Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:2072/07.8BELSB
Secção:CT
Data do Acordão:06/04/2020
Relator:PATRÍCIA MANUEL PIRES
Descritores:IRC
LIQUIDAÇÃO OFICIOSA
ELEMENTOS CONTABILÍSTICOS
Sumário:
I- A apresentação de declaração de rendimentos Modelo 22 de IRC, fora do prazo legal mas dentro do prazo de caducidade não implica, per se, a anulação da liquidação oficiosa, desde logo, porque a aludida declaração não goza da presunção de verdade declarativa.

II- Essa falta de presunção de verdade declarativa não se estende à contabilidade, desde que devidamente organizada;

III- Tendo sido apresentada declaração de rendimentos após a emissão de liquidação oficiosa, mas dentro do prazo de caducidade e mediante a faculdade consignada no artigo 83.º, nº 10 do CIRC, o princípio da tributação do lucro real impõe outras diligências por parte da Administração Tributária, designadamente, a realização de ação inspetiva para aferição de todos os elementos que foram supervenientemente apresentados pelo contribuinte e na sequência de pronúncia da Administração Tributária. Inexistindo tal procedimento ocorre excesso de quantificação de rendimentos.

Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
ACÓRDÃO

l – RELATÓRIO

O DIGNO REPRESENTANTE DA FAZENDA PÚBLICA (DRFP) veio interpor recurso jurisdicional da sentença proferida, pelo Tribunal Tributário de Lisboa, que julgou procedente a impugnação judicial deduzida por S….., sa, tendo por objeto a liquidação oficiosa de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC), respeitante ao exercício de 2003, no montante de €8.201,38.


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A Recorrente, apresenta as suas alegações de recurso nas quais formula as conclusões que infra se reproduzem:

I. O presente recurso tem por objeto a douta sentença recorrida, proferida no processo supra referenciado, a qual julgou procedente a impugnação judicial e determinou a anulação da liquidação oficiosa de Imposto sobre o Rendimento de Pessoas Coletivas (IRC), relativa ao exercício de 2003, no montante de € 8.201,38. Em sede de reclamação graciosa foi o pedido da Impugnante parcialmente deferido pelo que nessa parte concluiu a sentença pela inutilidade superveniente da lide.

II. A sentença que, a nosso ver, e salvo o devido respeito, padece de erro de julgamento no que toca à apreciação e valoração dos factos relevantes para a causa e à interpretação e aplicação das correspondentes normas jurídicas, nomeadamente as regras do ónus da prova.

III. Importa, antes de mais, referir que a questão a decidir nos presentes autos prende-se, essencialmente, com o enquadramento jurídico-fiscal dos elementos trazidos aos autos pela Impugnante, de forma a demonstrar a veracidade da sua declaração e cujo teor consta dos autos e se dá aqui por integralmente reproduzido.

IV. Salvo o devido respeito, tal conclusão, errada, a nosso ver, resulta, antes de mais, do facto de o Tribunal a quo ter efetuado uma errada interpretação quer do conteúdo da alínea b) do n.º 1 e n.º 10 do artigo 83.º do Código do IRC (CIRC) que confere à A.T. competência para proceder oficiosamente à liquidação do imposto, facto que não foi impugnado, quer sobre a questão fulcral, ou seja, que a Impugnante não comprova como lhe era devido que os valores apresentados na declaração de substituição, apresentada fora de prazo, condizem com a sua realidade contabilística, nos termos do n.º 1 do artigo 74.º da LGT, pelo que, visto que a veracidade dos valores declarados por si não estão devidamente demonstrados, carecem os serviços da administração tributária, realizar qualquer correção.

V. Com efeito, e atento ao n.º 10 do artigo 83.º do CIRC para corrigir a liquidação oficiosa, considerando a liquidação de substituição apresentada pela Impugnante, sempre se dirá que seria fundamental que essa realidade contabilística fosse demonstrada, o que de facto não aconteceu, atenta à prova realizada.

VI. Na verdade, vem referido na reclamação graciosa com processo n.º ….., que “elaborada a informação e o projecto de decisão acima descrito no sentido do indeferimento, tendo sido dado conhecimento à reclamante através do oficio n.º ….. de 18/04/2008 … - Vem a reclamante juntar novos elementos de prova e invocar que os mesmos permitem aferir a justiça da matéria reclamada, nomeadamente, a correcção do lucro tributável de €8.473,56 “ o que na verdade foi tido em consideração na decisão constando “não juntou os documentos de suporte aos lançamentos efectuados, a fim de comprovar a veracidade dos respectivos lançamentos.”.

VII. Ao que advém da sentença proferida “Resulta, assim, do exposto, que a Administração Tributária estava não só vinculada a emitir a liquidação oficiosa, como também, a considerar a declaração de rendimentos apresentada pela impugnante, bem como dar a possibilidade à Impugnante de fornecer os elementos úteis à liquidação, o que também não foi feito em sede de reclamação graciosa.”

VIII. Ora o ónus da prova que a douta decisão diz “recaíam sobre a Administração Tributária, conforme decorre do estatuído no artigo 74.º, n.º 1 da LGT”, na nossa modesta opinião recaí sobre a Impugnante.

IX. Sendo que resulta dos factos assentes no ponto 5) que a liquidação oficiosa foi realizada com base na alínea b) do n.º 1 do artigo 83.º CIRC.

X. No ponto 9) que “Em 29/04/2008 a Impugnante foi notificada para exercer o direito de audição prévia no âmbito do procedimento de reclamação graciosa, com proposta de deferimento parcial, por não ter junto “qualquer prova documental a comprovar o alegado na petição (…), ou seja o lucro tributável declarado” e por os serviços terem verificado “no sistema informativo, na consulta ao anexo J/modelo 10, foram efectuadas as retenções na fonte no montante de € 4634,00, que devem ser consideradas na liquidação reclamada” (cfr. RG apenso):”

XI. Aliás conforme consta logo no ponto 10) “Em 14/05/2008 a Impugnante apresentou resposta, à qual juntou 8 documentos, e na qual peticionou que a RG fosse totalmente deferida (cfr. RG apenso);”

XII. Posto isto, e de acordo com a decisão proferida em sede de reclamação graciosa, foram considerados os documentos e as provas trazidas aos autos pela Impugnante, no entanto, como é sabido, não foram suficientes para demonstrar os lançamentos contabilísticos realizados, logo não existiria qualquer fundamento para corrigir a liquidação de acordo com a pretensão da Impugnante.

