Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:107/22.1BCLSB
Secção:JUIZ PRESIDENTE
Data do Acordão:06/09/2022
Relator:PEDRO MARCHÃO MARQUES
Descritores:JUSTIÇA DESPORTIVA
PROVIDÊNCIA CAUTELAR
REQUISITOS
FUMUS BONI IURIS
PERICULUM IN MORA
Sumário:
Votação:DECISÃO SUMÁRIA
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral: Decisão

(artigo 41.º, n.º 7, da Lei do TAD)


I. Relatório

F ………………., com os demais sinais dos autos, intentou no Tribunal Arbitral do Desporto (TAD), em 8.06.2022 contra a FEDERAÇÃO DE PATINAGEM DE PORTUGAL (também, FPP) uma acção de impugnação de acto administrativo com requerimento de providência cautelar de suspensão de eficácia do acto impugnado, pedindo que seja “decretada a medida cautelar de suspensão da eficácia da decisão recorrida na pendência da presente acção e, a final, ser a presente acção julgada procedente, revogando-se a decisão recorrida”, relativamente à decisão contra si proferida em reunião do Conselho Disciplinar da Requerida de 06.06.2022 que lhe aplicou, uma medida disciplinar de três jogos oficiais de suspensão, por referência ao artigo 17º, nº2 e 3, 3.2., conjugado com o artigo 44º, nº1,1.2 e 4º, ambos do Regulamento de Justiça e Disciplina da Federação de Patinagem de Portugal.

O Requerente da providência veio alegar, sumariamente e ao que a estes autos cautelares importa, que a decisão punitiva é manifestamente ilegal e inconstitucional, pois mostra-se desprovida dos factos “que lhe foram imputados”, e que nunca teve acesso ao teor” do “Relatório do Jogo” que foi apreciado pelo Conselho Disciplinar da requerida” . Afirma que o primeiro contacto que teve com a decisão punitiva foi com a notificação, via e-mail que lhe foi dirigida, sendo que isto “já diz muito sobre o procedimento administrativo (ou sobre a ausência de procedimento) na origem da decisão condenatória”, pois não lhe foi permitido exercer o seu direito de defesa, em clara oposição ao comando inserto no artigo 32.º, n.º 10, da CRP, pois não lhe foi permitido exercer o seu direito de defesa, em clara oposição ao comando inserto no artigo 32.º, n.º10, da CRP, preceito constitucional transversal a qualquer domínio sancionatório e que se encontra, em concreto, previsto no artigo 171° do RJD da FPP.

Sustenta, por fim, que a decisão condenatória enferma de nulidade, na acepção prevista no artigo 161.º, n.º 2, alínea d) do CPA, mostrando-se “assim verificado o primeiro requisito (fumas bom juris) de que depende o decretamento da medida cautelar que ora se requer, porquanto o cumprimento pelo requerente de uma sanção ilegal lesa direitos fundamentais seus”

Quanto ao periculum in mora, alega que a condenação proferida pela Requerida, e inerente aplicação da sanção de dois jogos de suspensão traduz numa lesão grave e irreversível, quer a nível patrimonial, quer a nível desportivo. Neste ponto evidencia que a execução imediata da sanção “inabilita-o para o desempenho das funções de patinador, seja nos jogos da meia final do campeonato nacional de hóquei (um, a dia 10 de junho de 2022 e, caso a equipa do S………………… de Portugal perca esse jogo, outro a dia 12 de Junho de 2022, pelo menos), seja em jogo da final desse mesmo campeonato (um jogo de uma final disputada à melhor de cinco jogos, caso o S………… vença o jogo de dia 10 de Junho de 2022 e se qualifique já para a final” que pode “ determinar a qualificação da sua equipa para a final - considerando que o S.............. ………….lidera o referido Play Off tendo vencido dois dos três jogos até ao momento disputados.” , pelo que se a Equipa do S.............. Clube de Portugal vencer mais um jogo do Play Off, qualifica-se para a final do Campeonato Nacional da 1ª Divisão, razão pela qual “ todos os jogos nesta fase são de capital importância para as aspirações desportivas do requerente e do clube que representa, na luta pelo titulo de campeão nacional.”

Afirma ainda que na ausência do decretamento da providência requerida, ver-se-á forçado a cumprir a sanção de suspensão que ilegalmente lhe foi imposta, e o recurso interposto quedará absolutamente esvaziado de sentido e efeito útil. Assim se encontrando igualmente preenchido o segundo pressuposto de que a lei faz depender o decretamento da providência.

Finalmente alega que prejuízo para a Requerida com o decretamento da providência peticionada não é superior ao dano que com ela se quer evitar, já que em caso de improcedência do pedido principal, sempre poderia ser satisfeita a sua pretensão sancionatória, ao contrário do Requerente, cuja posição jurídica jamais poderá ser reintegrada se indevidamente cumprir a sanção de suspensão.



