Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:21/20.7BCLSB
Secção:CA
Data do Acordão:09/09/2021
Relator:JORGE PELICANO
Descritores:JUSTIÇA DESPORTIVA
PROCESSO DISCIPLINAR
LIBERDADE DE EXPRESSÃO
Sumário:As declarações em que o Recorrido refere que os árbitros são parciais e estão “sempre disponíveis a subverter a classificação do campeonato, como agora fizeram, demonstrando que o crime compensa (…)”, importam a violação dos deveres previstos no n.º 1 do art.º 112.º do RDLPFP, constituindo ilícito disciplinar.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

A Federação Portuguesa de Futebol vem recorrer do acórdão proferido pelo Tribunal Arbitral do Desporto no âmbito do processo n.º 43/2019, que concedeu provimento ao recurso intentado pelo Recorrido J… do acórdão de 09/07/2019, proferido pelo Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol, que o condenou na sanção disciplinar de noventa dias de suspensão, acrescido de multa no valor de onze mil quatrocentos e oitenta euros.
Apresentou as seguintes conclusões com as suas alegações de recurso:
1. O presente recurso tem por objeto o Acórdão Arbitrai proferido pelo Colégio Arbitrai constituído junto do Tribunal Arbitrai do Desporto, notificado em 6 de fevereiro de 2020, que julgou procedente o recurso apresentado pelo ora Recorrido, que correu termos sob o n.º 43/2019.
2. Em concreto, o presente recurso versa sobre a decisão do Colégio Arbitrai (por maioria) em anular as sanções de suspensão e multa aplicadas pelo Conselho de Disciplina no processo disciplinar n.º 73 - 2018/2019, que correu termos naquele órgão, por aplicação do artigo 136.º, n.º 1 e 4 por referência ao artigo 112.º, n.º 1, todos do RD da LPFP.

