Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:2320/09.0BELRS
Secção:CT
Data do Acordão:02/10/2022
Relator:TÂNIA MEIRELES DA CUNHA
Descritores:DUPLA TRIBUTAÇÃO ECONÓMICA
DUPLA TRIBUTAÇÃO ECONÓMICA POTENCIAL
Sumário:I. A dupla tributação económica pode ser efetiva/real ou virtual/potencial.

II. Em sede de IRC, as isenções podem ser objetivas ou subjetivas, totais ou parciais e temporárias ou permanentes.

III. Uma isenção, total ou parcial, resultante de contrato de investimento celebrado com o Estado português é uma isenção de cariz objetivo.

IV. O n.º 1 do art.º 45.º do CIRC consagrava, à época, que o mecanismo de atenuação da dupla tributação económica dependia, entre outros aspetos, de a sociedade que distribui os lucros ser sujeita e não isenta de IRC, abrangendo, nessa redação, quer a dupla tributação económica real, quer a dupla tributação económica potencial.

Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
I. RELATÓRIO

A Fazenda Pública (doravante Recorrente ou FP) veio apresentar recurso da sentença proferida a 13.04.2021, no Tribunal Tributário de Lisboa, na qual foi julgada procedente a impugnação apresentada por R..., SAS (doravante Recorrida ou Impugnante), que teve por objeto o indeferimento da reclamação graciosa que versou sobre a autoliquidação de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC), atinente ao exercício de 1990.

Apresentou alegações, nas quais concluiu nos seguintes termos:

“ I.

O presente Recurso vem reagir contra a Sentença do Tribunal Tributário de Lisboa que julgou procedente a impugnação, anulando a liquidação de IRC referente a 1990.


II.

A douta sentença recorrida julgou a impugnação procedente por considerar que se encontram preenchidos os pressupostos previstos no artigo 45º do CIRC na redação vigente à data.

III.

Verifica a Fazenda que a douta sentença recorrida dá como provados factos “por acordo” resultantes da invocação pela impugnante e não impugnação pela Fazenda (pág 15 da sentença). Porém, com o devido respeito, não é correto que a AT não tenha contestado os factos e consequentemente discutido a aceitação dos argumentos do sujeito passivo, sendo ainda de referir que a falta de contestação da impugnação não representa a confissão dos factos articulados pelo impugnante (cf artigo 110º, nº 6 do CPPT).

IV.

É de referir que o DMMP emitiu douto parecer no sentido da improcedência da impugnação.

V.

A Fazenda não se conforma a decisão, por verificar que a douta sentença recorrida pressupõe que no exercício em questão, a C.... não estaria isenta de IRC, deduzindo-se que terá partido do pressuposto que o benefício da isenção por dez anos teria terminado em 1990. Não obstante, importa referir que é em relação à R... Portuguesa, SA que importa verificar se está ou não isenta, e em que medida

VI.

Importa salientar que a AT questionou a impugnante quanto à necessidade de apresentação dos comprovativos de a R... Portuguesa, SA ter suportado IRC, tendo-a notificado no âmbito da reclamação graciosa para apresentar os documentos comprovativos para aplicação da redução pretendida ao abrigo da referida norma do artigo 45º do CIRC.

VII.

Acresce ainda recordar que a informação da reclamação graciosa refere que da análise dos documentos arrolados aos autos pela reclamante se verifica que os mesmos não estabelecem prova demonstrativa e inequívoca de que a R... Portuguesa, SA pagou imposto.

VIII.

É de salientar que cabe à impugnante o ónus de demonstrar os factos de cujo preenchimento dependeria a possibilidade de usufruir do benefício pretendido, não podendo extrair-se a prova do eventual silêncio da AT (que na realidade também não se verificou). A necessidade da comprovação da sujeição e não isenção da R... Portuguesa, SA é tanto mais importante quanto se verifica que os contratos de investimento sofreram alterações, como se pode verificar nomeadamente pelo documento mencionado no ponto A do probatório da sentença, verificando-se que entre as cláusulas alteradas em 1983 consta precisamente a isenção da R... Portuguesa por 10 anos e redução de 50% nos 5 anos subsequentes.

IX.

Recorde-se que está em causa a aplicação de uma norma que tem em vista a eliminação da dupla tributação económica, como decorre aliás desde logo da epigrafe da norma. Esclarece a douta sentença recorrida, que, a dupla tributação económica surge quando determinado lucro de uma sociedade, que já tinha sido tributado em imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC) na sua esfera, sofre nova tributação pela distribuição aos sócios e já no âmbito pessoal destes (cf página 16 da sentença).

X.

Contudo, a douta sentença recorrida considera prescindível a prova de o lucro ter sido anteriormente tributado, depreendendo, sem qualquer comprovativo expresso, que a “C....” estaria no período de isenção parcial – cf pág 24 da sentença (sendo certo que é a R... Portuguesa que estaria isenta, total ou parcialmente, e temporariamente). Contudo, não consta do probatório se a R... Portuguesa SA estava ou não isenta e se o estaria ainda total ou parcialmente.

XI.

A Fazenda não se conforma com a decisão de considerar preenchido os pressupostos da norma do artigo 45º, nº 1 do CIRC, por não ter sido demonstrado que a R... Portuguesa, SA estava sujeita e não isenta.

XII.

Acresce ainda que a R... Portuguesa, SA é uma sociedade isenta subjetivamente de forma temporária, motivo pelo qual também não poderia a impugnante usufruir da aplicação da mencionada norma do artigo 45º do CIRC.

XIII.