XIII. Convergindo a nossa decisão, face ao conteúdo do douto parecer emanado pelo Procurador da República que refere “A liquidação impugnada não viola qualquer disposição legal, facto que nem sequer é invocado pela impugnante, assim a mesma deverá ser mantida na ordem jurídica”.

XIV. Não tendo qualquer suporte legal a decisão ora em crise na medida em que anula a liquidação impugnada, não encontra a mínima sustentação, desde logo, no elemento basilar, nas regras do ónus da prova.

XV. Neste sentido a liquidação nos termos da al. b) do n.º 1 do artigo 83.º do CIRC assenta na determinação da matéria tributável por avaliação indirecta, por se basear em rendimentos presumidos, competia à Impugnante arguir e fazer prova dum suposto excesso de quantificação da matéria tributável determinada nesses termos, de acordo com o n.º 3 do art. 74.º da LGT.

XVI. Posto isto, o princípio da tributação do rendimento real não impede que existam situações em que não há outra solução senão o recurso à tributação do rendimento normal, quando não é possível conhecer com suficiente aproximação o rendimento real.

XVII. Mesmo a formulação do princípio no artigo 104.º da Constituição da República Portuguesa refere que a tributação das empresas incidirá “fundamentalmente” sobre o seu rendimento real: é um princípio que admite, excecionalmente, desvios ou exceções.

XVIII. De toda a argumentação desenvolvida conclui-se que a AT atuou no exercício de uma competência vinculada, ao abrigo dos artigos 104.º da Constituição da República Portuguesa e artigo 83.º, n.º 1 al. b) do CIRC, da redação aplicável, e que a Impugnante, ao reagir contra a não consideração da declaração modelo 22 apresentada em 01/08/2005, pretendeu o reconhecimento judicial de uma realidade declarada que não só não provou como não invocou nos meios adequados.

XIX. A Fazenda Pública propugna pela procedência do recurso, devendo a sentença recorrida, ser revogada, e decidida a improcedência da impugnação no que concerne à ilegalidade assacada à liquidação impugnada, por erro sobre os pressupostos de facto, por não ter considerado a declaração referente ao IRC de 2003 apresentada pela sociedade, em 01/08/2005, designadamente a matéria colectável dela decorrente.

Termos em que, concedido provimento ao recurso, deve a douta sentença recorrida ser revogada e a impugnação ser julgada improcedente.”


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A Recorrida devidamente notificada para o efeito, contra-alegou tendo concluído da seguinte forma:

“1- A sentença recorrida não merece qualquer censura quer quanto à apreciação e valoração dos factos julgados provados, quer quanto à indicação, interpretação e aplicação das normas jurídicas correspondentes.

2- A ora recorrida deduziu a presente impugnação judicial do indeferimento tácito da reclamação graciosa de IRC do ano de 2003 e juros compensatórios, no montante total de € 8.210,37.

3- Já na pendência da presente impugnação, a Administração Tributária proferiu decisão no procedimento de reclamação graciosa de deferimento parcial, por ter verificado no sistema informático que foram efectuadas retenções na fonte, no valor de € 4.634,31, que devem ser considerados na liquidação de IRC de 2003.

4- Atenta a revogação parcial do acto de liquidação oficiosa de IRC do ano de 2003, o Tribunal “a quo” julgou, quanto a ela, extinta a instância por inutilidade superveniente da lide não imputável à Impugnante, nos termos e para os efeitos do art. 277º alínea e) do CPC ex vi art.s 2º, alínea e) do CPPT e art. 1º do CPTA.

O Digno Magistrado do Ministério Público, no âmbito da presente impugnação, emitira no mesmo sentido, o seu Parecer n.º 287/2013 (cfr. Fls 109 a 110).

5- A recorrente, nas suas alegações, omite factos julgados provados, interpreta erroneamente a lei quanto ao ónus da prova e afasta-se ostensivamente dos princípios da declaração e da tributação do rendimento real, estando este último consagrado no art. 104º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa.

6- A Administração Fiscal emitiu em 22/07/2005 a liquidação oficiosa n.º ….., de IRC de 2003, no montante de € 8.210,37, notificada à ora requerida em 17/07/2006 (cfr. Pontos 2 e 4 da matéria de facto dada como assente). E a respectiva emissão e notificação foi feita nos termos da al. b) do n.º 1 do art. 83º do CIRC, por falta de entrega da declaração de rendimentos, conforme nota demonstrativa e fundamentação constante da liquidação (cfr. Doc. 1 da p.i.).

7- Ora, apesar do art. 83º, n.º 1 b) exigir que a emissão e notificação das liquidações aos sujeitos passivos, na circunstância em que as declarações de rendimentos não são atempadamente entregues pelos contribuintes, devem ser efectuadas até 30 de Novembro do ano seguinte àquele a que respeitam os rendimentos, a Administração Tributária apenas o fez ao sujeito passivo, ora recorrida, em 17/07/2006, ou seja, quase um ano depois da data em que o deveria ter feito (cfr. Ponto 4) da matéria de facto dada como assente).

8- E estabelece-se ainda no referido art. 83º, n.1, al. b) do CIRC que nesse caso (de a Impugnante não ter apresentado atempadamente a declaração periódica de rendimentos relativa ao ano de 2003), a emissão da liquidação oficiosa terá por base a “matéria colectável do exercício mais próximo que se encontre determinada”.

9- Nestas circunstâncias, como muito bem se salienta na douta sentença recorrida, “tem-se vindo a entender que a emissão da liquidação assume um carácter provisório, na medida em que a Administração Tributária pode socorrer-se desde logo da matéria colectável do exercício mais próximo que tem à sua disposição, devendo emitir e notificar a inerente liquidação até 30 de Novembro do ano seguinte relativamente ao período tributário em causa, sendo que, nos termos do n.º 10 da referida norma legal, a liquidação poderá ser corrigida dentro do prazo de caducidade do direito de liquidar os tributos, se for caso disso, cobrando-se ou anulando-se então as diferenças apuradas (cfr. Arts 83º, n.º 10 e 93º do CIRC).”

10- Ora, de acordo com o ponto 3) da matéria de facto assente, a Impugnante, ora recorrida, apresentou em 01/08/2005 a declaração de rendimentos do exercício de 2003, ou seja, em data anterior à da notificação da liquidação oficiosa.

