de facto, no caso de o processo principal vir a ser julgado procedente.”
H. Em segundo lugar, quando da ponderação dos interesses públicos e privados em confronto, foi decidido neste acórdão que “ (…) ter-se-ão de considerar superiores os interesses de reabilitação dos valores arquitectónicos, urbanísticos e culturais pela manutenção – através da reabilitação e recuperação do património existente.”
I. Ora, conforme alegado pela Contra-interessada e pela ora Recorrente nos seus pedidos de revogação da providência decretada, o edifício cuja preservação ali se entendeu justificar o deferimento da mesma foi demolido na pendência daquele recurso.
J. Facto superveniente que, independentemente da extensão dos efeitos da providência decretada, alterou, de forma materialmente determinante, as circunstâncias de facto em que se fundou o seu decretamento.
K. Assim o evidencia o facto de o preenchimento do requisito do periculum in mora, dado como verificado no acórdão proferido em 28/06/2018, se ter alicerçado nos prejuízos graves e dificilmente reparáveis decorrentes da demolição do edifício.
L. E assim o denota o facto de ali se ter dado por indiciada uma situação de evidente violação da proibição legal de demolir, decorrente do disposto nos artigos 45.º, nº 1, alínea e) e 26.º, n.º 1, alínea a), ii) e 8 e 29.º, nº 1, alíneas a) e b) do RPDM de Lisboa.
M. A isto acrescendo que uma vez sopesados os interesses públicos e privados em conflito, foram considerados prevalecentes os interesses consubstanciados na reabilitação dos valores arquitectónicos, urbanísticos e culturais por via da manutenção do edifício existente - juízo que, por efeito da demolição superveniente do edifício em questão, deixou de ter fundamento.
Deste modo, resulta inequívoco, que o circunstancialismo de facto na qual se estribou a decisão cautelar proferida em 28/06/2018 deixou, manifestamente, de se verificar, por efeito da demolição do edifício cuja conservação com ela se pretendia salvaguardar.
O. Donde, verificada que está essa alteração fáctica substantiva, o Tribunal a quo devia ter revogado a providência decretada, nos termos e com os efeitos previstos no art. 124.º do CPTA.
P. Ora, ao ter entendido que o decidido no acórdão em referência foi a suspensão de todo o acto de licenciamento da obra de construção do novo edifício projectado para o local, sem que se tenha circunscrito tal suspensão aos trabalhos de demolição, a Mm.ª Juiz a quo interpretou erradamente os fundamentos de facto que determinaram a concessão da providência, porquanto se limitou a considerar o acto objecto da providência concedida (o despacho que deferiu o licenciamento), sem interpretar a motivação de facto que a sustentou, à luz da factualidade supervenientemente trazida aos autos.
Q. Erro que, só por si, deve determinar a revogação da sentença sob recurso, e, em consequência, a sua substituição por outra que revogue a providência decretada.
R. Com efeito, atento o disposto no artigo 124.º, n.º 1, do CPTA, a decisão de adoptar uma providência cautelar pode ser revogada ou alterada, oficiosamente ou mediante requerimento, com fundamento em alteração dos pressupostos de facto e de direito inicialmente existentes.
S. Ora, conforme provado nos autos, os pressupostos de facto com base no qual este mesmo Tribunal Central Administrativo Sul decretou, em 28/06/2018, a providência cautelar em causa – o risco da demolição do edifício sito na P…, 10/14 e a sua potencial lesividade para os interesses comunitários defendidos pelas Recorridas, bem como a considerada prevalência do interesse da preservação do mesmo, por forma a defender valores arquitectónicos, urbanísticos e culturais – deixaram de se verificar com a demolição superveniente daquele.
T. Tal circunstância alterou de forma determinante não só os pressupostos de facto que motivaram o decretamento da providência, como os próprios fundamentos de direito em que esta assentou, pois que, uma vez consumada a situação de perigosidade que se pretendia evitar com a providência e, por via dela, prejudicada a reclamada preservação dos valores arquitectónicos, urbanísticos e culturais em presença, deixaram também de se verificar os requisitos de que depende a concessão e, por maioria de razão, a manutenção da tutela cautelar constantes dos n.ºs 1 e 2 do art. 120.º do CPTA – nomeadamente, o periculum in mora e a invocada prevalência dos valores arquitectónicos, urbanísticos e culturais cuja preservação é reclamada pelas Requerentes/Recorridas.
