Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul | |
Processo: | 2703/16.9BELSB |
Secção: | CA |
Data do Acordão: | 06/06/2019 |
Relator: | PAULO PEREIRA GOUVEIA |
Descritores: | AQUISIÇÃO DA NACIONALIDADE |
Sumário: | I - A aquisição da nacionalidade não depende, segundo o STA, de ligação efetiva à comunidade nacional portuguesa, mas sim e apenas da vontade do interessado e demais requisitos positivos previstos na lei. Se, com factos, não se provar em juízo que o estrangeiro interessado não tem ligação efetiva a Portugal, então a ação de oposição, que assim parece não ser de simples apreciação negativa, improcederá. II - Relevam sempre, a nosso ver, para a factualidade correspondente ao pressuposto negativo da inexistência de ligação efetiva à comunidade nacional a ausência de contactos mais ou menos regulares com o território português e, para os países cuja língua oficial não seja o português, o desconhecimento suficiente da língua portuguesa (vd. hoje o artigo 1º-3 da LN). III - O “ónus” da prova, hoje, ao contrário do Direito Romano e da época liberal anterior ao século XX, é algo de objetivo e material, sendo “apenas” um comando dirigido ao juiz sobre como ele deve, a final, resolver o litígio, tendo presente as normas de direito material em que a parte baseia a sua pretensão ou a sua exceção. Outra forma de dizer, isto é, a utilizada nos artigos 342º e 343º do CC, em que o acento tónico é posto na natureza in concreto dos factos-fundamento, como em Itália, desde Carnelutti, Calamandrei e Gian A. Michelli) e não na natureza in concreto das normas-fundamento, como na Alemanha, desde Leo Rosenberg até hoje. IV - Para tal, o Direito prevê regras, umas mais gerais, outras especiais e até algumas excecionais, para orientarem a resolução da questão de direito e da pretensão (ou exceção) a partir da natureza que, no caso concreto, têm as normas-fundamento da pretensão ou da exceção. V - Cabe aditar ao exposto, não um ónus, mas sim uma realidade processual assente na natureza das coisas e na lógica ou racionalidade: é a conveniência de cada parte ter a iniciativa da prova dos factos que a favorecem, a que impropriamente se pode chamar de “ónus de iniciativa preponderante da prova” (vd. o artigo 411º do CPC). Hoje, e desde o início do século XX, ter o “ónus da prova” significa apenas que é aconselhável ter a iniciativa da prova, a fim de evitar a consequência desfavorável da falta de prova dos factos favoráveis. O que se compagina com o previsto nos cits. artigos 411º e 413º do atual CPC. |
Votação: | UNANIMIDADE |
Aditamento: |
1 |
Decisão Texto Integral: | .
Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul
I – RELATÓRIO
O MINISTÉRIO PÚBLICO intentou ação administrativa de oposição à aquisição de nacionalidade portuguesa contra C………, de nacionalidade guineense, melhor identificado nos autos. Após a discussão da causa, o T.A.C. decidiu “julgar procedente a oposição deduzida à aquisição da nacionalidade portuguesa e ordenar o arquivamento do processo conducente ao registo, pendente na Conservatória dos Registos Centrais”. * Inconformado, o réu interpôs o presente recurso de apelação contra aquela decisão, formulando na sua alegação as seguintes conclusões: 1.O Recorrente é nacional guineense, nascido em Bissau, filho de nacionais guineenses à data do seu nascimento. 2.Encontra-se provado que o Recorrente é filho de nacional português desde os 10 (dez) anos de idade; 3.Encontra-se também provado que os progenitores do Recorrente, em sua representação, declararam a vontade de aquisição da nacionalidade portuguesa, e, com base em tal declaração, foi instaurado o devido processo na Conservatória dos Registos Centrais; 4.Foram, assim, cumpridos quer o pressuposto de facto, ser filho de nacional português, quer o elemento essencial, a apresentação de declaração de vontade feita, necessários à aquisição da nacionalidade por efeito de vontade; 5.