II. Da intervenção do Presidente do TCA Sul

Por despacho de 8.06.2022 do Presidente do TAD, foram os autos remetidos nesse mesmo dia a este TCA Sul, nos termos do disposto no artigo 41º, n º 7, para apreciação e decisão, com fundamento na circunstância de não ser viável em tempo útil a constituição do colégio arbitral e não se encontrar, assim, o TAD em condições de apreciar o pedido cautelar formulado.

O despacho em questão é do seguinte teor:

“(…).

« Texto no original»

Vejamos se estão reunidos os pressupostos que justificam a intervenção do Presidente do TCA Sul.

No presente caso, vem invocada pelo Exmo. Senhor Presidente do TAD a impossibilidade de constituição do colégio arbitral em tempo útil, atentos os prazos legalmente estabelecidos (v. supra).

Reiterando os fundamentos constantes do despacho transcrito e considerando a necessidade de cumprimento das regras adjectivas previstas na Lei do TAD, de que resultaria a preclusão da tutela efectiva do direito invocado, não pode senão concluir-se que está preenchido o requisito de que depende a intervenção do Presidente do TCA Sul.



III. Da audição da Requerida

De acordo com o n.º 5 do art. 41.º da Lei do TAD, “[a] parte requerida é ouvida dispondo, para se pronunciar, de um prazo de cinco dias quando a audição não puser em risco sério o fim ou a eficácia da medida cautelar pretendida”.

E o art. 366.º, n.º 1, do CPC estabelece que: “[o] tribunal ouve o requerido, exceto quando a audiência puser em risco sério o fim ou a eficácia da providência.

Como ensina José Lebre de Freitas, a “[u]tilidade, fim ou eficácia apontam no mesmo sentido: a audiência do requerido não deve ter lugar quando, com ela, haja o risco de se frustrar o efeito prático que concretamente se pretende atingir, isto é, quando o conhecimento da pretensão cautelar pelo requerido ou a demora no deferimento da providência resultante da observância da contraditoriedade aumente o perigo da lesão grave e de difícil reparação que a providência visa evitar” (cfr. Código de Processo Civil Anotado, vol. 2, 2001, p. 24).

A dispensa de audição da parte contrária, que integra um poder-dever do juiz, exige, também, a explicitação das razões que sustentam o entendimento de que essa audição colocará “em risco sério o fim ou a eficácia da providência”.

No caso presente, concretizando, a audição da Requerida, por força do prazo injuntivamente fixado no art. 41.º, n.º 5 da Lei do TAD, é de 5 dias (a que acrescerá o prazo de multa processual pela eventual prática tempestiva do acto), sendo que o jogo abrangido pela presente providência, que a ora Requerente identifica, ocorrerá no próximo dia 10 de Junho (sexta-feira), às 17:00 h.

Pelo que, sendo susceptível de pôr em risco a eficácia da medida cautelar pretendida, ao abrigo do disposto no art. 366.º, n.º 1, do CPC, dispensa-se, oficiosamente, a audição da Requerida, procedendo-se de imediato à apreciação do mérito da presente providência.



IV. Da instância e instrução do processo

As partes são legitimas e o processo é o próprio.

Não existem excepções ou outras questões prévias que devam ser, desde já, conhecidas e que obstem à apreciação do mérito da providência requerida.

Atenta a natureza indeterminável dos interesses em discussão no presente processo, nos termos previstos no art. 34.º, n.ºs 1 e 2, do CPTA, fixa-se ao presente processo o valor de EUR 30.000,01.

Considerando a natureza do processo, entende-se que nenhuma outra prova carece de ser produzida, estando, portanto, o tribunal em condições suficientes para a apreciação do mérito da causa.



V. Fundamentação

V.i. De facto

Com interesse para a decisão da presente providência cautelar, relevam os seguintes factos, documentalmente comprovados:

a) O Requerente é atleta do S.............. ………… e portador da Licença do Patinador com o n.°………... cfr. documento junto com a p.i. e que se dá por integralmente reproduzido;

b) A Requerida é uma pessoa coletiva de direito privado e de utilidade pública, constituída sob a forma associativa e sem fins lucrativos, englobando clubes ou sociedades desportivas, associações de âmbito territorial, associações de praticantes, técnicos, oficiais de mesa e árbitros, e demais entidades que promovam, pratiquem ou contribuam para o desenvolvimento da Patinagem em todas as suas variantes, e é a mais alta entidade da modalidade a nível nacional. (artigo 1º, nº1 dos Estatutos da FPP);

c) No dia 4 de Junho de 2022, realizou-se o segundo jogo do Play Off — 1/2 Final (meia- final) do Campeonato Nacional da Iª Divisão de Hóquei em Patins da Época 2021/2022, entre as equipas do S....................... e da …………………, jogo que contou com a participação efetiva do requerente;

d) Na sequência desse jogo o requerente foi notificado no dia 6 de Junho de 2022, da decisão condenatória do Conselho Disciplinar da Requerida, do mesmo dia, com o nº de saída CD……/2122, e código de jogo nº …./2022, do seguinte teor:

