Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:516/11.3BELRS
Secção:CT
Data do Acordão:07/08/2021
Relator:TÂNIA MEIRELES DA CUNHA
Descritores:REVERSÃO
RENÚNCIA DE TODOS OS GERENTES
GERÊNCIA DE FACTO
ÓNUS DA PROVA
Sumário:
I. O exercício efetivo de funções de gestão é um dos pressupostos da responsabilidade tributária subsidiária dos gestores.

II. Cabe à AT o ónus da prova do exercício efetivo de funções de gerente por parte do revertido.

III. A circunstância de terem renunciado à gerência todos os gestores da sociedade não permite, per se, concluir pelo exercício de facto das funções de gestão por parte dos sócios dessa mesma sociedade.

Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:I. RELATÓRIO

A Fazenda Pública (doravante Recorrente ou FP) veio apresentar recurso da sentença proferida a 11.12.2017, no Tribunal Tributário de Lisboa, na qual foi julgada procedente a oposição apresentada por O..... (doravante Recorrida ou Oponente), ao processo de execução fiscal (PEF) n.º ....., que o Serviço de Finanças (SF) de Lisboa 4 lhe moveu, por reversão de dívidas de imposto sobre o valor acrescentado (IVA) e de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC), atinentes aos anos/exercícios de 2001 e 2002, da devedora originária I....., Lda.

O recurso foi admitido, com subida imediata nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

Nesse seguimento, a Recorrente apresentou alegações, nas quais concluiu nos seguintes termos:

A. A decisão ora recorrida, não faz, salvo o devido respeito, uma correcta apreciação da matéria de facto relevante e, bem assim, total e acertada interpretação e aplicação das normas legais aplicáveis ao caso sub-judice.

B. Não se conforma a Fazenda Pública com a douta decisão recorrida, porquanto considera que, da prova produzida se não podem extrair as conclusões que lhe serviram de base, determinando que se julgasse pela ilegitimidade da oponente por falta de prova, por parte da Fazenda Pública, da gerência de facto.

C. Em face das renúncias sucessivas dos gerentes, desde 04-06-1998, a sociedade ficou destituída de gerência.

D. Decorre do nº 1 do art. 191º do Código das Sociedade Comerciais que “Não havendo estipulação em contrário e salvo o disposto no nº 3, são gerentes todos os sócios, quer tenham constituído a sociedade, quer tenham, adquirido essa qualidade posteriormente”.

E. Um administrador/gerente, uma vez nomeado e iniciado o exercício das suas funções passa a ter direitos e obrigações para com a sociedade e para com terceiros.

F. Daí resulta o dever de administrar a empresa de forma a que ela subsista, devendo para tanto cumprir os contratos celebrados com terceiros e proceder ao pagamento das dívidas da sociedade e cobrança dos seus créditos de modo a evitar a insuficiência do património da sociedade para o pagamento do passivo da sociedade,

G. tendo ainda a obrigação, in extremis, de pedir em tribunal a convocação dos credores para que estes e o juiz decidam o destino da empresa,

H. o que não logrou fazer.

I. Dispõe o artigo 64º do CSC (Deveres fundamentais) “1 - Os gerentes ou administradores da sociedade devem observar: a) Deveres de cuidado, revelando a disponibilidade, a competência técnica e o conhecimento da actividade da sociedade adequados às suas funções e empregando nesse âmbito a diligência de um gestor criterioso e ordenado; e b) Deveres de lealdade, no interesse da sociedade, atendendo aos interesses de longo prazo dos sócios e ponderando os interesses dos outros sujeitos relevantes para a sustentabilidade da sociedade, tais como os seus trabalhadores, clientes e credores. (sublinhados nossos)

J. Acrescentado o n.º 2 do mesmo artigo que “os titulares de órgãos sociais com funções de fiscalização devem observar deveres de cuidado, empregando para o efeito elevados padrões de diligência profissional e deveres de lealdade, no interesse da sociedade.”

K. Assim sendo, os administradores/gerentes pela posição que ocupam devem assumir uma postura responsável e ponderada, no desempenho das suas funções, de modo a que aquela corresponda a uma actuação que, de acordo com o exigível a um administrador criterioso – bónus patter famillis -, colocado em idêntica situação e dentro da inerente discricionariedade técnica, se mostre, em princípio, como adequado ao alcance dos objectivos para que a sociedade se constituiu.