11- Como a Impugnante articulou na sua petição inicial, a sua contabilidade estava devidamente organizada, respeitando os princípios estabelecidos pelas normas e regras contabilísticas à data em vigor, cumprindo o estabelecido no Código Comercial e em toda a legislação fiscal, nomeadamente no CIRC e no CIVA (arts 10º, 11º e 12º da petição inicial da Impugnação Judicial).

12- E os factos registados na sua contabilidade espelhavam a sua atividade para um apuramento real do seu rédito, tendo como suporte toda a documentação devidamente contabilizada, numerada e arquivada, reflectindo a imagem fiel e verdadeira da situação patrimonial da impugnante (art. 12º da petição inicial da Impugnação Judicial), factos que a Administração Tributária não contrariou na sua contestação, como bem salienta o Senhor Juiz “a quo” na sua douta sentença.

13- Ora, de acordo com o princípio da declaração, os dados declarados pelo contribuinte presumem-se verdadeiros quando a contabilidade estiver organizada nos termos da lei (cfr. 75º, n.º 1 da LGT).

14- Salientam a propósito, na Lei Geral Tributária, Comentada e Anotada, Almedina, 2015, José Maria Fernandes Pires, Gonçalo Bulcão, José Ramos Vidal e Maria João Menezes, em anotação ao art. 75º, n.º 1, que “de acordo com as regras do ónus probatório, esta presunção (presumem-se verdadeiras as declarações dos contribuintes) obriga a administração tributária a provar qualquer falsidade declarativa dos contribuintes”. E ainda salientam que “A contabilidade das empresas desempenha um papel determinante na relação entre a administração tributária e os contribuintes, por ser o sistema de informação que revela a atividade da empresa, e onde está espelhada toda a verdade tributária acerca dessa atividade. É através da contabilidade que a administração tributária exerce a sua função de acompanhamento e de controlo do cumprimento das obrigações tributárias das empresas.”

15- E como bem se salienta na douta sentença recorrida, é à Administração Tributária que cabe “observar as realidades tributárias e a verificação do cumprimento das obrigações tributárias junto dos contribuintes, prevenindo as infracções tributárias (cfr. Art. 2º e seguintes do Regime Complementar do Procedimento de Inspecção Tributária).

E estes ónus recaíam sobre a Administração Tributária, conforme decorre do estatuído no art. 74º, n.º 1 da LGT.”

A propósito, escreve Elisabete Louro Martins em “O Ónus da Prova no Direito Fiscal”, Coimbra Editora, que “nos termos do n.º1 do art. 74º da LGT que constitui uma transposição do art.º 342º, n.º 1 do CC, cabe à Administração Fiscal o ónus da prova dos factos constitutivos do seu direito de actuação, ou seja, do seu direito de tributar, demonstrando o cumprimento do mesmo ónus na fundamentação substancial do acto tributário”.

16- Acresce que, como acima alegado, “se o contribuinte apresentar tardiamente a declaração de rendimento, mas se o fizer dentro do prazo de caducidade, as correcções à repectiva liquidação deverão ocorrer, face ao estatuído nos n.ºs 1 e 10 do art. 83º do CIRC” como se salienta na douta sentença recorrida.

E a data da apresentação da declaração de rendimentos pela Impugnante foi dentro do prazo de caducidade, pelo que a Administração tributária deveria ter procedido à correcção da respectiva liquidação emitida e notificada.

17- E como bem se salienta na douta sentença recorrida, “ atento o princípio da tributação do rendimento real (art. 104º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa) deverá a liquidação oficiosa ser corrigida atendendo ao teor da declaração apresentada pela Impugnante (ora recorrida), por corresponder ao exercício do respectivo ano de tributação.”

18- E como ensina o Prof. Duarte Morais em “Apontamentos ao IRC”, Almedina, “o imposto deve incidir sobre o rendimento real. Assim determina o art. 104º, n.º 2 da CRP (a tributação das empresas incide, fundamentalmente, sobre o seu rendimento real). O rendimento real é apurado a partir da contabilidade, o que, em princípio, assegura a efectividade das operações consideradas.” (pgs 168 e 169).

19- Em “Direito Fiscal”, Almedina, pag. 204, ensina a Prof. Ana Paula Dourado que “Rendimento real é o rendimento tributável que resulta da diferença entre proveitos e gastos e é apurado segundo métodos directos, isto é, com base na contabilidade e outros deveres de declaração”.

20- A douta sentença recorrida deve, pois, manter-se na íntegra, devendo a Administração Tributária proceder à correcção da liquidação em causa, substituindo-a por outra que tenha por base a matéria colectável resultante da declaração apresentada pela Impugnante, ora recorrida.

Termos em que o presente recurso deve improceder e, consequentemente, ser confirmada na íntegra a douta sentença recorrida.”


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O Digno Magistrado do Ministério Público, promoveu a improcedência do recurso.

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Colhidos os vistos legais, vem o processo submetido à conferência desta Secção do Contencioso Tributário para decisão.

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II – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A sentença recorrida considerou provados os seguintes factos:

De acordo com os elementos existentes nos autos, apurou-se a seguinte matéria de facto:

1) A impugnante tinha a actividade de compra e venda de bens imobiliários, estando enquadrada, em sede de IRC, no regime geral de tributação, no exercício de 2003 (cfr. processo administrativo apenso (PA));

2) Em 22/07/2005 foi emitida a liquidação oficiosa de IRC de 2003, com o n.º ….. e respectivos juros compensatórios, no montante de € 8.210,37 (cfr. PA);

3) Em 01/08/2005 a Impugnante submeteu, via internet, a declaração periódica de rendimentos 22/IRC do exercício de 2003 (cfr. Doc. 3 da p.i.);

4) Em 17/07/2006 foi a Impugnante notificada da liquidação oficiosa identificada no ponto 2, com prazo limite de pagamento em 19/08/2006 (cfr. Doc. n.º 1 da p.i. e PA apenso);

5) Na demonstração de liquidação de IRC consta que a mesma foi efectuada nos termos da alínea b) do n.º 1 do art. 83.º do CIRC, por falta de entrega da declaração de rendimentos, conforme nota demonstrativa junta (cfr. Doc. n.º 1 da p.i.);

6) Para cobrança da quantia respeitante à liquidação identificada em 2) foi instaurado o processo de execução fiscal n.º ….., que se encontra suspenso por ter sido prestada garantia (cfr. PA apenso);

7) Em 06/09/2006, a Impugnante apresentou reclamação graciosa da liquidação mencionada nos pontos 2 e 4 supra (cfr. Doc. n.º 2 da p.i. e procedimento de reclamação graciosa (RG) apenso);

8) Em 27/04/2007 foi deduzida a presente impugnação (cfr. carimbo fls. 1 do suporte físico).