U. Por conseguinte, ao decidir como decidiu, julgando que a execução dos trabalhos de demolição do edifício aí existente não configura uma alteração dos pressupostos de facto suficiente para determinar este tribunal a declarar a caducidade ou a revogar a mesma providência, a Mm.ª Juiz a quo fez também errada aplicação do disposto no art. 124.º, n.º 1, do CPTA, assim ferindo a sentença sob recurso de erro de julgamento.”

Não foram apresentadas contra-alegações ao recurso do Município.
O DMMP apresentou a pronúncia no sentido da improcedência do recurso.


II – FUNDAMENTAÇÃO
II.1 – OS FACTOS
Na decisão recorrida foram dados por provados os seguintes factos, factualidade não impugnada, que se mantém:
1. Em 7.9.2015 foi licenciado pela CML a construção de um (novo) edifício para fins habitacionais na P…, nºs 10 a 14;
2. Em 13.3.2017 foi instaurada a presente providência;
3. Em 8.2.2018 foi proferida sentença, julgando improcedente a providência requerida;
4. Da sentença que antecede as Requerentes interpuseram recurso de apelação com efeito meramente devolutivo;
5. Por Acórdão, de 28.6.2018, o TCAS concedeu provimento ao recurso e, em substituição, concedeu procedência à providência requerida e decretou “(…) a suspensão de eficácia do despacho do Vereador da CML, de 07.09.2015, de licenciamento municipal da obra de construção do edifício P…, nºs 10-14”, com os fundamentos de facto e de direito constantes do mesmo e que que aqui se dão por integralmente reproduzidos;
6. Na sequência de requerimento do Município de Lisboa, invocando a execução de trabalhos da obra licenciada, pedindo permissão para a realização de trabalhos destinados a acautelar a segurança de pessoas e bens no local, foi, designadamente, proferido despacho pela Exma. Sra. Juíza Desembargadora no sentido de não conhecer ou determinar oficiosamente nem a caducidade nem a revogação da medida decretada, nos seguintes termos: “Não obstante a indicada verificação do início de execução do acto suspendendo, com a demolição do actual edificado, porque se considera que o presente pedido de suspensão de eficácia do acto de licenciamento da obra de construção mantém utilidade relevante para os interesses que se venham a defender no processo principal – que irão muito para além da própria demolição do edifício – não se reconhecerá ou determinará, oficiosamente, nos termos dos art. 123.º, n.º 1, al. d), 3, 124.º, n.º 1 e 129.º do CPTA, nem a caducidade, nem a revogação da medida decretada.”;
7. Por requerimento dirigido aos “Exmos. Senhores Juízes Desembargadores” a contra-interessada G..., LDA. requereu a revogação ou a caducidade da providência decretada, ao abrigo do disposto no artigo 124º do CPTA, pelas razões expostas no mesmo;
8. A Sra. Juíza Desembargadora decidiu não conhecer do pedido que antecede por o acórdão ter transitado, pondo fim à instância de recurso, pelo que determinou a baixa dos autos e a notificação da Contra-interessada para corrigir o seu requerimento, dirigindo-o ao juiz da 1ª instância;
9. Recebidos os autos neste Tribunal, a contra-interessada G..., LDA. requereu a revogação ou a caducidade da providência decretada, ao abrigo do disposto no artigo 124º do CPTA, pelas razões expostas no mesmo.

II.2 - O DIREITO
As questões a decidir neste processo, tal como vêm delimitadas pelas alegações e contra-alegações de ambos os recursos e respectivas conclusões, são:
- aferir do erro decisório, porque com a demolição do edifício pré-existente alteraram-se os pressupostos de facto que motivaram a decisão cautelar e ainda porque no Acórdão prolatado não é feito qualquer reparo, em termos de violação de normas legais, ao edifício a construir, assim como, porque com a demolição operada os prejuízos que agora resultam para o Contra-interessado, com a manutenção da providência, são manifestamente superiores àqueles que resultam para o requerente da providência cautelar.
