Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:09679/13
Secção:CA- 2º JUÍZO
Data do Acordão:12/15/2016
Relator:CATARINA JARMELA
Descritores:DL 48 051
ILICITUDE
CULPA
ACTO ADMINISTRATIVO ILEGAL
Sumário:I – A definição de ilicitude do art. 6º, do DL 48 051, de 21 de Novembro de 1967, tem de ser lida à luz do art. 22º, da Constituição da República Portuguesa, que consagra a responsabilidade civil do Estado e das demais entidades públicas por acções ou omissões “de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem”, ou em articulação com o art. 2º, do citado DL 48 051 (e com o art. 96º n.º 1, da LAL), isto é, o conceito de ilicitude não se reconduz a um comportamento objectivamente antijurídico – violação de normas legais ou regulamentares, de princípios gerais ou de regras de ordem técnica e de prudência (ilicitude objectiva) -, exigindo também um desvalor da conduta quanto ao resultado, traduzido na violação de um direito ou interesse do particular (ilicitude subjectiva).

II - Constitui entendimento reiterado do STA, em relação ao regime do DL 48 051, que, quando é violado o dever de boa administração pela prática de um acto administrativo ilegal, o elemento culpa dilui-se na ilicitude, ou seja, a demonstração da ilicitude da actividade praticada pela autoridade administrativa traduz, simultaneamente, a verificação da mera culpa funcional, suficiente para preencher o respectivo pressuposto
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
*
I - RELATÓRIO

A..........., Lda., intentou no Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé a presente acção administrativa comum, sob a forma ordinária, contra o Município de Albufeira, pedindo a condenação deste no pagamento da quantia de € 192 166,84 - indemnização pelos prejuízos sofridos com o atraso de mais de sete anos na atribuição da licença para a viatura táxi -, acrescida dos respectivos juros de mora legais, desde a data da citação para esta acção até integral pagamento.


Por sentença de 17 de Julho de 2012 do referido tribunal foi a presente acção julgada parcialmente procedente e, em consequência, deferido:

- o pedido de indemnização patrimonial com efeitos desde 2 de Dezembro de 2008 (data em que a autora ficou reposicionada no 3º lugar em cumprimento da sentença do Tribunal Administrativo de Circulo de Lisboa, proferida em 9 de Maio de 2008) até 3 de Abril de 2009 (data em que foi emitido o alvará nº 54/2010) no montante de € 1605,42, por cada mês, com todos os juros legais a partir de 21 de Abril de 2011, data da citação na presente acção, à taxa legal actualmente em vigor;

- o pagamento de € 3 284,13 e de € 1 610, atinentes a taxas de justiça e a patrocínio judicial, respectivamente.


Inconformada, a autora interpôs recurso jurisdicional para este TCA Sul dessa decisão, tendo na alegação apresentada formulado as seguintes conclusões:

«Por todo o exposto, se requer a V.Exas que a sentença recorrida seja revogada e substituída por outra, que dê integral provimento ao pedido da recorrente, condenando o Município de Albufeira integralmente no pedido, por ter causado graves prejuízos à recorrente, com a Deliberação ilícita e culposa da sua Câmara Municipal, que lhe negou em 31 de Julho de 2001, a atribuição da licença de transporte de táxi, a que tinha legítimo direito, porquanto:

1° - Ao condenar parcialmente a ré no pedido, o Tribunal de 1ª Instância cometeu um erro na identificação do acto recorrido, que considerou como sendo a "omissão culposa em virtude da sua reclamação da classificação provisória em 4° lugar na qual alegava a ilegalidade da aplicação dos requisitos constantes do art. 15º do Regulamento do concurso sub juditio, ter sido apreciada e indeferida pelo Reú (...), ou seja, o facto do júri do concurso, mesmo após a reclamação da A. não ter alterado "o entendimento que cursava a propósito da aludida ilegalidade", o que não era manifestamente o caso, na medida em que o acto ilícito e culposo causador de prejuízos era a Deliberação ilícita e culposa da Câmara Municipal de Albufeira, que lhe negou em 31 de Julho de 2001, a atribuição da licença de transporte em táxi, a que tinha legítimo direito.

2° - Depois de incorrer neste erro, não se pronunciou, nem considerou como ilícita e culposa a Deliberação, de 31 de Julho de 2001, da Câmara Municipal de Albufeira, como estava pedido, a qual aliás já fora declarada ilícita e anulada por sentença proferida pelo Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, em 9 de Maio de 2008, há muito transitado em julgado, o que determina a nulidade da sentença, por omissão de pronúncia sobre matéria que deveria ter apreciado e decidido, de acordo com o disposto no Art° 668° nº 1° alínea d) do C.P.C.;.

3° - A sentença recorrida incorreu ainda numa outra nulidade por omissão de pronúncia, prevista no Artº 668° nº 1° alínea d) do C.P.C., na medida em que não apreciou nem decidiu, como estava a recorrente requereu nos Art°s 40° a 42° da petição inicial, o pedido de indemnização por danos morais causados à recorrente, por ter perdido mais de sete anos de antiguidade na praça de Albufeira, no valor de € 40 000,00;

4° - A sentença recorrida, ao considerar que antes da sentença do TAC de Lisboa, a Câmara Municipal de Albufeira já tinha deliberado atribuir a licença à Autora, em 2 de Outubro de 2007, cometeu um patente erro na apreciação da prova, na resposta ao quesito 1° da matéria de facto, que se requer seja corrigido por este Venerando Tribunal, considerando-se, dada a manifesta ausência de prova documental ou testemunhal que a comprove, que a resposta ao quesito 1° da base instrutória (BI) deve ser não provada.

5° - Na sentença recorrida, cometeu-se ainda um manifesto erro na interpretação e apreciação da prova testemunhal e documental produzida e constante dos autos, na resposta dada à matéria constante do quesito 6°, requerendo-se a este Tribunal que seja considerado provado, em resposta àquele quesito, que "A Autora iniciou a exploração da licença a partir de Abril de 2009", como resulta, sem sombra de dúvida, da prova produzida nos autos.