L. Daqui decorre que o oponente tinha uma intervenção pessoal e activa na vinculação da sociedade, ou seja, a viabilidade funcional da devedora originária só era concretizada com a intervenção da oponente, o que se subsume integralmente à noção de gerência de facto.

M. O legislador limita-se, na instituição da obrigação de responsabilidade, a relevar apenas o cargo de gerente, sem entrar em linha de conta se este abarca a totalidade da capacidade jurídica da sociedade ou apenas certa parcela, estando quanto a este aspecto arredada qualquer restrição da obrigação de responsabilidade.

N. Face ao exposto e contrariamente ao expendido na douta sentença, não se vislumbra qualquer ilegalidade praticada pela AT, antes se denotando o exercício da sua actividade dentro dos limites estritos da lei”.

A Recorrida apresentou contra-alegações, nas quais formulou as seguintes conclusões:

A. A Fazenda Pública interpôs recurso da sentença proferida pela Mma. Juiz do Tribunal Tributário de Lisboa que julgou procedente a oposição deduzida pela ora recorrida com o fundamento de que «A AF não alegou nem provou factos que indiciem o exercício da gerência de facto da oponente, limitando-se a inferi-la do artº 191º do CSC.»

B. Alega a recorrente Fazenda Pública que tal decisão padece de errada valoração da prova e erro na aplicação do direito. Contudo, lidas atentamente as conclusões das alegações do recurso interposto entende a recorrida que a sentença sob recurso nenhum reparo merece, pelo que deve ser mantida.

Senão vejamos,

C. A determinação da responsabilidade subsidiária por dívidas tributárias afere-se à luz do regime legal em vigor à data em que as dívidas se constituíram, in casu, o regime aplicável é o estatuído no artigo 24º da LGT.

D. No âmbito da LGT, para se afirmar a responsabilidade subsidiária dos gerentes por dívidas tributárias exige-se a demonstração de que os mesmos exerceram tal gerência de modo efectivo ou de facto.

E. No caso, considerou a, aliás douta, sentença recorrida que «Ainda que funcionando nestes casos o artº 191º do CSC a lei fiscal não se basta com a mera gerência de direito que dessa norma poderia ser extraída. A FP não produziu qualquer prova da gerência de facto.» (vide suas fls. 7).

F. De facto é à Fazenda Pública, como exequente, que compete demonstrar a verificação dos pressupostos da reversão da execução fiscal, não havendo presunção legal que imponha a conclusão de que quem tem a qualidade de gerente de direito exerceu a gerência de facto.

G. Ora, da matéria de facto provada (não impugnada) não há vestígio de qualquer factualidade que permita concluir que a Recorrida exerceu efectivas funções como gerente no período a considerar.

H. A sentença recorrida que assim entendeu não merece, pois e quanto a nós, qualquer censura, tendo feito correcta interpretação e aplicação das normas legais referidas”.

Foram os autos com vista ao Ilustre Magistrado do Ministério Público, nos termos do então art.º 289.º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), que emitiu parecer, no sentido de ser negado provimento ao recurso.

Colhidos os vistos legais (art.º 657.º, n.º 2, do CPC, ex vi art.º 281.º do CPPT) vem o processo à conferência.

É a seguinte a questão a decidir:
a) Há erro de julgamento em virtude de se poder concluir que a Recorrida exerceu a gerência da devedora originária?

II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

II.A. O Tribunal recorrido considerou provada a seguinte matéria de facto:

“A) Pela Ap 01.9500108 foi registada, na Conservatória do Registo Comercial a constituição da sociedade por quotas com a denominação social “I....., Lda”, com capital social de 10.000.000$00, pertencendo uma quota de 2.000.000$00 à sócia O..... (ora oponente) (doc nº 1, da pi);

B) Por deliberação de 25-02-1995 a oponente e C..... foram designados gerentes da sociedade identificada em A) (doc nº 1 da pi);

C) Em 24-03-1997 a oponente renunciou à gerência (doc nº 1, da pi);

D) A cessação das funções de gerente da oponente foi levada ao registo comercial em 17-04-1997 (doc nº 1, da pi);

E) Em 3004-1996 foi registada a renúncia à gerência de J..... (doc nº 1 da pi);

