Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:700/08.7BESNT
Secção:CT
Data do Acordão:03/25/2021
Relator:ANA CRISTINA CARVALHO
Descritores:GERENTE DE FACTO
FUNCIONÁRIO
CHEQUES
FALTA DE ANIMUS DOMINI
Sumário:I – Nos termos do artigo 24.º, n.º 1, da LGT, não basta para a responsabilização das pessoas aí indicadas a mera titularidade de um cargo, sendo indispensável que tenham sido exercidas as respectivas funções.

II - A assinatura de cheques desacompanhada do poder de não permite que se conclua pela efectividade da gerência.

III - O mero gerente de direito quando pratica os actos formais de gerência, como assinar cheques, por exemplo, não visa prosseguir os fins societários, que podem ser-lhe completamente alheios, mas apenas cumprir uma determinação de outrem que por razões de dependência económica e funcional, ou reverência aceita levar a cabo.

Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os Juízes que compõem a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul

I - RELATÓRIO

A Fazenda Pública, inconformada com a sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Sintra que julgou procedente a oposição deduzida por A….., com os sinais nos autos, ao processo de execução fiscal, que corre termos no Serviço de Finanças de Cascais - 1, contra a devedora originária A….., Lda., para a qual foi citado na qualidade de revertido, dela veio interpor o presente recurso formulando, para o efeito, as seguintes conclusões:

«I - Vem o presente recurso reagir contra a Sentença proferida pelo Douto Tribunal a quo nos presentes autos em 30-12-2017, a qual julgou procedente a Oposição à Execução Fiscal n.º ….., deduzida por A….., com o NIF ….., revertido no citado processo de execução fiscal, o qual havia sido originariamente instaurado contra a sociedade “A….., LDA.”, com o NIF ….., para a cobrança de dívidas fiscais referentes a IRC e Coimas, já devidamente identificadas nos autos, no valor de € 46.162,07 (quarenta e seis mil, cento e sessenta e dois euros e sete cêntimos) e acrescido.

II - Na Sentença ora recorrida julgou-se parcialmente procedente a Oposição acima identificada com o fundamento de que a Fazenda Pública em nenhum momento logrou efectuar a prova do exercício efectivo da gerência da sociedade devedora originária por banda do Oponente, o que gera a sua ilegitimidade quanto aos créditos em cobrança nos autos de execução fiscal n.º …...

III - Efectivamente, não descuida esta Fazenda Pública, tal como muito doutamente postulou o Tribunal a quo, que o ónus da prova da gerência de facto, cabe à Administração Fiscal, pois que, ao abrigo de qualquer um dos regimes estabelecidos no n.º 1 do artigo 24.º da LGT “é pressuposto da responsabilidade subsidiária o exercício de facto da gerência, cuja prova impende sobre a Fazenda Pública, enquanto entidade que ordena a reversão da execução” (cfr., entre vários outros, o Acórdão TCA SUL de 31/10/2013, Processo n.º 06732/13).

IV - No entanto, o facto de não existir não existe qualquer disposição legal que estabeleça uma presunção legal relativa ao exercício da gerência de facto, designadamente que ela se presume a partir da gerência de direito, não significa que não seja possível ao Tribunal, em face das regras da experiência, entender que existe uma forte probabilidade de esse exercício efectivo (de facto) da gerência por parte do Oponente possa ter acontecido.

V - Tal como se postulou no acórdão de 10 de Dezembro de 2008 da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, proferido no processo com o n.º 861/08, diga-se que “eventualmente, com base na prova de que o revertido tinha a qualidade de gerente de direito e demais circunstâncias do caso, nomeadamente as posições assumida no processo e provas produzidas ou não pelo revertido e pela Fazenda Pública, o Tribunal que julga a matéria de facto pode concluir que um gerente de direito exerceu a gerência de facto, se entender que, nas circunstâncias do caso, há uma probabilidade forte («certeza jurídica») de esse exercício da gerência ter ocorrido e não haver razões para duvidar que ele tenha acontecido”

VI - Assim, ainda que não seja possível partir-se do pressuposto de que quem figura como gerente de direito, se presume como tendo exercido, de facto, tais funções, sempre é possível ao Tribunal, em face das regras da experiência, da matéria factual e dos elementos probatórios carreados para os autos, entender que existe uma forte probabilidade de esse exercício efectivo (de facto) da gerência por parte do Oponente possa ter acontecido.