6°- Ao desconsiderar o decidido na sentença proferida pelo Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, em 9 de Maio de 2008, que anulou a Deliberação da Câmara Municipal de Albufeira, de 31 de Julho de 2001, por violação de lei e do Regulamento do Concurso, a sentença recorrida violou o caso julgado formado por esta douta sentença, há muito transitada em julgado, o que a vicia de manifesta ilegalidade e impõe a sua revogação, por violação do disposto nos Art°s 205° nº 2 da Constituição da República Portuguesa e no Art° 671º nº 1º do Código de Processo Civil;

7° - A sentença está ainda viciada de erro na aplicação do direito aos factos provados, quando afirma nomeadamente a páginas 24, que "inexistiu a falta de cumprimento do dever de cuidado na interpretação dada ao mencionado normativo", pois existiu essa falta de cuidado e diligência da Câmara Municipal, que actuou de modo manifestamente e censurável, por não ter feito tudo o que estava Constitucional e legalmente obrigada a fazer, para decidir legalmente o concurso não ofendendo os direitos e legítimos interesses da recorrente, aplicando o disposto nos Art°s 3° e 14° do Decreto-lei nº 258/ 98, de 11 de Agosto e o Art° 15° Regulamento do Concurso, à luz do legalmente exigido e em concordância com os princípios básicos da legalidade, igualdade e Justiça a que estava obrigada, como uma entidade pública diligente e cuidadosa nas circunstâncias que rodearam o caso, desrespeitando os deveres que lhe são impostos pelo Artº 266º nº 2º da Constituição da República Portuguesa e os Artºs 3° a 5° do Código do Procedimento Administrativo, praticando assim um acto não só ilícito, mas claramente culposo, conforme previsto no Artº 487° nº 2 do Código Civil e mesmo independentemente da presunção de culpa prevista no Artº 493° nº 2° do Código Civil de que a recorrente beneficia, como se referiu na sentença recorrida, embora sem extrair as devidas consequências;

8°- A Câmara Municipal de Albufeira podia e devia ter cumprido a lei e o Regulamento do Concurso, nos moldes definidos pela sentença do TAC de Lisboa, e tinha sido avisada, quer em reclamação, quer no recurso contencioso de anulação do acto, de que não estava a actuar de acordo com a legalidade, e os princípios de proporcionalidade, justiça e boa-fé e mesmo assim persistiu nessa ilegalidade, durante mais de sete anos, não alterando o seu comportamento e discriminando e prejudicando a recorrente em relação aos restantes a quem concedeu ilegalmente licenças, desrespeitando o princípio da Igualdade de tratamento dos cidadãos, constante do Artº 266° nº 2° da Constituição da República Portuguesa e o Artº 5° do Código do Procedimento Administrativo;

9° - Além disso, é jurisprudência pacífica entre nós que nos casos em que exista uma sentença transitada em julgado que tenha decretado a ilicitude de uma deliberação administrativa, por violação de lei ou de um regulamento, se considera existir uma verdadeira presunção judicial de que esse acto foi praticado com culpa, o que por si só é suficiente para considerar aquele acto ilícito como culposo, contrariamente ao que ilegalmente se decidiu na sentença recorrida.

Por todo o exposto e invocando o douto suprimento deste Venerando Tribunal se requer que seja proferido Acórdão que dê provimento integral ao pedido da recorrente, porque se verificam todos os pressupostos de que depende a responsabilidade civil do Município de Albufeira, que se dão aqui por integralmente reproduzidos, condenando-se a recorrida a:

a) Indemnizar a recorrente pelos prejuízos, sob a forma de lucros cessantes, que sofreu com a perda de rendimento durante os 87 meses em que aguardou que lhe fosse atribuída a licença, que ilegal, culposa e discriminatoriamente a Câmara Municipal de Albufeira lhe negou, e que se avaliam, considerando a matéria de facto provada, no montante de € 140.272,71 e não apenas pos cerca de € 25,000,00 em que a recorrida foi condenada;
b) Indemnizar os custos que a recorrente teve com o patrocínio judiciário com os processos de impugnação da deliberação ilegal da Câmara Municipal no Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, no valor de € 11.894,13;
c) Indemnizar o prejuízo moral resultante da perda de mais de sete anos de antiguidade de licenciamento na praça de Albufeira, perda esta que tem um importante valor económico, já que significa, desde logo, uma importante perda de antiguidade, para efeito de futuros concursos a que a recorrente queira concorrer, e que se peticionou, simbolicamente, em montante equivalente a € 40.000,00;
o que perfaz um total de € 192.166,84 (€ 140.272,71 + € 11.894,13 + € 40.000,00), acrescido dos juros de mora à taxa legal em vigor desde a data da citação para esta acção até integral pagamento e ainda os custos e encargos com este processo, incluindo os honorários da sua mandatária judicial.»

O recorrido, notificado, não apresentou contra-alegação.

O Ministério Público junto deste Tribunal notificado para os efeitos do disposto no art. 146º n.º 1, do CPTA, não emitiu parecer.

II - FUNDAMENTAÇÃO
Na sentença recorrida foram dados como assentes os seguintes factos:
«aa) Da Matéria de Facto Assente
A) A sociedade A..........., Lda. tem por objecto social a realização de transportes em táxi e sede no Município de Albufeira (cfr doc nº 1 junto com a p.i.);
B) A Autora está autorizada pela Direcção-Geral dos Transportes Terrestres, a realizar transportes em táxi, desde 18 de Maio de 2000 (cfr doc nº 2 junto com a p.i);

C) A sentença do TAC de Lisboa de 2008.05.09 não foi objecto de recurso pela Câmara Municipal de Albufeira (por acordo);
D) Em 2000.09.19, foi aberto pela Câmara Municipal de Albufeira concurso público para atribuição de licenças destinadas ao preenchimento de 12 vagas existentes no contingente de transportes de aluguer em veículos ligeiros de passageiros para o concelho de Albufeira, destinando-se três dessas vagas a sociedades comerciais, três a cooperativas, três a trabalhadores por conta de outrem e três a membros de cooperativas (cfr programa de concurso junto com a p.i.);
E) Após a reclamação da Autora, o Réu não pediu parecer a terceiros (por acordo);
F) A Autora concorreu ao referido concurso, tendo sido admitida e graduada na lista provisória do grupo das sociedades comerciais licenciadas pela Direcção-Geral dos Transportes Terrestres em 4º lugar, sendo-lhe negada a atribuição de uma licença (cfr doc nº 3 junto com a p.i.);

G) Em 2001.05.22, a Autora apresentou reclamação da classificação provisória, relativa ao 4º lugar que lhe fora atribuído, no âmbito do exercício de audiência prévia (cfr doc nº 4 junto com a p.i.);

H) Em 2001.07.31, a Câmara Municipal de Albufeira deliberou homologar a acta de deliberação do júri que indeferiu a reclamação e fixou a lista de classificação final dos concorrentes e procedeu à atribuição das licenças aos 3 primeiros classificados relativamente a cada uma das categorias (cfr doc nº 3 junto com a p.i.);
I) Em 2001.09.28, a Autora interpôs recurso contencioso de anulação da deliberação referida na alínea anterior, para o Tribunal Administrativo do Circulo de Lisboa, que correu termos sob o nº 762/2001 (por acordo e docs nºs 6, 7 e 8 juntos com a p.i.);
J) Em 2008.05.09, o Tribunal Administrativo de Circulo de Lisboa, veio dar provimento ao recurso e anulou a deliberação de 2001.07.31 da Câmara Municipal de Albufeira (por acordo);
K) A Autora despendeu com a taxa de justiça inicial no recurso contencioso de anulação, o valor de € 2.000 (cfr doc nº 9 junto com a p.i,);