Assim, salvo o devido respeito que é muito, entendemos que a douta sentença recorrida ao julgar procedente a presente impugnação judicial, enferma de erro de facto e de interpretação de lei e viola o disposto no artigo 45º, nº 1 do CIRC, bem como o disposto no artigo 74º da LGT.

Termos em que, concedendo-se provimento ao recurso, deve a decisão recorrida ser revogada e substituída por acórdão que declare a impugnação improcedente.

Porém, V. Exªas decidindo, farão a costumada JUSTIÇA”.

A Recorrida apresentou contra-alegações, nas quais formulou as seguintes conclusões:

“A. O objeto do recurso interposto pela Recorrente é completamente improcedente.

B. A douta sentença proferida pelo Tribunal a quo sempre teria de julgar a impugnação proposta pela ora Recorrida como totalmente procedente pela simples razão que a ora Recorrida tinha o direito a beneficiar da dedução à matéria coletável no montante de 95% do valor referente aos dividendos pagos em 1990, pela participada R... Portugal, S.A., nos termos do disposto no art 45.° do CIRC, na redação vigente à data.

C. É inequívoco o discurso fundamentador que decorre da apreciação da prova produzida na douta Sentença proferida pelo Tribunal a quo, em pleno respeito do disposto no art.º 607.°/4 do CPC, aplicável ex vi do disposto no art0 2.°, al. 2) do CPPT.

D. Se a Recorrente não concorda com a matéria de facto dada como provada e fixada na douta Sentença proferida pelo Tribunal a quo, alegadamente por a mesma não resultar por acordo, a verdade é que a Recorrente sempre poderia e deveria ter impugnado a referida matéria de facto dada como provada, o que, in casu, manifestamente não ocorre.

E. A Recorrente não cumpre com o referido ónus processual de especificar a matéria de facto que impugna, nos termos do art.° 640.°/1 do CPC, aplicável ex vi do disposto no art° 281° do CPPT, tal como lhe era imposto e como é reconhecido na jurisprudência do Tribunal Constitucional, de 06.11.2019, Proc. n.° 1092/08.0TTBRG.G1.SI.

F. É patente a análise crítica das provas produzidas pelo Tribunal a quo, as quais, na ausência de impugnação especificada pela Recorrente, foram analisadas segundo o princípio da livre apreciação da prova, nos termos do art° 110.°/7 do CPPT.

G. Da prova documental produzida pela ora Recorrida não existe qualquer tipo de dúvida relativamente à relação da R... Portuguesa, S.A., no sentido de saber se estaria, ou não, isenta de IRC e em que medida.

H. O facto de a ora Recorrida ter assumido o património, ativo e passivo, da dissolvida sociedade “C.... - ..., Limitada” ("C....”), mediante a transmissão global de todo o património, ativo e passivo, da dissolvida sociedade, a favor da sua sócia única, a ora Recorrida, nos termos artigo 148° do Código das Sociedades Comerciais (CSC), já indica a assunção na esfera jurídica da ora Recorrida do crédito fiscal ora em questão, factos processualmente provados através do Doc. 1 e 2 que a ora Recorrida juntou com a P.I.).

I. Facto que permite ilidir qualquer tipo de ónus da prova que supostamente poderia recair sobre a ora Recorrida, como tenta alegar a Recorrente.

J. A C.... foi criada em 1980, no âmbito do projeto de investimento estrangeiro, em regime contratual, então designado por “Projecto R... em Portugal”, aprovado, em todo o seu detalhe, pela Resolução de Conselho de Ministros n°. 45-A/80, de 11 de fevereiro.

K. No n.° 10 da mencionada Resolução de Conselho de Ministros foi também determinada a criação das sociedades R... Portuguesa, S.A., e R... Gest, S.A., cujos capitais eram detidos, em 10%, pela referida holding C.....

L. Por força do disposto no art. 12.° do Decreto-Lei n.° 495/88, de 30 de dezembro, na sua primitiva redação, que instituiu as sociedades gestoras de participações sociais, as antigas sociedades de controlo, como era o caso da C...., passaram a integrar esta nova figura das SGPS, sem necessidade de proceder a qualquer alteração estatutária, ou de firma ou denominação, razão pela qual a C.... passou a deter a natureza legal de uma SGPS.

M. Também por força do disposto no art. 7°/1 do Decreto-Lei n°. 495/88, a estas sociedades era aplicável o disposto no art. 45°/1 do CIRC, sem dependência dos requisitos de percentagem de participação e de prazo de permanência da respetiva titularidade.

N. Como bem refere o Tribunal a quo, in casu "estamos perante a aplicação do método de isenção absoluta, regime de eliminação da dupla tributação económica dos lucros distribuídos que inclui os casos de dupla tributação que tenham uma natureza ‘Virtual ou potencial”, não exigindo a existência duma tributação efetiva desses lucros na esfera da sociedade que distribuiu os rendimentos, apenas exigindo que essa mesma sociedade não se encontra isenta de IRC de modo subjetivo, permanente e total”.

O. A C.... beneficiava do mecanismo para evitar a dupla tributação económica, previsto no art. 45° do CIRC, no tocante aos lucros distribuídos, sob a forma de dividendos, pelas suas participadas R... Portuguesa, S.A. e R... Gest, S.A., que eram, tal como aquela, sociedades com sede em Portugal.

P. No âmbito do mesmo projeto de investimento, à R... Portuguesa foram atribuídos um conjunto de benefícios fiscais, designadamente de Contribuição Industrial e de Imposto Complementar, sendo total nos primeiros dez anos, e com redução a 50% nos cinco anos seguintes, facto que é reconhecido na douta Sentença ora recorrida.