«Texto no original»

e) No dia 10 de Junho de 2022, pelas 17:00h, irá realizar-se o quarto jogo do Play Off — 1/2 Final (meia-final) do Campeonato Nacional da Iª Divisão de Hóquei em Patins da Época 2021/2022. ( doc. nº2 junto com a p.i.).

f) A presente ação cautelar deu entrada no TAD no dia 06 de Junho de 2022.



V.ii. De direito

Nos termos do disposto no art. 41.º, n.º 1, da Lei do Tribunal Arbitral do Desporto, aprovada pela Lei n.º 74/2013, de 6 de Setembro, “[o] TAD pode decretar providências cautelares adequadas à garantia da efetividade do direito ameaçado, quando se mostre fundado receio de lesão grave e de difícil reparação, ficando o respetivo procedimento cautelar sujeito ao regime previsto no presente artigo. E, de acordo com o n.º 9 desse artigo, “[a]o procedimento cautelar previsto no presente artigo são aplicáveis, com as necessárias adaptações, os preceitos legais relativos ao procedimento cautelar comum, constantes do Código de Processo Civil”.

Dispõe o artigo 368.º do CPC:

1- A providência é decretada desde que haja probabilidade séria da existência do direito e se mostre suficientemente fundado o receio da sua lesão.

2 - A providência pode, não obstante, ser recusada pelo tribunal quando o prejuízo dela resultante para o requerido exceda consideravelmente o dano que com ela o requerente pretende evitar.

3 - A providência decretada pode ser substituída por caução adequada, a pedido do requerido, sempre que a caução oferecida, ouvido o requerente, se mostre suficiente para prevenir a lesão ou repará-la integralmente.

4 - A substituição por caução não prejudica o direito de recorrer do despacho que haja ordenado a providência substituída, nem a faculdade de contra esta deduzir oposição, nos termos do artigo 370.º.

Como já se deixou estabelecido anteriormente, são requisitos essenciais destas providências cautelares (cfr., i.a., a decisão de 5.11.2021, proc. n.º 130/21.5BCLSB):

a) A titularidade de um direito que releva do ordenamento jurídico desportivo ou relacionado com a prática do desporto; e

b) O receio fundado da lesão grave e de difícil reparação desse direito.

Sendo que esta titularidade do direito, deve ser séria; ou seja, no sentido de que ao requerente da providência lhe venha a ser reconhecida razão, ainda que essa análise deva ser feita – como não podia deixar de o ser, face à natureza deste meio processual – sob os ditames próprios de uma summario cognitio. Dito de modo diverso, é pressuposto (cumulativo) do decretamento da providência a probabilidade séria (fumus boni juris), embora colhida a partir de análise sumária (summaria cognitio) e de um juízo de verosimilhança, de o direito invocado e a acautelar já existir ou de vir a emergir de acção constitutiva, já proposta ou a propor.

Por sua vez, na demonstração do grau de probabilidade ou verosimilhança em relação à existência do direito invocado pelo requerente da providência, concorre não só o acervo probatório constante do processo e que se revele adequado a formar a convicção do julgador quanto ao grau de probabilidade de existência do direito invocado, como a jurisprudência tirada sobre casos análogos e cuja decisão seja proferida por referência ao mesmo quadro normativo. Não poderá afirmar-se a “probabilidade séria da existência direito” invocado, se esse mesmo direito não é reiteradamente reconhecido nas acções principais que sobre ele versam.

É certo que o fumus boni juris decorre da suficiência da mera justificação dos fundamentos do mesmo. Mas, como se escreveu no ac. de 19.09.2019 do TR de Guimarães, proc. n.º 97/19.0T8VNC.G1: “na aferição de tal requisito, bem como dos demais, deve ter-se sempre presente uma perspectiva de instrumentalidade hipotética, isto é, de que a composição final e definitiva do litígio no processo respectivo possa vir a ser favorável ao requerente”.

Vejamos quanto à verificação do pressuposto atinente à aparência do direito.

O direito invocado pelo Requerente consiste fundamentalmente no facto de lhe ter sido aplicada uma sanção disciplinar de suspensão de três jogos de suspensão sem que a decisão punitiva indique os factos que a sustentam e sem que lhe tenha sido concedida oportunidade de ser ouvido ou de apresentar a sua defesa.