Nos presentes autos foi proferido Acórdão por este TCAS, que decretou a suspensão de eficácia do despacho do Vereador da Câmara Municipal de Lisboa (CML), de 07-09-2015, de licenciamento municipal da obra de construção do edifício P…, n.ºs 10-14.
Após a prolação do Acórdão, vieram o Município de Lisboa e o Contra-interessado particular invocar que o edifício que existia no local da construção foi, entretanto, demolido, pelo que deixaram de existir interesses urbanísticos, a salvaguardar.
Nessa sequência, é pedido pelo Município de Lisboa e pelo Contra-interessado particular que a providência decretada fosse revogada ou para que fosse decretada a sua caducidade.
Pela decisão ora recorrida é indeferido tal pedido, ali se indicando o seguinte: ”A Contra-interessada veio requerer a revogação da providência por entender que a fundamentação do acórdão que a decretou se centra na demolição do imóvel existente (referindo a violação indiciária/provável: da 1ª parte do artigo 45º, nº 1 alínea e) do RPDM – “Obras de demolição”; dos artigos 26º, nº 1, alínea a) ii) e nº 8, 29º, nºº1, alíneas a) e b) e nº 9 do RPDM, por a operação urbanística não ter sido precedida de vistoria, de parecer patrimonial e de um estudo de caracterização histórica, construtiva e arquitectónica que justificasse a intervenção proposta, ou seja, a demolição do edifício existente; dos artigos 26º, nº 2, 27º nºs 1 a 7, 28º nº1, 29º, 30º e ponto 22.10 do Anexo III do mesmo RPDM que direccionam para a conservação, restauro e reabilitação do imóvel e o projecto licenciado pressupor a demolição do existente), já que todos demais argumentos sobre o projecto aprovado não foram levados em linha de conta, não sendo efectuado nenhum reparo ao edifício a construir, nos termos previstos no acto de licenciamento, pelo que, tendo o imóvel sido demolido (por o recurso ter efeito meramente devolutivo e antes da prolação do acórdão em referência), verifica-se uma alteração dos pressupostos de facto inicialmente existentes, determinantes da aplicação do disposto no referido artigo 124º do CPTA.
A Entidade Requerida aderiu ao pedido formulado.
As Requerentes vieram defender a manutenção da providência decretada por, em síntese: a Sra. Juíza Desembargadora ter decidido não reconhecer nem a caducidade nem a revogação da medida cautelar, decisão que já transitou e da qual resulta que a presente providência mantém utilidade para os interesses que venham a defender na acção principal, que irão muito além da demolição do edifício; e por pretenderem impedir a construção de um novo edifício no local que, no seu entender, viola várias disposições do RPDM de Lisboa no que toca à protecção do conjunto urbanístico da P… enquanto bem que integra a “Carta Municipal do Património Edificado e Paisagístico”.
Ora, a Sra. Juíza Desembargadora, no despacho a que as Requerentes se referem, esclareceu, na falta de um pedido expresso para o efeito (porque o acórdão ainda não ter transitado em julgado), que não iria tomar a iniciativa (“oficiosamente”) de reconhecer ou determinar a caducidade ou a revogação da medida decretada, até porque considerou que a esta mantinha utilidade apesar do início dos trabalhos de execução.
Mas os despachos que proferiu depois demonstram que não entendeu encontrar-se precludido o direito de a parte interessada requerer a caducidade ou a revogação da providência decretada, a conhecer pelo juiz da 1ª instância por o acórdão ter transitado, pondo fim à instância de recurso.
Pelo que a questão agora em apreciação não foi decidida, nem se encontra condicionada pelo referido despacho da Sra. Juíza Desembargadora.
Já não se pode dizer o mesmo quanto ao dispositivo do acórdão proferido pelo TCAS (necessariamente depois de julgar preenchidos todos os critérios de decisão da providência, previstos no artigo 120º do CPTA).
Com efeito, do mesmo resulta que a providência decretada foi a “de suspensão de eficácia do despacho do Vereador da CML, de 07-09-2015, de licenciamento municipal da obra de construção do edifício P…, nºs 10-14” sem qualquer condição ou restrição (sublinhado meu).