F) Em 19-10-1998 foi registada a cessação de funções de gerente de C..... (doc nº 1, da pi);

G) Contra a sociedade identificada em A) em 22-11-2002 foi instaurada a execução fiscal nº .....e apensos, para cobrança coerciva de IVA do ano de 2001 e de IRC/liquidação oficiosa de 2002;

H) Pelo ofício nº 339 de 12-01-2010 a oponente foi notificada para exercer direito de audição (reversão) pelas dívidas a que se refere o processo de execução fiscal referido em G) (doc nº 4, da pi);

I) A oponente exerceu direito de audição (doc nº 5, da pi);

J) Em 20-04-2010 foi proferido despacho de reversão, cujo teor se dá por inteiramente reproduzido para todos os efeitos legais (doc nº 6, da pi);

K) Em 26-04-2010 a oponente foi citada (doc nº 7, da pi)”.

II.B. Foi a seguinte a motivação da decisão quanto à matéria de facto:

“A convicção do tribunal formou-se no teor dos documentos identificados em cada ponto dos factos provados”.

II.C. Atento o disposto no art.º 662.º, n.º 1, do CPC, ex vi art.º 281.º do CPPT, acorda-se alterar a redação de parte da factualidade mencionada em II.A., em virtude de resultarem dos autos elementos documentais que exigem tal alteração[1].

Nesse seguimento, passa a ser a seguinte a redação dos factos E) e F):

E) A 30.04.1997 foi registada a cessação das funções de gerência, por renúncia de 20.08.1996, por parte de J..... (cfr. documento n.º 1 junto com a petição inicial).

F) A 19.10.1998 foi registada a cessação das funções de gerência, por renúncia de 04.06.1998, por parte de C..... (cfr. documento n.º 1 junto com a petição inicial).

III. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

III.A. Do erro de julgamento

Considera a Recorrente que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, uma vez que, em seu entender, da circunstância de todos os gerentes da devedora originária terem renunciado ao cargo e atento o disposto no art.º 191.º do Código das Sociedades Comerciais (CSC), a Recorrida era parte legítima na reversão.

Vejamos.

Antes de mais, refira-se que, não obstante a Recorrente, ao longo das suas alegações e conclusões, mencionar que, da prova produzida, resulta que a Recorrida foi gerente de facto da devedora originária, a verdade é que nunca impugnou a decisão proferida sobre a matéria de facto, nos termos exigidos pelo art.º 640.º do CPC.

Com efeito, atento o disposto no art.º 640.º do CPC, ex vi art.º 281.º do CPPT, a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto carateriza-se pela existência de um ónus de alegação a cargo do Recorrente, que não se confunde com a mera manifestação de inconformismo com tal decisão[2].

Assim, o regime vigente atinente à impugnação da decisão relativa à matéria de facto impõe ao Recorrente o ónus de especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considere incorretamente julgados [cfr. art.º 640.º, n.º 1, al. a), do CPC];
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impõem, em seu entender, decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida [cfr. art.º 640.º, n.º 1, al. b), do CPC], sendo de atentar nas exigências constantes do n.º 2 do mesmo art.º 640.º do CPC;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas [cfr. art.º 640.º, n.º 1, al. c), do CPC].

Como tal, não basta ao Recorrente manifestar de forma não concretizada a sua discordância com a decisão da matéria de facto efetuada pelo Tribunal a quo, impondo­‑se-lhe os ónus já mencionados[3].

Transpondo estes conceitos para o caso dos autos, verifica-se que a Recorrente, não obstante referir que da prova produzida resulta conclusão distinta da extraída pelo Tribunal a quo, rigorosamente não impugna a decisão proferida sobre a matéria de facto, não identificando qual ou quais pontos de facto que foram incorretamente julgados nem, por consequência, os meios de prova que sustentem tal conclusão.

Portanto, não tendo havido impugnação da decisão sobre a matéria de facto, é atendendo à mesma que o presente recurso irá ser apreciado.

Vejamos então.

In casu, a dívida revertida respeita aos anos / exercícios de 2000 e 2001.