Q. Impostos que, não obstante abolidos com a entrada em vigor do Decreto-Lei n°, 442- B/88, de 30 de novembro que aprovou o Código do IRC, se verificou o cuidado, nos termos do seu art. 14°/1, em manter as isenções em sede do novo imposto, resultantes de acordo celebrado pelo Estado, como foi o caso dos benefícios concedidos à R... Portuguesa, S.A.

R. Assim, em 1990, a R... Portuguesa, S.A., ainda beneficiava de uma isenção de IRC, mas de natureza parcial (50%) e temporária (por cinco anos),

S. Interpretação confirmada pela Circular n°. 4/91, de 30.01.1991, ao aplicar o mecanismo do art. 45° CIRC às entidades normalmente sujeitas a IRC ou dele isentas, a título meramente parcial ou temporário.

T. No caso vertente, a liquidação de IRC e Derrama de 1990 não tinha carácter definitivo na data da Circular, não sendo um caso decidido, podendo ser ainda objeto de reclamação graciosa, como o foi, e de impugnação judicial, como se fez, razão pela qual, a disciplina vertida na Circular n.° 4/91, de 30.01.1991 manteve a sua plena aplicabilidade a essa liquidação.

U. Sendo a Circular n.° 4/91, datada de janeiro desse ano, ou seja, 4 meses antes da liquidação ocorrer, nunca se esteve perante qualquer aplicação retroativa da Circular n.° 4/91, de 30.01.1991, mas da aplicação da Circular que estava em vigor no momento da liquidação!

V. A Circular n.° 4/91, de 30 de janeiro, esclareceu a natureza subjetiva da isenção, reportando-a às entidades e não aos rendimentos, permitindo que a dedução à matéria coletável, de 95% dos lucros distribuídos, fosse também aplicável aos distribuídos por entidades temporariamente isentas.

W. A douta Sentença recorrida está devidamente fundamentada, interpreta corretamente a lei e deve ser confirmada no ordenamento jurídico nos precisos termos em que foi proferida.

Termos em que, com o douto suprimento de V. Exas., deve o recurso ser julgado improcedente, confirmando-se a douta Sentença recorrida, como é de Lei e de Justiça!”.

O recurso foi admitido, com subida imediata nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

Foram os autos com vista ao Ilustre Magistrado do Ministério Público, nos termos do art.º 288.º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), que emitiu parecer, no sentido de ser negado provimento ao recurso.

Colhidos os vistos legais (art.º 657.º, n.º 2, do CPC, ex vi art.º 281.º do CPPT) vem o processo à conferência.

São as seguintes as questões a decidir:

a) Há erro na decisão proferida sobre a matéria de facto?

b) Há erro de julgamento, na medida em que não se encontram reunidos os pressupostos previstos no então n.º 1 do art.º 45.º do Código do IRC (CIRC)?

II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

II.A. O Tribunal recorrido considerou provada a seguinte matéria de facto:

“A) Em 15.07.1983, junto do 17º Cartório Notarial de Lisboa, foi assinado o escrito denominado “Contrato de Investimento entre o Estado Português, o I..- …, SARL, C.... –…, Limitada, R... Portuguesa –…., S.A.R.L., R... G… – …, SARL, R...-FIC – Sociedade de Desenvolvimento Industrial e Comercial, SARL e R…...”, mediante o qual alteraram e aditaram ao Contrato de Investimento lavrado em 13.02.1980, o que fizeram nos termos do documento complementar junto, do qual constava ainda um “Anexo ao Documento Complementar”, que no seu novo artigo 11º estatuía que o Estado concedia à R... Portuguesa diversos incentivos fiscais, designadamente em sede de Contribuição Industrial, imposto de comércio e indústria e seus adicionais e em sede de Imposto Complementar, sendo estes incentivos consistentes em isenção por dez anos, e redução a 50% por cinco anos (cfr. doc. nº 5 junto com a p.i., cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

B) Durante o ano de 1990 a sociedade “C....”, entretanto dissolvida e extinta em 1997, tendo a Impugnante como sua única sócia, obteve como rendimentos o montante de 163.855.893$00 referente a dividendos distribuídos pela “R... Portugal, S.A.” e 38.832.879$00 referente a dividendos distribuídos pela “R... Gest, S.A.”, num total de 202.688.772$00 (acordo e fls. 4 a 7 e 22 a 24 do processo de reclamação graciosa apenso ao PAT).

C) Os dividendos pagos pela “R... Portugal, S.A.” respeitavam à participação de 770.800 ações (dum total de 7.708.000 ações), detidas pela “C....”, tendo o correspondente imposto sucessório por avença sido pago em 02.07.1990 (cfr. fls. 22 a 24 do processo de reclamação graciosa apenso ao PAT).

D) A “C....” apresentou em 29.05.1991 a sua declaração Modelo 22 referente ao exercício de 1990, declarando um valor de pagamentos por conta de 25.648.650$00, e tendo apurado um total de receitas financeiras de participação no capital, no montante de 192.554.333$00 (valor correspondente ao referido em B) – 202.688.772$00 -, subtraído dos 5% de Imposto Sucessório pago por avença), tendo usufruído do benefício declarado na linha 34 do Quadro 17 – “Rendimentos nos termos do artigo 45º”, apenas pelo valor de 35.046.673$00, correspondente a 95% do valor dos dividendos líquidos pagos pela “R... Gest, S.A.” (acordo e fls. 4 a 7 do processo de reclamação graciosa apenso ao PAT).

E) Em 29.01.1993 a “C....” apresentou reclamação graciosa contra a sua autoliquidação de IRC do exercício de 1990, na qual pediu o reembolso do IRC e Derrama no montante total de 56.127.052$00, correspondente à dedução à matéria coletável de 95% do valor dos dividendos líquidos pagos pela “R... Portugal, S.A.”, por entender que também sobre esses rendimentos deveria ter beneficiado do mecanismo previsto no artigo 45º, nº 1 do CIRC (cfr. fls. 2 e 3 do processo de reclamação graciosa apenso ao PAT).

