Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:308/22.4BELRA-A
Secção:JUIZ PRESIDENTE
Data do Acordão:05/27/2022
Relator:PEDRO MARCHÃO MARQUES
Descritores:PEDIDO DE ESCUSA DE JUIZ
FUNDAMENTOS
Sumário:I-Nos termos do disposto no n.º 1 do art. 119.º do CPC (pedido de escusa por parte do juiz), “o juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir que seja dispensado de intervir na causa quando se verifique algum dos casos previstos no artigo seguinte e, além disso, quando, por outras circunstâncias ponderosas, entenda que pode suspeitar-se da sua imparcialidade.

II-Não constitui fundamento de escusa a existência de relacionamento em contexto escolar ocorrido há mais de 20 anos com a Autora, nem a relação de amizade com a filha desta, com a qual não há proximidade há mais de 10 anos. E não vem referido qualquer outro relacionamento que, em tempos mais próximos, a Senhora Juíza que formulou o pedido de escusa tenha mantido com a Autora ou com a sua filha.

III-O condicionalismo descrito, que se admite que possa causar-lhe algum desconforto, não é de molde a criar o risco de a intervenção da magistrada em causa poder gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.

Votação:DECISÃO SUMÁRIA
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral: DECISÃO

1. A Senhora Juíza de Direito a exercer funções no Juízo Comum do Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria e na Equipa de Recuperação de Pendências da Zona Centro (área administrativa), Dra. A ………………….., veio, ao abrigo do disposto no artigo 119.º, n.º 1, in fine, do CPC aplicável ex vi artigo 1º do CPTA, apresentar pedido de escusa na acção administrativa que com o n.º 308/22.4BELRA lhe foi distribuída, na qual é Autora, M …………… e testemunha indicada na p.i. dessa ação, J ………….

Fundamentou tal pretensão no facto de a Autora ter sido, nos anos de 1994 a 2000, a sua professora da disciplina de História no Colégio ……………, em ......., e da testemunha, naquele período, “ter orientado a signatária (…) na preparação de teatros e outras atividades lúdicas, por ocasião das festas” escolares. Mais refere que manteve com a filha da Autora uma relação de amizade e de convívio próximo no tempo do Colégio (embora em turnas distintas) e da Faculdade, frequentando a casa uma da outra “designadamente por ocasião dos respectivos aniversários”. Foi convidada para o casamento da filha da Autora, convívio esse que deixou de ser contínuo e regular desde os anos de 2008-2009, data em que a signatária concluiu o mestrado.

2. Com o pedido de escusa juntou cópia da petição inicial da acção onde figura como Autora, M…………………….e a única testemunha indicada na p.i., J………………..

3. Apreciando:

4. Aos juízes na sua missão de julgar é exigido estatutariamente, como garantia do seu exercício, que o façam com o dever de independência e imparcialidade, nos artigos 4.º e 7.º do EMJ, aprovado pela Lei n.º 21/85, de 30-7, sucessivamente alterado e republicado pela Lei n.º 67/2019, de 27 de Agosto.

5. Julgar com independência é fazê-lo sem sujeição a pressões, venham elas de onde vierem, deixando fluir o juízo-valorativo com sujeição apenas à lei, à consciência e às decisões dos tribunais superiores. E ser imparcial é posicionar-se numa posição acima e além das partes, dizendo o direito aplicável na justa composição de interesses cuja resolução lhe é pedida.

6. Pode dizer-se, de um modo geral, que a causa de recusa do juiz, ou pedido de escusa do juiz, há-de reportar-se a um de dois fundamentos: uma especial relação do juiz com algum dos sujeitos processuais, ou algum especial contacto com o objecto da sua decisão (cfr. Alberto do Reis, Comentário, vol. I, p. 439 e ss.).

7. Esses especiais contactos e/ou relação(ões) deverão ser de molde a criarem uma predisposição favorável ou desfavorável no julgamento e deverão ser aferidos tendo em conta o juízo que um cidadão médio, representativo da comunidade, possa, fundadamente, fazer sobre a imparcialidade e independência do juiz.

8. Como já repetidamente afirmamos, a imparcialidade é um atributo fundamental dos juízes e da função judicial que visa garantir o direito de todos os cidadãos a um julgamento justo e equitativo. Recai sobre os julgadores o dever de adoptar uma conduta pessoal, social e profissional que, aos olhos de uma pessoa razoável, bem informada e de boa fé, seja entendida como íntegra, leal e correcta.

9. É “a confiança pública nos juízes (que) garante o respeito pelas suas decisões e o prestígio e boa imagem da Administração da Justiça e do próprio Estado de direito democrático. Essa percepção social da incorruptibilidade, probidade e honestidade dos juízes não pode ser minimamente beliscada por qualquer atitude do juiz que a ponha em causa” , estando constantemente, sujeito a escrutínio público, ao juiz exige-se que evite “comportamentos que ponham em causa a confiança nas suas qualidades para administrar a Justiça, tendo sempre presente que o seu exemplo pessoal quotidiano é relevante…” (Compromisso Ético dos Juízes Portugueses - Princípios para a Qualidade e Responsabilidade, documento aprovado no oitavo congresso dos juízes portugueses, editado pelo ASJP).