L) A Autora despendeu com taxa de justiça e custas no processo judicial de suspensão de eficácia da deliberação em causa, que correu termos no TAC Lisboa, sob o nº 762/2001-A, o valor de € 1.236,13 (cfr docs nºs 11 e 12 juntos com a p.i.);

M) Em 2008.06.26, a Autora solicitou ao Sr. Presidente da Câmara Municipal de Albufeira o cumprimento da sentença do Tribunal Administrativo de Circulo de Lisboa (cfr doc nº 7 junto com a p.i.);

N) Em 2009.02.10, a Autora instaurou processo de execução judicial (cfr docs nºs 6 e 8 – pág 2 - juntos com a p.i.);
O) Em 2009.04.03, a Câmara Municipal de Albufeira emitiu o alvará nº 54/2000 (cfr doc nº 5 junto com a p.i.);
P) Em 2009.06.15, o TAF de Lisboa julgou extinta a instância por inutilidade superveniente da lide uma vez que a Câmara Municipal de Albufeira tinha executado a sentença (cfr doc nº 8 junto com a p.i.);


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aaa) Da Base Instrutória

Q) A Câmara Municipal de Albufeira deliberou atribuir a licença à Autora em 2007.10.02;

R) A Câmara Municipal de Albufeira foi notificada da sentença de 2008.05.09 proferida pelo TAC de Lisboa que anulou a sua deliberação;
S) A Câmara Municipal de Albufeira reclassificou os concorrentes, posicionando a Autora em lugar susceptível de lhe ser atribuída licença, em 2008.12.02;
T) A Autora iniciou a exploração da licença a partir de 2009;
U) Desde aquela data começou a auferir rendimentos da sua actividade;
V) Os restantes concorrentes do concurso viram ser-lhes atribuídas as licenças em Dezembro de 2001;
X) A Autora despendeu com a taxa de justiça no processo executivo da sentença de anulação da deliberação de 2001.07.31 da Câmara Municipal de Albufeira, o valor de 48 €;

Y) A Autora despendeu com os honorários pagos à advogada que a patrocinou nos processos judiciais, o valor global de € 7.000 acrescido de IVA, a 23%, no valor de € 1.610;

Z) A Autora de 4 de Abril de 2009 a 31 Março de 2010, num período de 12 meses de laboração, auferiu um rendimento de € 27 640,08;
AA) É um valor razoável que a Autora de 4 de Abril de 2009 a 31 Março de 2010 tenha tido despesas com o seu táxi, com a matrícula 11-70PJ, no valor de € 8.292,02;

BB) No primeiro ano de exploração da nova viatura, o resultado líquido mensal da Autora resultante da sua actividade foi de € 1.612,33;

CC) É facto público e notório que 2009 e 2010 foram dos anos mais fracos da actividade económica em Albufeira e no Algarve, em plena crise financeira e económica, que afastou do Algarve milhares de turistas, irlandeses e ingleses.».

Nos termos do art. 712º n.º 1, al. a), do CPC de 1961, ex vi art. 140º, do CPTA (na redacção anterior à dada pelo 214-G/2015, de 2/10, tal como as demais referências feitas ao CPTA neste acórdão), procede-se à alteração da factualidade dada como provada nos seguintes termos:

- Ao facto B) é aditado o seguinte segmento:
Através do alvará n.º 54/2000.

- O facto O) é substituído pelo seguinte facto:
O) Em 3.4.2009, o Presidente da Câmara Municipal de Albufeira emitiu a licença de táxi n.º 104/2009, com referência à viatura com a matrícula 11-70-PJ, e de que titular a A..........., Limitada (cfr. Doc. n.º 5, junto com a petição inicial).

- É aditado o seguinte facto DD):
DD) O teor da sentença referida em C) e J) consta de fls. 419 a 424, dos autos em suporte de papel, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, a qual transitou em julgado em 29.5.2008 (cfr. certidão de fls. 222, dos autos em suporte de papel).

*
Presente a factualidade antecedente, cumpre entrar na análise dos fundamentos do presente recurso jurisdicional.

As questões suscitadas resumem-se, em suma, em determinar se a sentença recorrida:
- é nula;
- incorreu em erro:
- na fixação da matéria de facto;
- ao ter julgado parcialmente improcedente a acção.


Nulidade da sentença recorrida

A autora, ora recorrente, alega que a sentença recorrida é nula, nos termos do art. 668º n.º 1, al. d), do CPC de 1961, por omissão de pronúncia, já que não apreciou:
- a ilicitude e a natureza culposa da deliberação da Câmara Municipal de Albufeira de 31.7.2001, como foi pedido que fizesse, por ter considerado erroneamente que o acto cuja ilicitude se tratava de apreciar era outro;
- o pedido de indemnização por danos morais no montante de € 40 000.

Falece a razão à recorrente, dado que na decisão recorrida concluiu-se que a anulação da deliberação da Câmara Municipal de Albufeira de 31.7.2001, pela sentença de 9.5.2008, não permite a procedência do pedido de indemnização formulado na presente acção, no montante total de € 192 166,84 - montante que inclui nomeadamente o pedido de pagamento do valor de € 40 000, a título de danos morais -, relativamente ao período anterior a 2.12.2008, por falta de verificação dos pressupostos da ilicitude e da culpa.

A sentença recorrida poderá eventualmente incorrer em erro de julgamento, mas tal não integra a nulidade de omissão de pronúncia prevista na 1ª parte da al. d) do n.º 1 do art. 668º, do CPC de 1961.

Nestes termos, tem de improceder a arguição de nulidade da decisão recorrida.


Erro na fixação da matéria de facto

A recorrente argumenta que:
a) - a resposta dada ao 1º quesito da base instrutória (que corresponde ao facto elencado sob a alínea Q), dos factos provados) assenta num manifesto erro de apreciação da prova documental e testemunhal constante dos autos, a qual de modo algum a suporta, defendendo que o facto em questão deve ser dado como não provado;
b) - a resposta dada ao 6º quesito da base instrutória (que corresponde ao facto elencado sob a alínea T), dos factos provados) configura erro de apreciação da prova documental e testemunhal produzida e constante dos autos, visto que se encontra provado, através de documentos – folhas de caixa relativas à exploração da actividade da viatura em causa, constantes de fls. 14 a 22 – e do depoimento da testemunha Vítor Sequeira, que o início da exploração da licença se deu no mês de Abril de 2009, ou seja, a recorrente defende que se deve aditar ao facto dado como provado sob a alínea T) a menção “Abril”, passando o mesmo a ter a seguinte redacção: “A Autora iniciou a exploração da licença a partir de Abril de 2009”.