3. O Acórdão recorrido padece de graves erros na aplicação do Direito, com os quais a Recorrente não se pode conformar.

4. Ora, desde logo, cabe chamar à colação que o bem jurídico a proteger no âmbito disciplinar é distinto daquele que se visa proteger no âmbito penal, ainda que existam normas punitivas semelhantes, por vezes coincidentes, que possam induzir o aplicador em erro. Deste modo, a análise subjacente num e noutro caso tem, também, de ser muito distinto.
5. A afirmação de que a responsabilidade disciplinar é independente e autónoma da responsabilidade penal está, desde logo, presente na Lei e nos Regulamentos Federativos.
6. Assim, quando analisado o artigo 112.º, aplicável ex vi artigo 136.º, do RD da LPFP é possível vislumbrar, em abstrato, indícios do ilícito penal correspondente à injúria ou difamação.
7. Por outro lado, não se pode olvidar que o Recorrido tem deveres concretos que tem de respeitar e que resultam de normas que não pode ignorar.
8. O Recorrido tem, nomeadamente, o dever de "manter uma conduta conforme aos princípios desportivos de lealdade, probidade, verdade e retidão em tudo o que diga respeito às relações de natureza desportiva" (artigo 19.º, n.º 1, do RDLPFP19); e de "manter comportamento de urbanidade e correção entre si, bem como para com os representantes da Liga Portugal e da FPF, os árbitros e árbitros assistentes." (artigo 51.º, n.º 1 do Regulamento de Competições da LPFP).
9. Naturalmente que as sociedades desportivas, clubes e agentes desportivos não estão impedidos de exprimir pública e abertamente o que pensam e sentem. Contudo, os mesmos estão adstritos a deveres de respeito e correção que os próprios aceitaram determinar e acatar mediante aprovação do RD e RC da LPFP.
10. Quando uma pessoa (singular ou coletiva), qualquer que seja, aceita aderir a determinada associação ou grupo organizado, aceita também as suas regras, deontológicas, disciplinares, sancionatórias, etc..
11. Com efeito, para que o Recorrido seja condenado pela prática do ilícito disciplinar previsto no artigo 136.º, n.º 1 e 4 por referência ao artigo 112.º, n.º 1, ambos do RD da LPFP é essencial indagar se as declarações respetivas violam, pelo menos, um dos bens jurídicos visados pela norma disciplinar: a honra e bom nome dos visados ou a verdade e a integridade da competição, particularmente evidenciados pela imparcialidade e isenção dos desempenhos dos elementos das equipas de arbitragem.
12. Ao contrário daquilo que entende o TAD, não estamos, obviamente, perante a prática de um ilícito disciplinar que pretende, exclusivamente, proteger a honra e o bom nome dos árbitros visados, nem muito menos perante uma questão que deva ser analisada da perspetiva do direito penal.
13. Em suma, o Acórdão recorrido erra ao analisar a questão sub judice sob a perspetiva do direito penal e não da perspetiva do direito disciplinar, pelo que se impõe que o TCA proceda a uma correta aplicação do direito ao caso.
14. Ademais, a questão em apreço é suscetível de ser repetida num número indeterminado de casos futuros, porquanto este tipo de casos são cada vez mais frequentes, o que é facto público e notório.
15. O TAD entendeu, no seu aresto, que o conteúdo das expressões em causa não têm qualquer relevância disciplinar pois não configuram uma lesão da honra e reputação dos órgãos ou equipas de arbitragem, mas sempre tendo por referência às normas penais que sancionam condutas típicas dos crimes de injúria ou difamação.
16. E é aí que reside o grande equívoco dos Exmos. Árbitros. Com efeito, a questão deve ser colocada, como acima se referiu, no âmbito da apreciação no campo disciplinar e não no campo do direito penal, autónomo e distinto deste.
17. Conforme já deixámos bem patente na parte inicial deste recurso, o valor protegido pelo ilícito disciplinar em causa, à semelhança do que é previsto nos artigos. 180.º e 181.º, do Código Penal, é o direito "ao bom nome e reputação", cuja tutela é assegurada, desde logo, pelo artigo 26.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, mas que visa em primeira linha, e ao mesmo tempo, a proteção das competições desportivas, da ética e do fair play.
18. A nível disciplinar, como é o caso, os valores protegidos com esta norma (112.º, aplicável ex vi artigo 136.º do RD da LPFP), são, em primeira linha, os princípios da ética, da defesa do espírito desportivo, da verdade desportiva, da lealdade e da probidade e, de forma mediata, o direito ao bom nome e reputação dos visados, mas sempre na perspetiva da defesa da competição desportiva em que se inserem.
19. Atenta a particular perigosidade do tipo de condutas em apreço, designadamente pela sua potencialidade de gerar um total desrespeito pela autoridade das instituições e entidades que regulamentam, dirigem, disciplinam e gerem o futebol em Portugal, o sancionamento dos comportamentos injuriosos, difamatórios ou grosseiros encontra fundamento na tarefa de prevenção da violência no desporto, enquanto fator de realização do valor da ética desportiva.
20. O Recorrido sabia ser o conteúdo dos textos publicados adequado a prejudicar a honra e reputação devida aos demais agentes desportivos, na medida em que tais declarações indiciam uma atuação dos árbitros a que não presidiram critérios de isenção, objetividade e imparcialidade, antes colocando assim e intencionalmente em causa o seu bom nome e reputação.
21. Para além de imputar a tal equipa de arbitragem a prática de atos ilegais, as expressões sub judice encerram em si um juízo de valor sobre os próprios árbitros que, face às exigências e visibilidade das funções que estes desempenham no jogo, colocam em causa a sua honra, pelo menos, aos olhos da comunidade desportiva.
22. Assim, não podemos deixar de considerar que se é legítimo o direito de crítica do Recorrido à atuação dos árbitros, já a imputação desonrosa não o é, e aquelas expressões usaram esse tipo de imputação sem que se revele a respetiva necessidade e proporcionalidade para o fim visado.
23. Não se nega que expressões como a usada pelo Recorrido são corriqueiramente usadas no meio desporto em geral e do futebol em particular.
24. Porém, já não se pode concordar que por serem corriqueiramente usadas não são suscetíveis de afetar a honra e dignidade de quem quer que seja ou de afetar negativamente a competição, ademais quando nos referimos a uma suspeita de falta de isenção por parte de agentes de arbitragem, uma vez que tais afirmações têm intrinsecamente a acusação ou pelo menos a insinuação de que eventuais erros dos árbitros são intencionais. Deste modo, vão muito para além da crítica ao desempenho profissional do agente.
25. O futebol não está numa redoma de vidro, dentro da qual tudo pode ser dito sem que haja qualquer consequência disciplinar, ao abrigo do famigerado direito à liberdade de expressão, muito menos se pode admitir que o facto de tal linguarejo ser comum torne impunes quem o utilize e que retire relevância disciplinar a tal conduta.
26. Face ao exposto, deve o acórdão proferido pelo Tribunal a quo ser revogado por erro de julgamento, designadamente por errada interpretação e aplicação do disposto no artigo 136.º, nºs 1 e 4 por referência ao artigo 112.º, n.º 9, ambos do Regulamento Disciplinar da LPFP.”.