9) Em 29/04/2008 a Impugnante foi notificada para exerceu o direito de audição prévia no âmbito do procedimento de reclamação graciosa, com proposta de deferimento parcial, por não ter junto “qualquer prova documental a comprovar o alegado na petição (…), ou seja o lucro tributável declarado” e por os serviços terem verificado “no sistema informativo, na consulta ao anexo J/modelo 10, foram efectuadas as retenções na fonte no montante de € 4634,00, que devem ser consideradas na liquidação reclamada” (cfr. RG apenso):

10) Em 14/05/2008 a Impugnante apresentou resposta, à qual juntou 8 documentos, e na qual peticionou que a RG fosse totalmente deferida (cfr. RG apenso);

11) Por despacho do Chefe de Divisão Administrativa, proferido em 30/06/2008 foi deferida parcialmente a reclamação graciosa, com a fundamentação já constante do projecto de decisão, por os elementos contabilísticos juntos com a resposta à audição prévia não terem sido acompanhados dos correspondentes documentos de suporte aos lançamentos efectuados, a fim de comprovar a veracidade dos respectivos lançamentos (cfr. RG apenso);

12) Em 02/09/2008, através do ofício n.º ….., datado de 19/08/2008, a impugnante foi notificada de decisão de indeferimento parcial da reclamação graciosa (cfr. RG);

13) Do deferimento parcial da reclamação graciosa foi pela Impugnante deduzido recurso hierárquico (cfr. PA apenso);


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A decisão recorrida consignou como factualidade não provada o seguinte:

“Não se provaram outros factos com interesse para a decisão da causa, designadamente que a Administração Tributária tenha emitido uma primeira liquidação oficiosa em 30/11/2004, uma vez que o documento de fls. 18 do procedimento de reclamação graciosa trata-se de documento interno, sem qualquer outro suporte.”


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A motivação da matéria de facto constante na sentença apresenta o seguinte teor: “Os factos provados assentam na apreciação conjugada e crítica dos documentos constantes dos autos e nos processos apensos, que não foram impugnados, indicados relativamente a cada um dos factos e na matéria aceite por acordo pelas partes, atenta a posição vertida nos respectivos articulados.

A não consideração dos factos não provados resulta de ausência de prova ou são inócuos à decisão da causa.”

Atento o disposto no artigo 662.º, nº 1, do CPC, ex vi artigo 281.º do CPPT acorda-se em alterar a redação de parte da factualidade mencionada em II), em virtude de resultarem dos autos elementos documentais que exigem tal alteração.[1]

Nesse seguimento, procede-se à alteração da redação dos factos que infra se identificam, por referência à sua enumeração efetuada em 1.ª instância:

10) A 14 de maio de 2008, na sequência da notificação do projeto de decisão de reclamação graciosa referido em 9, a sociedade “S….., SA”, exerceu audição prévia tendo apresentado os seguintes documentos tendentes a provar o lucro tributável declarado na declaração de rendimentos modelo 22 referida em 3:
ü Balancetes analíticos antes e após encerramento de contas;
ü Extratos de contabilidade: contas correntes da classe 6 e da classe 7
ü Documentos de suporte da classe 6 e classe 7
ü Balanço e Demonstração de Resultados
ü Cópia dos Livros Selados
ü Extratos da Conta 31
ü Inventário da Existências em 2002.12.31 e 2003.12.31
ü Documentos de suporte do lançamento do CMVC e discriminação por fração vendida.
ü Documentos, meios de prova do pagamento do “imposto especial por conta”.

(cfr. direito de audição junto ao PA apenso);

11) A 30 de junho de 2008, e na sequência do exercício de audição prévia referida em 10, foi prolatado despacho pelo Chefe de Divisão Administrativa da Direção de Finanças de Lisboa, de deferimento parcial da reclamação graciosa, tendo por base a informação instrutora elaborada pela Técnica da Divisão Administrativa extratando-se na parte que para os autos releva, designadamente, o seguinte:

“IV- informação complementar

Realizada a instrução do processo, foi elaborado a informação e o projecto de decisão acima descrito no sentido do indeferimento, tendo sido dado conhecimento à reclamante através do ofício nº ….. de 18/04/2008, a fls. 31 acompanhado de fotocópia da citada informação. (…)

-Vem o reclamante juntar novos elementos de prova e invocar que os mesmos permitem aferir a justiça da matéria reclamada, nomeadamente, a correcção quanto ao lucro tributável de €8.473, 56, constante Modelo 22/IRC 2003.

Ora no caso em apreço, a reclamante aos elementos contabilísticos (extratos balanços…), não juntou os correspondentes documentos de suporte aos lançamentos efectuados, a fim de comprovar a veracidade dos respectivos lançamentos.”


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Por se entender relevante à decisão a proferir, na medida em que documentalmente demonstrada adita-se ao probatório, ao abrigo do preceituado no artigo 662.º, nº 1, do CPC, ex vi artigo 281.º do CPPT, a seguinte factualidade:

14) A liquidação oficiosa referida em 2), computou como matéria coletável o valor de €28.178,64, correspondente à matéria coletável declarada na Declaração de Rendimentos Modelo 22, do exercício de 2001 ( facto que se extrai do procedimento de reclamação graciosa e recurso hierárquico, expressamente reconhecido pela Recorrida na sua petição de reclamação graciosa e em conformidade com o valor contemplado na liquidação oficiosa);

15) Na declaração de rendimentos modelo 22, evidenciada em 3, a “S….., SA”, declarou, designadamente, o seguinte:

Resultado Líquido do Exercício                   €5.677,28

Lucro Tributável                                                 €8.473,56

Total de Proveitos do Exercício                    €22.044,63

(cfr. fls. 25 a 27 dos autos);

16) A 01 de agosto de 2005, foi entregue a Declaração Anual-IES, referente ao exercício de 2003, constando no Anexo A, designadamente, os seguintes valores:

Proveitos e ganhos financeiros                                                    €22.044,63

Fornecimentos e serviços externos                                            €9.044,73

Impostos                                                                                                 €3.612,93