No que concerne à responsabilidade subsidiária dos gerentes e administradores de sociedades pelas dívidas tributárias, somos remetidos para o art.º 24.º, n.º 1, da LGT, nos termos do qual:

“1. Os administradores (…) e gerentes e outras pessoas que exerçam, ainda que somente de facto, funções de administração ou gestão em pessoas coletivas e entes fiscalmente equiparados são subsidiariamente responsáveis em relação a estas e solidariamente entre si:

a) Pelas dívidas tributárias cujo facto constitutivo se tenha verificado no período de exercício do seu cargo ou cujo prazo legal de pagamento ou entrega tenha terminado depois deste, quando, em qualquer dos casos, tiver sido por culpa sua que o património da pessoa coletiva ou ente fiscalmente equiparado se tornou insuficiente para a sua satisfação;

b) Pelas dívidas tributárias cujo prazo legal de pagamento ou entrega tenha terminado no período de exercício do seu cargo, quando não provem que não lhes foi imputável a falta de pagamento”.

À semelhança do que já decorria do art.º 13.º do CPT, o art.º 24.º, n.º 1, da LGT determina que a simples gestão de facto é suficiente para acionar a responsabilidade em causa, não sendo, por outro lado, suficiente a mera gerência ou administração de direito.

O art.º 24.º da LGT demarca duas situações, nas duas alíneas do seu n.º 1.

A primeira, correspondente à sua al. a), refere-se à responsabilidade dos gerentes ou administradores em funções quer no momento de ocorrência do facto tributário, quer após este momento, mas antes do término do prazo de pagamento da dívida tributária, sendo esta responsabilidade pelo depauperamento do património social, de molde a torná-lo insuficiente para responder pelas dívidas em causa. A culpa exigida aos gerentes ou administradores, nesta situação, é uma culpa efetiva — culpa por o património da sociedade se ter tornado insuficiente. Não há qualquer presunção de culpa, o que nos remete para o disposto no art.º 74.º, n.º 1, da LGT, pelo que cabe à administração tributária (AT) alegar e provar a culpa dos gerentes ou administradores.

A segunda, constante da al. b) do n.º 1 do art.º 24.º da LGT, refere­‑se à responsabilidade dos gerentes ou administradores em funções no período no qual ocorre o fim do prazo de pagamento ou entrega do montante correspondente à dívida tributária. No art.º 24.º, n.º 1, al. b), da LGT, presume-se que a falta de pagamento da obrigação tributária é imputável ao gestor. Assim, atentando na al. b) do n.º 1 do art.º 24.º da LGT, o momento relevante a considerar é o do termo do prazo para pagamento voluntário. A presunção constante da referida al. b) do art.º 24.º, n.º 1, da LGT, deriva da consagração do dever de boa prática tributária, constante do art.º 32.º da LGT, que prevê “... um especial dever de diligência no cumprimento dos deveres tributários [das pessoas colectivas] (...) — dever de diligência que se presume violado caso tais deveres tributários não sejam cumpridos”[4]. Esta presunção de culpa é ilidível, cabendo ao gestor revertido o ónus de a ilidir.

In casu, o despacho de reversão proferido foi-o ao abrigo da al. b) do n.º 1 do art.º 24.º da LGT, ou seja, considerando os potenciais responsáveis à data do término do prazo para pagamento voluntário.

Como se referiu anteriormente, o regime da responsabilidade tributária tem subjacente o exercício efetivo de funções por parte do gestor.

Trata-se do ponto de partida de aplicação do regime, sendo que, depois de demonstrada a gestão de facto [cfr. o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, do Pleno da Secção do Contencioso Tributário, de 28.02.2007 (Processo: 01132/06)], aplicar-se-á, num segundo momento, a al. a) ou a al. b), do n.º 1 do art.º 24.º da LGT.

Cabe à AT, desde logo e em primeira linha, o ónus da alegação e prova da efetiva gerência ou administração por parte dos revertidos.

Essa prova da gestão de facto tem de ser evidenciada por referência a atos praticados pelos potenciais revertidos, suscetíveis de demonstrar tal efetividade do exercício de funções, entendendo-se como tal a prática de atos com caráter de continuidade, efetividade, durabilidade, regularidade, com poder de decisão e com independência das funções exercidas.

Durante vários anos, prevaleceu o entendimento de que, demonstrada que fosse a gestão de direito, a AT beneficiaria de uma presunção de gestão de facto, cabendo, segundo este entendimento, ao revertido demonstrar não ter exercido efetivamente as referidas funções.