VII - Em primeiro lugar, durante o período a que respeitam as dívidas em crise, o Oponente era gerente da sociedade devedora originária, cfr. Certidão do Registo Comercial, já junta aos autos e que aqui se dá por inteiramente reproduzido para os devidos efeitos legais, sendo que o Oponente nunca diligenciou no sentido de apresentar qualquer tipo de prova documental susceptível de contrariar a força autêntica do registo, constante do artigo 11.º do CRC.

VIII - Diga-se, ainda, por consulta à Certidão Do Registo Comercial, que a gerência da sociedade devedora originária pertencia ao ora Oponente e também a S….., sendo que aquela se obrigava com a intervenção conjunta de dois gerentes.

IX - Assim, tendo em conta esta forma de obrigar a sociedade, ou seja, tendo em consideração que a sua assinatura obrigava a mesma, será legítimo presumir (presunção judicial baseada nas regras da experiência – artigo 35.º do CC), o exercício efectivo e continuado dos poderes de administração e representação de que era titular face à mesma sociedade, cfr. o Acórdão do TCA Sul de 06/10/2009, processo 03336/09.

X - Acresce que, da produção de prova testemunhal prestada nos presentes autos, resultou provado que o Oponente praticou diversos actos que consubstanciam o exercício efectivo da gerência da sociedade originária executada.

XI - Efectivamente, do depoimento do depoimento de M….., de 00:03:27 a 00:13:48, de 00:09:47 a 00:10:34 e de 00:10:39 a 00:11:48, todos do suporte digital da gravação da audiência de inquirição de testemunhas, já acima devidamente transcrito, resultou, de forma directa, credível e clara, que nos cheques da sociedade devedora originária era aposta a assinatura do Oponente.

XII - Desta forma, contrariamente ao que postula a Sentença recorrida, deveria ter sido dado como provado, nos presentes autos, que o Oponente apôs a sua assinatura em vários cheques relativos a sociedade devedora originária.

XIII - Assim, o facto de o Oponente ter assinado cheques, em nome e por conta da sociedade devedora originária e exteriorizando a vontade desta, é o suficiente para que se considere que praticou actos efectivos de gerência desta sociedade.

XIV - A jurisprudência dos Tribunais Superiores tem entendido que a assinatura de cheques necessários ao giro comercial da sociedade faz prova do exercício de facto de poderes de gerência da mesma, cfr. os acórdãos do TCA Sul de 04-05-2004 e de 07-03-2006, proferidos no âmbito dos processos n.º 1179/03 e 933/05, respectivamente.

XV - Na esteira do entendimento veiculado no acórdão do TCA Sul, de 20-06-2000, proferido no âmbito do processo n.º 3468/00, “tal como vem sendo jurisprudencialmente entendido, a lei não exige que os gerentes, para que sejam responsabilizados pelas dívidas da sociedade, exerçam uma administração continuada, apenas exigindo que eles pratiquem actos vinculativos da sociedade, exercitando desse modo a gerência de facto.

XVI - Assim, o facto de o Oponente ter assinado cheques, em nome e por conta da sociedade devedora originária e exteriorizando a vontade desta, é o suficiente para que se considere que praticou actos efectivos de gerência desta sociedade.

XVII - Contrariamente ao que postulou a Sentença recorrida, o Oponente tinha uma vontade decisiva no rumo a tomar pela sociedade devedora originária, exteriorizando a sua vontade e assinando documentos indispensáveis ao seu giro comercial, o que se subsume, plenamente, ao exercício efectivo (de facto) da gerência da sociedade devedora originária, em consonância com a invocada jurisprudência vertida pelos Tribunais Superiores.

XVIII - Com o devido e muito respeito, a Sentença ora recorrida, ao decidir como efectivamente o fez, estribou o seu entendimento numa inadequada valoração da matéria de facto e de direito relevante para a boa decisão da causa, tendo violado o disposto nas supra mencionadas disposições legais.