É verdade que a aquisição da nacionalidade portuguesa por esta via não é automática, mediante o preenchimento dos requisitos supra referenciados; 6.Incumbe ao Recorrente pronunciar-se quanto à existência de ligação efetiva à comunidade nacional, nos termos do disposto no nº 1 do art. 57.º do Decreto-Lei n.º 237-A/2006, de 14 de dezembro (Regulamento da Nacionalidade Portuguesa[1]); 7.A obrigação do Requerente se pronunciar sobre a efetiva ligação à comunidade nacional resume-se, por força do modelo aprovado, à escolha de um "SIM" ou de um "NÃO" no impresso de modelo aprovado; 8.Compete ao Ministério Público provar a inexistência da suprarreferida ligação; 9.A "ligação efetiva à comunidade nacional" pressupõe a existência de laços concretos que abonem a ideia de um sentimento de pertença a uma das comunidades portuguesas; 10.A prova da ligação efetiva à comunidade portuguesa deve ser apreciada em função dos valores dominantes naquela em que o estrangeiro se pretende integrar; 11.Esta integração tem que assentar num complexo de laços expressos pelo domicílio, pela língua, pela comunhão cultural, pela integração social (que não meramente familiar), e até por factos económico-profissionais; 12.Assim, mesmo que se considerasse não provada a residência em território nacional, tal não poderia ser invocado contra o Recorrente, uma vez que tal ausência não é - e nunca foi - um pressuposto necessário à aquisição da nacionalidade portuguesa ao abrigo do art. 2 da Lei n.º 37/81, de 03 de outubro[2]; 13.A localização da residência é, de per se, insuficiente para aferir da existência de uma ligação efetiva à comunidade nacional; 14.Tendo nascido na Guiné-Bissau e sendo um cidadão guineense, país pertencente à Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, fala e escreve correta e fluentemente português (al. c) do art.º 19.º do Regulamento da Nacionalidade[3]); 15.Possui uma forte ligação com familiares residentes em Portugal; 16.Além dessa forte ligação familiar, possui um vasto leque de amigos em Portugal, mais concretamente em Castelo Branco e Lisboa; 17.O Recorrente identifica-se com a cultura, religião e História portuguesas; 18.O Recorrente possui um número de identificação fiscal e é utente do Sistema Nacional de Saúde Português; 19.Foram alegados e provados pelo Recorrente diversos fatores, como a família, a língua, os aspetos culturais, sociais, económico-profissionais que, no seu conjunto, comprovam o seu sentimento de pertença à comunidade portuguesa; 20.Os documentos juntos pelo Recorrente não foram impugnados pelo Ministério Público, tendo sido aceites quer quanto à sua autenticidade quer quanto ao seu conteúdo; 21.Não se verifica nenhum dos fundamentos de oposição aquisição da nacionalidade constantes das alíneas b) e c) do art. 9 da Lei da Nacionalidade[4]; 22.O Ministério Público fundou a sua oposição à aquisição de nacionalidade portuguesa pelo Recorrente em bases erróneas, nomeadamente a falta de residência em Portugal como fundamento da inexistência de ligação efetiva à comunidade portuguesa, posição seguida pelo Tribunal a quo; 23.A lei não exige que o candidato à aquisição da nacionalidade nos termos do art.º 2. da Lei da Nacionalidade demonstre perante o conservador ou o Tribunal que se encontra inserido na comunidade nacional; 24.Ao pressupor essa exigência, a douta sentença recorrida ofende o disposto no n.º 3 do art.º 57.º do Regulamento da Nacionalidade, em que tal exigência não se encontra prevista[5]; 25.A partir da reforma da Lei da Nacionalidade introduzida pela Lei Orgânica nº 2/2006, de 17 de abril, complementada pelo Regulamento da Nacionalidade Portuguesa, deixou de ser exigível ao Requerente da aquisição da nacionalidade por efeito da vontade a demonstração de que se encontra inserido na comunidade nacional; 26.Em consonância com as obrigações assumidas no quadro da Convenção Europeia sobre a Nacionalidade, a Lei Orgânica nº 2/2006, de 17 de abril, veio estabelecer a presunção de que os filhos menores dos que adquirem a nacionalidade portuguesa têm uma ligação efetiva à comunidade