É consabido que os “factos” que constituem o “objecto do processo” têm que ter a concretude suficiente para poderem ser contraditados e deles se poder defender o arguido e, sequentemente, a serem sujeitos a prova idónea (assim o concluiu o STJ no Ac. de 17-06-2004, PROC. 04P908). Sendo que o direito de defesa deve ser assegurado relativamente à materialidade dos factos integrantes da infração.

Ora o Requerente alega que em momento algum foi-lhe dado acesso ao teor do “Relatório do Jogo” que foi apreciado pelo Conselho Disciplinar da requerida”, o qual fundamenta/sustenta a qualificação da conduta do requerido/arguido, como uma infracção disciplinar leve. Ignora-se se a conduta do arguido ocorreu no decurso do jogo de hóquei em patins realizado em 04.06.2004 (cfr. alínea d) factualidade) ou depois do apito final desse mesmo jogo.

Da decisão punitiva, notificada ao arguido no dia 6.06.2022, fica-se apenas a saber que os factos que lhe foram imputados no Relatório do Jogo, com o código nº…../2022, foram subsumíveis a uma infracção leve , que in casu, foi punida com três jogos de suspensão, nos ternos conjugados dos artigos 17º, nº2 e 3, 3.2 e 44º, nº1,1.2 e 4º, ambos do Regulamento de Justiça e Disciplina da Federação de Patinagem de Portugal. (cfr. aliena e) dos factos).

Nada mais se sabe.

Pelo que, nada constando ao nível da factualidade apurada e que esteve na base da punição é manifesta a falta de fundamentação do acto sancionatório, o que já nesta fase cautelar se permite detectar.

E comportamento do Conselho de Disciplina da Requerida tem relevância, no caso, numa dupla dimensão: por um lado tem implicações ao nível dos direitos de defesa do arguido e, por outro lado, no que aqui é determinante, ao nível da determinação e escolha da medida da pena.

Em relação aos direitos de defesa do arguido, é sabido que decorre dos princípios constitucionais, designadamente do artigo 20.º da CRP, o direito a um processo equitativo, que e se concretiza através de outros princípios, entre os quais “o direito de defesa e o direito ao contraditório traduzido fundamentalmente na possibilidade de cada uma das partes invocar as razões de facto e de direito, oferecer provas, controlar as provas da outra parte, pronunciar-se sobre o valor e resultado destas provas” (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4.ª Ed., 2007, p. 415).

E entre essas dimensões do princípio do contraditório temos a proibição da indefesa, a que se associa o princípio de participação efectiva das partes no desenvolvimento do litígio, materializado no direito de cada um a ser ouvido em juízo, preferencialmente antes de a decisão ser tomada.

Ora, notificar o arguido da decisão punitiva sem lhe dar possibilidade de se pronunciar no âmbito do procedimento sancionatório, consubstancia o incumprimento da fase de audição prévia. Dito de outro modo, e visto os termos em que a medida disciplinar vem aplicada, o direito de defesa foi simplesmente obliterado.

E nem diga que o elemento literal do nº 5 do artigo 7º do RJDFPP permite concluir que, excepcionalmente, a qualificação de uma infracção disciplinar como leve, não comtempla a audição prévia do arguido.

Nos termos do aludido 7º, e sob o proémio “ Principio da legalidade” , o nº 5 determina que:
“5. A notícia de uma infração disciplinar determina sempre a instauração de procedimento disciplinar, salvo nas seguintes infrações:
5.1. Leves;
5.2. Sancionáveis com sanção disciplinar não superior 4 jogos de suspensão, ou com multa não superior a 20% do Salário Mínimo Nacional;
5.3. Às quais, em razão das circunstâncias, não deva ser aplicada sanção superior às previstas nas alíneas anteriores;
5.4. Emergentes de falta de comparência a jogo oficial, desistência de participação em competição e condições irregulares de recinto desportivo, de segurança ou de equipamentos;”

A audiência do arguido tenha enquadramento no processo disciplinar, porquanto se trata de uma garantia constitucionalmente consagrada no artigo 32.º, n.º 10, da CRP. Nos termos daquele preceito, “[n]os processos de contraordenação, bem como em quaisquer processos sancionatórios, são assegurados ao arguido os direitos de audiência e defesa” (itálico e sublinhado nosso).