O Recorrido apresentou contra-alegações, com as seguintes conclusões de recurso:

A. A decisão recorrida não merece qualquer reparo ou censura porquanto não se mostram preenchidos os requisitos exigíveis para a punição pelo ilícito disciplinar p. e p. pelo art. 112.° do RD, em virtude de estar em causa um juízo crítico plenamente reconduzível ao legítimo exercício da liberdade de expressão que assiste ao demandante.

B. Uma avaliação isenta e imparcial das afirmações reduzidas a escrito, conduzirá a uma única conclusão: as declarações proferidas pelo recorrido não colidem com a honra e bom nome de quem quer que seja, nem se manifestam como um comportamento incorrecto ou indecoroso de tal modo inapropriado que manifesta e objectivamente viole a verdade e integridade da competição.
C. Ao contrário do que pretende fazer transparecer a Recorrente, resume-se o presente caso à emissão de um juízo crítico opinativo que, desde logo pela ausência de gravidade que evidencia, não deverá merecer qualquer censura disciplinar.
D. As críticas tecidas pelo recorrido no texto em apreço, pese embora possam considerar-se acutilantes, são, ainda assim, totalmente fundadas e legitimas, reflectindo, tão somente, a avaliação daquele face à actuação profissional dos árbitros visados.
E. Quer isto dizer, que não estamos perante um qualquer ataque mesquinho, pessoal e gratuito, com um intuito meramente injurioso. Mas antes perante afirmações que se ancoram num determinado desempenho (ou juízo valorativo sobre esse desempenho), não contendendo com o “núcleo essencial das qualidades morais’' dos visados; e que têm, além do mais, uma base factual, concreta e real, que legitima a formulação de tais afirmações, ainda que abstractamente lesivas da honra e da reputação de terceiro.
F. Não podendo descurar-se que para a formação dos concretos juízos de valor vertidos no artigo em apreço concorreram diversas realidades que se têm como objectivas e públicas, e que fundaram e reforçaram a convicção manifestada nas afirmações formuladas, evidenciando a existência de erros grosseiros de arbitragem, e um desempenho profissional que fica muito aquém daquele que seria o esperado de árbitros desta categoria.
G. Face aos factos que lhe estão subjacentes, a opinião emitida não deixa de ter, pois, uma base factual mínima (dir-se-á, inclusive, mais do que suficiente). Pelo que, sendo este o circunstancialismo contextual que envolveu a publicação em apreço nos autos, não poderia o Tribunal a quo deixar de o valorar positivamente a favor do recorrido, assim fazendo prevalecer o direito à liberdade de expressão que ao mesmo assiste.
H. Até porque, como vem sublinhando o TEDH, o único limite, fundado na protecção da honra, que há-de reconhecer-se à manifestação de juízos de valor desprimorosos da personalidade do visado pela crítica é o da crítica caluniosa sob a forma de um "ataque pessoal gratuito" (TEDH: Lopes Gomes da Silva c. Portugal).

I. Nesta esteira aberta pelo TEDH, o nosso Supremo Tribunal de Justiça pronuncia-se no sentido de que "tratando-se de juízos de valor exclui-se a prova da sua exactidão (acórdão do Tribunal constitucional de 24 de Março de 2004, n. 201/04), impossível de realizar e atentatória da liberdade de expressão, importando somente que não se encontrem totalmente desprovidos de base factual, caso em que podem revelar-se excessivos (acórdão proferido no caso Rizos, acima mencionado)" (AC. do STJ de 13-01-2005, Proc. 04B3924, www.dgsi.pri.

J. Mobilizando este parâmetro de aferição de ilicitude tipica da infracção p. e p. pelo art. 112.° do RD para as afirmações em apreço, terá de convir-se que as falhas de arbitragem grosseiras em que os visados incorreram nos jogos em apreço são por si só suficientes para que sobre eles pudesse ser lançado o juízo de suspeição nos termos em que o foi.

K. Ademais, por muito que possa ferir susceptibilidades alheias, criticar implica censurar negativamente. Censura essa que - enquanto manifestação da liberdade individual - só deixa de ser legítima quando exprime uma antijuricidade objectiva, violando direitos que são personalíssimos. O que claramente não sucede in casu.
L. De modo que, a conduta do demandante não consubstanciou a prática de qualquer facto disciplinarmente relevante, seja porque nem sequer assumiu relevo típico, seja porque (embora típica) não chegou a ser ilícita, uma vez que realizada no exercício legítimo do direito fundamental à liberdade de expressão.
M. Sendo certo que, quando estão em causa condutas expressivas adoptadas em contexto futebolístico - em particular no que concerne a debates que confrontam clubes rivais e que se consubstanciem em denúncias de práticas de actos ilícitos ou censuráveis para conquistar competições nacionais ou internacionais - deve, inclusive, ser atribuída uma garantia reforçada ao exercício da liberdade de expressão (TEDH: Axel Springer AG v. Germany, 2012, § 90).