nacional, porém ilidível mediante a alegação e prova de factos que comprovem a inexistência de tal ligação[6]; 27.Tal ónus da prova compete ao Ministério Público, que a não logrou produzir; 28.A ligação efetiva à comunidade nacional tem que ser aferida à luz dos princípios da Convenção Europeia sobre a Nacionalidade, não podendo ser discriminatória em razão de raça ou origem nacional ou étnica, em conformidade com o art. 5 da referida Convenção[7]; 29.A douta decisão recorrida, ao pressupor que o requerente tinha que apresentar provas adicionais ou prestar declarações não contidas no impresso de modelo aprovado, ofende, ainda, o disposto no n.º 2 do art.º 32.º, do Regulamento da Nacionalidade Portuguesa; 30.A inexistência de ligação efetiva à comunidade nacional não pode provar-se por documentos registrais ou por declarações dos interessados que não a indiciem; 31.Para que possa ser promovida a oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa com fundamento na falta de ligação à comunidade nacional, é indispensável que o conservador dos Registos Centrais apresente factos e provas concretos que permitam ilidir tal presunção; 32.A oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa só pode ser deduzida em circunstâncias que indiciem de forma inequívoca a indesejabilidade de quem pretenda adquirir a nacionalidade portuguesa; 33.A aquisição da nacionalidade portuguesa por parte de filho de cidadão português é um direito fundamental, a que o Ministério Público não pode oferecer oposição sem que tenha provas da indesejabilidade da integração do indivíduo em causa, na comunidade nacional; 34.A oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa por parte de filho menor de quem adquire a nacionalidade constitui uma manifestação de censura à constituição da própria família concreta, implicando a rejeição de um elemento da mesma, pelo que só deve se deduzida por razões de ordem pública; 35.O direito à aquisição da nacionalidade por parte de filho menor de quem adquire a nacionalidade portuguesa constitui um direito fundamental, nos termos do art.º 18 da Constituição da República Portuguesa; 36.A douta decisão recorrida, tal como foi formulada, não encontra na Lei nenhum suporte concreto, ofendendo o disposto no nº 1 e 2 do art.º 9 do Código Civil, na al. a) do art 9 da Lei da Nacionalidade, e os artigos 18.º, 26.º e n.º 6 do art.º 36.º da CRP. O recorrido contra-alegou, concordando com a sentença. * Cumpridos os demais trâmites processuais, importa agora apreciar e decidir em conferência. * II – FUNDAMENTAÇÃO II.1 – FACTOS PROVADOS O tribunal recorrido decidiu estar provada a seguinte factualidade: 1) O R. C…….., de nacionalidade guineense, nasceu a 25.01.1998, em Bissau, Guiné-Bissau, filho de pais de nacionalidade guineense à data do seu nascimento (cfr. docº. de fls. patentes nos autos, e admissão por acordo). 2) O pai do R. veio a adquirir a nacionalidade portuguesa, nos termos do artº. 6º/1/Lei nº. 37/81, de 3.10 (cfr. docºs. patentes nos autos, e admissão por acordo). 3) Os progenitores do R., em sua representação, fizeram requerimento, no qual em representação do R., declararam a vontade de aquisição da nacionalidade portuguesa, pelo menor, ao abrigo do artº. 2º da Lei 37/81, por ser filho de indivíduo que adquiriu a nacionalidade portuguesa, e com base em tal declaração foi instaurado na Conservatória dos Registos Centrais o devido processo (cfr. docºs. patentes nos autos). * II.2 – APRECIAÇÃO DO RECURSO Delimitação do objeto do recurso: Os recursos, sendo dirigidos contra a decisão do tribunal recorrido, têm o seu âmbito objetivo delimitado pelo recorrente nas conclusões da sua alegação de recurso - cf. artigos 144º-2 e 146º-4 do CPTA, artigos 5º, 608º-2, 635º-4-5 e 639º do CPC-2013, “ex vi” artigos 1º e 140º do CPTA -, alegação que apenas pode incidir sobre as questões de facto e ou de direito que tenham sido apreciadas pelo tribunal recorrido ou que devessem ser aí oficiosamente conhecidas; sem prejuízo das especificidades do contencioso administrativo - cf. artigos 73º-4, 141º-2-3, 143º e 146º-1-3 do CPTA. Ora, tudo visto, as questões a resolver contra a decisão ora recorrida são as seguintes: - Erro de julgamento, por ofensa do disposto nos nº 1 e 2 do art.