Vejamos.

a)
A recorrente tem razão quanto à pretensão de eliminação, do elenco dos factos provados, do facto constante da alínea Q).

Efectivamente, dos autos não consta qualquer documento do qual se possa inferir tal facto. Além disso, e após audição da gravação relativa à audiência de julgamento realizada em 11.5.2012, verifica-se que nenhuma das testemunhas inquiridas [Augusto Cordeiro, António Fernandes, Américo Guiomar e Vítor Sequeira] faz qualquer referência a este facto.

Pelo exposto, ou seja, face à ausência total de prova, considera-se como não provado o facto elencado sob a alínea Q), dos factos provados (o qual corresponde ao facto 1, da base instrutória) e, consequentemente, determina-se a sua eliminação dos factos provados.

b)
Quanto à pretensão da recorrente de aditamento ao facto dado como provado sob a alínea T) da menção “Abril” [passando o mesmo a ter a seguinte redacção: “A Autora iniciou a exploração da licença a partir de Abril de 2009”], carece a mesma de razão de ser, por redundância, na medida em que tal menção já resulta da factualidade dada como assente sob as alíneas Z) a BB).

Com efeito, consta dos factos dados como provados sob as alíneas Z) a BB) que a recorrente de 4 de Abril de 2009 a 31 Março de 2010, ou seja, num período de 12 meses de laboração com o seu táxi, com a matrícula 11-70- PJ [licenciado em 3.4.2009 - cfr. alínea O), dos factos provados -, em execução da sentença de 9.5.2008], auferiu o rendimento (bruto) de € 27 640,08 e que nesse mesmo período teve despesas com esse táxi no valor de € 8 292,02, pelo que nesses 12 meses, os quais correspondem ao primeiro ano de exploração dessa viatura, o resultado líquido mensal resultante da sua actividade foi de € 1 612,33 [(€ 27 640,08 - € 8 292,02) : 12].

Ora, desta factualidade resulta, nomeadamente, que a recorrente iniciou a exploração da sua licença (de táxi) em 4 de Abril de 2009, pelo que o aditamento, ao facto descrito na alínea T), da menção “Abril”, seria uma mera repetição do que já decorre maxime das alíneas Z) a BB), ou seja, carece de razão de ser.

Pelo exposto, indefere-se a presente pretensão.


Erro da sentença recorrida ao julgar parcialmente improcedente a acção

Na petição inicial a recorrente alegou que, em consequência da deliberação da Câmara Municipal de Albufeira de 31.7.2001 – a qual se configura como um facto ilícito (conforme decorre da sentença proferida em 9.5.2008) e culposo -, sofreu os seguintes danos:
- encargos com o recurso contencioso (€ 2000 de taxa de justiça), o incidente de suspensão da eficácia (€ 1236,13) e o requerimento de execução da sentença de 9.5.2008 (€ 48), no valor total de € 3 284,13;
- honorários pagos à advogada que a patrocinou nesses três processos, no valor global de € 7 000, acrescido de IVA, a 23%, no valor de € 1 610;
- perda de rendimentos da sua viatura entre Janeiro de 2002 e Março de 2009, ou seja, perda de 87 meses de rendimentos que ascende ao valor de € 140 272,71 [(€ 27 640,08 - € 8 292,02) : 12 meses = € 1 612,33 x 87 meses];
- de natureza moral, decorrente da perda de mais de sete anos de antiguidade de licenciamento na praça de Albufeira relativamente à viatura ora em causa, a indemnizar através do valor de € 40 000,
razão pela qual peticionou a condenação do réu no pagamento da quantia total de € 192 166,84 [€ 3 284,13 + 8610 (€ 7 000 + € 1 610) + € 140 272,71 + € 40 000], acrescida de juros de mora legais, desde a data da citação.

A sentença recorrida considerou que a anulação da deliberação da Câmara Municipal de Albufeira de 31.7.2001, pela sentença de 9.5.2008, não permite a procedência do pedido de indemnização formulado pela recorrente, relativamente ao período anterior a 2.12.2008. Mais decidiu que a pretensão indemnizatório da recorrente era de acolher no período de 2.12.2008 (data em que a Câmara Municipal de Albufeira reclassificou os concorrentes, em cumprimento da sentença de 9.4.2008, posicionando a recorrente em lugar susceptível de lhe ser atribuída licença) a 3.4.2009 (data da emissão do alvará 54/2010), nos seguintes termos:
- € 3 284,13 atinentes a taxas de justiça e custas [com o recurso contencioso € 2000, a suspensão da eficácia € 1236,13 e o processo de execução judicial € 48];

- patrocínio judicial respeitante aos três processos judiciais que perfez a quantia de € 7000 que, acrescida de IVA à taxa de 23%, totaliza o valor de € 1610, sendo o recorrido condenado a pagar à recorrente, a título de patrocínio judicial, € 1610;
- € 1605,42, por cada mês (desde 2.12.2008 a 3.4.2009), a título de lucros cessantes, com todos os juros legais a partir de 21 de Abril de 2011, data da citação na presente acção, à taxa legal em vigor.

A recorrente defende que a sentença incorreu em erro, argumentando que a deliberação da Câmara Municipal de Albufeira de 31.7.2001 configura-se como um facto ilícito e culposo, recusando-lhe, ilegalmente e com culpa, a atribuição de uma licença de transporte em táxi a que tinha direito, provocando-lhe os seguintes danos:
- rendimentos que deixou de obter em resultado de não ter podido utilizar a licença da viatura entre Janeiro de 2002 e Abril de 2009 (e não apenas no período de 2.12.2008 a 3.4.2009), ou seja, ao longo de 87 meses, lucros cessantes que ascendem ao montante de € 140 272,71 [(€ 27 640,08 - € 8 292,02) : 12 meses = € 1 612,33 x 87 meses], valor que o recorrido deve ser condenado a pagar-lhe;
- custos com o patrocínio judiciário, a título de custas judiciais e honorários da sua mandatária no recurso contencioso, no processo de suspensão da eficácia e no processo de execução da sentença, no montante global de € 11 984,13 [€ 2000 + € 1 236,13 + € 48 + € 7000 + € 1 610] e não no montante de € 4 894,13 [€ 3 284,13 + € 1610], como por erro de cálculo se indica na sentença recorrida;
- de natureza moral, decorrente da perda de mais de sete anos de antiguidade de licenciamento na praça de Albufeira, a indemnizar através do valor de € 40 000.