Em comentário à norma citada, JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS apresentam uma interpretação verdadeiramente declarativa, afirmando que: “O n.º 10 garante aos arguidos em quaisquer processos de natureza sancionatória os direitos de audiência e de defesa. Significa ser inconstitucional a aplicação de qualquer tipo de sanção, contra-ordenacional, administrativa, fiscal, laboral, disciplinar ou qualquer outra, sem que o arguido seja previamente ouvido e possa defender-se das imputações que lhe são feitas. A defesa pressupõe a prévia acusação, pois que só há defesa perante uma acusação. A Constituição proíbe absolutamente a aplicação de qualquer tipo de sanção sem que o arguido seja garantida a possibilidade de se defender”( Cfr. Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição da República Anotada, Tomo I, Coimbra Editora, 2005, p. 363.).

Considerando que a própria norma constitucional não contempla a possibilidade de excepções, impõe-se, concluir que a decisão sancionatória controvertida, ao aplicar o comando legal nº5, do artigo 7ºdo RJDFPP, por via da artigo 17º do mesmo Regulamento, precludiu o direito de audição prévia do arguido, padecendo do vício de violação de lei, sancionado com a nulidade, por ofensa do núcleo essencial de um direito fundamental, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 161.º, n.º 2, alínea d), do Código de Procedimento Administrativo.

Como se afirmou na nossa decisão de 7.02.2022, proferida no processo n.º 34/22.4BCLSB :

Ora, em face do que vem alegado e considerando a jurisprudência firmada relativamente às sanções aplicadas em processos sumários e a afectação do direito de defesa dos arguidos (cfr. i.a. os ac.s do T. Constitucional n.º 594/2020, de 10.11.2020, processo n.º 49/2, e acórdão nº 742/2020, de 10.12.2020, proc. nº 506/20; idem, os ac.s deste TCAS de 10.12.2019, proc. nº 49/19, de 18.12.2019, proc. nº 35/19, de 16.04.2020, de 30.04.2020, de 26.11.2020, de 10.12.2020, de 21.01.2021 proc. n.º 114/20, de 18.02.2021 proc. 112/20, e 18.03.2021, proc. n.º 121/19), aceita-se que ocorre probabilidade da existência do direito invocado.

A situação descrita nos autos é semelhante àquela tratada no ac. de 18.11.2021 deste TCAS, proc. 95/21.3BCLSB. Neste aresto escreveu-se:

Repare-se que do acórdão recorrido não resulta o entendimento de que considerou a prova produzida nos autos insuficiente para aplicar a punição disciplinar ao Recorrido, como vem alegado no recurso.

Razão pela qual, certamente não foram levados à factualidade considerada provada, os factos apurados na sequência das diligências probatórias produzidas nos autos, como a inquirição das testemunhas do Recorrido, a visualização do filme com as imagens do jogo no momento em que foram proferidas as palavras em referência nos autos e as respostas aos esclarecimentos escritos prestados pelos árbitros [tendo só a falta destas sido objecto de impugnação no presente recurso, na parte restante a decisão da matéria de facto transitou em julgado].

A decisão recorrida incide num momento prévio à valoração da prova produzida, o de saber se foram asseguradas todas as garantias de defesa ao Recorrido no âmbito do procedimento que lhe aplicou a referida punição.

Começando por referir o valor probatório reforçado do relatório da equipa de arbitragem que, nos termos da mencionada alínea f) do artigo 13º do RD da LPFP, goza da presunção de veracidade do seu conteúdo, passa a evidenciar que tal presunção é ilidível, mediante prova em contrário oferecida/requerida por quem aproveita:

No caso em apreciação, o Recorrido que, visando provar que o que consta do relatório da arbitragem não corresponde à verdade quer nas palavras que proferiu quer quanto aos seus destinatários, requereu diligências de prova que ou foram indeferidas [como o referido acesso às gravações resultantes do sistema de comunicação da equipa de arbitragem] ou não admitidas nos seus exactos termos.

Foi o que sucedeu com o pedido de inquirição de certos elementos da equipa de arbitragem que foi transformado em esclarecimentos escritos em resposta a uma pergunta, cujo texto não foi formulado tendo em conta a versão apresentada pelo Recorrido, nem obteve o acordo prévio deste, mas para confirmar o que consta do referido relatório.

Efectivamente, como foi evidenciado pelo tribunal recorrido a questão formulada respondia ela própria a uma parte significativa do que se pretendia clarificar com este meio de prova afirmando, após um, que as palavras e expressões dirigidas à equipa de arbitragem, proferidas no final do jogo por Rubem Filipe Marques Amorim, são exactamente aquelas que se encontram reproduzidas no Relatório? Induzindo os destinatários, autores do relatório, a responder apenas à segunda parte da mesma, confirmando que as palavras que ouviram (sem esclarecer se as mesmas lhe eram dirigidas) são as que constam do relatório.