F) A reclamação graciosa referida na alínea antecedente foi instaurada no SF de Lisboa 9 sob o nº 3328-93/40005.0 (cfr. fls. 1 do processo de reclamação graciosa apenso ao PAT).

G) Por despacho do Diretor de Finanças Adjunto de Lisboa, proferido em 30.10.2009, foi a reclamação graciosa indeferida com a seguinte fundamentação:


«Imagem no original»


«Imagem no original»

(cfr. fls. 41 a 43 dos autos e fls. 64 a 67 do processo de reclamação graciosa apenso ao PAT).

H) A Impugnante foi notificada da decisão transcrita na alínea antecedente em 06.11.2009 (cfr. fls. 71 e 72 processo de reclamação graciosa apenso ao PAT).

I) A presente impugnação foi apresentada em 24.11.2009 (cfr. fls. 2 dos autos)”.

II.B. Refere-se ainda na sentença recorrida:

“Não se provaram quaisquer outros factos passíveis de afetar a decisão de mérito, em face das possíveis soluções de direito, e que, por conseguinte, importe registar como não provados”.

II.C. Foi a seguinte a motivação da decisão quanto à matéria de facto:

“Quanto aos factos provados a convicção do Tribunal fundou-se na posição factual expressa pelas partes na p.i. e contestação, na prova documental junta aos autos e no processo administrativo. Os factos dados como provados por acordo resultam da sua invocação pela Impugnante e não impugnação por parte da Fazenda Pública”.

II.D. Da impugnação da decisão proferida quanto à matéria de facto

Entende, desde logo, a Recorrente que na sentença houve factos provados por acordo, não correspondendo tal à realidade.

Considerando o disposto no art.º 640.º do CPC, ex vi art.º 281.º do CPPT, a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto carateriza-se pela existência de um ónus de alegação a cargo do Recorrente, que não se confunde com a mera manifestação de inconformismo com tal decisão (1).

Assim, o regime vigente atinente à impugnação da decisão relativa à matéria de facto impõe ao Recorrente o ónus de especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considere incorretamente julgados [cfr. art.º 640.º, n.º 1, al. a), do CPC];

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impõem, em seu entender, decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida [cfr. art.º 640.º, n.º 1, al. b), do CPC], sendo de atentar nas exigências constantes do n.º 2 do mesmo art.º 640.º do CPC;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas [cfr. art.º 640.º, n.º 1, al. c), do CPC].

Como tal, não basta ao Recorrente manifestar de forma não concretizada a sua discordância com a decisão da matéria de facto efetuada pelo Tribunal a quo, impondo­-se-lhe os ónus já mencionados (2).

Transpondo estes conceitos para o caso dos autos, verifica-se que tais ónus não foram cumpridos, tal como, aliás, a Recorrida refere nas suas contra-alegações.

Com efeito, a Recorrente não identifica minimamente a que factos em concreto se está a referir, limitando-se a uma menção não concretizada e genérica, o que colide com as exigências legalmente prescritas. Ademais, perscrutando todos os factos, em cuja motivação consta a menção a acordo, em todos eles há motivação também em prova documental, nunca posta em causa.

Sempre se acrescente, ademais, que, sendo certo que a não contestação especificada dos factos, em processo tributário, não comporta a sua confissão, ocorrência da mesma é livremente apreciada pelo julgador (art.º 110.º, n.º 7, do CPPT).

Face ao exposto, rejeita-se o recurso nesta parte.

III. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

III.A. Do erro de julgamento

Considera a Recorrente que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, porquanto, na sua perspetiva, não se reúnem os pressupostos de aplicação do então art.º 45.º, n.º 1, do CIRC, sendo que a sociedade que distribuiu os lucros era, em termos de imposto sobre o rendimento, isenta subjetivamente de forma temporária.

Vejamos então.

A dupla tributação económica surge quando determinado lucro de uma sociedade, que já tinha sido tributado em imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC) na sua esfera (ou virtualmente com potencialidade para tal), sofre nova tributação pela distribuição aos sócios e já no âmbito pessoal destes.

Como é referido pelo Tribunal a quo, a dupla tributação económica pode ser efetiva/real ou virtual/potencial.

A mesma é real quanto ocorra, em termos práticos, uma pluralidade de tributações.

Já no caso da dupla tributação económica virtual ou potencial, a mesma sucede quando, havendo, em abstrato, condições para a tributação do rendimento (lucro), o mesmo não é, ainda assim e em termos práticos, tributado.

Têm vindo a ser criados, designadamente no âmbito do direito interno, mecanismos com vista a atenuar ou a eliminar estas situações de dupla tributação económica.

É nesse contexto que surge o então art.º 45.º do CIRC, o qual dispunha, por referência ao exercício em análise (1990), o seguinte:

“1 - Para efeitos de determinação do lucro tributável das sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, cooperativas e empresas públicas, com sede ou direção efetiva em território português, será deduzida uma importância correspondente a 95% dos rendimentos, incluídos na base tributável, correspondentes a lucros distribuídos por entidades com sede ou direção efetiva no mesmo território, sujeitas e não isentas de IRC ou sujeitas ao imposto referido no artigo 6º, nas quais o sujeito passivo detenha uma participação no capital não inferior a 25%, e desde que esta tenha permanecido na sua titularidade durante dois anos consecutivos ou desde a constituição da entidade participada, contanto que neste último caso a participação seja mantida durante aquele período.