Pelo exposto, solicita que o recorrido seja condenado no pagamento da quantia total de € 192 166,84, acrescida de juros de mora legais, desde a data da citação até integral pagamento, e não apenas nas quantias em que a sentença recorrida o condenou.

A recorrente pede ainda que o recorrido seja condenado no pagamento dos honorários que vierem a ser apresentados pela sua mandatária na presente acção.

Analisando.

No que respeita ao pedido feito pela recorrente (apenas) na alegação de recurso de condenação do recorrido no pagamento dos honorários que vierem a ser apresentados pela sua mandatária na presente acção, cumpre salientar que tal ampliação do pedido, na fase recursiva, é inadmissível (cfr. art. 273º n.º 2, do CPC de 1961), razão pela qual não se conhecerá de tal pretensão.

Passando, então, à apreciação dos erros de julgamento que são imputados à sentença recorrida.

Ao tempo em que decorreram os factos integradores da causa de pedir desta acção, a responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas públicas, no domínio dos actos de gestão pública, regia-se pelo disposto no DL 48 051, de 21 de Novembro de 1967, e, no caso das autarquias locais, também pelo disposto nos arts. 96º e 97º, da Lei das Autarquias Locais (LAL), aprovada pela Lei 169/99, de 18/9.

Estatui o art. 96º n.º 1, da LAL, que:
As autarquias locais respondem civilmente perante terceiros por ofensa de direitos destes ou de disposições legais destinadas a proteger os seus interesses, resultantes de actos ilícitos culposamente praticados pelos respectivos órgãos ou agentes no exercício das suas funções ou por causa desse exercício”.

Embora estes diplomas não disponham de uma regulamentação acabada no domínio da responsabilidade extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas públicas, nomeadamente quanto ao nexo de causalidade, tem a jurisprudência do STA reconhecido que, por razões de ordem sistemática, se impõe nesse âmbito também o recurso às previsões do Cód. Civil (cfr. Ac. do STA de 21.4.1994, in AD 400-399).

A jurisprudência do STA tem, assim, decidido, de forma uniforme e pacífica, que a responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas públicas (incluindo, portanto, as autarquias locais) e dos titulares dos seus órgãos e dos seus agentes, por facto ilícito de gestão pública, assenta, no essencial, nos pressupostos da responsabilidade civil previstos nos arts. 483º e ss., do Cód. Civil – neste sentido, entre outros, Acs. do STA de 13.10.1998, 26.9.02, 6.11.02, 18.12.02, 24.9.2003, 17.3.2005 e de 14.4.2005, procs. n.ºs 43.138, 487/02, 1.331/02, 1.683/02, 1.864/02, 230/05 e 86/04, respectivamente.

Assim, a responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas públicas (incluindo, portanto, as autarquias locais) e dos titulares dos seus órgãos e dos seus agentes, por facto ilícito e culposo de gestão pública, assenta nos seguintes pressupostos:
a) O facto do órgão ou agente que se traduz num comportamento voluntário, sob a forma de acção ou omissão;
b) A ilicitude;
c) A culpa, nexo de imputação ético-jurídica do facto ao lesante que pode revestir a forma de dolo ou mera culpa e que, na forma de mera culpa (negligência), traduz a censura dirigida ao autor do facto por não ter usado da diligência que teria um funcionário ou agente típico;
d) O dano, como lesão de ordem patrimonial ou não patrimonial;
e) O nexo de causalidade entre a conduta e o dano, apurado segundo a teoria da causalidade adequada.

Quanto ao pressuposto da ilicitude dispõe o art. 6º, do DL 48 051, o seguinte:
Para os efeitos deste diploma, consideram-se ilícitos os actos jurídicos que violem as normas legais e regulamentares ou os princípios gerais aplicáveis e os actos materiais que infrinjam estas normas e princípios ou ainda as regras de ordem técnica e de prudência comum que devam ser tidas em consideração.”.

A formulação deste art. 6º levou alguns autores a sustentar que “quanto aos actos jurídicos, incluindo portanto os actos administrativos, (…) a ilicitude coincide com a ilegalidade do acto e apura-se nos termos gerais em que se analisam os respectivos vícios” - cfr. Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, vol. II, 10ª ed. (4ª reimpressão), 1991, pág. 1225, e J. A. Dimas de Lacerda, Responsabilidade civil extracontratual do Estado (alguns aspectos), em Contencioso Administrativo – Breve Curso constituído por lições proferidas na Universidade do Minho por iniciativa da Associação Jurídica de Braga, 1986, pág. 248.

Porém, como adverte Gomes Canotilho (O problema da responsabilidade do Estado por actos lícitos, 1974, págs. 74 a 78), devemos precaver-nos “contra a completa equiparação da ilegalidade à ilicitude, possivelmente sugerida pela redacção do citado artigo 6º do Decreto-Lei nº 48 051”, e ter presente que no art. 2º desse diploma (o qual tem uma redacção idêntica ao art. 96º n.º 1, da LAL, supra transcrito) se exige, para a afirmação da responsabilidade civil do Estado e demais pessoas colectivas públicas, a ocorrência de “ofensas dos direitos (de terceiros) ou das disposições legais destinadas a proteger os seus interesses”.

Este entendimento viria a ser acolhido no art. 21º (hoje art. 22º), da Constituição da República Portuguesa, que só responsabiliza civilmente o Estado pelas acções ou omissões praticadas pelos seus órgãos, funcionários ou agentes no exercício das suas funções e por causa desse exercício “de que resulte a violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem”.

E é este entendimento que foi reiteradamente afirmado pela jurisprudência, como sucedeu, designadamente, nos Acs. do STA de 1.7.97, proc. n.º 41 588, e 4.11.98, proc. n.º 40 165, tendo-se naquele decidido que “não basta a verificação de uma qualquer ilegalidade para haver ilicitude”, exigindo-se para o efeito, “pelo menos que o fim das normas violadas seja também o da defesa do lesado, que haja violação de direitos subjectivos e outras posições jurídicas subjectivas que justifiquem o pagamento de uma indemnização”.

Assim, a definição de ilicitude do art. 6º, do DL 48 051, de 21 de Novembro de 1967, tem de ser lida à luz do art. 22º, da Constituição da República Portuguesa, que consagra a responsabilidade civil do Estado e das demais entidades públicas por acções ou omissões “de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem”, ou em articulação com o art. 2º, do citado DL 48 051 (e com o art. 96º n.º 1, da LAL).

Dito por outras palavras, o conceito de ilicitude não se reconduz a um comportamento objectivamente antijurídico – violação de normas legais ou regulamentares, de princípios gerais ou de regras de ordem técnica e de prudência (ilicitude objectiva) -, exigindo também um desvalor da conduta quanto ao resultado, traduzido na violação de um direito ou interesse do particular (ilicitude subjectiva), cabendo à autora, ora recorrente, o ónus de provar este pressuposto da ilicitude – nas vertentes objectiva e subjectiva -, nos termos do art. 342º n.º 1, do Cód. Civil.