Na sequência do Acórdão do Pleno da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, de 28.02.2007 (Processo: 01132/06), operou-se uma alteração jurisprudencial, no sentido de que “… [a] presunção judicial não tem existência prévia, é um juízo casuístico que o julgador retira da prova produzida num concreto processo quando a aprecia e valora. (...) Ninguém beneficia de uma presunção judicial, porque ela não está, à partida, estabelecida, resultando só do raciocínio do juiz, feito em cada caso que lhe é submetido. (...) Do que se trata é de censurar a aplicação que fez de um regime legal, afirmando a existência de uma presunção judicial e retirando, maquinalmente, de um facto conhecido, outro, desconhecido, como se houvesse uma presunção legal, que não há; e afirmando a inversão do ónus da prova, quando tal inversão não ocorre, no caso, na falta de presunção legal”.

Como tal, continua o referido Acórdão do Pleno:

“Quando, em casos como os tratados pelos arestos aqui em apreciação, a Fazenda Pública pretende efectivar a responsabilidade subsidiária do gerente, exigindo o cumprimento coercivo da obrigação na execução fiscal inicialmente instaurada contra a originária devedora, deve, de acordo com as regras de repartição do ónus da prova, provar os factos que legitimam tal exigência.

(…) [N]ada a dispensa de provar os demais factos, designadamente, que o revertido geriu a sociedade principal devedora. Deste modo, provada que seja a gerência de direito, continua a caber-lhe provar que à designação correspondeu o efectivo exercício da função, posto que a lei se não basta, para responsabilizar o gerente, com a mera designação, desacompanhada de qualquer concretização” (sublinhado nosso).

Face a este entendimento, unânime na jurisprudência atual, a que se adere, decorre, como referido, que cabe, em primeira linha, à AT alegar e demonstrar que o revertido exerceu, nos termos consignados no n.º 1 do art.º 24.º da LGT, efetivas funções de gerência, entendidas como funções de gestão e representação da sociedade. (cfr., para as sociedades por quotas, os art.ºs 192.º e 252.º do Código das Sociedades Comerciais).

Posto este enquadramento, cumpre apreciar o caso em concreto.

Ora, no caso dos autos, desde logo se refira que do despacho de reversão não consta qualquer indicação sobre quaisquer elementos factuais relativos ao exercício efetivo das funções de gestão por parte da oponente, tendo o órgão de execução fiscal, sim, considerado que a gestão de facto se presumia da gestão de direito e fundando esta última no disposto no art.º 191.º do CSC.

O art.º 191.º do CSC prescreve, no seu n.º 1, que “[n]ão havendo estipulação em contrário e salvo o disposto no n.º 3, são gerentes todos os sócios, quer tenham constituído a sociedade, quer tenham adquirido essa qualidade posteriormente”.

A AT, ao contrário do que era seu ónus, não alegou sequer o exercício efetivo de funções de gerente por parte da oponente, em sede de despacho de reversão. Ademais, nem em sede judicial veio a alegar e provar qualquer facto passível de evidenciar tal exercício.

A mesma centrou-se exclusivamente no disposto no já mencionado art.º 191.º do CSC. No entanto, tal normativo não tem o alcance que lhe extrai a Recorrente nem exime a AT de demonstrar o exercício de facto das funções de gestor.

Explicitemos.

In casu, como resulta da decisão proferida sobre a matéria de facto, os vários gerentes da sociedade devedora originária foram renunciando ao longo dos anos à gerência da mesma, o último dos quais foi C......

É atendendo a este quadro factual que a AT se socorre do disposto no art.º 191.º do CSC.

Rigorosamente este normativo não refere aquilo que é afirmado pela Recorrente. Do mesmo resulta que “salvo estipulação em contrário (…) são gerentes todos os sócios”.

Na verdade, o que a Recorrente extrai desta norma decorre, sim, para as sociedades por quotas (como é o caso), do art.º 253.º, n.º 1, do CSC, nos termos do qual “[s]e faltarem definitivamente todos os gerentes, todos os sócios assumem por força da lei os poderes de gerência, até que sejam designados os gerentes”.