2 - O disposto no número anterior é aplicável, independentemente da percentagem de participação e do prazo em que esta tenha permanecido na sua titularidade, aos rendimentos de participações sociais em que tenham sido aplicadas as reservas técnicas das sociedades de seguros e, bem assim, aos rendimentos das seguintes sociedades:

a) Sociedades de capital de risco;

b) Sociedades de desenvolvimento regional;

c) Sociedades de fomento empresarial.

3 - O disposto no nº 1 é igualmente aplicável às sociedades de participações sociais, nos termos da respetiva legislação, bem como a outros tipos de sociedades, de acordo com o estatuto dos benefícios fiscais”.

In casu, como resulta provado, com, entre outras, a C.... – Sociedade Franco-Portuguesa de Controle, Lda (doravante C...., que veio a ser extinta em 1997, sendo a Impugnante a sua única sócia) e R... Portuguesa – Sociedade Industrial e Comercial, S.A.R.L. (doravante R...), foram contratualizados diversos benefícios fiscais, conforme referido em A) do probatório (contrato de 1980, alterado em 1983), em sede de contribuição industrial, imposto de comércio e indústria e seus adicionais e imposto complementar, consubstanciados em isenção por dez anos e redução em 50% por cinco anos (que se estenderam ao IRC, por força do disposto no art.º 14.º, n.º 1, do respetivo código, na redação então em vigor).

O contrato foi celebrado, considerando o regime do então chamado Código de Investimento Estrangeiro (DL n.º 348/77, de 24 de agosto). Como refere Casalta Nabais (3), “… no domínio dos chamados contratos de investimento (normalmente estrangeiro) podem ser atribuídos, como contrapartida do Estado aos investidores, benefícios fiscais”.

Resultou igualmente provado que, em 1990, a então C.... recebeu dividendos distribuídos pela R..., rendimentos esses que declarou para efeitos de IRC. Posteriormente, apresentou reclamação graciosa da autoliquidação, tendo invocado a aplicação do disposto no n.º 1 do art.º 45.º do CIRC.

Antes de passarmos à apreciação do decidido, cumpre sublinhar que o Tribunal a quo se sustentou no entendimento de que o então n.º 1 do art.º 45.º do CIRC abrangia os casos de dupla tributação económica potencial, considerando que a isenção, prevista no texto da norma legal em questão, respeitava aos sujeitos e não aos rendimentos.

Daí que tenha considerado irrelevante aferir se a R... pagou efetivamente IRC no exercício de 1990 – sendo que, contratualmente, já só estava isenta em 50%. Com efeito, por referência ao exercício de 1990, como resulta do contrato e adenda mencionado em A), quer a C...., holding criada na sequência do contrato celebrado em 1980, quer a R... gozavam do benefício fiscal contratual, à época já de isenção de IRC em 50% (como a AT não poderia deixar de saber) – o que aliás está espelhado na declaração modelo 22 de IRC apresentada pela C.....

Posto isto, o que cumpre ora definir é o âmbito do alcance do n.º 1 do art.º 45.º do CIRC, na redação então vigente.

A questão ora em apreciação implica que seja pertinente, antes de mais, distinguir, para efeitos de IRC, o tipo de sujeitos passivos.

O art.º 2.º do CIRC fornece-nos um elenco de sujeitos passivos de IRC, nos seguintes termos:

“1 - São sujeitos passivos do IRC:

a) As sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, as cooperativas, as empresas públicas e as demais pessoas coletivas de direito público ou privado, com sede ou direção efetiva em território português;

b) As entidades desprovidas de personalidade jurídica, com sede ou direção efetiva em território português, cujos rendimentos não sejam tributáveis em imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS) ou em imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC) diretamente na titularidade de pessoas singulares ou coletivas;

c) As entidades, com ou sem personalidade jurídica, que não tenham sede nem direção efetiva em território português e cujos rendimentos nele obtidos, não estejam sujeitos a IRS.

2 - Consideram-se incluídas na alínea b) do nº 1, designadamente, as heranças jacentes, as pessoas coletivas em relação às quais seja declarada a invalidade, as associações e sociedades civis sem personalidade jurídica e as sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, anteriormente ao registo definitivo.

3 - Para efeitos deste Código, consideram-se residentes as pessoas coletivas e outras entidades que tenham a sede ou a direção efetiva em território português”.

Assim, o CIRC consagra um critério que parte da forma jurídica, visando “a tributação da empresa como célula da actividade económica” (4).

Por seu turno, o capítulo II do mesmo código (art.ºs 8.º a 14.º) respeita às isenções de IRC (e suas exceções), designadamente:

a) Estado, regiões autónomas, autarquias locais, associações de municípios e instituições de segurança social (art.º 8.º);

b) Pessoas coletivas de utilidade pública e de solidariedade (art.º 9.º);

c) Rendimentos diretamente derivados do exercício de atividades culturais, recreativas e desportivas (art.º 10.º);

d) Algumas cooperativas (art.º 11.º);

e) Os lucros realizados pelas pessoas coletivas e outras entidades de navegação marítima e aérea não residentes provenientes da exploração de navios ou aeronaves, desde que isenção recíproca e equivalente seja concedida às empresas residentes da mesma natureza e essa reciprocidade seja reconhecida pelo Ministro das Finanças, em despacho publicado no Diário da República (art.º 13.º);

f) Isenções resultantes de acordo com o Estado português (art.º 14.º, n.º 1).

Verificamos, pois, que estão previstas isenções subjetivas, de natureza pessoal, totais e permanentes, ou seja, isenções que são conferidas em função da qualidade do sujeito passivo em causa, e isenções reais ou objetivas, que abrangem só determinado tipo de rendimento e onde se enquadram isenções (totais ou parciais) resultantes de contratualização.