Considerando que no caso dos autos está em causa a prática de um acto jurídico, concretamente de um acto administrativo (deliberação da Câmara Municipal de Albufeira de 31.7.2001), há ilicitude se a conduta do recorrido não tiver observado as normas legais e regulamentares ou os princípios gerais aplicáveis (ilicitude objectiva), das quais tenha resultado violação de direitos subjectivos ou interesses legalmente protegidos da recorrente (ilicitude subjectiva).

O facto alegadamente ilícito respeita à deliberação da Câmara Municipal de Albufeira de 31.7.2001 que graduou a recorrente em 4º lugar - no concurso público para atribuição de licenças destinadas ao preenchimento de 12 vagas (destinando-se três dessas vagas a sociedades comerciais) existentes no contingente de transportes de aluguer em veículos ligeiros de passageiros para o concelho de Albufeira - da lista do grupo de sociedades comerciais licenciadas pela Direcção-Geral dos Transportes Terrestres, sendo-lhe negada a atribuição de uma licença, a qual foi concedida aos graduados nos três primeiros lugares.

Está em causa, portanto e como acima referido, um acto jurídico (concretamente um acto administrativo), pelo que haverá ilicitude (objectiva) se o mesmo infringir normas legais e regulamentares ou os princípios gerais aplicáveis.

Ora, através de sentença proferida em 9.5.2008 – no processo n.º 762/2001 e transitada em julgado em 29.5.2008 – foi anulada a referida deliberação da Câmara Municipal de Albufeira de 31.7.2001, com fundamento em vícios de violação de lei, concretamente:
- a interpretação do critério previsto no art. 15º, al. b), do programa do concurso (o qual é uma reprodução do Regulamento da Actividade de Táxis aprovado pela Assembleia Municipal), que foi acolhida – ao permitir a valorização de tempo de exercício da actividade anterior a período em que a candidata não reunia os requisitos legais - viola o preceituado no art. 3º, do DL 251/98, de 11/8;
- os critérios previstos nas als. a) a c) do art. 15º, do programa do concurso, não são de aplicação sucessiva e eliminatória como se entendeu na deliberação impugnada, mas de aplicação cumulativa, conforme se explanou no Ac. do STA de 19.12.2006.

Do exposto resulta que a deliberação da Câmara Municipal de Albufeira de 31.7.2001 é um acto objectivamente ilícito, tendo, portanto, razão a recorrente quando afirma que a sentença recorrida, assim não tendo entendido, viola o caso julgado resultante da sentença de 9.5.2008.

Além disso, tal deliberação também é subjectivamente ilícita.

Com efeito, os vícios de violações de lei, assacados à deliberação de 31.7.2001 que negou à recorrente a atribuição de uma licença de táxi, foram vícios substantivos, na medida em que o direito da exequente à atribuição de uma licença de táxi foi violado [pois, em execução da sentença de 9.5.2008, o recorrido reclassificou os concorrentes - sem incorrer nos vícios apontados na sentença de 9.5.2008 - posicionando a recorrente em lugar susceptível de lhe ser atribuída licença].

Conclui-se, assim, que a recorrente tem razão quando alega que a decisão recorrida incorreu em erro ao não considerar que a deliberação de 31.7.2001 se consubstancia na prática de um facto (objectiva e subjectivamente) ilícito.

Passando à análise do requisito relativo à culpa.

A este propósito preceituava o art. 4º n.º 1, do DL nº 48 051, de 21 de Novembro de 1967, que a culpa era apreciada nos termos do art. 487º, do Cód. Civil, o qual, no seu n.º 2, determina como critério para aferir da mesma o critério abstracto do bom pai de família, o qual, quando transposto para o âmbito dos entes públicos, implica a comparação do comportamento ilícito apurado com o que seria exigível a um funcionário ou agente zeloso e cumpridor dos seus deveres funcionais – neste sentido, entre outros, Acs. do STA de 27.10.1994, proc. n.º 33 992, e 13.5.1999, proc. n.º 38 081.

Ora, constitui entendimento reiterado do STA, em relação ao regime do DL 48 051, que, quando é violado o dever de boa administração pela prática de um acto administrativo ilegal (como ocorre in casu com a deliberação da Câmara Municipal de Albufeira de 31.7.2001), o elemento culpa dilui-se na ilicitude, ou seja, a demonstração da ilicitude da actividade praticada pela autoridade administrativa traduz, simultaneamente, a verificação da mera culpa funcional, suficiente para preencher o respectivo pressuposto.

Como a este propósito se escreveu no Ac. do STA de 29.2.1996, proc. n.º 38 045, “O desconhecimento ou errada interpretação da lei não pode deixar de gerar ilicitude e, também, culpa relevante (a título de negligência), já que o correcto manuseamento dos textos legais, salvos casos de excepção, é exigível aos titulares dos órgãos e agentes do Município”.

E conforme se esclareceu no Ac. do STA de 9.10.2012, proc. n.º 565/12:
Ora, partindo da ideia, por outros partilhada, de que a anulação de um acto administrativo é, em si mesmo, “um índice de anormalidade de funcionamento do serviço”, já que “o primeiro dever da Administração é conhecer e respeitar o Direito” (Vide Mário Aroso de Almeida, “ Anulação de Actos Administrativos e Relações Jurídicas Emergentes”, p. 827 e demais Doutrina aí citada), este Supremo Tribunal, em relação ao regime do DL nº 48 051, consolidou, há muito, jurisprudência inclinada a considerar que toda a ilegalidade da Administração é de considerar culposa, sem necessidade de outras indagações, dado que “quando é violado o dever de boa administração pela prática de um acto administrativo ilegal, o elemento culpa dilui-se na ilicitude, assumindo a culpa o aspecto subjectivo da ilicitude” (Cfr., entre outros, os acórdãos de 1996.03.21 – rec. nº 35 909 e de 1996.12.03 – rec. nº 39 020), e que “quando os factos alegados são ilícitos, por violação de normas legais e regulamentares, desde logo arrastam uma presunção judicial de negligência.”
E não vemos razões para divergir desta jurisprudência firme, relativamente à velha lei da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas públicas, sendo que a argumentação dos réus não persuade que, no caso dos actos jurídicos ilegais, o abandono da ideia de equivalência entre a ilicitude e a culpa seja a melhor solução à luz da lei antiga.
Na verdade, também não é difícil antever que, na tese dos réus, no plano das relações externas, o sugerido afinamento do rigor dos critérios do juízo presuntivo, levado ao ponto de, nos actos jurídicos ilegais, poder afastar, por completo, a presunção natural de culpa, em razão da imperfeição do sistema jurídico, da prolixidade das disposições legais aplicáveis de divergências jurisprudenciais ou de qualquer outro motivo de desculpabilização, mas a que o lesado seja estranho, poderia desembocar no resultado iníquo, de as vítimas de actos jurídicos ilegais (por exemplo, um acto de demissão), que em nada tenham contribuído para as ilegalidades cometidas, ficarem, com denegação da justiça, privadas do ressarcimento dos danos provocados por actos judicialmente anulados, comprovadamente ilícitos, que ofenderam os seus direitos.
Deste modo, nesta outra parte, também não procede a crítica feita à sentença que, neste ponto, segue a jurisprudência consolidada deste Supremo Tribunal.”.