Amortizações e Reintegrações do exercício                                  €910,00

Total dos Custos                                                                                €13.571,07

Resultado Líquido do Exercício                                                         €5.677,28

Existências Finais                                                                              €175.396,54

(cfr. fls. 21 a 24 dos autos);

17) No Balancete da “S….., SA”, reportado a 31 de dezembro de 2003, consta, designadamente, o seguinte:

Proveitos e Ganhos Financeiros [Saldo devedor]                  € 22.044,63

Fornecimentos e serviços externos                                            €9.044,73

Impostos                                                                                                 €3.612,93

Amortizações e Reintegrações do exercício                                  €910,00

Resultado Líquido Exercício                                                          €5.677,28

(cfr. fls. 44 a 54 do PA apenso);

18) Na demonstração de resultados por naturezas da “S….., SA”, reportada a 31 de dezembro de 2003, consta, designadamente, o seguinte:

Custos e Perdas Extraordinários                                  €13.571,07

Proveitos e ganhos extraordinários                           €22.044,63

Resultado Líquido do Exercício                                    €5.677,28

(cfr. fls. 79 e 80 do PA apenso);

19) No articulado de recurso hierárquico referido em 13, a sociedade “S….., SA” tendente a provar que os factos declarados na Modelo 22 de IRC, referida em 3), correspondem à verdade e se encontram, integralmente, suportados na contabilidade, procede à junção de um documento denominado doc. 3 com 342 folhas, extratando-se no ponto 7 e no que para os autos releva, designadamente, o seguinte:

“ 7. Os factos registados na contabilidade da recorrente são os que efectivamente espelham a sua actividade para um apuramento real do seu rédito, tendo como suporte toda a documentação devidamente contabilizada, numerada e arquivada e reflectem a imagem fiel e verdadeira da situação patrimonial da recorrente, sendo os proveitos e custos registados contabilisticamente sob os princípios da lei inelidíveis de facto e de direito e segundo os normativos fiscais em vigor para a lei Tributária Portuguesa. (Doc. nº 3 342 fls: junta todos os balancetes, extractos de contas e documentos da contabilidade legalmente organizada, com a assinatura de todos os responsáveis legais tributários consignados)

(cfr. fls. petição de recurso hierárquico e respetivos documentos juntos ao PA apenso e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido);


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III.FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

In casu, a Recorrente não se conforma com a decisão proferida pelo Tribunal Tributário de Lisboa que julgou procedente a impugnação judicial deduzida contra a liquidação oficiosa de IRC exercício do ano de 2003, determinando a sua anulabilidade.

Em ordem ao consignado no artigo 639.º, do CPC e em consonância com o disposto no artigo 282.º, do CPPT, as conclusões das alegações do recurso definem o respetivo objeto e consequentemente delimitam a área de intervenção do Tribunal ad quem, ressalvando-se as questões de conhecimento oficioso.

Assim, ponderando o teor das conclusões de recurso cumpre aferir se a sentença padece de erro de julgamento de facto, por ter valorado erroneamente a prova produzida nos autos e erro de julgamento de direito por errónea apreciação dos pressupostos de direito, competindo, para o efeito, analisar se, in casu, a Administração Tributária não cumpriu o ónus probatório a que estava adstrita, tendo erradamente desrespeitado os elementos apresentados pela Recorrida conforme decidiu o Tribunal a quo, ou se ao invés atuou investida do princípio da legalidade não tendo a Recorrida demonstrado a realidade dos rendimentos que declararam, conforme defende a Recorrente.

Apreciando.

Alega a Recorrente que a decisão recorrida padece de erro de julgamento no que toca à apreciação e valoração dos factos relevantes para a causa e à interpretação e aplicação das correspondentes normas jurídicas, nomeadamente as regras do ónus da prova.

Defende que o Tribunal a quo efetuou uma errada interpretação quer do conteúdo da alínea b) do n.º 1 e n.º 10 do artigo 83.º do CIRC, quer sobre a questão fulcral, ou seja, de que a Impugnante não comprova como lhe era devido que os valores apresentados na declaração apresentada fora do prazo legal, condizem com a sua realidade contabilística, nos termos do n.º 1 do artigo 74.º da LGT.

Com efeito, a correção da liquidação oficiosa ao abrigo do artigo 83.º, nº 10 do CIRC, apenas estaria legitimada caso a Recorrida demonstrasse a veracidade dos valores declarados, com a devida comprovação contabilística, o que não sucedeu no caso vertente.

Aliás, no projeto de indeferimento da reclamação graciosa é feita expressa alusão a esse défice, tendo sido ponderados, contrariamente ao evidenciado na decisão recorrida, os novos elementos de prova apresentados em sede audição prévia, ainda que se tenha entendido que os mesmos não permitiam aferir com justiça da matéria reclamada, nomeadamente, a correção do lucro tributável de €8.473,56.

Não podendo, assim, o Tribunal a quo ter concluído que o ónus da prova competia à Administração Tributária, uma vez que assentando a liquidação em rendimentos presumidos, competia à Impugnante arguir e fazer prova dum suposto excesso de quantificação da matéria tributável determinada nesses termos, de acordo com o n.º 3 do artigo 74.º da LGT.

Aliás, outra solução subverte o princípio da tributação pelo lucro real, até porque a Administração Tributária atuou no exercício de uma competência vinculada.

Dissente a Recorrida, defendendo que a sentença recorrida não merece qualquer censura quer quanto à apreciação e valoração dos factos julgados provados, quer quanto à indicação, interpretação e aplicação das normas jurídicas correspondentes.

Mais aduz que a Recorrente, nas suas alegações de recurso, omite factos julgados provados, interpreta erroneamente a lei quanto ao ónus da prova e afasta-se ostensivamente dos princípios da declaração e da tributação do rendimento real.

Reconhece que, não obstante ter apresentado a declaração modelo 22 de IRC, referente ao exercício de 2003, fora do prazo legal, concretamente, em 01 de agosto de 2005, a verdade é que a apresentou, por um lado, em data anterior à notificação da liquidação oficiosa, e por outro lado, dentro do prazo de caducidade.

Logo, tendo comprovado todos os valores nela declarados, competia à Administração Tributária proceder à correção da respetiva liquidação oficiosa de acordo com os elementos por si declarados e devidamente suportados.