Como já se mencionou supra, o n.º 1 do art.º 45.º do CIRC consagrava, à época, que o mecanismo de atenuação da dupla tributação económica dependia, entre outros aspetos, aqui não controvertidos, de a sociedade que distribui os lucros ser sujeita e não isenta de IRC.

No caso, não é posto em causa, face até ao alcance do art.º 2.º do CIRC, que a R... era sujeito passivo de IRC. O que é discutido é o alcance da expressão “não isenta”.

Esta questão suscitou, logo, à época, dúvidas interpretativas.

Nessa sequência, foi emitido o Parecer n.º 101/90, do Centro de Estudos Fiscais, da autoria de Freitas Pereira (5), no qual se refere:

“[O] art.° 45.° insere-se no conjunto de disposições que o Código do IRC consagrou ao chamado problema da “dupla tributação económica dos lucros colocados à disposição dos sócios” (…). A este respeito acolheu-se um regime geral de atenuação dessa dupla tributação, através do sistema de crédito de imposto (art.° 72.° do Código do IRC e art.° 80.°, n.° 3 do Código do IRS). Em alguns casos, porém, elimina-se mesmo a dupla tributação económica— é o que acontece (…) [nos] casos previstos no art.° 45.° do Código do IRC (…).

Esta perspectiva global do regime do art.° 45.° do Código do IRC é importante não só por fornecer elementos para o seu correcto entendimento face às finalidades visadas mas também por obrigar a uma interpretação do seu conteúdo coerente com a prática seguida quanto às outras disposições com o mesmo objectivo. Isto é tanto mais necessário quanto a expressão “sujeitas e não isentas de IRC” usada no art.° 45.° do Código deste imposto tem de ter o mesmo significado que for dado à expressão “sujeita a IRC e não isenta” utilizada no art.° 72.° do mesmo Código, já que ambas as disposições, embora em grau diverso, visam o mesmo objectivo e são quase de aplicação alternativa (cf. parte final do n.° 1 do citado art.° 72.°).

(…) A condição de que a entidade que distribui os lucros deve ser uma entidade sujeita e não isenta de IRC tem de ser entendida neste contexto, ou seja, se essa entidade não estiver sujeita a IRC ou, estando sujeita, estiver isenta, não se pode falar em dupla tributação económica.

Quererá, porém, a expressão sujeita e não isenta de IRC significar que a entidade em causa deverá ter sido efectivamente tributada em IRC?

Mesmo teoricamente há autores que distinguem a dupla tributação efectiva, real ou in praxi da dupla tributação virtual, eventual, potencial ou in thesi, precisamente para aludir a esta problemática, adiantando alguns que depende do método escolhido para eliminar a dupla tributação o modo de considerar o fenómeno: se for o método da isenção absoluta, a dupla tributação é evitada em todos os casos; se o método utilizado for o da imputação ou crédito de imposto, a única dupla tributação evitada será (em princípio, acrescentaremos nós) a real ou efectiva (…).

Assim, quando se alude à dupla tributação económica a propósito do art.° 45.° do Código do IRC importa saber, em primeiro lugar, se a dupla tributação aí referida inclui a dupla tributação virtual ou potencial ou apenas se refere à dupla tributação real ou efectiva. Dado que estamos perante o método da isenção, a seguir a orientação atrás citada, a dupla tributação referida nesse art.° 45.° abrangeria também a dupla tributação virtual ou potencial.

(…) Assente que o art.° 45.° do Código do IRC abrange a dupla tributação virtual ou potencial, que significado daí decorre para a expressão “entidade sujeita e não isenta de IRC”.

É que a lei não se limita a referir “entidade sujeita a IRC”, que seria sempre o mínimo necessário para que houvesse “dupla tributação virtual ou potencial”, acrescenta também que essa entidade quando sujeita não deve estar isenta. No entanto, esta exclusão das entidades isentas não pode equivaler a “entidades efectivamente tributadas” pois então estaríamos perante uma dupla tributação apenas real ou efectiva.

Assim, parece-nos que o melhor significado para a expressão “entidade sujeita e não isenta” é o de entidade que pode vir a ser efectivamente tributada. Dito de outro modo, o legislador pretendeu afastar do âmbito da dupla tributação potencial ou virtual apenas as entidades que, embora sujeitas a imposto, estão isentas do mesmo com carácter de estabilidade e de um modo total.

(…) Tendo em conta as classificações usuais em termos de isenções, interessará ver a que isenções se refere o art.° 45.° do Código do IRC de modo a concretizar a conclusão a que chegamos quanto ao significado da dupla tributação potencial ou virtual.

Antes de mais, costumam distinguir-se as isenções permanentes e as isenções temporárias (…). Ora, se na aplicação do art.° 45.° não houver que indagar do exercício de origem dos lucros distribuídos, parece-nos que só é possível aplicar correctamente o seu conteúdo se as entidades isentas aí referidas o forem a título permanente, de acordo com o regime que tiverem no momento da colocação à disposição desses lucros. Tratando-se de isenções temporárias, a menos que fosse estabelecido um mecanismo que fizesse uma ligação precisa entre o lucro colocado à disposição dos sócios e o exercício ou exercícios em que o mesmo foi obtido, seria sempre possível iludir a exclusão das “entidades sujeitas e não isentas”, da dedução prevista no art.° 45.°, através do diferimento da colocação à disposição dos lucros para uma data em que a entidade donde eles provêm já não estivesse isenta.