º 9 do Código Civil, na al. a) do art. 9º da Lei da Nacionalidade e nos artigos 18.º, 26.º e n.º 6 do art.º 36.º da CRP. Tenha-se presente (i) tudo o que já expusemos, (ii) bem como: (1º) que a ordem jurídica ou Direito se refere a um conjunto estruturado e unitário de regras e de várias espécies de princípios jurídicos, ordenado em função de um ou mais pontos de vista [sistema], sendo o ordenamento jurídico um sistema da sociedade, funcionalmente diferenciado, autopoiético, coerente e racional, cuja função é manter estáveis as expectativas socio-normativas independentemente da sua eventual violação (N. Luhmann) - um sistema que é aberto e alterável, nomeadamente em consequência de novos objetivos político-sociais (H. Kelsen) e do acoplamento estrutural entre sistemas sociais (N. Luhmann); (2º) que, hoje, o Direito administrativo é mesmo Direito constitucional democrático concretizado; (3º) que existe (i) um correto, objetivo e racional modo jurídico (“metodologia”) para conhecer e descrever o direito objetivo (cf. H. Kelsen e a “doutrina da construção do direito objetivo em níveis” ou teoria da “estrutura escalonada das normas jurídicas” encimada ou baseada na necessariamente pensada “norma-fundamento”) e ainda (ii) uma correta, objetiva e racional metodologia para decidir processos jurisdicionais (cf. os essenciais artigos 8º a 11º do CC português quanto à interpretação e aplicação dos enunciados normativos infraconstitucionais: o omnipresente elemento filológico ou gramatical, o essencial elemento lógico-sistemático, o auxiliar e secundário elemento pragmático-teleológico-objetivo e o inerente elemento genético-histórico da interpretação jurídica; cf. J. Lamego, Elementos…, 2016), no âmbito de um Estado Constitucional democrático e social (cf. os artigos 1º a 3º, 9º, 110º-1, 112º, 202º-1-2, 203º e 204º da CRP e os artigos 1º a 11º, 335º, 342º e 343º do CC); (4º) que, para compreender objetivamente o direito objetivo a aplicar pela jurisprudência dos tribunais, é mister assumir (i) que o direito objetivo vigente não é (ii) igual à opção político-jurídica ou valorativa que está a montante das fontes (como Kelsen bem explicou), que (iii) a metódica da “jurisprudência teorética” ou dogmática jurídica ou “opinio iuris”, (iv) a metódica interpretativa jurisdicional e (v) a metódica filosófica são três realidades muito distintas, (vi) que o direito objetivo tem na sua natureza constitutiva o princípio estrutural da Segurança Jurídica, e (vii) que as máximas metódico-interpretativas - ou postulados aplicativos - da igualdade e da proporcionalidade jurídico-administrativas, fora das vinculações jurídicas estritas, implicam um específico dever de fundamentação expressa - cf. os artigos 1º e 2º da CRP e 7º do CPA. Destaca-se ainda, na Jurisdição do contencioso de Direito administrativo, o princípio jurídico geral da prossecução do Interesse Coletivo e Bem Comum por parte de todas as atividades de administração pública - cf. artigos 266º e 268º-3-4 da CRP. E, como se sabe, decorre do art. 8º-2-3 do CC que: (i) o dever de obediência à lei – por todos, incluindo o tribunal - não pode ser afastado sob pretexto de ser injusto ou imoral o conteúdo do preceito legislativo[8]; (ii) nas decisões que proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito[9]. Passemos, pois, à análise do recurso de apelação, sem olvidar o já exposto atrás. * Sobre o invocado erro de julgamento, por ofensa do disposto nos nº 1 e 2 do art.º 9 do Código Civil, na al. a) do art. 9º da Lei da Nacionalidade e nos artigos 18.º, 26.º e n.º 6 do art.º 36.