Face ao exposto, impõe-se a conclusão de que a conduta do recorrido não merece qualquer censura, não podendo subsumir-se nas normas disciplinares imputadas, nem em qualquer outra, assim se exigindo a improcedência do presente recurso, devendo manter-se na íntegra o sentido e teor da decisão absolutória proferida.”.

*
O Digníssimo Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer em que concluiu pela improcedência do recurso.

Com dispensa de vistos, atenta a sua natureza urgente, vem o processo submetido à Conferência desta Secção do Contencioso Administrativo para decisão.

Há, assim, que decidir, perante o alegado nas conclusões de recurso, se o acórdão recorrido incorreu em erro de julgamento por ter decidido anular a sanção disciplinar de 90 dias de suspensão e de multa no valor de 11.480,00€, aplicadas ao Recorrido por força do disposto nos artigos 136.º, n.º 1 e 4 e 112.º, n.º 1, ambos do RDLPFP, tomada no âmbito do processo n.º 73-19/19.
*
Dos factos.
No acórdão recorrido foi fixada a seguinte matéria de facto:
i. “Em abril e maio de 2019 realizaram-se uma série de jogos para a Liga NOS, relativos à época desportiva de 2018/2019, envolvendo um adversário directo do F… na referida competição.

ii. As arbitragens dos jogos acima citados foram minuciosamente analisadas, discutidas e avaliadas na comunicação social, em especial na imprensa desportiva, com esta última a apontar erros graves às equipas de arbitragem desses mesmo jogos.

iii. Na sequência dos jogos identificados em i. o Demandante fez duas intervenções públicas, nomeadamente:

a) declarações à revista ‘‘D…", amplamente reproduzidas e difundidas pela Comunicação Social, incluindo, inter alia, citação em 7/5/2019 pelo jornal "O J…".
b) entrevista publicada a 14/5/2019 no jornal “O J…”.