E ao não permitir ao Recorrido provar a sua versão, a presunção de veracidade do conteúdo do relatório da arbitragem tornou-se inilidível, o que redunda numa interpretação materialmente inconstitucional da referida alínea f) do artigo 13º do RD da LPFP, por violação do direito de audiência do arguido, previsto no nº 10 do artigo 32º da CRP.

Assim, o Colectivo de Árbitros entendeu, e bem, que ao Recorrido não foram facultados todos os meios de defesa permitidos por lei, para poder ilidir a presunção da veracidade do conteúdo do relatório, pondo em causa o núcleo essencial do seu direito de defesa enquanto arguido, violando os artigos 2º [que consagra a República portuguesa como um Estado de direito democrático], 9º, alínea b) [que estipula como uma das tarefas fundamentais do Estado, a garantia dos direitos e liberdades e o respeito pelos princípios do estado de direito democrático], 18º, nº 3 [que prevê que as leis restritivas de direitos, liberdades e garantias têm de revestir carácter geral e abstracto e não podem ter efeito retroactivo nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais] e 32º, nº 10 [referido e referente às garantias do processo criminal que determina que nos processos de contra-ordenação, bem como em quaisquer processos sancionatórios, são assegurados ao arguido os direitos de audiência e defesa] da CRP.

O que preenchendo a previsão da alínea d) do nº 2 do artigo 161º do CPA,

(…)

No mesmo sentido já se pronunciou este Tribunal, designadamente no acórdão de 10.12.2020, no proc. nº 94/20.2BCLSB, in www.dgsi.pt, com o seguinte sumário:

I. A decisão sobre a prática da infracção disciplinar não pode ser tomada sem antes se ter facultado à arguida o exercício dos direitos de audiência e defesa, conforme imposto pelo n.º 10 do artigo 32.º da CRP.

II. Tais direitos também devem ser assegurados no âmbito dos procedimentos disciplinares que seguem sob a forma de processo sumário previsto no RD da LPFP.

III. Não tendo sido facultado à arguida o exercício dos referidos direitos de audiência e defesa, a sanção disciplinar aplicada é nula nos termos do disposto no art.º 161.º, n.º 2, al. d) do CPA.

Sendo que o Supremo Tribunal Administrativo não admitiu o recurso de revista interposto desse acórdão, como constante do recentíssimo acórdão de 27.01.2022 desse Supremo Tribunal, nele se afirmando: “o tribunal de recurso, confirmando o julgamento do TAD, decidiu com acerto, não aparentando padecer primo conspectu de erros lógicos ou jurídicos manifestos, visto o seu discurso mostrar-se, no seu essencial, fundamentado numa interpretação coerente e razoável das regras e direito aplicáveis e invocados, e sem evidência de desconformidade com jurisprudência produzida sobre a temática”.

E em relação à matéria da fundamentação do acto, tudo aponta, como se disse já, de igual modo, para a probabilidade séria de ganho de causa pelo ora Requerente na acção principal. O que neste capítulo é decisivo.

Com efeito, a decisão punitiva comunicada ao Requerente não passa de um mero quadro contendo a medida aplicada e a norma que a prevê, dela não constando qualquer menção aos factos que justificam a imposição da mesma. Isto é, ignora-se o motivo pelo qual o Conselho Disciplinar da Requerida tenha, dentro da moldura sancionatória prevista do artigo 17º do seu RJD, decidido punir disciplinarmente o arguido com três jogos de suspensão.

O artigo 17º do RJD da FPP, sob “Infracções disciplinares leves” e, no aqui releva, dispõe que :

1. As infrações disciplinares leves traduzem-se em ligeiras incorreções de comportamento, violadoras da ética e correção desportivas, reveladoras de desrespeito ou desacordo para com o adversário, público, árbitros, juízes, dirigentes ou outros, que de qualquer forma envolvam desprestígio ou impliquem menos correção na prática do jogo ou prova e, ainda, os comportamentos ou atos que violem, de forma não intencional, normas e regulamentos.

2. As faltas leves são puníveis com as penas previstas nos artigos 21.º e 22.º do Regulamento de Justiça e Disciplina da FPP, bem como com pena de multa de montante não superior a 20% do Salário Mínimo Nacional, e/ou suspensão de atividade até 4 jogos e/ou suspensão de actividade por período não superior a 1 mês.

(…)”

Da factualidade levada ao probatório resulta à evidência a manifestada a falta de fundamentação do acto, deixando sem se saber, e da face à amplitude da moldura sancionatória aplicável às infracções qualificados como leves (citado artigo 17º) porque foi em concreto aplicado arguido a punição de três jogos de suspensão e não um jogo ou dois ou mesmo “a suspensão da actividade por um período não superior a um mês”. Não há factos; nem há valoração da prova para determinação da medida concreta da pena.