10. «No incidente de escusa de juiz não relevam as meras impressões individuais, ainda que fundadas em situações ou incidentes que tenham ocorrido entre o peticionante da escusa e um interveniente ou sujeito processual, num processo ou fora dele, desde que não sejam de molde a fazer perigar, objectivamente, por forma séria e grave, a confiança pública na administração da justiça e, particularmente, a imparcialidade do tribunal. De outro modo, poder-se-ia estar a dar caução, com o pedido de escusa, a situações que podiam relevar de motivos mesquinhos ou de formas hábeis para um qualquer juiz se libertar de um qualquer processo por razões de complexidade, de incomodidade ou de maior perturbação da sua sensibilidade. (2) – O motivo de escusa apresentado tem de ser sério e grave, objectivamente considerado, isto é, do ponto de vista do cidadão médio, que olha a justiça como uma instituição que tem de merecer confiança. (3) – A regra do juiz natural ou legal, com assento na Constituição -art.32.º, n.º9-, só em casos excepcionais pode ser derrogada, e isso para dar satisfação adequada a outros princípios constitucionais, como o da imparcialidade, contido no n.º1 do mesmo normativo. Mas, para isso, é preciso que essa imparcialidade esteja realmente mesmo em causa, em termos de um risco sério e grave, encarado da forma sobredita.» (cfr. ac. do STJ de 14.06.2006, proc. n.º 1286/06-5).

11. A escusa do juiz tem como um único objectivo ou finalidade, a de garantir a imparcialidade do juiz, que se presume e que só em situações limite por motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, conforme é exigência legal, deve o mesmo ser escusado de intervir num processo.

Vejamos o presente caso.

12. A Senhora Juíza escusante invoca a susceptibilidade de ser posta em causa a sua imparcialidade, baseando-se, por um lado na relação de professora/aluna e, por outro lado, no relacionamento próximo com a filha da Autora.

Sublinha-se que a relação escolar existiu há mais de 20 anos e que o contacto com a filha da Autora se manteve regular desde a data em que ambas frequentavam o mesmo Colégio até ao ano de 2008-2009, portanto, há mais de uma década.

13. Avaliados os elementos invocados, do que acabámos de destacar supra, julga-se não existirem razões para colocar em causa a imparcialidade da Senhora Juíza, sob o ponto de vista subjectivo, não se vislumbrando motivos para admitir que o seu relacionamento pessoal com a Autora e sua família possa ter repercussões na sua intervenção nos autos principais de que este incidente é apenso.

Aceita-se o desconforto da situação e sendo o presente processo suscitado por um pedido de escusa da própria magistrada, estamos perante uma atitude que só pode ser qualificado de escrupulosa, por parte da Senhora Juíza requerente.

Mas o princípio do juiz natural ou legal só pode ser afastado em situações-limite, se a intervenção deste juiz for susceptível de colocar seriamente em causa os valores da imparcialidade e da isenção.

14. Nem sob a perspectiva objectiva se considera que a situação narrada possa, perante a comunidade em geral, colocar em causa a isenção e imparcialidade da Senhora Juíza escusante. O relacionamento com a Autora, há mais de duas décadas e a relação de amizade e convívio com a sua filha, “menos regular” desde 2008/2009 não têm a virtualidade de constituir “motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade”, nos intervenientes e sujeitos processuais, nem na comunidade em geral.

15. Em suma, os fundamentos em que assenta o pedido de escusa não consubstanciam “motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade”.

16. O referido relacionamento em contexto escolar ocorreu há mais de 20 anos e a relação de amizade próxima com a filha da Autora há mais de 10 anos. Não referindo a Senhora Juíza Requerente qualquer outro relacionamento que, em tempos mais próximos, tenha mantido com a Autora ou com a sua filha. Aliás, pela própria vem referido que “a frequência do convívio não [é] tão regular como foi até, aproximadamente, aos anos de 2008/2009”.

17. Decorridos que foram mais de 10 anos, não vislumbramos que o relacionamento então existente e a proximidade que o mesmo possa então ter proporcionado, seja susceptível agora de afectar a imagem da Senhora Juíza, nem a sua capacidade de isenção e imparcialidade.

18. Pelo exposto, decidindo, indefere-se o pedido de escusa apresentado, devendo, por conseguinte, manter-se a Senhora Juíza Dra. A …………….. como a titular do processo.

Sem tributação.

Notifique.

O Juiz Presidente do TCA Sul

PEDRO MARCHÃO MARQUES