Por seu turno, o Tribunal a quo considerou que a Administração Tributária incorreu em vício de violação de lei, fundando a procedência da impugnação com base na seguinte fundamentação:

“[a] posição da Administração Tributária, segundo a qual a impugnante não terá provado os lançamentos contabilísticos não pode colher, atento o princípio da declaração, de acordo com o qual os dados declarados pelo contribuinte se presumem verdadeiros quando a contabilidade estiver organizada nos termos da lei (cfr. artigo 75.º, nº 1 da LGT), questão alegada pela Impugnante e não contrariada pela Administração Tributária.

Até porque, sublinha que “[s]e algumas dúvidas se suscitassem sobre os elementos contabilísticos apresentados em sede de reclamação graciosa, cumpria solicitar os documentos de suporte dos lançamentos em causa, uma vez que cabe à Administração Tributária observar as realidades tributárias e a verificação do cumprimento das obrigações tributárias junto dos contribuintes, prevenindo as infracções tributárias (cfr. artigo 2.º e segs. do Regime Complementar do Procedimento de Inspecção Tributária, aprovado pelo Dec-Lei nº 413/98, de 31/12), o que não fez.

E estes ónus recaíam sobre a Administração Tributária, conforme decorre do estatuído no artigo 74.º, n.º 1 da LGT.”

Conclui, assim, que:

“[a] Administração Tributária estava não só vinculada a emitir a liquidação oficiosa, como também, a considerar a declaração de rendimentos apresentada pela impugnante, bem como dar a possibilidade à Impugnante de fornecer os elementos úteis à liquidação, o que também não foi feito em sede de reclamação graciosa.”

Vejamos, então, se a decisão recorrida padece do arguido erro de julgamento de direito, começando por convocar o quadro jurídico que releva para o caso dos autos.

De harmonia com o disposto no n.º 1, do artigo 112.º do CIRC, na redação em vigor à data, a declaração periódica de rendimentos a que se refere a alínea b), do n.º 1 do artigo 109.º, comummente designada declaração modelo 22 do IRC “[d]eve ser apresentada anualmente, em qualquer serviço de finanças, em suporte de papel ou magnético, ou enviada via Internet até ao último dia útil do mês de maio”.

Em termos de procedimento e forma de liquidação, importa convocar o disposto no artigo 83.º do CIRC, segundo o qual:

“1 - A liquidação do IRC processa-se nos termos seguintes:

a) Quando a liquidação deva ser feita pelo contribuinte nas declarações a que se referem os artigos 112º e 114º, tem por base a matéria coletável que delas conste;

b) Na falta de apresentação da declaração a que se refere o artigo 112º, a liquidação é efetuada até 30 de novembro do ano seguinte àquele a que respeita ou, no caso previsto no nº 2 do referido artigo, até ao fim do 6º mês seguinte ao do termo do prazo para a apresentação da declaração aí mencionada e tem por base a totalidade da matéria coletável do exercício mais próximo que se encontre determinada;

c) Na falta de liquidação nos termos das alíneas anteriores, a mesma tem por base os elementos de que a administração fiscal disponha.”

Conforme resulta expresso do teor do artigo 82.º, nº1, alínea a), do CIRC, a liquidação do IRC é, por regra, uma autoliquidação do sujeito passivo, a qual tem por base a matéria coletável declarada na declaração periódica de rendimentos.

Porém, na falta de apresentação da declaração periódica de rendimentos modelo 22 referida no citado artigo 112.º, do CIRC, a liquidação é efetuada oficiosamente pela Administração Tributária e tem por base a totalidade da matéria coletável do exercício mais próximo que se encontre determinada, ou na sua falta, de acordo com os elementos na sua disponibilidade.

A liquidação oficiosa faz-se, assim, por definição com base num rendimento presumido por inexistirem, no prazo legal, elementos declarados pelo sujeito passivo.

Não obstante o exposto, preceitua o citado artigo 83.º, nº 10 do CIRC que a liquidação pode ser corrigida dentro dos prazos de caducidade do direito à liquidação e em conformidade com o preceituado nos artigos 45.º e 46.º da LGT.

Visto o direito atentemos, então, no recorte probatório dos autos e comecemos por aquilatar se a Administração Tributária se limitou, conforme a mesma defende, a atuar no âmbito de poderes vinculados e se cumpriu o ónus probatório que sobre si impendia.

Do recorte probatório dos autos, não impugnado, resulta que:

A Recorrida não procedeu à entrega da declaração de rendimentos modelo 22, respeitante ao exercício de 2003, dentro do prazo consignado na lei, razão pela qual a Administração Tributária emitiu, em 22 de julho de 2005, a competente liquidação oficiosa nº ……, no valor de €8.210,37.

Mais dimanando assente que, em 01 de agosto de 2005, a Recorrida apresentou a declaração de rendimentos em falta.

Resultando, igualmente, que, em 17 de julho de 2006, a evidenciada liquidação oficiosa foi objeto de notificação à Recorrida, e nessa sequência foi apresentada reclamação graciosa e ulterior recurso hierárquico.

Ora, em face do supra aludido impõe-se concluir que a Administração Tributária estava, efetivamente, legitimada a emitir o ato de liquidação oficiosa.

Porém, se é certo que a Administração Tributária atuou com respeito pelo princípio da legalidade, a verdade é que após a declaração oficiosa a Recorrida fez uso atempado da possibilidade que lhe conferia o artigo 83.º, nº 10 do CIRC e apresentou a competente declaração de rendimentos modelo 22.

E a questão que, ora, se coloca é qual o enquadramento de tal declaração e qual o seu alcance.

Importa, desde já, relevar que a mera apresentação da declaração de rendimentos fora do prazo legal mas dentro do prazo de caducidade não implica, per se, a anulação da liquidação oficiosa, desde logo, porque não goza da presunção de verdade declarativa.

Mas a verdade é que essa não presunção não é estendida à contabilidade, desde que devidamente organizada. Com efeito, se atentarmos no artigo 75.º, nº1 da LGT “[o] mesmo parece dissociar a apresentação tardia (fora de prazo) da declaração legal do contribuinte, dos “ dados e apuramentos inscritos na sua contabilidade ou escrita quando estas estiverem organizadas de acordo com a legislação comercial e fiscal” pois que contempla a palavra chave “apresentadas” por referência às declarações dos contribuintes e a palavra “organizadas” por referência à contabilidade ou escrita; o que parece poder conduzir à interpretação de que uma declaração de IRS apresentada tardiamente, mas com suporte em contabilidade imaculada, organizada de acordo com regras legais, não faz estender a não presunção da sua veracidade a esta contabilidade que uma vez apreciada em sede inspectiva poderá fazer reassumir a presunção de verdade da declaração apresentada fora de prazo.[2]

In casu, como visto, a Recorrida em data ulterior à emissão da liquidação oficiosa, mas em período anterior à sua notificação, apresentou a competente declaração de rendimentos, na qual declarou um resultado líquido de exercício de €5.677,28, e um lucro tributável de €8.473,56, apurado segundo as regras da contabilidade organizada.