E assim sendo, para tanto basta, num juízo de prognose de summaria cognitio - que é o que aqui se impõe -, para se poder concluir pela verificação de uma titularidade séria do direito invocado pelo Requerente.

Ou seja, a providência requerida passa o crivo do requisito do fumus boni juris.

Isto estabelecido, vejamos agora se vem demonstrado o periculum in mora.

Relembre-se que são requisitos essenciais destas providências cautelares:

a) A titularidade de um direito que releva do ordenamento jurídico desportivo ou relacionado com a prática do desporto; e

b) O receio fundado da lesão grave e de difícil reparação desse direito.

A propósito do periculum in mora, veja-se o que se concluiu no ac. de 11.02.2021 do T. R. de Lisboa, no proc. n.º534/16.5T8SXL-A.L1-2:

“(…) não é toda uma qualquer ou mera consequência que previsivelmente ocorra antes de uma decisão definitiva, que se configura com capacidade de justificar o recurso e decretamento de uma medida provisória com reflexos imediatos na esfera jurídica da requerida contraparte;

III - efectivamente, de acordo com a legal enunciação, só lesões graves e dificilmente reparáveis têm a virtualidade e viabilidade de permitir ao tribunal, mediante iniciativa do interessado, a tomada de uma decisão que o coloque a coberto e salvaguarda da previsível lesão;

IV – destra forma, a decisão cautelar do tribunal, de forma a evitar a lesão, está condicionada à projecção da lesão como grave, bem como ao facto, em cumulação, de ser dificilmente reparável do direito afirmado;

(…)

VII - revelando-se, inclusive, necessário o preenchimento concludente ou impressivo de tal requisito de periculum in mora, devendo a gravidade e a difícil reparação da lesão ou dano, configurar-se com um plus, acrescento ou excesso de risco, relativamente àquele que normalmente existe e é inerente à pendência de qualquer acção ;

(…).”

O periculum in mora, como afirmado no ac. 14.06.2018 do STA, proc. 435/18, “constitui verdadeiro leitmotiv da tutela cautelar, pois é o fundado receio de que a demora, na obtenção de decisão no processo principal, cause uma situação de facto consumado ou prejuízos de difícil ou impossível reparação aos interesses perseguidos nesse processo que justifica este tipo de tutela urgente”.

[…]

O fundado receio ou periculum in mora, cuja verificação é necessária para a procedência do procedimento cautelar comum, tem de resultar da alegação de factos que permitam afirmar, com objectividade e distanciamento, a seriedade e actualidade da ameaça e a necessidade de serem adoptadas medidas tendentes a evitar o prejuízo. Como ensina Abrantes Geraldes: “só devem ter-se em conta para a aferição da existência do requisito do “periculum in mora” as lesões graves e dificilmente reparáveis, em que se exigem maiores cuidados, devendo o juiz “convencer-se da seriedade da situação invocada pelo requerente e da carência de uma forma de tutela que permita pô-lo a salvo de lesões graves e dificilmente reparáveis.// A gravidade da lesão previsível deve ser aferida tendo em conta a repercussão que determinará na esfera jurídica do interessado” (in Temas Da Reforma Do Processo Civil, vol. III, 1998, pp. 83 a 88).

E como a jurisprudência tem entendido, a “previsível gravidade da lesão deve ser aferida tendo em conta a repercussão que determinará na esfera do interessado, abrangendo tanto os prejuízos materiais, como os prejuízos imateriais ou morais, por natureza irreparáveis ou de difícil reparação” (cfr., i.a., o ac. do T.R.Coimbra, proc. n.º 306/15.4T8FND.C1). É que, como bem sintetiza Antunes Varela, as providências cautelares “visam precisamente impedir que, durante a pendência de qualquer acção declarativa ou executiva, a situação de facto se altere de modo que a sentença nela proferida, sendo favorável, perca toda a sua eficácia ou parte dela. Pretende-se deste modo combater o periculum in mora (o prejuízo da demora inevitável do processo), a fim de que a sentença não se torne numa decisão puramente platónica” (cfr. A. Varela e Outros, Manual de Processo Civil, 2.ª ed. revista e actualizada, 1985, p. 23).

E sabido é que os danos ou prejuízos imateriais ou morais são por natureza irreparáveis ou de difícil reparação (cfr. o ac. de 8.04.2021 do T.R. de Guimarães, proc. n.º 1053/21.3T8GMR.G1; idem, o ac. de 11.02.2021 do T.R. de Lisboa, proc. n.º534/16.5T8SXL-A.L1-2). Sendo que a privação ou limitação do exercício daqueles direitos constituem, por regra, em si mesmo, um dano de difícil reparação.