TERMOS EM QUE, E COM O DOUTO SUPRIMENTO DE VOSSAS EXCELÊNCIAS, DEVE SER CONCEDIDO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO E, EM CONSEQUÊNCIA, SER REVOGADA A SENTENÇA ORA RECORRIDA, COM AS DEMAIS E DEVIDAS CONSEQUÊNCIAS LEGAIS, ASSIM SE FAZENDO A COSTUMADA JUSTIÇA


*


O Recorrido apresentou contra-alegações, nas quais apresenta as seguintes conclusões:

I. A Recorrente FP interpôs recurso colocando em causa a apreciação da matéria de facto fixada pelo douto Tribunal a quo, mas não especifica em concreto que matéria de facto pretende ver alterada;

II. As presentes alegações de recurso não cumprem os requisitos legais para interpor recurso sobre a matéria de facto, pelo que a matéria de facto fixada pelo douto Tribunal a quo não pode ser objecto de alteração;

III. O douto Tribunal a quo deu como provados os factos constantes das alíneas h), i) e j) da matéria de facto dada por provada, logo resulta claro que todas as decisões da S….., Lda. eram tomadas por S….., limitando-se o ora Recorrido a executar as ordens que recebia;

IV. Resulta também da matéria de facto fixada que o Recorrido nunca teve qualquer interferência na gestão da S….., Lda.;

V. Resulta ainda da matéria de facto fixada que o Recorrido não tinha nenhuma função de gestão, não exerceu de facto a gerência e não teve culpa no não pagamento da dívida reclamada;

VI. As alegações de recurso são manifestamente deficientes e partem de premissas erradas;

VII. A Recorrente FP alega e mal que a Sentença recorrida julgou parcialmente procedente a oposição;

VIII. Na verdade, a sentença recorrida julgou totalmente procedente a oposição deduzida pelo Recorrido;

IX. A douta Sentença a quo é bem clara quando diz que o Recorrido/Oponente ficava constituído em responsabilidade subsidiária por dívidas da S….., Lda., se resultasse provado o exercício por este da gerência de facto;

X. A douta Sentença a quo deu como provado de forma clara e inequívoca que o ora Recorrido não exerceu a gerência de facto da devedora originária, a S….., Lda.;

XI. A douta Sentença a quo refere e bem que a FP, ora Recorrente, não logrou provar que o ora Recorrido exerceu a gerência de facto na S….., Lda.;

XII. O ónus da prova, nesta parte, incumbia à Recorrente FP, mas a douta Sentença a quo não teve dúvidas em dar como provado que o ora Recorrido não exerceu a gerência de facto;

XIII. O douto Tribunal a quo pode obviamente formar a sua convicção com as regras de experiência, mas neste caso concreto, não teve dúvidas sequer na decisão que tomou;

XIV. O douto Acórdão a quo a que a Recorrente alude não tem aplicação no caso vertente;

XV. O referido Acórdão é bem explícito quando refere que o Tribunal que julga a matéria de facto pode concluir que um gerente exerceu a gerência de facto se entender que há uma probabilidade forte, certeza jurídica, de ter ocorrido o exercício de gerência e de não haver razões para duvidar que tenha acontecido;

XVI. No caso em apreço não se verifica esta situação porque o Tribunal que julgou não teve dúvidas que o ora Recorrido não exerceu a gerência de facto na S….., Lda.;

XVII. As alegações da FP estão consubstanciadas em premissas erradas e em considerandos sem correspondência com o caso em apreço, nomeadamente por total falta de suporte factual ou documental;

XVIII. Pior, as alegações da FP aludem a factos que não constam da douta Sentença a quo e nem sequer pode pedir a alteração da matéria de facto porque o objecto do recurso não versa sobre a matéria de facto, porque não alega e não reúne os requisitos essenciais para versar sobre a matéria de facto fixada;

XIX. Não se pode deixar de alegar que as alegações da FP estão eivadas de óbvios lapsos de natureza processual e jurídica;

XX. Assim, sem necessidade de mais considerandos, resulta de forma clara e inequívoca que a Sentença recorrida é inatacável;

XXL Pelo exposto, o douto Tribunal a quo aplicou bem o direito face à matéria de facto dada por provada;