º da CRP i. Desde logo, devemos sublinhar que, nem a dita Convenção Europeia (vigente em Portugal desde 1-2-2002), nem a Lei da Nacionalidade portuguesa, estabeleceram qualquer presunção de que os filhos menores dos cidadãos estrangeiros que adquiram a nacionalidade portuguesa têm uma ligação efetiva à comunidade nacional. De todo. O art. 9º do CC estabelece as regras fundamentais da correta interpretação das leis, no âmbito de um Estado Constitucional ou de Direito, democrático e com separação de poderes, com vinculação dos tribunais e da A.P. à lei. O consabido art. 9º da LN prevê os fundamentos jurídicos por que o MP se pode opor à aquisição da nacionalidade portuguesa por parte de um cidadão estrangeiro. Assim, constituem fundamento de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa: a) A inexistência de ligação efetiva à comunidade nacional; b) A condenação, com trânsito em julgado da sentença, pela prática de crime punível com pena de prisão de máximo igual ou superior a 3 anos, segundo a lei portuguesa; c) O exercício de funções públicas sem caráter predominantemente técnico ou a prestação de serviço militar não obrigatório a Estado estrangeiro; d) A existência de perigo ou ameaça para a segurança ou a defesa nacional, pelo seu envolvimento em atividades relacionadas com a prática do terrorismo, nos termos da respetiva lei. ii. Claro está que isto não altera a realidade incontornável de Direito processual civil de que todas as ações têm um pedido concreto, formulado pelo autor, o qual deve ser lícito, claro e determinado ou determinável. E é sobre esse pedido que recai a decisão ou o dispositivo da sentença. Ora, aqui, neste tipo de ação especial, qual é o concreto pedido do autor, nos termos legais-processuais e legais-substantivos? Só pode ser um pedido – cf. art. 78º-2-g) do CPTA - que caia perfeitamente dentro do previsto no art. 10º do Código de Processo Civil. iii. O art. 26º da CRP impõe ao Estado a proteção da personalidade e seu desenvolvimento. É matéria que não está beliscada aqui. A CRP e a LN não estabelecem qualquer requisito de “desejabilidade ou indesejabilidade” do cidadão estrangeiro nesta matéria. Também não preveem que “motivos familiares” se possam sobrepor às taxativas previsões da lei sobre a nacionalidade. O art. 36º-6 da CRP prevê: “Os filhos não podem ser separados dos pais, salvo quando estes não cumpram os seus deveres fundamentais para com eles e sempre mediante decisão judicial”. Com base nos factos provados, também é matéria aqui irrelevante. Ora, aqui, o tribunal a quo entendeu simplesmente o seguinte: “…A jurisprudência tem vindo, ao longo dos anos, a defender que a ligação efetiva à comunidade nacional há-de ser aferida por todo um conjunto de fatores, como o domicílio, a língua, as relações familiares, um conhecimento mínimo da História e da Geografia do País, ou seja, tudo aquilo em que se possa radicar um sentimento de pertença. A título de exemplo – entre outros – o Ac. da Relação de Lisboa, de 26.09.2001 ( in www.dgsi.pt) , alinhou-se por esse diapasão, ao referir- se que a ligação efetiva à comunidade nacional há-de compreender-se “ em função de factos relacionados com diversos fatores, a saber, e inter alia, o domicílio, a língua, a família, a cultura, as relações de amizade, a integração social e económico- profissional. E tal em ordem a expressar um sentimento de pertença perene à Comunidade Portuguesa.” … Em face da prova produzida, nos presentes autos, é de concluir-se pela inexistência de ligação efetiva à comunidade nacional. O R. nasceu na Guiné Bissau, onde sempre residiu, inserido na comunidade, hábitos e cultura guineenses, que não são afetados pelo facto de falar e aprender a língua portuguesa, facto que por si só, não inverte a conclusão suprarreferida, a da inexistência de ligação efetiva à comunidade nacional. Mais, diga-se, que não resulta dos factos provados a existência de firmes e persistentes elos que possam corporizar um sentimento de pertença à comunidade nacional, de modo a poder afirmar-se que se é já, psicológica e sociologicamente, português. E, nada se provou quanto ao R. das suas vivências ou ligação com a