Também no que concerne à gravidade, “apenas merecem a tutela provisória consentida pelo procedimento cautelar comum as lesões graves e de difícil reparação, ficando arredadas do círculo de interesses acautelados pelo procedimento cautelar comum, ainda que se mostrem de difícil reparação, as lesões sem gravidade ou de gravidade reduzida” (idem, o ac. do T.R. de Lisboa citado).

De igual modo, afirmou o STJ, no acórdão de 7.12.2017, proc. n.º 697/16.0T8VVD.G1, que “[n]o essencial, pretendem-se prevenir os prejuízos que decorrem da natural demora do processo - o periculum in mora. // Decidiu o S.T.J., no Ac. de 18/03/2010, que a providência deve ser decretada, “sempre que se esteja ante uma lesão grave, atenta a importância patrimonial ou extrapatrimonial do direito ou do bem que aquele incide (objecto mediato) e que está em risco de ser sacrificado, e não seja razoável exigir que tal risco seja suportado pelo titular do direito ameaçado, na medida em que a reparação de tal dano seja avultada ou mesmo impossível (ut Procº. 1004/07.8TYLSB.L1.S1, Cons.º Álvaro Rodrigues in www.dgsi.pt).

Ora, de acordo com o probatório em conjugação com as regras da experiência, é incontornável que a aplicação da sanção comporta uma lesão grave e dificilmente reparável.

Como afirmado pelo Requerente, este “jamais poderá ser reintegrada se indevidamente cumprir a sanção de suspensão”.

Trata-se enfim, para utilizar uma terminologia própria do contencioso administrativo, de uma situação de facto consumado. Dito de outro modo, caso o Requerente venha a obter ganho de causa na acção principal, sempre os efeitos danosos se teriam produzido e consumado integralmente (o requisito do periculum in mora encontrar-se-á preenchido sempre que exista fundado receio de que quando venha a ser proferida uma decisão no processo principal a mesma já não venha a tempo de dar resposta adequada ou cabal à situação jurídica e pretensão objecto de litígio – v. ac. do STA de 17.12.2019, proc. n.º 620/18.7BEBJA).

Deste modo, tudo ponderado, temos, igualmente, por verificado o requisito do periculum in mora.

Verificados estes requisitos, cumpre ainda ao tribunal verificar se o decretamento da providência é susceptível de causar à Requerida um prejuízo que excede consideravelmente o dano que se pretende evitar (art. art. 368.º, n.º 2, do CPC). Isto é, importa verificar da proporcionalidade do decretamento da providência, perante os valores contrapostos. O decretamento de uma qualquer providência cautelar implica necessariamente a formulação de um juízo de proporcionalidade acerca dos respectivos efeitos, “o que reclama na actuação do julgador, no momento da decisão, a conjugação e a interferência dos factores de ponderação, de bom senso e equilíbrio na busca da justa medida que permita estabelecer a melhor composição dos interesses conflituantes” (cfr., i.a., o ac. de 23.11.2004 do T.R.de Coimbra, proc. n.º 3064/04; idem o ac. de 4.07.2019 do STJ, proc. n.º 32/19.5YFLSB).

Ora, não se entende que o decretamento da providência cause qualquer prejuízo relevante à Requerida, para além do (mero) retardamento da acção punitiva; o que é consequência “natural”, aliás, do provimento da medida cautelar (cfr. a nossa decisão de 7.02.2022, proc. n.º 34/22.4BCLSB).

Com efeito, não se poderá concluir que a não execução imediata da sanção seja susceptível de afectar, e muito menos de modo grave, a esfera jurídica da Requerida e dos valores que a mesma defende no processo. Para além de que só uma considerável desproporção relativamente às consequências para o requerido será capaz de justificar a recusa da providência (cfr., sobre esta matéria, Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, 4.ª ed., 2010, pp. 245-251); o que sempre não seria o caso, dado que, a ser confirmada na acção principal a sanção aplicada, nada obstará à efectiva aplicação desta.

Pelo que, tudo visto, entende-se nada obstar ao decretamento da providência requerida, o que se determinará no local próprio (infra).



VI. Decisão

Nestes termos e pelo exposto decide-se:

- Julgar procedente a providência cautelar requerida e suspender a execução da sanção aplicada ao Requerente, F ……………., em 6.06.2022, pelo Conselho de Disciplina da Federação de Patinagem de Portugal, com o nº saída CD…../2122.

Custas da responsabilidade do Requerente, que do processo tirou proveito (art. 539.º, n.º 1, do CPC), a atender, a final, na acção principal (art. 539.º, n.º 2, do CPC).

Notifique pelo meio mais expedito; também o TAD.

Lisboa, 9 de Junho de 2022

Pedro Marchão Marques
(Juiz presidente)