iv. Nas intervenções públicas acima identificadas, o Demandante afirmou:
a) - “Infelizmente, parece que por vezes é mais fácil para o F… ter êxito nas competições europeias, frente a rivais mais difíceis, do que em Portugal, onde muitas vezes os adversários vestem de preto, andam com um apito ou estão sentados em frente a ecrãs de televisão. Triste o país onde abundam as paixões vermelhas e os pinheiros pouco iluminados, sempre disponíveis a subverter a classificação do campeonato, como agora o fizeram, demonstrando que o crime compensa e que não há camião de coação que não continue a dar resultados”,
b) - “(...) Essa reta final defino-a da seguinte forma: O F… teve um empate anormal em Vila do Conde porque dois penáltis claríssimos não foram marcados. Houve uma influência direta da arbitragem e do VAR nesse empate. Depois do clássico, o campeonato decidiu-se em três sítios: Vila da Feira, Braga e Vila do Conde. São três jogos onde ainda gostava de saber quem, a partir daí, foi buscar os padres à sacristia? O que vimos? O Conselho de Arbitragem, e bem, verificou no final da época passada que havia árbitros que não tinham as mínimas condições para apitar: o senhor B… e o senhor B…. Deixaram de apitar e para estarem calados e não protestarem meteram-nos no VAR. Agora, um indivíduo que não tem categoria para arbitrar não pode ir para o VAR, que tem tanto ou mais influência nos resultados. No F…-B…, quando tocou a reunir, quem foram os intervenientes? O senhor J…, que toda a gente conhece do seu envolvimento nos emails. Foram ressuscitá-lo para esse jogo e tiveram a peregrina ideia de ressuscitar o senhor B… para o VAR, tendo influência direta ao anular um golo limpo ao F… e ao inventar um penálti que deu a vitória ao B…. Isto é inquestionável. Se foi para VAR por incompetência para arbitrar como pode estar em jogos que podem decidir o título? Não compreendo este critério de nomeações. Podem castigar-me... Vamos para B…: o senhor J… vai para o VAR, o tal que mandava emails ao fulano daquela geringonça toda. O que aconteceu? Um penálti que não existe, outro que existe e não é marcado, uma agressão, nas barbas do árbitro, do J… que dava o segundo amarelo. E o B… passou lá. E agora, na reta final, quem foram buscar? O senhor L…, no conceito deles pode ser um excelente árbitro, mas for o árbitro que, em Moreira de Cónegos, expulsou o Danilo por ter ido contra ele quando ía a recuar ou que, no final de um famoso V…-B…, marcou um penálti que deu a vitória e que todos contestaram. Havia tantos jogos importantes na I e na II Liga e o senhor L…, que eles consideram um árbitro de primeira, foi para VAR? Foi, mas para não ver. E o senhor H…, que foi o árbitro que aos 44” em A…e, fechou os olhos ao segundo amarelo [a B…des], vai fazer este jogo. Pelo amor de Deus. Foi em 1958 mas ainda hoje se fala no Calabote, daqui a 30 anos ainda se vão lembrar que o campeonato de 2019 foi decidido na Vila da Feira, em Braga e em Vila do Conde. Esta é a realidade.
(...) É uma tristeza que não haja um mínimo de verdade desportiva nos jogos de Vila da Feira, de Braga e de Vila do Conde. São três manchas negras na história deste campeonato. Só espero que na final da Taça de Portugal não apreça nenhum destes senhores porque seria o reconhecimento de que vale a pena errar a favor do B….
Mas há alguma dúvida? Decidiu-se dentro e fora, porque também se decidiu no VAR.
É inqualificável que o VAR não tenha visto o que se passou em Vila do Conde. O campeonato foi decisivo com estas três nomeações, tanto para o VAR como para o árbitro.
Não, se o B… ganhar com dois ou três pontos de avanço e em três jogos foi beneficiado em nove pontos, como pode haver justiça? O B…. teve bons momentos de futebol, o S… também e o B…... No início, o B… foi a equipa que melhor jogou, e o F…. Justiça tendo na memória o que se passou na Vila da Feira, Braga e Vila do Conde? Os portistas que viveram isto vão lembrar-se daqui a 20 anos.
A minha posição em relação ao CA não mudou num aspeto: não tenho a mínima dúvida de que o Sr. F…, que é o presidente, é uma pessoa séria. Não tenho a mínima dúvida. Agora, no que diz respeito a confiar nas suas nomeações, das duas uma: ou está a ser pressionado por alguém, ou, se não está, então tenho de mudar [a minha opinião], porque considero que não tem sido capaz de ter decisões que se justifiquem.
(...) O Conselho de Arbitragem sabe como isso foi arquitetado... Mas o problema não é saber-se quem são os árbitros. O problema é como esses árbitros são indicados. Não é saber se o senhor B… vai ser o VAR do F…-B…, o problema é ele estar lá e porque está lá. Ou porque e que o senhor L… foi VAR em Vila do Conde. Para o Conselho de Arbitragem ele é um árbitro em quem confiam muito, mas tem lógica, com tantos jogos importantes e decisivos, ele não ter arbitrado?
Não estou porque não disse que o Sr. L… é um bom árbitro. Referi-me ao conceito do CA. Não vou estar aqui a dizer qual é o meu. Agora, daqui a 20 anos, se fosse vivo, lembrar-me-ia sempre do que se passou em Moreira de Cónegos, porque é uma situação caricata, em que o árbitro vai recusar, cai e expulsa o jogador. Agora, o CA considera-o um bom árbitro. Mas se o considera assim, porque é que foi para ali? Como VAR, ficou mais uma vez demonstrado que é mau..."

v. O Demandante é Presidente do F… - Futebol SAD.

vi. À data dos factos, o Demandante não tinha antecedentes disciplinares relevantes.”.