E, em conformidade, apresentou a competente declaração anual constando, em total congruência, no Anexo A, a evidência dos proveitos obtidos no valor de €22.044,63, e o total dos custos suportados no valor de €13.571,07, com a determinação de um resultado líquido do exercício de €5.677,28.

Mais importa relevar que, ulteriormente, concretamente, em 06 de setembro de 2006, a Recorrida apresentou reclamação graciosa contra a liquidação oficiosa supra evidenciada e melhor identificada no ponto 2 do probatório.

Sendo que, em sede de apreciação da aludida reclamação graciosa e elaboração de projeto de decisão, ajuizou a Administração Tributária que os aludidos rendimentos não se encontravam suficiente e idoneamente provados, concretizando, nesse particular, que “[o] ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoca, o sujeito passivo não junta qualquer prova documental a comprovar o alegado na petição que deu origem ao presente processo de reclamação, ou seja o lucro tributável declarado.”

Razão pela qual, em resposta, a Recorrida exerceu o respetivo direito de audição, e em conformidade com o expendido na decisão e de forma a suprir qualquer deficit instrutório, apresentou os seguintes elementos de suporte:
ü Balancetes analíticos antes e após encerramento de contas;
ü Extratos de contabilidade: contas correntes da classe 6 e da classe 7
ü Documentos de suporte da classe 6 e classe 7
ü Balanço e Demonstração de Resultados
ü Cópia dos Livros Selados
ü Extratos da Conta 31
ü Inventário da Existências em 2002.12.31 e 2003.12.31
ü Documentos de suporte do lançamento do CMVC e discriminação por fração vendida.
ü Documentos, meios de prova do pagamento do “imposto especial por conta”.

Ulteriormente, e não obstante a entrega dos aludidos documentos, a Administração Tributária, aquando da prolação da decisão definitiva, indeferiu a pretensão da Recorrida com a seguinte argumentação : “Vem o reclamante juntar novos elementos de prova e invocar  que os mesmos permitem aferir a justiça da matéria reclamada, nomeadamente, a correcção quanto ao lucro tributável de €8.473,56, constante da declaração Modelo 22/IRC 2003.

Ora, no caso em apreço, a reclamante aos elementos contabilísticos (extratos balanços…), não juntou os correspondentes documentos de suporte aos lançamentos efetuados, a fim de comprovar a veracidade dos respectivos lançamentos.”

Face à realidade fática supra expendida, e contrariamente ao propugnado pela Recorrente, o Tribunal a quo não fez uma errada apreciação e valoração dos factos relevantes para a causa, em nada subvertendo a letra e a ratio legis do artigo 83.º do CIRC, e com uma adequada interpretação do ónus probatório e idónea transposição para a factualidade dos autos.

E isto, desde logo, porque a Recorrida após a notificação da audição prévia apresentou os elementos probatórios que a Administração Tributária reputou idóneos. Mais importa ter presente que não representa a verdade dos factos, conforme já evidenciado anteriormente e resulta expresso da factualidade assente, a alegação da Recorrente no sentido de que não foram apresentados documentos contabilísticos de suporte.

Não assistindo, assim, razão à Recorrente quando –aliás, de forma absolutamente conclusiva- sustenta que a Recorrida não comprova como lhe era devido que os valores apresentados na declaração apresentada fora do prazo legal, condizem com a sua realidade contabilística, nos termos do n.º 1 do artigo 74.º da LGT.

Com efeito, se o sujeito passivo antes da prolação da decisão definitiva supre o alegado deficit documental, apresentando documentação tendente a comprovar -e no sentido indicado pela Administração Tributária- “o lucro tributável declarado”, então não pode, sem mais, limitar-se a refutar -aliás, de forma genérica e conclusiva- tais documentos.

Note-se, ademais, que a Administração Tributária nem, tão-pouco, põe em causa que os valores nela constantes padeçam de qualquer incoerência ou não atestem a realidade neles declarada, o que, efetivamente, aduz é que “não juntou os correspondentes documentos de suporte aos lançamentos efetuados, a fim de comprovar a veracidade dos respectivos lançamentos”

Dir-se-á, portanto, e em sentido consonante com o decidido pelo Tribunal a quo, que tais razões não são de molde a manter a liquidação oficiosa, visto que se a Recorrida apresentou a documentação que a Administração Tributária havia reputado como idónea e se a mesma atesta os valores declarados, então, a existirem quaisquer dúvidas -reitere-se, nem tão-pouco densificadas- a mesma não podia, sem mais, eximir-se da sua função fiscalizadora.

Dito de outro modo, em ordem aos princípios da verdade material e do inquisitório competia-lhe aquilatar, com rigor, da adequação e suficiência dos elementos que suportam os balancetes e extratos de conta, desenvolvendo todas as diligências necessárias ao apuramento da situação tributária, designadamente, lançado mão da ação de Inspeção Tributária.

De resto, tal é o que, desde logo, dimana do artigo 63.º da LGT, nº1 alínea b), o qual preceitua que “Os órgãos competentes podem, nos termos da lei, desenvolver todas as diligências necessárias ao apuramento da situação tributária dos contribuintes, nomeadamente: b) Examinar e visar os seus livros e registos da contabilidade ou escrituração, bem como todos os elementos suscetíveis de esclarecer a sua situação tributária”.

Até porque, atentando no probatório, mormente, na factualidade, ora, aditada se aquilata absoluta simetria e identidade entre os valores declarados na respetiva declaração periódica de rendimentos e os respetivos suportes contabilísticos e competente declaração anual.

Nessa medida, a Administração Tributária não só podia, como devia ter diligenciado, designadamente através de ação inspetiva-nada tendo sido alegado no sentido da sua realização, nem tão-pouco resultando dos autos qualquer elemento nesse sentido-  no apuramento da matéria coletável do ano de 2003, de modo a, dentro do prazo da caducidade do direito à liquidação, proceder às correções de natureza aritmética ou presuntivas que entendesse por pertinentes e à consequente emissão de liquidação adicional ou anulação da liquidação oficiosa.