Dito de outro modo, ainda que da respectiva fundamentação pudesse resultar, como alega a Contra-interessada, a ideia de que o decretamento da providência visou, essencialmente, obstar à demolição do edifício existente, privilegiando a sua conservação, restauro e reabilitação, foi decidido no acórdão, em referência, suspender todo o acto de licenciamento da obra de construção do novo edifício projectado para o local, sem o limitar, designadamente, aos necessários trabalhos de demolição.
Não tendo sido objecto de recurso, tal decisão transitou em julgado não cabendo à signatária, juíza da 1ª instância, interpretar a providência decretada de forma restritiva ou, neste caso, com um sentido que não se pode extrair da sua letra.
Com efeito, se todo o acto de licenciamento da obra de construção do novo edifício na P… nºs 10 a 14 se encontra suspenso, por efeito do decretamento da providência pelo TCAS (desde a data da sua prolação), a execução dos trabalhos de demolição do edifício aí existente não configura uma alteração dos pressupostos de facto suficiente para determinar este tribunal a declarar a caducidade ou a revogar a mesma providência.”
Na verdade, no Acórdão proferido por este TCAS foi determinada a suspensão de eficácia do despacho do Vereador da CML, de 07-09-2015, de licenciamento municipal da obra de construção do edifício P…., n.ºs 10-14, algo diferente e mais abrangente que a operação de demolição.
Mais se indique, que nos autos nunca esteve em causa um pedido de suspensão de qualquer acto de demolição, pois tal acto não terá sido determinado pelo Município de Lisboa. Diversamente, o que vinha impugnado nos autos era o acto de licenciamento de uma construção nova, que previa identicamente a demolição da construção existente.
A factualidade que sustentava a providência cautelar baseava-se na existência de um licenciamento, que se invocava padecer de ilegalidades várias, entre elas, a decorrente da permissão de demolição do edifício existente, sem respeito pelo art.º 45.º, n.º 1, al. e), do Regulamento do Plano Director Municipal (RPDM), porquanto tal edifício integraria o conjunto de elementos – o jardim Fialho de Almeida e os edifícios circundantes à P…– que eram protegidos pela Carta Municipal do Património Edificado e Paisagístico (Carta), sendo, nessa mesma medida, um elemento com interesse urbanístico, arquitectónico ou cultural.
Quer isto dizer, que os autos se reportavam à ilegalidade de um acto de licenciamento, por permitir a demolição de um edifício que estava protegido pela Carta como um conjunto edificado e por violar a 1.ª parte do art.º 45.º, n.º 1, al. e), do RPDM.
Ora, tal ilegalidade não se altera pela circunstância de o edifício em questão ter sido efectivamente demolido na pendência destes autos. Ou seja, mantém-se a probabilidade séria da procedência da causa principal, por o acto impugnado poder padecer de uma invalidade, que conduzirá à sua nulidade (cf. art.º 68.º, al. a), do Regime Jurídico da Reabilitação Urbana - RJUE).
Da mesma forma, na decisão cautelar entendeu-se “como sendo muito provável a violação dos arts.º 26.º, n.ºs. 1, al. a), ii) e 8 e 29.º, n.º 1, als. a) e b), do RPDM de Lisboa, por a operação urbanística em apreço não ter sido precedida de vistoria, de parecer patrimonial e de um estudo de caracterização histórica, construtiva, arquitectónica que justificasse a adequação da intervenção proposta “. Por estas razões, entendeu-se ser muito provável a nulidade do acto de licenciamento (cf. art.º 68.º, al. a), do RJUE).
Naquela decisão, diz-se, também, “que face aos factos indiciariamente provados nos autos, deverá, ainda, considerar-se violado o n.º 9 do citado art.º 29.º do RPDM, quando determina a divulgação pela CML, “na sequência dos estudos que forem sendo realizados, fichas técnicas de caracterização dos bens referidos no número anterior e identificar valores a salvaguardar e graus de intervenção de que os mesmos podem ser objeto à luz das normas estabelecidas no presente Regulamento”.