Por outro lado, as isenções podem classificar-se em totais ou parciais (…). Ora, se as entidades sujeitas e não isentas referidas no art.° 45.° incluíssem as entidades isentas parcialmente de IRC, estar-se-ia a afastar, liminarmente, a eliminação da dupla tributação económica relativamente à parte não isenta, cujo peso no total pode variar de entidade para entidade e de período para período de tributação. (…)

Concluímos, assim, que as isenções a que se alude no art.° 45.° são isenções permanentes e totais, interpretação que encontra apoio na letra da lei. E serão isenções subjectivas ou isenções objectivas? (…) A letra da lei ao falar em “entidades (...) sujeitas e não isentas de IRC” induz que se trata de isenções subjectivas. Se a lei quisesse aludir a isenções objectivas poderia fazê-lo reportando a sujeição e a não isenção aos rendimentos é não às entidades que os obtêm. Esta conclusão é reforçada por serem as isenções subjectivas as que melhor se ajustam aos outros requisitos a que se chegou—isenções permanentes e totais.

Parece, portanto, que se pode dizer que quando se referem no art.° 45.° do Código do IRC “entidades (...) sujeitas e não isentas de IRC” a melhor interpretação desta expressão é a de entidades sujeitas e não isentas (subjectivamente) de IRC de uma forma permanente e total, obtendo-se, desse modo, uma interpretação que, além de suporte teórico, tem viabilidade operacional sob o ponto de vista de uma aplicação simples aos casos concretos, o que não é menos importante nesta fase da reforma fiscal.

Assim, se a entidade residente em território português de que provêm os lucros a que se aplica o art.° 45.° beneficia de uma isenção objectiva, parcial e temporária, há lugar, desde que observadas as outras condições, à aplicação da dedução prevista nesse artigo por devermos considerar que, para este efeito, estamos perante uma entidade sujeita e não isenta de IRC” (sublinhados nossos).

Este parecer veio a ser sancionado, por despacho de 11 de dezembro de 1990, tendo dado origem à Circular da DGCI n.º 4/91, de 30 de janeiro de 1991, que dispunha nos seguintes termos:

“Tendo-se suscitado dúvidas sobre o sentido e alcance da expressão «entidades (...) sujeitas e não isentas de IRC» constante do n.° 1 do art. 45.° do respectivo Código, por despacho de 90-12-11 do Senhor Subdirector-Geral dado por minha delegação, foi sancionado o seguinte entendimento;

1. O art. 45.° do Código do IRC é um dos meios utilizados pelo legislador para tratar do problema da chamada «dupla tributação económica dos lucros colocados à disposição dos sócios».

2. Esta dupla tributação pode, todavia, ser meramente virtual ou potencial,

3. Da letra do n.° 1 do art. 45-° do CIRC decorre que a isenção deve reportar-se às entidades e não aos rendimentos, o que sublinha a sua natureza subjectiva.

4. Assim, a expressão «entidades (...) sujeitas e não isentas de IRC» constante desta disposição deve ser interpretada no sentido de entidades sujeitas e não isentas subjectivamente de IRC de uma forma permanente e total”.

Portanto, este entendimento, sancionado pela própria AT (é certo que em momento ulterior ao do fim do exercício ora em causa, o que é perfeitamente irrelevante, dado estarmos perante uma questão de interpretação da norma legal), abrangeria situações como as in casu, nas quais estamos perante sociedades sujeitas, mas apenas temporariamente isentas, por força do contrato celebrado [o que, aliás, sucedeu com os dividendos distribuídos pela R... Gest, também parte no contrato mencionado em A), mas em relação aos quais a C.... logo declarou apenas o valor de 95% dos dividendos pagos, o que não resulta que tenha sido posto em causa pela AT].

A análise da evolução da disposição legal em apreciação permite, aliás, sedimentar esta linha interpretativa.

Vejamos, pois, a título ilustrativo, as alterações do regime até 2011:

a) Com a Lei do Orçamento do Estado para 2005 (Lei nº 55-B/2004, de 30 de dezembro), foi aditado, ao então art.º 46.º do CIRC, o seguinte n.º 10:

“10 - O regime estabelecido neste artigo não se aplica, procedendo-se, se for caso disso, às correspondentes liquidações adicionais de imposto, quando se conclua existir abuso das formas jurídicas dirigido à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos, o que se verifica quando os lucros distribuídos não tenham sido sujeitos a tributação efectiva ou tenham origem em rendimentos aos quais este regime não seja aplicável”;

b) Com a Lei do Orçamento do Estado para 2007 (Lei n.º 53-A/2006, de 29 de dezembro), o referido n.º 10 foi revogado e foi aditado um n.º 11, com o seguinte teor:

“11 - A dedução a que se refere o n.º 1 é reduzida a 50% quando os rendimentos provenham de lucros que não tenham sido sujeitos a tributação efetiva, exceto quando a beneficiária seja uma sociedade gestora de participações sociais”;

c) Com a Lei do Orçamento do Estado para 2011 (Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro), é alterada a redação dos n.ºs 10 e 11 do, então, art.º 51.º do CIRC, sendo aqui pertinente chamar à colação o primeiro, que passou a prescrever o seguinte:

“10 - A dedução a que se refere o n.º 1 só é aplicável quando os rendimentos provenham de lucros que tenham sido sujeitos a tributação efetiva”.

Ora, a própria evolução da redação da norma permite concluir que a isenção a que se refere o então n.º 1 do art.º 45.º do CIRC trata-se de uma isenção subjectiva (6), permanente e total, na medida em que, em anos ulteriores, a norma foi complementada, ora se foi exigindo a tributação efetiva dos lucros, ora se deixando de exigir tal tributação, ora se tributando os dividendos em 50%, em caso de não tributação efetiva dos lucros.

Conclui-se, pois, que, à época, a aplicação do n.º 1 do art.º 45.º não dependia da efetiva tributação dos lucros que estivessem na origem da distribuição dos dividendos.