De todo o modo, este enquadramento normativo, mesmo aceitando como boa a interpretação da Recorrente do art.º 191.º do CSC, apenas serve para suprir a circunstância de a Recorrida, por força da renúncia que efetuou, ter deixado de ser gerente de direito da sociedade. Ou seja, a Recorrida renunciou à sua condição de gerente de direito, mas, por força da renúncia operada por todos os gerentes, ope legis, readquiriu essa condição de gerente de direito.

No entanto, como já referimos e como é jurisprudência há muito sedimentada, a gerência de direito não permite, per se, preencher os pressupostos do art.º 24.º, n.º 1, da LGT, que exige a gerência de facto do potencial revertido (independentemente de o ser ou não de direito, aliás).

A este propósito, chama-se à colação o Acórdão deste TCAS de 19.02.2015 (Processo: 07303/14), onde se refere:

[P]ese embora o artigo 191.º do Código das Sociedades Comerciais determine que «Não havendo estipulação em contrário e salvo o disposto no nº3, são gerentes todos os sócios, que tenham constituído a sociedade, quer tenham adquirido essa qualidade posteriormente", e o artigo 253.º n.º 1 do mesmo diploma legal estabeleça que "Se faltarem definitivamente todos os gerentes, todos os sócios assumem por força da lei os poderes de gerência, até que sejam designados gerentes" tal não significa que, nessas circunstâncias de facto (inexistência de estipulação expressa e ausência de gerente nomeado) se deva automaticamente concluir que todos ou qualquer um dos sócios pode ser parte legítima para efeitos de reversão por o artigo 24.º do CPPT exigir, mais do que aquela mera capacidade ou legitimidade para representar a sociedade perante terceiros e a vincular (que é, precisamente, o que o legislador comercial determinou), que haja, por parte de qualquer um dos sócios ou de todos, uma efectiva prática de actos típicos de gerência”.

Ora, quanto a eventuais atos de gestão efetuados pela Recorrida a Recorrente nada diz, nada resultando, igualmente, da decisão proferida sobre a matéria de facto, sendo certo que cabe à Recorrente o seu ónus da prova, tal como já referimos. Não colhe também aqui o argumento segundo o qual do disposto no art.º 64.º do CSC decorre a existência de um específico dever de diligência dos gestores de sociedades, porquanto, atentos os pressupostos constantes do art.º 24.º, n.º 1, da LGT, é exigida, a montante, a demonstração da gerência de facto. Não demonstrada esta, não há que apelar ao art.º 64.º do CSC.

Assim, atento este quadro factual e à completa ausência de alegação e prova por parte da AT ou da FP da existência de atuação por parte da Recorrida que evidenciasse o efetivo exercício de funções de gestora, não se pode se não concluir que, não estando demonstrado tal exercício, essa ausência de alegação e prova reverte a favor da Recorrida.

Como tal, bem andou o Tribunal a quo ao decidir no sentido de não estar demonstrada a gestão de facto da devedora originária por parte da Recorrida.

Logo, não se encontra preenchido o pressuposto previsto no n.º 1 do art.º 24.º da LGT, motivo pelo qual se verifica ilegitimidade da oponente.

Assim, carece de razão a Recorrente.

IV. DECISÃO

Face ao exposto, acorda-se em conferência na 2.ª Subsecção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:
a) Negar provimento ao recurso;
b) Custas pela Recorrente;
c) Registe e notifique.


Lisboa, 08 de julho de 2021


[A relatora consigna e atesta que, nos termos do disposto no art.º 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13 de março, aditado pelo art.º 3.º do DL n.º 20/2020, de 01 de maio, têm voto de conformidade com o presente Acórdão os restantes Desembargadores integrantes da formação de julgamento, os Senhores Desembargadores António Patkoczy e Mário Rebelo]

Tânia Meireles da Cunha

____________________
[1] Cfr. António dos Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2018, p. 286.
[2] Cfr. António dos Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2018, p. 169.
[3] V., a título exemplificativo, o Acórdão deste TCAS, de 27.04.2017 (Processo: 638/09.0BESNT) e ampla doutrina e jurisprudência no mesmo mencionada.
[4] Isabel Marques da Silva, «A Responsabilidade Tributária dos Corpos Sociais», Problemas Fundamentais do Direito Tributário, Vislis, Lisboa, 1999, p. 132.