Como explica Rui Medeiros, Comentário ao Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas, 2013, págs. 280 e 281:
Ora, na vigência do Decreto-Lei 48051 (…) a jurisprudência, apoiada por parte da doutrina, sustentava que, quando o facto ilícito danoso se consubstanciava na prática de um ato jurídico ilegal, a ilegalidade continha “em si culpa suficiente, à luz da referência geral do Estado de Direito, para a imputação ao Estado dos danos que tais atos produziram” [BARBOSA DE MELO, Responsabilidade civil extracontratual – não cobrança de derrama pelo Estado, CJ, ano XI, tomo 4 (1986), p. 37 – cfr, no mesmo sentido, GOMES CANOTILHO, O problema da responsabilidade civil do Estado por actos lícitos, 1974, p. 78]. Significa isto que, atendendo concretamente à prática jurisprudencial ou, por outras palavras, considerando o diritto vivente antes da entrada em vigor do novo regime de responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas, se entendia que quando um titular de órgão adota um ato jurídico desconforme com o bloco de legalidade a que se encontra adstrito, atuando ilicitamente, está ipso facto, a actuar com culpa, pois o titular do órgão zeloso e diligente teria agido em conformidade com tais comandos jurídicos (cfr., entre muitos, Acórdão do STA de 20 de outubro de 1987, BMJ, n.º 370, 1987, pp. 392 ss, Acórdão do STA de 24 de março de 1999 – processo n.º 44.364 – e Acórdão do STA de 8 de julho de 1999 – processo n.º 43.956). Em qualquer caso, não estando prevista na lei, tratava-se de uma presunção judicial de culpa.
(…)
Não se ignora que, na prática jurisprudencial, a tendência é para converter a responsabilidade por ato jurídico ilícito numa responsabilidade praticamente objetiva (…)”.

No caso sub judice, e conforme acima referido, a deliberação da Câmara Municipal de Albufeira de 31.7.2001 incorreu em dois vícios de violação de lei, interpretando erroneamente um regulamento administrativo [art. 15º, do programa do concurso (o qual é uma reprodução do Regulamento da Actividade de Táxis aprovado pela Assembleia Municipal)], pelo que o recorrido ao ter emitido tal deliberação é merecedor de um juízo ético-jurídico de censura, isto é, actuou com culpa, incorrendo a sentença recorrida em erro ao ter concluído em sentido inverso.

Apreciando agora os pressupostos relativos ao dano e ao nexo de causalidade.

A obrigação de indemnizar mede-se, em princípio, pela diferença entre a situação real actual do lesado e a situação (hipotética) em que ele se encontraria se não fosse a lesão (cfr. art. 562º, do Cód. Civil), ou seja, o montante da indemnização deve apagar/compensar a exacta separação entre elas.

Além disso, o dever de indemnização compreende não só o prejuízo causado, como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão (cfr. art. 564º n.º 1, do Cód. Civil).

Quanto ao nexo de causalidade, a jurisprudência do STA tem considerado que à responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas públicas, por factos ilícitos, se aplica o art. 563°, do Cód. Civil, sendo pacificamente aceite que este art. 563º consagra a teoria da causalidade adequada, na formulação negativa de ENNECCERUS-LEHMANN – o facto que actuou como condição do dano só deixará de ser considerado como causa adequada quando, segundo a sua natureza geral, é indiferente para a produção do dano e só se tornou condição dele em virtude de outras circunstâncias extraordinárias (neste sentido, entre muitos outros, Acs. do STA de 13.10.1998, 19.5.2005 e 2.12.2010, procs. n.ºs 43 138, 590/04 e 251/09, respectivamente).

O nexo de causalidade tem dupla vertente: de facto e de direito.

Ou dito de outro modo, necessário se torna que, em concreto, isto é, no plano naturalístico, o facto seja condição da verificação do dano e que, em abstracto, ou seja, segundo as regras da vida, o facto ilícito constitua causa adequada ou apropriada à ocorrência do dano verificado.

No caso em análise decorre da factualidade dada como assente que a deliberação da Câmara Municipal de Albufeira de 31.7.2001 negou à recorrente a atribuição da licença de táxi a que tinha direito, isto é, impediu que esta explorasse a actividade de táxi no Município de Albufeira entre Janeiro de 2002 e Março de 2009 (cfr. alíneas O), S) e V), dos factos provados), ou seja, durante 87 meses.

Dito por outras palavras, se a deliberação da Câmara Municipal de Albufeira de 31.7.2001 não tivesse sido emitida e antes tivesse sido proferida, logo nessa data, a deliberação de 2.12.2008 - a qual reclassificou os concorrentes e posicionou a recorrente em lugar susceptível de lhe ser atribuída licença (cfr. alínea S), dos factos provados) -, seguramente de Janeiro de 2002 e Março de 2009 a recorrente teria auferido mensalmente, pelo menos, € 1612,33 [(€ 27 640,08 - € 8 292,02) : 12 meses - cfr. alíneas T), U) e Z) a CC), dos factos provados], ou seja, o montante total de € 140 272,71 [€ 1 612,33 x 87 meses].

Conclui-se, assim, que a recorrente deixou de obter em consequência do acto lesivo (de 31.7.2001) a quantia total de € 140 272,71 em rendimento (líquido) não recebido, prejuízo que é uma consequência normal/adequada desse facto ilícito.

Ora, na sentença recorrida só se fixou, em termos de lucros cessantes, a indemnização no montante de € 1605,42 (quando deveria ser no valor de € 1612,33), por cada mês, com efeitos desde 2.12.2008 (quando deveria ser com efeitos a Janeiro de 2002) até 3.4.2009.

Assim, nesta parte (indemnização por lucros cessantes), deverá ser concedido total provimento ao presente recurso e, em consequência, modificada a quantia indemnizatória fixada na sentença recorrida (€ 1605,42 por cada mês, com efeitos desde 2.12.2008 até 3.4.2009), majorando-se a mesma para € 140 272,71 (acrescida de juros de mora nos termos fixados na decisão recorrida).