Portanto, a factualidade que fundava a provável ilegalidade do acto de licenciamento nada se altera com a demolição do edificado, pois essa mesma demolição não tem a virtualidade de tornar válido o acto praticado pelo Município de Lisboa, mas apenas pode agravar as consequências fácticas e jurídicas de uma eventual ilicitude na conduta daquele Município.
Ademais, como se fez notar na decisão cautelar que decretou a suspensão de eficácia do acto de licenciamento, da interpretação conjugada dos art.ºs 26.º, n.º 2, 27.º, n.ºs. 1 a 7, 28.º, n.º 1, 29.º, 30.º, e ponto 22.10 do Anexo III do RPDM de Lisboa, resulta “que em quaisquer intervenções que ocorram no conjunto edificado da Jardim Fialho de Almeida/P… se deva privilegiar a sua “conservação e valorização, a longo prazo, de forma assegurar a sua identidade e a evitar a sua destruição, descaracterização ou deterioração”, obrigando-se os promotores de quaisquer projectos a respeitar as actuais características morfológicas, estruturais e arquitectónicas substanciais, numa lógica de aplicação de um “critério de autenticidade”, que reconheça a “cada época de construção”, nomeadamente respeitando “quer a morfologia e as estruturas urbanas na sua interligação com o território envolvente, quer as características arquitetónicas substanciais dos imóveis que contribuem para a continuidade urbana, incluindo a morfologia, a volumetria, a altura das fachadas, o cromatismo e os revestimentos”. Tal respeito visará “a preservação da identidade cultural e histórica da cidade, assente numa lógica de conservação não apenas de bens isolados da Carta Municipal do Património, mas também dos edifícios de acompanhamento que com eles compõem uma unidade urbana”. Nessa senda, os n.ºs. 5 e 6 do art.º 27.º do RPDM exigem que o “critério de autenticidade” - que obrigará a manter-se o (actual) reconhecimento da construção de cada época – se aplique não apenas aos exteriores, como ainda aos “espaços interiores, tanto em áreas comuns, como em áreas privadas” e que “a adaptação a novas funcionalidades deverá ter em conta o significado histórico do imóvel ou do conjunto, o estudo estrutural do edificado, a compatibilização de materiais e a utilização de uma linguagem arquitetónica que promova a harmonização com a envolvente.
Essencialmente, através dos supra indicados preceitos, o legislador aceitou que na lista de imóveis inclusos na Carta as respectivas intervenções se direccionem para a conservação, restauro ou reabilitação – com a salvaguarda das características substanciais e a identidade e autenticidade do edificado - ficando as obras de alteração e ampliação condicionadas àqueles primeiros objectivos.
Ainda neste sentido, note-se, que o legislador no art.º 29.º, n.º 3, do RPDM, penaliza a deterioração dolosa da edificação pelo proprietário, ou por terceiro, ou violação grave do dever de conservação, que conduza à justificação da demolição parcial ou total do edificado, com a obrigação de reconstrução integral ou parcial do edifício preexistente - quando abrangido pela Carta - assim acautelando uma perda voluntária do que já existe.
Portanto, face aos supra-indicados preceitos do RPDM de Lisboa, a primeira opção a considerar pelos promotores dos projectos e a verificar pela CML, a opção que deve ser privilegiada, é que a se direccione para a conservação, o restauro, a reabilitação, ou a reconstrução do edificado pré-existente, sem demolições e com a salvaguarda das características substanciais e a identidade e autenticidade do edificado.
(…) Como se indicou, a introdução no actual edificado – quando abrangido pela Carta – de obras de alteração e ampliação, deverá ficar condicionada à prévia procura do primeiro objectivo: da sua conservação e valorização por essa via. Quanto à demolição – total ou parcial – fica fortemente condicionada e dependente quer da prévia vistoria que ateste a impossibilidade ou grande dificuldade na reconstrução/conservação, quer ao estudo de caracterização histórica, construtiva, arquitectónica que justifique a adequação da intervenção proposta.”