XXII. A Sentença recorrida não merece qualquer reparo ou censura face à qualidade técnica evidenciada, pelo que deve negar-se provimento ao recurso;

XXIII. Assim, deve negar-se provimento ao recurso e, em consequência, confirmar-se in totum a sentença recorrida.


Assim decidindo, mais uma vez, será feita, Venerando Desembargadores, a costumada e verdadeira JUSTIÇA


*




Foi dada vista ao Ministério Público, e neste Tribunal Central Administrativo, a Procuradora–Geral Adjunta pronunciou-se no sentido da procedência do recurso, porquanto, sustenta, «afigura-se-nos que, no caso em apreço, salvo o devido respeito por opinião contrária, deverá funcionar aquela presunção pois dos elementos, constantes dos autos e invocados pela AT pode-se extrair, com probabilidade forte, segundo as regras da experiência comum, o exercício de facto da gerência pelo oponente no período a que se reportam as dividas.»


Pelo que propõe a procedência do recurso, mais “devendo os autos baixar à 1ª instância para apreciação dos restantes fundamentos invocados.”.


*


Colhidos os vistos legais, vem o processo submetido à conferência para apreciação e decisão.

*


II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

Atento o disposto nos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2, do novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, o objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente no âmbito das respectivas alegações, sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando este tribunal adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso.

Importa assim, decidir:

i) se a sentença fez errado julgamento da matéria de facto relativamente à prova sobre o exercício efectiva das funções de gerente pelo recorrido;

ii) se ocorreu erro de julgamento na apreciação da matéria de facto e na apreciação de direito quanto à gerência de facto e quanto à ilegitimidade do recorrido.

III - FUNDAMENTAÇÃO

III – 1. De facto


É a seguinte a decisão sobre a matéria de facto constante da sentença recorrida:

« a) A 06/03/2002, foi celebrado contrato de sociedade da T….., Lda., sendo o seu capital social, de cinco mil euros, divido em três quotas, uma de quatro mil euros, atribuída a S….., e duas de quinhentos euros, atribuídas a A….. e a C….. (cfr. cópia de contrato de sociedade, de fls. 15 dos autos);
b) No contrato de sociedade a gerência ficou atribuída a todos os sócios (cfr. cópia contrato de sociedade, de fls. 15 e ss. dos autos);
c) O contrato de sociedade foi registado na Conservatória do Registo Comercial de Cascais, através da Ap. ….. (cfr. certidão de fls. 70 e ss. dos autos);
d) Contra a sociedade “A….., Lda.” foram instaurados os PEFs n.º …..e apensos, para cobrança de dívida de IR e coimas fiscais, no valor de 46.162,07, acrescido de juros e custos, no valor total de 60.095,27euros (cfr. informação de fls. 22 dos autos);
e) A 18/02/2008, foi entregue no SF Cascais requerimento, assinado por S….., na qualidade de gerente devedora originária “A….., Lda.”, onde se lê: “Em conformidade com o assunto em título, e de acordo com a nota de citação, relativo ao processo n. …..e apensos, da quantia exequenda no valor de 46.162,07€, venho propor o seguinte:
1 – Pagamento em prestações mensais, por um período de 36 meses,
2 –Isentar os restantes sócios da sociedade, do pagamento de qualquer montante relativo ao processo, enquanto se verificar o plano agora proposto, assim como da prestação de garantias,
(…)” (cfr. requerimento de fls. 64 do PEF);
f) A 11/01/2008 foi emitido mandado de citação, por reversão, do aqui oponente, no PEF n.º….., instaurado contra a sociedade “A….., Lda.” para cobrança de dívida no valor de 49.017,58euros, relativa a IRC e coimas, em cobrança nos PEFs: n. º ….., n.º ….., n.º….., ….., ….., n. º ….., no valor de 49.017,58euros (cfr. mandado de citação, de fls27 e 28 dos autos);
g) A 16/01/2008 foi citado o aqui oponente, no PEF ….. (cfr. nota de citação, de fls. 95 do PEF);
h) Era o sócio S….. quem dava ordens relativamente à devedora originária (cfr. depoimento da testemunha M…..)
i) A testemunha M….. tratava de assuntos da T….., Lda., de acordo com ordens de S….. (cfr. depoimento da testemunha M…..);
j) Quando S….. se ausentava das instalações da T….., Lda., deixava instruções ao oponente, quanto aos assuntos da T….., Lda., que este cumpria (cfr. depoimento da testemunha M…..);
k) O oponente, várias vezes, entregou os documentos para sua contabilização, à Técnica Oficial de Contas da T….., Lda. (cfr. depoimento da terceira testemunha, Joana Henriqueta).»