Este entendimento está em consonância com o método de atenuação da dupla tributação económica adotado no art.º 45.º, n.º 1, do CIRC, de isenção, método que visa evitar qualquer dupla tributação, real ou virtual, ao contrário do método do crédito de imposto, que tem inerente apenas evitar a dupla tributação real (como aliás mencionado no parecer n.º 101/90 do Centro de Estudos Fiscais, citado supra).

Como referem Miguel Correia e António Rocha Mendes (7):

“Tendo decidido eliminar tal dupla tributação, o legislador português teve, subsequentemente, que optar entre dois métodos para o efeito: (i) o método de isenção; e (ii) o método de imputação indirecta (também denominado por método do crédito de imposto indirecto ou underlying tax credit) (…).

A escolha de um destes mecanismos de atenuação da dupla tributação económica é o reflexo da opção do legislador entre duas concepções distintas de política fiscal (…):

— A primeira, através do método de isenção, tem como objectivo preservar a taxa efectiva de tributação aplicada a nível da entidade que originariamente gera os lucros, enquanto tais lucros se mantiverem no perímetro de tributação do IRC e sejam distribuídos entre entidades que tenham um nível de participação “elegível”(…). Enquanto tais lucros não saírem deste perímetro, a taxa efectiva de tributação originária é mantida, já que as distribuições de dividendos da sociedade “operativa” para a sociedade “holding” estão isentas de tributação nesta última. Em última instância, este regime permite também que os benefícios fiscais atribuídos às sociedades que geram os lucros sejam mantidos dentro de tal perímetro.

— A segunda opção, através do método da imputação indirecta, tem como objectivo eliminar uma menor taxa efectiva de imposto a nível da sociedade “operativa”, em virtude de quaisquer vantagens ou benefícios fiscais a esta atribuídos, a partir do momento em que tais lucros saem da esfera individual desta entidade. Para servir tal propósito, tributam-se os lucros distribuídos à sociedade “holding” à taxa efectiva a esta aplicável, permitindo-se apenas a dedução do imposto que haja sido efectivamente pago pela sociedade que os gerou.

(…) O legislador nacional optou claramente pelo método da isenção, ou seja, por preservar na esfera dos sócios (verificados certos requisitos de participação) a taxa efectiva de tributação na sociedade (sua participada) que gerou economicamente os lucros e simplificar os processos administrativos das empresas. Portanto, optou-se expressamente pelo mecanismo que tem como resultado manter, também a nível dos sócios elegíveis, as vantagens resultantes dos benefícios fiscais atribuídos às sociedades onde os lucros são originariamente realizados”.

Considerando todo este contexto e revertendo para o caso dos autos, não estando em causa uma isenção subjetiva, mas sim uma isenção objetiva, contratualizada, à data de 50% (logo parcial – o que, aliás, a AT nem teve em conta na decisão proferida em sede de reclamação graciosa), e circunscrita no tempo (logo não permanente), e não se exigindo à época a efetiva tributação dos lucros, conclui-se, com o Tribunal a quo, que o n.º 1 do art.º 45.º do CIRC abrangia quer a dupla tributação económica real quer a dupla tributação económica potencial.

Como tal, carece de pertinência o alegado pela Recorrente, em torno da necessidade de aferir se houve ou não lucros tributados em 1990 na esfera da sociedade pagadora dos dividendos.

Assim sendo, não assiste razão à Recorrente.

Nos termos do art.º 6.º, n.º 7, do Regulamento das Custas Processuais (RCP), “[n]as causas de valor superior a (euro) 275 000, o remanescente da taxa de justiça é considerado na conta a final, salvo se a especificidade da situação o justificar e o juiz de forma fundamentada, atendendo designadamente à complexidade da causa e à conduta processual das partes, dispensar o pagamento”.

No caso, considerando quer a conduta das partes, que se revelou sem mácula, quer a circunstância de ser apenas uma a questão de direito suscitada, entende-se dever haver lugar à dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça, prevista no art.º 6.º, n.º 7, do RCP.

IV. DECISÃO

Face ao exposto, acorda-se em conferência na 2.ª Subsecção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:

a) Negar provimento ao recurso;

b) Custas pela Recorrente, com dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça, na parte em que exceda os 275.000,00 Eur.;

c) Registe e notifique.


Lisboa, 10 de fevereiro de 2022

(Tânia Meireles da Cunha)

(Susana Barreto)

(Patrícia Manuel Pires)

(1) Cfr. António dos Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2018, p. 169.
(2) V., a título exemplificativo, o Acórdão deste TCAS, de 27.04.2017 (Processo: 638/09.0BESNT) e ampla doutrina e jurisprudência no mesmo mencionada.
(3) Casalta Nabais, Contratos Fiscais, Coimbra Editora, Coimbra, 1994, p. 201.
(4) Saldanha Sanches, Manual de Direito Fiscal, 3.ª Ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p. 350.
(5) Cfr. Freitas Pereira, «Sentido e alcance da expressão “entidades (…) sujeitas e não isentas de IRC” constante do n.º 1 do artigo 45.º do Código do IRC, Parecer n.º 101/90», Ciência e Técnica Fiscal n.º 361, março de 1991, pp. 347 e ss.
(6) V. a este respeito Rui Marques, Código do IRC, Almedina, Coimbra, 2019, p. 454, nota 1274.
(7) Miguel Correia e António Rocha Mendes, «As Alterações aos Mecanismos para Evitar a Dupla Tributação Económica de Lucros Distribuídos e o seu Impacto no Comportamento das Empresas», Fiscalidade, 42, pp. 71 a 73.