comunidade portuguesa, apenas se tendo provado que o facto do pai ter adquirido a nacionalidade portuguesa resulta, afinal, como o único facto que fundamenta o pedido de aquisição da nacionalidade portuguesa. Na verdade, não resulta da matéria de facto provada qualquer facto que permita concluir pela existência de qualquer ligação à comunidade portuguesa. Não foram alegados ou provados quaisquer factos que o demonstrem, e ser filho de progenitor a quem foi atribuída a nacionalidade portuguesa não pode ser arvorado em elemento de ligação à comunidade portuguesa. Caso contrário, bastaria invocar esse singelo fundamento para que a nacionalidade fosse automaticamente concedida, fundamento esse que não foi acolhido pelo legislador. “. Como se vê, o TAC não aplicou, em bom rigor, o entendimento recente do STA sobre estas matérias, segundo o qual na ação administrativa de oposição à aquisição de nacionalidade portuguesa, a propor ao abrigo do disposto nos arts. 9.º, alínea a) e 10.º da Lei da Nacionalidade, na redação que lhe foi introduzida pela Lei Orgânica n.º 2/2006, de 17/04, cabe ao Ministério Público o “ónus” da prova dos fundamentos da inexistência de ligação efetiva à comunidade nacional. É que decorre daquele entendimento do STA que o que está em causa já não é a cit. ligação efetiva, mas sim a cit. falta de ligação efetiva do interessado estrangeiro à comunidade nacional portuguesa, i.e., à nação portuguesa, a Portugal enquanto comunidade histórico-cultural. Quer dizer: a aquisição da nacionalidade não depende, segundo o STA, de ligação efetiva à comunidade nacional portuguesa, mas sim e apenas da vontade do interessado e demais requisitos positivos previstos na lei. Se, com factos, não se provar em juízo que o estrangeiro interessado não tem ligação efetiva a Portugal, então a ação de oposição, que assim parece não ser de simples apreciação negativa, improcederá. Note-se, porém, que o chamado ónus da prova não é um verdadeiro ónus, nem é um dever. Enfim, pode expor-se assim a atual jurisprudência sobre a matéria: - não se pode confundir a iniciativa instrutória ou probatória com o “ónus” da prova, um erro muito comum, mas conducente a processos kafkianos e a julgamentos injustos e indesejados pela racionalidade e segurança jurídica da teoria das normas, teoria subjacente às regras de julgamento da causa previstas nos artigos 342º e 343º do CC; o “ónus” da prova, hoje, ao contrário do Direito Romano e da época liberal anterior ao século XX, é algo de objetivo e material, sendo “apenas” um comando dirigido ao juiz sobre como ele deve, a final, resolver o litígio, tendo presente as normas de direito material em que a parte baseia a sua pretensão ou a sua exceção. Outra forma de dizer, isto é, a utilizada nos artigos 342º e 343º do CC, em que o acento tónico é posto na natureza in concreto dos factos-fundamento (como em Itália, desde Carnelutti, Calamandrei e Gian A. Michelli) e não na natureza in concreto das normas-fundamento (como na Alemanha, desde Leo Rosenberg até hoje). Para tal, o Direito prevê regras, umas mais gerais, outras especiais e até algumas excecionais, para orientarem a resolução da questão de direito e da pretensão (ou exceção) a partir da natureza que, no caso concreto, têm as normas-fundamento da pretensão ou da exceção (utilizando a terminologia própria do Direito alemão desde Leo Rosenberg, em vez da terminologia não normativa do artigo 2697º do CC italiano, copiada para o artigo 342º do CC português). Cabe aditar ao exposto, não um ónus, mas sim uma realidade processual assente na natureza das coisas e na lógica ou racionalidade: é a conveniência de cada parte ter a iniciativa da prova dos factos que a favorecem, a que impropriamente se pode chamar de “ónus de iniciativa preponderante da prova” (vd. o artigo 411º do CPC). Hoje, e desde o início do século XX (cf. as obras de LEO Rosenberg e de Schwab sobre a carga da prova), ter o “ónus da prova” significa apenas que é aconselhável ter a iniciativa da