*
Consta ainda da mesma sentença que «Não há factos alegados e não provados com interesse para a decisão da causa.» e, em matéria de motivação, que

«Os factos provados assentam na análise crítica dos documentos juntos aos autos e não impugnados assim como do depoimento das testemunhas, conforme se indica em cada alínea do probatório.
Quanto à prova testemunhal produzida nos autos, importa referir:
- A primeira testemunha, M…..,, depôs de forma convincente, demonstrando conhecer o dia-a-dia da devedora originária, e conhecer a relação entre o oponente e o sócio maioritário da devedora originária, mais demonstrando, através de exemplos e da descrição do quotidiano, conhecer a dinâmica da devedora originária e entre o oponente e S…...
- A segunda testemunha não demonstrou conhecer os factos controvertidos nos autos, pelo que não releva para a prova dos factos;
- A terceira testemunha, TOC da devedora originária, demonstrou não conhecer o oponente como decisor e representante da devedora originária, sendo nessa medida que relevou o depoimento da testemunha, não demonstrando, quanto ao mais conhecer os factos controvertidos.
*

III – 2. De direito

Antes de mais, para melhor percebermos o alcance do recurso jurisdicional que nos vem dirigido importa ter presente o âmbito da decisão proferida.

O processo de execução fiscal (PEF) n.º …..foi instaurado originariamente contra a sociedade A….., Lda. para cobrança de dívidas provenientes de IRC de 2002 a 2004 e coimas.

A sentença recorrida julgou a oposição procedente, por ter concluído que a Fazenda Pública, em face da prova produzida nos autos, não efectuou a demonstração do exercício efectivo da gerência por parte do oponente, aqui recorrido.

A Fazenda Pública, ora recorrente, não se conforma com tal julgamento.

Nas conclusões I a XII, alega que, atenta a forma de obrigar a sociedade, com a intervenção conjunta de dois gerentes, impõe-se concluir que o oponente possuía uma intervenção pessoal e activa na sua vinculação, uma vez que a viabilidade da devedora originária era concretizada com a sua intervenção e assim sendo, considera ser legítimo presumir (presunção judicial baseada nas regras da experiência – artigo 350.º do CC), o exercício efectivo e continuado dos poderes de administração e representação de que era titular face à mesma sociedade.

Mais considera resultar da prova testemunhal que o oponente praticou diversos actos que consubstanciam o exercício efectivo da gerência da sociedade executada originária, pelo que deveria ter sido dado como provado, nos presentes autos, que o oponente apôs a sua assinatura em vários cheques relativos a sociedade devedora originária.

O recorrido contra-alega invocando que a recorrente coloca em causa a apreciação da matéria de facto fixada pelo Tribunal a quo, mas não especifica em concreto que matéria de facto pretende ver alterada (conclusão I).

Vejamos.

Nos artigos 20.º a 24.º do das alegações de recurso a Fazenda Pública indica e transcreve os depoimentos testemunhais dos quais considera resultar o facto identificado em 24.º que pretende aditar ao probatório, indicando ainda a decisão que entende que deve resultar de tal facto, pelo que se conclui que a recorrente satisfez os ónus a que alude o artigo 640.º do CPC, nada obstando à reapreciação da matéria de facto impugnada e, sendo o caso, à modificação da decisão da matéria de facto.

Da audição da gravação dos depoimentos das testemunhas resulta a prova do facto que a recorrente pretende ver aditado à matéria dada como assente.