*
Direito
O n.º 1 do art.º 112.º, aplicável por força da remissão operada pelo art.º 136.º, ambos do RDLPFP, prevê a punição do uso de expressões, desenhos, escritos ou gestos injuriosos, difamatórios ou grosseiros para com órgãos da Liga ou da FPF e respetivos membros, árbitros, dirigentes, clubes e demais agentes desportivos, nomeadamente em virtude do exercício das suas funções desportivas, assim como os comportamentos que incitem à prática de atos violentos, conflituosos ou de indisciplina.
A Recorrida defende o acórdão recorrido incorreu em erro de julgamento ao ter anulado o acórdão de 09/07/2019, proferido pelo CD da FPF, que havia condenado o Recorrido na sanção disciplinar de noventa dias de suspensão e em multa, no montante de 11.480.00€.
Defende que o Recorrido praticou a infracção disciplinar por que foi punido por ter insinuado e criado a suspeita de que os erros que aponta aos árbitro foram cometidos de forma intencional e, dessa forma, ter ofendido a honra e consideração destes, bem assim como os valores da ética e fair play que devem nortear as competições desportivas.
O Recorrido, alega que não praticou a referida infracção disciplinar. Defende que se limitou a formular críticas sobre o desempenho dos árbitros visados, a qual encontra fundamento nos erros grosseiros que diz terem sido cometidos estes nos jogos de futebol em causa, tendo agido no exercício do direito à liberdade de expressão.
No acórdão recorrido entendeu-se que “(…) no caso em apreço, e mesmo no que concerne às afirmações mais contundentes e mais tenuemente ligadas aos factos concretos que foram invocados, a intenção do Demandante parece ter sido a de justificar a classificação da sua equipa e do seu principal rival, a de criticar a organização e o funcionamento da estrutura organizativa do futebol português e em particular da arbitragem, e porventura até, a de influenciar a atuação desta última, mais do que a de atentar contra a honra e o bom nome dos árbitros envolvidos nos casos individuais. Não há uma carga valorativa ultrajante, insultuosa e ofensiva da honra e dignidade dos árbitros. É uma crítica dura, sim, mas como bem se observa no Acórdão do TAD proferido no caso 23/2019, "...a liberdade de expressão engloba o direito à crítica - aliás, muitíssimo comum no domínio desportivo, como no domínio político — e, como é natural, as críticas pressupõem sempre a produção de um incómodo para o visado; não são neutras. O Demandante utiliza um tom mordaz e sarcástico, como aliás é o seu tom, conforme evidenciado por múltiplas intervenções ao longo dos anos: "Gostava de saber quem, a partir daí, foi buscar os padres à sacristia?' "Triste o país onde abundam as paixões vermelhas e os pinheiros POUCO iluminados, muitas vezes os adversários vestem de preto...” e "...para estarem calados e não protestarem meteram-nos no VAR.". São declarações que podem ser consideradas de humor e gosto duvidosos, mas não será isto suficiente para justificar uma limitação à liberdade de expressão, que apenas se deve operar excecionalmente.
26. Com efeito, numa ideia representado no brocardo "In dúbio pro libertate" e na esteira de diversa doutrina3 que discorreu sobre o tema, a proteção da liberdade de expressão é uma obrigação basilar do estado de direito democrático, e a imposição de limitações à mesma deve ser excecional e robustamente justificada.
Tal é verdade, também, e porventura mais ainda, no campo das relações entre
agentes desportivos, particularmente quando existe uma situação em que, como aqui, uma entidade exerce poder sobre indivíduos, justificando-se nesses casos uma proteção mais cuidada dos direitos e liberdades da parte mais fraca (…)”.
Vejamos.
O ilícito disciplinar em causa, resulta da violação de qualquer dos deveres previstos no n.º 1 do art.º 112.º do RDLPFP. Visa-se aí a protecção da honra, bom nome e reputação dos titulares dos órgãos da Liga ou da FPF e respetivos membros, árbitros, dirigentes, clubes e demais agentes desportivos e punir ainda os comportamentos que incitem à prática de atos violentos, conflituosos ou de indisciplina.
Sobre a referida infracção disciplinar, o STA tem vindo a entender que o uso de expressões que não se limitam a enunciar factos objectivos ou a exprimir opiniões acerca da sua qualificação à luz das regras do jogo e que afectam a honra e reputação dos árbitros, não se encontram justificadas pelo exercício do direito à liberdade de expressão, constituindo, antes, ilícitos disciplinares.
Nesse sentido, decidiu-se no ac. do STA de 11/03/2021, proc. n.º 053/20.5BCLSB, acessível em www.dgsi.pt, o seguinte: “(…) Atendendo à factualidade dada como provada, inexistem dúvidas que foram proferidas e noticiadas declarações que preenchem o tipo de infracção disciplinar previsto no artº 112º do Regulamento Disciplinar das Competições Organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional (RDLPFP), como aliás tem vindo a ser repetido por acórdão proferidos neste STA – cfr. Acórdãos de 26.02.2019, in proc. nº 066/18.7BCLSB, de 04.06.2020, in proc. nº 0154/19.2BCLSB, de 21.05.2020, in proc. nº 0139/19.9BCLSB, de 10.09.2020, in proc. nº 038/19.4BCLSB, de 02.07.2020, in proc. nº 0139/19.9BCLSB e, de 29.02.2019, in proc. nº 66/18.7BCLSB.
Com efeito, consignou-se, a este propósito, num caso similar ao dos presentes autos, no Acórdão proferido em 10.09.2020, in proc. 038/19.4BCLSB de que fomos relatora, o seguinte:
«(…) estamos no âmbito de uma responsabilidade disciplinar, que não depende do preenchimento dos tipos legais de crime de difamação ou de injúrias, mas apenas da violação dos deveres gerais e especiais a que estão adstritos os clubes, e respectivos membros, dirigentes e demais agentes desportivos em relação a órgãos da Liga ou da FPF, respectivos membros, e elementos da equipa de arbitragem, entre outos, no âmbito dos regulamentos desportivos e demais legislação aplicável à realização das competições desportivas.
Estes deveres resultam exclusivamente, da conjugação dos artºs 19º e 112º do citado RDLPFP, não sendo necessário o recurso ao Código Penal para preencher o respectivo tipo disciplinar.
No nº 1 do artº 19º do RD em questão, estabelece-se que todos os clubes e agentes desportivos que, a qualquer título ou por qualquer motivo, exerçam funções ou desempenhem a sua actividade no âmbito das competições organizadas pela Liga Portugal «devem manter conduta conforme aos princípios desportivos de lealdade, probidade, verdade e rectidão em tudo o que diga respeito às relações de natureza desportiva, económica ou social».