prova, a fim de evitar a consequência desfavorável da falta de prova dos factos favoráveis (Lebre de Freitas, Introdução…, 4ª ed., p. 42 nota 34). O que se compagina com o previsto nos cits. artigos 411º e 413º do atual CPC. Portanto: a figura plasmada nos artigos 342º e 343º do CC não é dirigida às partes (há muito que morreu o ónus – subjetivo - da prova), é uma regra de decisão jurisdicional, que fixa as consequências negativas que decorrem para a parte em virtude da falta de demonstração dos factos-fundamento substantivos da pretensão ou exceção em causa; - segundo o STA (Acs. de UJ do STA nº 3/2016 e nº 4/2016), na ação administrativa de oposição à aquisição de nacionalidade portuguesa, a propor ao abrigo do disposto nos arts. 9.º, alínea a) e 10.º da Lei da Nacionalidade, cabe ao Ministério Público o ónus de prova dos fundamentos da inexistência de ligação efetiva à comunidade nacional; - citando agora Rui Moura Ramos (em quem alegadamente se suportam as teses de que (i) a causa de pedir desta ação seriam factos que integrem o conceito impeditivo de “inexistência de ligação efetiva à comunidade nacional” portuguesa, em vez de factos que integrem o conceito constitutivo de “ligação efetiva à comunidade nacional” portuguesa, (ii) cujo ónus de alegação fáctica e (iii) cujo “ónus” objetivo da prova caberia ao MP), transcrevamos o seguinte: “É evidente que não seria compreensível que a atribuição da nacionalidade portuguesa prescindisse de uma ligação efetiva à comunidade nacional”; (…) indagar da existência de uma ligação efetiva à comunidade nacional, que sempre deve ser condição da aquisição da nacionalidade” (“As recentes alterações ao direito português da nacionalidade”, in Estudos em Homenagem a Mário Esteves de Oliveira, 2017, p. 955, nota 60, p. 962, nota 79 parte final, p. 968, p. 969 e p. 971; cf. ainda o Ac. deste TCA-Sul de 18-11-2010, p. nº 6919/10, e o Ac. deste TCA-Sul de 11-06-2015, p. nº 12086/15). Relevam sempre, a nosso ver, para a factualidade correspondente ao pressuposto negativo da inexistência de ligação efetiva à comunidade nacional a ausência de contactos mais ou menos regulares com o território português e, para os países cuja língua oficial não seja o português, o desconhecimento suficiente da língua portuguesa (vd. hoje o artigo 1º-3 da LN). O que se tem de apurar, agora, a final, é se, eventualmente tendo presentes os Acs. de UJ do STA nº 3/2016 e nº 4/2016, aquela factualidade provada se integra ou não no conceito indeterminado “inexistência de ligação efetiva à comunidade nacional portuguesa” (cf., porém, Rui Moura Ramos, op. et loc. cits., onde o autor utiliza a contraparte positiva do conceito). Na dúvida ou na certeza de que a factualidade apurada não se integra no conceito indeterminado de pendor negativo cit., decide-se contra a parte interessada (é isto o “ónus” objetivo ou material da prova); parte interessada essa que, segundo o STA, é o autor e não o réu, assim indiciando que esta ação não é de simples apreciação negatriva, mas constitutiva de um direito do autor ou extintiva de um direito preexistente do réu. É, pois, uma tarefa jurisdicional de concretização. E de ponderação. Ora, no caso presente, a prova feita desembocou nos parcos factos acima transcritos. Teremos de qualificar e ou valorar tais factos, uma vez que há conceitos indeterminados a preencher. Assim, e à luz da cit. jurisprudência do STA, a matéria de facto alegada e provada supratranscrita – para que remetemos - não permite considerar facticamente preenchida a novel condição de procedência da ação que é o conceito jurídico indeterminado de natureza negativa referido na al. a) do artigo 9º da LN (cf. assim o referido nos os Acs. deste TCA-S de 02-02-2017, nos pr. nº 13518/16, pr. nº 2814/13… e pr. nº 210/15…). Diferente seria se o autor tivesse concretizado facticamente o que genericamente afirmou na p.i. para sustentar o concreto pedido que está obrigado a fazer de acordo com os arts. 10º do Código de Processo Civil e 78º-2-g) do CPTA. Portanto, o TAC não violou a CRP, mas ofendeu ou aplicou incorretamente o art. 9º-a) da LN e o art. 342º do CC. * III - DECISÃO Por tudo quanto vem de ser exposto e de harmonia com os poderes conferidos no artigo 202º da Constituição, os juizes da 1ª Secção do Tribunal Central Administrativo Sul acordam em conceder provimento ao recurso, revogar a sentença e absolver o réu do pedido formulado na p.i. Sem custas nas duas instâncias. Lisboa, 06-06-2019 Paulo H. Pereira Gouveia (Relator)