Com efeito, do depoimento da primeira testemunha inquirida – M….., resultou a afirmação de que o recorrido assinava cheques. Embora não tenha resultado do depoimento da referida testemunha a indicação precisa, em termos temporais, isto é, não se sabe em que datas foram assinados cheques, se proceder-se-á ao pretendido aditamento nos seguintes termos:

l) O oponente apôs a sua assinatura em cheques emitidos pela sociedade executada principal (cfr. Depoimento da testemunha M…..);

Por se entender relevante à decisão a proferir, na medida em que documentalmente demonstrada, adita-se ao probatório, ao abrigo do preceituado no artigo 662.º, nº 1, do CPC, aplicável por força do artigo 281.º do CPPT, a seguinte factualidade:

m) A sociedade identificada em a) obriga-se com a assinatura de dois gerentes (cfr. Certidão da Conservatória do Registo Comercial de Cascais a fls. 67 e sgs dos autos);

n) O sócio C….. cedeu a sua quota ao oponente e renunciou à gerência em 14/5/2004 – cfr. escritura pública a fls. 198 do PEF;

o) O oponente era funcionário da sociedade R….. funcionando ambas as sociedades nas mesmas instalações (cfr. Depoimento da testemunha M…..).


*

Estabilizada a matéria de facto, impõe-se apreciar e decidir se ocorreu erro na apreciação da matéria de facto e no julgamento de direito, impondo-se, para o efeito, determinar se a aposição pelo recorrido da sua assinatura em cheques, nas circunstâncias concretas do caso, permite concluir de forma diversa do julgamento efectuado em primeira instância. Dito de outra forma, importa apreciar se a assinatura de cheques traduz uma vontade decisiva no rumo a tomar pela sociedade devedora principal, exteriorizando a sua vontade, constituindo prova do exercício efectivo, pelo recorrido, das funções de gerente (cf. conclusões XIII a XVIII).

Antes de mais, importa esclarecer que a Fazenda Pública, aqui recorrente, refere nas suas alegações de recurso que o recorrido teria assinado diversos documentos indispensáveis ao giro comercial exteriorizando a vontade da sociedade. Contudo, da prova adquirida nos autos apenas resulta provada a assinatura de cheques e não de outros documentos, pelo que é nesta óptica da verificação de que o recorrido assinava cheques que se apreciarão as restantes conclusões de recurso.

Ainda assim, tendo presente que tal factualidade não se mostra circunscrita a qualquer marco temporal, importa determinar se existem outros factos que permitam valorar essa prática, de modo a concluirmos que o recorrido participava na gestão de facto da devedora originária no período a que respeitam as dívidas exequendas.

No período relevante, nos anos de 2002 e 2004, a que respeitam as dívidas de IRC, o recorrido detinha uma participação no capital social minoritária, representativa de 10%. Nesse período, a gerência da sociedade estava atribuída aos três sócios, obrigando-se a sociedade com a assinatura de dois deles.

As coimas revertidas, reportam-se ao período de 2005 e 2006 sendo de referir que em 14/5/2004 o sócio gerente C….. cedeu ao recorrido a sua participação no capital da sociedade executada principal, representativa de 10%, tendo na mesma data renunciado à gerência (cf. ponto n) do probatório).

Para saber quem exerce de facto a gerência, é necessário saber quem toma as decisões no seio da sociedade. O facto de existirem cheques assinados pelo oponente, aqui revertido, constitui um indício que poderá evidenciar a existência de gerência de facto.

Contudo, a aferição do exercício de facto da gerência resulta da análise conjugada das diversas circunstâncias do caso concreto, de modo a que se possa afirmar que é gerente efectivo quem tem o domínio da condução da sociedade, quem toma as decisões de contratar, de adquirir produtos necessários ao desenvolvimento do objecto societário, que efectua os pagamentos aos fornecedores e, sendo o caso, aos trabalhadores.

Nos termos do disposto no artigo 259.º do C.S.C. ao gerente compete praticar os actos que forem necessários ou convenientes para a realização do objecto social, com respeito pelas deliberações dos sócios. Resultando dos n.ºs 1 e 4 do artigo 260.º do mesmo código que os actos praticados pelos gerentes, em nome da sociedade e dentro dos poderes que a lei lhes confere, vinculam-na para com terceiros, não obstante as limitações constantes do contrato social ou resultantes de deliberações dos sócios, através de actos escritos, apondo a sua assinatura com indicação dessa qualidade.