E no nº 2 da citada norma, prevê-se de forma explícita a inibição daqueles mesmos sujeitos de «exprimir publicamente juízos ou afirmações lesivos da reputação de pessoas singulares ou colectivas ou dos órgãos intervenientes e seus agentes, nas competições organizadas pela Liga».
Ora, as declarações proferidas pelos arguidos visando os árbitros intervenientes, as decisões do Conselho de Arbitragem, designadamente do seu Presidente, não podem, nem devem considerar-se dentro da liberdade de expressão, nem constituir somente um excesso de linguagem “permitida” no mundo do futebol; ao invés, violam o bom nome e a reputação dos visados – árbitros e Presidente do Conselho de Arbitragem – quer perante a comunidade desportiva, quer perante toda a demais comunidade que ouviu e/ou leu as expressões proferidas, tentando ainda fazer uma pressão inadmissível sobre a arbitragem e seus agentes.
Com efeito, a denominada “linguagem desportiva” não permite que se profiram insultos e se façam difamações dirigidas aos árbitros e muito menos a quem os nomeia.
Mal seria que as expressões utilizadas pelos arguidos, se enquadrassem numa crítica meramente opinativa no seio do fervor desportivo, dado que não se limitam a enunciar factos objectivos ou a exprimir opiniões acerca da sua qualificação à luz das regras do jogo; pelo contrário, são de molde, a colocar em crise, quer objectiva, quer subjectivamente, a arbitragem em Portugal, a honra e reputação dos árbitros em questão e, em particular, a do Presidente do Conselho de Arbitragem, configurando insultos, injúrias e difamações em relação aos visados, que extravasam o direito de liberdade de expressão [artº 37º da CRP].
Veja-se a propósito da integração deste género de imputações, o que se deixou consignado no Ac. de 26.02.2019, in proc. nº 066/18.7BCLSB, onde se refere:
«Imputações estas, que atingem não só os árbitros envolvidos, como assumem potencialidade para gerar um crescente desrespeito pela arbitragem e, em geral, pela autoridade das instituições e entidades que regulamentam, dirigem e disciplinam o futebol em Portugal, sendo o sancionamento dos comportamentos injuriosos, difamatórios ou grosseiros necessário para a prevenção da violência no desporto, já que tais imputações potenciam comportamentos violentos, pondo em causa a ética desportiva que é o bem jurídico protegido pelas normas em causa».
E ainda o que se deixou consignado, a propósito da liberdade de expressão e informação, no Acórdão proferido em 04.06.2020, in proc. nº 0154/19.2BCLSB:
«(…)
Naturalmente, a liberdade de expressão e de informação não protege tais imputações, quando as mesmas não consubstanciem factos provados em juízo, ou objetivamente verificáveis, pois aquelas liberdades não são absolutas e tem de sofrer as restrições necessárias à salvaguarda de outros direitos fundamentais, como são os direitos de personalidade inerentes à honra e reputação das pessoas, garantidos pelo nº 1 do art.º 26.º da Constituição.
O disposto nos artigos 19.º e 112.º do RDLPFP não é, por isso, inconstitucional, nem os mesmos podem ser interpretados no sentido de que a liberdade de expressão e de informação se sobrepõe à honra e reputação de todos aqueles que intervém nas competições desportivas organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional, nomeadamente a dos respetivos árbitros, tanto mais que não está em causa a liberdade de expressão e de informação de órgãos de comunicação social independentes, mas da imprensa privada do próprio clube – cfr. art.º 112.º/4 do RDLPFP.
Acresce ainda, na linha do que se decidiu no Acórdão desta Secção, de 26 de fevereiro de 2019, atrás citado, que o respeito estrito pelos deveres de lealdade, probidade, verdade e retidão inerentes ao regime disciplinar estabelecido pelas normas em apreciação é indispensável à prevenção da violência no desporto, que é também um valor constitucional legitimador da compressão da liberdade de expressão e de informação dos clubes desportivos, nos termos do n.º 2 do art.º 79.º da CRP. O que nos permite responder afirmativamente à questão colocada no Acórdão Preliminar proferido nestes autos, sobre «(…) até que ponto se pode disciplinarmente reagir – com base em normas disciplinares, aliás similares às do estrangeiro – contra declarações dos clubes que, para além de excitarem anormalmente os ânimos dos seus adeptos e assim induzirem comportamentos rudes, contribuam para o descrédito das competições desportivas e do negócio que as envolve». Não só se pode, como se deve reagir sempre que os clubes extravasem o âmbito estrito da mera informação ou opinião, e ofendam a honra e a reputação dos árbitros e de todos aqueles que intervém nas competições desportivas organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional».
*
Sufragando esta jurisprudência, e tendo por base a factualidade de facto dada como provada, [em que são usadas expressões como “sucedem-se erros de arbitragem sempre em benefício da mesma equipa e por equipas de arbitragem que estiveram ligadas na época anterior a muitos desses erros que deram pontos…”, é evidente que a recorrida não pode deixar de ser responsável pelos juízos de valor tecidos acerca dos erros de arbitragem que identifica, uma vez que, deste modo, põe em causa a credibilidade e, imparcialidade das pessoas em questão.
E do teor da restante matéria de facto provada, é evidente o lançamento de suspeitas sobre o trabalho dos árbitros ali identificados e Var, tendo por base acontecimentos futebolísticos, bem como, a intencionalidade de extrair conclusões de benefício de uma equipa em detrimento de outra.
Ora, estes considerandos, publicados na
newsletter oficial do clube não se enquadram na liberdade de expressão ou de opinião, uma vez que se apresentam como lesivos da reputação dos árbitros e VAR em questão, enquanto profissionais imparciais, objectivos e isentos, criando inclusive um clima de suspeição sobre um dos agentes desportivos, a equipa de arbitragem e desta forma pondo em causa, de forma repetida, o ambiente sadio que deve existir nas competições desportivas, tudo em detrimento dos deveres constantes das citadas normas do RDFPFP e do disposto no artº 35º, nº 1, al. h), do referido diploma. (…)”.