O que não pode é, após a colocação à disposição de elementos de suporte ao lucro tributável declarado, sindicar, sem mais -entenda-se sem comprovar a realidade contabilística e toda a documentação que a suporta- e afastar, per se, a realidade declarada pela Recorrida.

Conclui-se, assim, que tendo sido apresentada declaração de rendimentos Modelo 22 de IRC, após a emissão de liquidação oficiosa e mediante a faculdade consignada no artigo 83.º, nº10 do CIRC, o princípio da tributação pelo rendimento real impunha outras diligências, designadamente, a realização de ação inspetiva para aferição de todos os elementos que foram supervenientemente apresentados, pelo que não o tendo feito ocorre em evidente excesso de quantificação de rendimentos.

A final, sem embargo de todo o exposto, e a corroborar o, ora, ajuizado importa ter presente que em fase ulterior, ou seja, em sede de recurso hierárquico a Recorrida, imbuída do dever de colaboração e tendente a colmatar, de forma cabal, quaisquer insuficiências documentais, apresenta como documento 3 um manancial de 342 folhas contemplando todos os balancetes, extratos de contas e documentos de contabilidade legalmente organizada, com a assinatura de todos os documentos os responsáveis legais tributários, conforme resulta da factualidade 19), e que corroboram, na íntegra, a realidade declarada.

Assim, contrariamente ao evidenciado pela Recorrente, o sujeito passivo fez prova do erro no procedimento de liquidação e dos procedimentos em que esta devia assentar, sendo os elementos apresentados pela Recorrida de molde a contrariar a liquidação oficiosa efetuada.

De resto, não se pode perder de vista e descurar que a liquidação oficiosa faz-se por definição com base num rendimento presumido por inexistirem, no prazo legal, elementos declarados pelo sujeito passivo, sendo certo que a tributação deve nortear-se pelo rendimento real.

In fine ter-se-á de ter presente, e no sentido apontado pelo Tribunal a quo, que a liquidação oficiosa efetuada pela Administração Tributária é por natureza uma declaração provisória.

Neste particular, importa convocar os ensinamentos de Rui Duarte Morais[3]:

“O art. 83º nº 1, al. b) e c)[4], dispõe que, na falta de entrega da declaração periódica de rendimentos (grosso modo, a declaração em que se procede ao apuramento do resultado fiscal do exercício anterior), a administração fiscal procederá, oficiosamente, à liquidação, a qual terá por base a totalidade da matéria colectável do exercício mais próximo que se encontre determinada (e da qual não poderá resultar imposto em dívida de valor inferior ao “imposto mínimo” a que estão sujeitos os contribuintes abrangidos pelo regime simplificado) ou na falta de tais dados, os elementos de que disponha.

Temos dúvidas quanto ao sentido desta liquidação oficiosa. Pensamos que o seu sentido mais não é do que prevenir uma eventual caducidade do direito à (a qualquer) liquidação.

O montante assim fixado será, necessariamente, provisório (como de resto é também a autoliquidação, uma vez que fica sempre sujeita a uma eventual correcção posterior pela administração tributária). Na realidade, não faria qualquer sentido que a liquidação oficiosa feita em tais termos pudesse ser havida como adequado substituto da declaração a que o sujeito passivo não procedeu. Para além de tal poder redundar numa vantagem incompreensível do contribuinte faltoso (ao ser tributado com base no resultado de um exercício anterior poderia pagar menos do que aquilo a que estaria obrigado, por ter acontecido uma evolução positiva dos resultados do seu negócio), significaria abdicar de qualquer pretensão de basear a tributação em causa no lucro (no resultado) real ou, mesmo, normal, desse sujeito passivo.

A falta de cumprimento pelo sujeito passivo parece impor à administração, para além de proceder oficiosamente a uma tal liquidação “provisória”, o dever funcional de, dentro do prazo de caducidade de tal direito, efectuar uma acção inspectiva visando determinar qual o lucro obtido por esse sujeito passivo no exercício em causa e, também, a sua situação actual”.

Ora, face a todo o exposto, tudo visto e ponderado, tendo a Recorrida procedido à entrega de declaração periódica de rendimentos em data posterior ao termo do seu prazo legal mas em período temporal anterior ao decurso do prazo de caducidade, e tendo após projeto de decisão de reclamação graciosa apresentado documentação visando a demonstração e certificação do “lucro tributável declarado”, com os respetivos suportes contabilísticos -os quais espelham os valores constantes na declaração de rendimentos entregue em 01 de agosto de 2005 e respetiva Declaração Anual (vide nºs 15, 16, 17 e 18)- dimana inequívoco que a liquidação oficiosa não pode manter-se na ordem jurídica.

Face ao exposto, e sem necessidade de mais considerações, a liquidação impugnada padece de vício de violação de lei por errada apreciação dos pressupostos de facto e de direito e excesso de quantificação, cominada com a anulabilidade, conforme decidido em 1ª instância, mantendo-se, por isso, o julgado anulatório


***

IV. DECISÃO

Face ao exposto, ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, OS JUÍZES DA SEGUNDA SUBSECÇÃO DE CONTENCIOSO TRIBUTÁRIO deste Tribunal Central Administrativo Sul em:

-NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO E CONFIRMAR A DECISÃO RECORRIDA, a qual, em consequência, se mantém na ordem jurídica.

Custas pela Recorrente.

Registe. Notifique.


Lisboa, 04 de junho de 2020



(Patrícia Manuel Pires)

(Cristina Flora)

(Tânia Meireles da Cunha)


_________________________
[1] Cfr. António dos Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2018, p. 286.
[2] In Acórdão do STA, proferido no processo nº 0220/11.2BEVIS, de 05 de dezembro de 2018.
No mesmo sentido, vide Acórdãos deste TCA, proferidos nos processos nºs 506/14 e 751/11, de 25.06.2019 e 20.02.2020, respetivamente, sendo o primeiro proferido pelo mesmo coletivo que integra os presentes autos.
[3] In Apontamentos de IRC, edição: Almedina, 2007, pp. 208 e 209.
[4] Autor reporta-se ao CIRC na redação vigente até 31/12/2009 e antes da republicação pelo DL 159/2009 de 13/07 com efeitos a partir de 01/01/2010.