Para efeitos de responsabilização subsidiária pelas dívidas tributárias contraídas pela sociedade, podem ser chamados ao processo de execução fiscal através da reversão os administradores, directores e gerentes e outras pessoas que exerçam, ainda que somente de facto, funções de administração ou gestão conforme resulta do n.º 1 do artigo 24.º da LGT e n.º 1 do artigo 8.º do RGIT.

Reapreciando todos os depoimentos prestados em sede de inquirição de testemunhas (designadamente da testemunha M…..), resulta a prova de que as decisões da sociedade eram tomadas pelo S….., sócio maioritário, sendo o recorrido um mero executante dessas ordens e que na ausência daquele eram deixadas indicações sobre as tarefas a executar, conforme alíneas h) e j) da matéria de facto.

Considerando que a referida testemunha declarou ser secretária da sociedade R….., onde o recorrido é funcionário, que a mesma sociedade é detida pelo referido S….., e que a executada originária funcionava nas mesmas instalações, executando a testemunha tarefas administrativas nas duas sociedades, o seu depoimento resulta do conhecimento directo dos factos. Resultou do depoimento da testemunha em causa que os cheques eram assinados pelo S….. e depois pelo recorrido. Declarou ainda que o recorrido era a pessoa que substituía S….., sendo o seu papel o de mero executor, afirmando que «sempre que o senhor engenheiro precisava de alguma coisa pedia ao Sr A…..». Mais afirmando que «o senhor engenheiro não deixava ninguém tomar decisões, era ele que tomava as decisões fosse na T….., fosse na R…..». Por fim, declarou a mesma testemunha que, quando o S….. se ausentava, reunia com o recorrido para lhe indicar o que precisava que fosse executado.

Também a segunda testemunha inquirida sublinhou as características do S….. concentrando em si toda a definição da estratégia empresarial das sociedades em que detinha participação.

Do depoimento das testemunhas inquiridas resulta claramente que o gerente que tinha o domínio do destino da sociedade executada principal, era S…... As testemunhas apontaram ao recorrido o papel de mero executor das ordens emitidas pelo S….. situação que é consentânea com o facto de o recorrido ser funcionário da sociedade R….. detida pelo S….., da qual resulta uma ambiência de domínio e ascendência deste em relação ao recorrido.

Embora detentor de uma participação de 10% na sociedade devedora principal, a nomeação do recorrido como gerente, tendo em conta os aludidos depoimentos permitem concluir que a sua dependência económica e funcional em relação a S….. aliada à actuação deste, tomando as rédeas da sociedade, permitem concluir pela prova de que era S….. o efectivo gerente e não o recorrido. Para além de se desconhecer em que datas foram assinados os cheques, o que resulta da prova testemunhal, é que essa assinatura não era acompanhada do animus domini. O recorrido actuava na sociedade executando as decisões do gerente S….., esse sim actuando com animus domini. A identificação de S….. como o órgão actuante e decisor com domínio na condução da empresa é congruente e consentâneo com o teor do requerimento assinado pelo referido S….., na qualidade de gerente da sociedade dirigido ao órgão da execução fiscal propondo o pagamento da dívida exequenda em prestações, solicitando ainda que os restantes sócios da sociedade fossem «isentados» «do pagamento de qualquer montante relativo ao processo enquanto se verificar o plano agora proposto, assim como da prestação de garantias», conforme alínea e) da matéria de facto provada. Com sentido útil, retira-se de tal requerimento o reforço do entendimento de que o próprio S….. se assume como gerente efectivo da sociedade, com o animus domini, com exclusão dos demais sócios, assumindo a responsabilidade pelas dívidas.

Conjugando o supra referido circunstancialismo com o aludido requerimento, não se nos oferece qualquer dúvida de que quem ocupava a posição de decisor era o S….. e assim sendo, era não só gerente de direito, como era quem detinha o exercício de facto da gerência.