Tal doutrina é inteiramente aplicável ao caso dos presentes autos.
O Recorrido declarou que “Infelizmente, parece que por vezes é mais fácil para o F… ter êxito nas competições europeias, frente a rivais mais difíceis, do que em Portugal, onde muitas vezes os adversários vestem de preto, andam com um apito ou estão sentados em frente a ecrãs de televisão. Triste o país onde abundam as paixões vermelhas e os pinheiros pouco iluminados, sempre disponíveis a subverter a classificação do campeonato, como agora o fizeram, demonstrando que o crime compensa e que não há camião de coação que não continue a dar resultados (…)”.
De seguida passa a enumerar várias situações alegadamente ocorridas em jogos de futebol onde, em seu entender, foram cometidos vários erros pelos árbitros cujo nome foi indicando e que terão beneficiado o B….
Através de tais declarações o Recorrido refere que os árbitros em causa são parciais e estão “sempre disponíveis a subverter a classificação do campeonato, como agora fizeram, demonstrando que o crime compensa (…)”, o que afecta a honra e reputação dos árbitros envolvidos e viola os deveres previstos no n.º 1 do art.º 112.º do RDLPFP.
Pelo que há que concluir que se verifica a infracção disciplinar por que o Recorrido foi punido.
Decisão
Pelo exposto, acordam em conferência os juízes da secção de contencioso administrativo do TCA Sul em conceder provimento ao recurso, revogar o acórdão recorrido e manter a decisão condenatória proferida no processo disciplinar n.º 73-18/19.
Custas pelo Recorrido.
Lisboa, 09 de Setembro de 2021

O relator consigna, nos termos do disposto no art. 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13.03, aditado pelo art. 3.º do DL n.º 20/2020, de 01.05, que têm voto de conformidade com o presente acórdão os Senhores Juízes Desembargadores Celestina Castanheira e Carlos Araújo, este intervindo em substituição, que integram a formação de julgamento.

Jorge Pelicano