Pedro Marchão Marques
Alda Nunes
1 - Quem requeira a aquisição da nacionalidade portuguesa, por efeito da vontade ou por adoção, deve pronunciar-se sobre a existência de ligação efetiva à comunidade nacional e sobre o disposto nas alíneas b) e c) do n.º 2 do artigo anterior. [2] Art. 2º Os filhos menores ou incapazes de pai ou mãe que adquira a nacionalidade portuguesa podem também adquiri-la, mediante declaração. [3] Art. 19º - Naturalização de estrangeiros residentes no território português 1 - O Governo concede a nacionalidade portuguesa, por naturalização, aos estrangeiros quando satisfaçam os seguintes requisitos: a) Sejam maiores ou emancipados à face da lei portuguesa; b) Residam legalmente no território português há pelo menos seis anos; c) Conheçam suficientemente a língua portuguesa, nos termos do disposto no artigo 25.º; d) Não tenham sido condenados, com trânsito em julgado da sentença, pela prática de crime punível com pena de prisão de máximo igual ou superior a três anos, segundo a lei portuguesa. e) Não constituam perigo ou ameaça para a segurança ou a defesa nacional, pelo seu envolvimento em atividades relacionadas com a prática do terrorismo, nos termos da respetiva lei. [4] Art. 9º Constituem fundamento de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa: a) A inexistência de ligação efetiva à comunidade nacional; b) A condenação, com trânsito em julgado da sentença, pela prática de crime punível com pena de prisão de máximo igual ou superior a 3 anos, segundo a lei portuguesa; c) O exercício de funções públicas sem caráter predominantemente técnico ou a prestação de serviço militar não obrigatório a Estado estrangeiro; d) A existência de perigo ou ameaça para a segurança ou a defesa nacional, pelo seu envolvimento em atividades relacionadas com a prática do terrorismo, nos termos da respetiva lei. [5] Art. 57º 3 - Para efeitos do disposto no n.º 1, o interessado deve: a) Apresentar certificados do registo criminal, emitidos pelos serviços competentes do país da naturalidade e da nacionalidade, sem prejuízo da dispensa da sua apresentação nos termos do n.º 8 do artigo 37.º, bem como dos países onde tenha tido e tenha residência; b) Apresentar documentos que comprovem a natureza das funções públicas ou do serviço militar prestados a Estado estrangeiro, sendo caso disso. [6] Vigente em Portugal desde 1-2-2002. [7] Art. 5º 1 - As normas de um Estado Parte sobre nacionalidade não conterão distinções nem incluirão qualquer prática que conduza à discriminação em razão de sexo, religião, raça, cor ou origem nacional ou étnica. 2 - Cada Estado Parte regular-se-á pelo princípio da não discriminação entre os seus nacionais, independentemente da nacionalidade ter sido adquirida por nascimento ou em qualquer momento subsequente. [8] Já Kant afirmava que “indagar se também os próprios decretos são justos é algo que os juristas têm de rejeitar como absurdo” (in O Conflito das Faculdades, trad., Ed. 70, Lisboa, 2017, p. 27). [9] Esta regra de Direito substantivo, aliás integrável no escopo do art. 9º do CC de 1966, tem por objeto único o litígio a dirimir, dirigindo-se a cada juiz por causa da Segurança Jurídica e da máxima metódico-interpretativa da igualdade no caso concreto. Não significa o dever de seguimento de linhas jurisprudenciais mais ou menos repetidas ou de doutrinas habituais apenas com base nessa repetição ou habitualidade. E não se refere à jurisprudência uniformizante, nem se referia aos antigos assentos. |