Nestes termos, ainda que o edifício existente tenha sido demolido, por força do preceituado nos art.ºs 26.º, n.º 2, 27.º, n.ºs. 1 a 7, 28.º, n.º 1, 29.º, 30.º, e ponto 22.10 do Anexo III do RPDM de Lisboa, da eventual declaração de nulidade do acto de licenciamento poderá resultar a obrigação de se alterar o projecto apresentado, com a reconstrução, total ou parcial, do edificado pré-existente, por forma a respeitar-se os citados preceitos legais.
Em suma, a alteração fáctica que decorre da demolição do edificado, ocorrida na pendência destes autos, em nada altera os pressupostos em que se fundou a decisão cautelar quando apreciou o fumus boni iuris.
Porém, aquela mesma demolição já releva para a apreciação do critério periculum in mora, constituindo, efectivamente, uma alteração nos pressupostos de facto em que se fundou a decisão.
Entre os danos que se quis evitar com o decretamento da providência incluíam-se os advenientes de uma possível demolição do edificado e a impossibilidade de se reerguer tal edifício, nos seus precisos termos, caso a causa principal obtivesse vencimento.
No entanto, como claramente decorre do Acórdão prolatado, esse não era o único dano a salvaguardar, mas pretendia-se, também, garantir os prejuízos que decorriam da “dificuldade na reconstituição da situação anterior” que “também derivará da muito provável execução da obra conforme o projecto aprovado”.
Na verdade, se a obra prosseguir conforme o projecto aprovado, vindo a declarar-se a nulidade do correspondente licenciamento, a reposição da legalidade tornar-se-á um facto muito mais oneroso para todos os intervenientes no litígio.
Para os requerentes da providência, a execução do projecto com a construção do edificado em desconformidade com os preceitos legais pode constituir um facto consumado.
Por seu turno, para o requerido particular, o promotor da obra, a prossecução do projecto irá seguramente implicar o dispêndio do dinheiro inerente à respectiva construção. Por conseguinte, vindo a declarar-se a nulidade do licenciamento, se daí resultar a obrigação de demolir – parcial ou totalmente – o edifício construído, essa mesma circunstância irá provocar-lhe danos acrescidos e relevantes.
Por último, a prossecução da obra conforme o projecto aprovado poderá implicar para o Município de Lisboa os danos necessariamente decorrentes da violação de um interesse público de garantia da legalidade urbanística, para além de poder agravar os deveres indemnizatórios que lhe possam ser assacados a título de responsabilidade civil pela prática de actos ilícitos.
Em conclusão, se a obra vier a prosseguir conforme o projecto aprovado, vindo a declarar-se no processo principal a nulidade do acto de licenciamento, ocorrerão certamente prejuízos relevantes e de difícil reparação para os interesses de todos os intervenientes neste litígio.
Ponderados todos os interesses públicos e privados em presença, verifica-se, igualmente, que a suspensão de eficácia do acto de licenciamento trará, para todos esses interesses, danos inferiores àqueles que podem resultar da não adopção da providência.
Depois, como se afirmou no acórdão prolatado “apreciados os interesses em presença, sem embargo de se reconhecer a importância dos interesses económicos das Contra-interessadas, ter-se-ão de considerar superiores os interesses de preservação dos valores arquitectónicos, urbanísticos e culturais pela manutenção – através da reabilitação e recuperação – do património existente”.
Portanto, não obstante a demolição do edificado existente, a decisão tomada, de decretar a suspensão de eficácia do acto de licenciamento, deverá manter-se, por continuarem verificados os pressupostos de que dependia a procedência da requerida providência cautelar.
Em conclusão, há que confirmar a decisão recorrida, quando julgou improcedente o incidente de revogação da providência decretada e a manteve, julgando-se agora improcedentes os presentes recursos.

III- DISPOSITIVO
Pelo exposto, acordam:
- em negar provimento aos recursos interpostos, confirmando a decisão recorrida;
- custas pelos Recorrentes, em partes iguais (cf. art.ºs. 527.º n.ºs 1 e 2 do CPC, 7.º, n.º 2 e 12.º, n.º 2, do RCP e 189.º, n.º 2, do CPTA).

Lisboa, 24 de Janeiro de 2019.

(Sofia David)
(Helena Telo Afonso)
(Pedro Nuno Figueiredo)