O que se deixou dito, permanece válido relativamente ao período de 2005 a 2006 em que está em causa a responsabilidade do recorrido por coimas e custas na medida em que, a aquisição de 10% do capital da sociedade por cessão efectuada pelo terceiro sócio gerente em nada alterou o funcionamento da sociedade relativamente ao peso do sócio maioritário e ao modo como exercia o domínio na gestão da sociedade, mantendo-se o recorrido como um mero executor funcionalizado das decisões do sócio gerente S…...

Neste quadro descrito, a assinatura de cheques, embora constitua um indício do exercício de funções de gerência de facto, no caso concreto não é acompanhada do poder de decidir o rumo da sociedade, de decidir que pagamentos efectuar e a quem destinar os pagamentos. O recorrido alegava inclusivamente na petição inicial que desconhecia a existência de dívidas tributárias. No caso vertente quem detinha as rédeas da empresa era o S….. e não o recorrido. A assinatura de cheques na sociedade A….., Lda, tendo em conta a já referida dependência funcional do recorrido em relação a S….. na sociedade R….., assume-se como uma extenção da execução de tarefas, de acordo com as ordens e orientações de S….., conforme referiram as testemunhas inquiridas.

A este propósito cita-se o Acórdão proferido pelo TCAN no processo n.º 01417/05.0BEVIS datado de 16/04/2015 «o mero gerente de direito pratica actos formais de gerência; porém, fá-lo na dependência do gerente efectivo que lhe assinala a «oportunidade», o «que» e o «como» fazer. A sua função «esgota-se» nas assinaturas e não «pode» (porque não tem o poder) ir para além disso. Precisamente porque lhe falta a densidade substantiva do cargo.»

Alega ainda a recorrente que o oponente nunca diligenciou no sentido de apresentar qualquer tipo de prova documental susceptível de contrariar a força autêntica do registo, constante do artigo 11.º do CRC, contudo, o requerimento a que fizemos referência supra, constitui um indicador forte que contraria a presunção derivada do registo.

Na verdade, é pacífico que não há qualquer presunção legal que faça decorrer da qualidade de gerente de direito o efectivo exercício dessa função ou que faça inverter o ónus da prova que recai sobre a Fazenda Pública, pelo que não lhe assiste razão.

Assim sendo, em face das regras da experiência, considerando os circunstancialismos supra apreciados, resulta a convicção do tribunal de que não foi provado o exercício efectivo (de facto) da gerência por parte do oponente, ora recorrido, tendo em conta que, nas circunstâncias concretas do caso que nos ocupa, a aposição pelo recorrido da sua assinatura em cheques não traduz uma actuação em nome e por conta da sociedade devedora originária no sentido de definir o rumo da sociedade e de deter o poder de decidir que pagamentos efectuar e em que termos, de modo a que possa afirmar que seja um órgão atuante da sociedade acompanhado de animus domini. Constituindo a gerência de facto requisito da responsabilidade subsidiária dos gerentes, impõe-se concluir pela improcedência do recurso, com a consequente confirmação da sentença recorrida.


*


IV – CONCLUSÕES

I – Nos termos do artigo 24.º, n.º 1, da LGT, não basta para a responsabilização das pessoas aí indicadas a mera titularidade de um cargo, sendo indispensável que tenham sido exercidas as respectivas funções.

II - A assinatura de cheques desacompanhada do poder de não permite que se conclua pela efectividade da gerência.

III - O mero gerente de direito quando pratica os actos formais de gerência, como assinar cheques, por exemplo, não visa prosseguir os fins societários, que podem ser-lhe completamente alheios, mas apenas cumprir uma determinação de outrem que por razões de dependência económica e funcional, ou reverência aceita levar a cabo.

V - DECISÃO


Termos em que, acordam os juízes da Secção do Contencioso Tributário do TCA Sul em negar provimento ao recurso jurisdicional, e confirmar a sentença recorrida.


Custas pela recorrente.

Lisboa, 25 de Março de 2021.

A Relatora consigna e atesta, que nos termos do disposto no artigo 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13/03, aditado pelo artigo 3.º do DL n.º 20/2020, de 01/05, têm voto de conformidade com o presente Acórdão as restantes Desembargadoras integrantes da formação de julgamento, as Senhoras Desembargadoras Ana Pinhol e Isabel Fernandes.


Ana Cristina Carvalho