Na sentença recorrida reconheceu-se à recorrente o direito de ser indemnizada dos custos com o patrocínio judiciário, a título de custas judiciais e honorários da sua mandatária no recurso contencioso, no processo de suspensão da eficácia e no processo de execução.

A recorrente considera correcto o valor que aí foi fixado (€ 3 284,13) para a indemnizar dos valores que despendeu em custas com o recurso contencioso (€ 2000), o processo de suspensão da eficácia (€ 1236,13) e o processo de execução (€ 48), mas põe em causa o valor que aí foi fixado para a indemnizar dos honorários pagos à advogada que a patrocinou nesses três processos.

Invoca a este propósito que os custos com tais honorários ascenderam ao valor global de € 7 000, acrescido de IVA, a 23%, no valor de € 1 610, o que perfaz o montante total de € 8 610, mas na sentença recorrida, e por erro de cálculo, foi-lhe fixada a indemnização de € 1610.

Tem a recorrente inteira razão, enfermando a sentença recorrida de evidente lapso, pois da factualidade dada como assente na alínea Y) decorre que os custos em que a recorrente incorreu com os honorários dos três processos ascenderam ao valor total de € 8 610 [€ 7 000 + IVA, a 23%, no valor de € 1 610], correspondendo o valor de € 1610, fixado na sentença recorrida para a indemnizar dos custos com tais honorários, apenas ao IVA que a recorrente pagou a este propósito.

Assim sendo, nesta parte também deverá ser concedido total provimento ao presente recurso e, em consequência, modificada a quantia indemnizatória fixada na sentença recorrida (€ 1610), majorando-se a mesma para € 8 610.

A recorrente neste recurso jurisdicional reitera o pedido formulado na petição inicial de condenação do recorrido no pagamento de juros de mora à taxa legal, desde a citação, quanto aos valores que o recorrido lhe terá de pagar, a título de indemnização pelos custos em que incorreu com o patrocínio judiciário (custas judiciais e honorários da sua mandatária).

Na sentença recorrida o recorrido só foi condenado a pagar juros de mora relativamente à indemnização devida pelos lucros cessantes (e não também quanto à indemnização fixada para os custos em que a recorrente incorreu com taxas de justiça e patrocínio judicial).

Nas obrigações pecuniárias, como é o caso, a indemnização devida pela mora corresponde aos juros legais (cfr. art. 806º n.º 2, do Cód. Civil).

Os mesmos são devidos a partir da citação, tendo em conta o disposto nos arts. 805º n.º 3 e 806º n.º 1, ambos do Cód. Civil, os quais ascendem a 4% ao ano (cfr. art. 559º n.º 1, do Cód. Civil, e Portaria 291/03, de 8 de Abril).

Conclui-se, assim, que, também nesta parte, deverá ser concedido provimento ao presente recurso jurisdicional, com a condenação do recorrido a pagar à recorrente juros de mora, a contar da citação, até integral pagamento, calculados à taxa de 4% ao ano e correspondentes taxas legais subsequentemente em vigor, sobre as quantias fixadas a título de indemnização pelos custos em que a recorrente incorreu com taxas de justiça (€ 3 284,13) e patrocínio judicial (€ 8 610).

Finalmente alega a recorrente que a sentença recorrida errou ao não lhe reconhecer o dano de natureza moral, decorrente da perda de mais de sete anos de antiguidade de licenciamento na praça de Albufeira, a indemnizar através do valor de € 40 000.

Ora, tal alegado dano é consequência do acto praticado pelo Presidente da Câmara Municipal de Albufeira em 3.4.2009, descrito na alínea O), dos factos provados - ao não atribuir efeitos retroactivos (a Dezembro de 2001) à licença emitida [cfr. art. 173º n.º 2, do CPTA (“Para efeitos do disposto no número anterior, a Administração pode ficar constituída no dever de praticar actos dotados de eficácia retroactiva que não envolvam a imposição de deveres, a aplicação de sanções ou a restrição de direitos ou interesses legalmente protegidos (…)”)] -, e não da deliberação de 31.7.2001, ou seja, não se verifica o pressuposto relativo ao nexo de causalidade entre esta deliberação e o alegado dano moral.

Ora, recaindo sobre a autora, ora recorrente, o ónus de provar os pressupostos da responsabilidade civil, concretamente o facto ilícito, a culpa, o dano e o nexo causal, os quais são de verificação cumulativa, a falta de prova de qualquer deles resolve-se contra a mesma, nos termos do art. 342º n.º 1, do Cód. Civil.

Assim, nesta parte, terá de improceder o presente recurso jurisdicional.

*
Conclui-se, assim, que deverá ser concedido parcial provimento ao presente recurso jurisdicional e, em consequência:
- modificada a quantia indemnizatória fixada na sentença recorrida a título de lucros cessantes (€ 1605,42 por cada mês, com efeitos desde 2.12.2008 até 3.4.2009), majorando-se a mesma para € 140 272,71, acrescida de juros de mora nos termos já fixados naquela mesma sentença;
- modificada a quantia indemnizatória fixada na sentença recorrida a título de patrocínio judicial (€ 1610), majorando-se a mesma para € 8 610;
- condenado o recorrido a pagar à recorrente juros de mora, a contar da citação, até integral pagamento, calculados à taxa de 4% ao ano e correspondentes taxas legais subsequentemente em vigor, sobre as quantias fixadas a título de indemnização dos custos com taxas de justiça (€ 3 284,13) e patrocínio judicial (€ 8 610).
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A recorrente e o recorrido deverão suportar as custas na proporção do respectivo decaimento, ou seja, na proporção de 24% e 76%, respectivamente, nesta instância de recurso e na proporção de 21% e 79%, respectivamente, em 1ª instância [cfr. art. 527º n.ºs 1 e 2, do CPC de 2013, ex vi art. 1º, do CPTA, e tendo em conta que o valor do recurso (cfr. indicação constante do final da alegação - € 167 166,84 -, ao abrigo do art. 12º n.º 2, do RCP) não coincide com o valor da causa (€ 192 166,84), pelo que o valor em que a recorrente decaiu (€ 40 000) não assume a mesma proporção nas duas instâncias].
III - DECISÃO
Pelo exposto, acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul o seguinte:

I – Conceder parcial provimento ao presente recurso jurisdicional e, em consequência:

- modificar a quantia indemnizatória fixada na sentença recorrida a título de lucros cessantes, majorando-se a mesma para € 140 272,71 (cento e quarenta mil, duzentos e setenta e dois euros e setenta e um cêntimos), acrescida de juros de mora nos termos já fixados naquela mesma sentença;
- modificar a quantia indemnizatória fixada na sentença recorrida a título de patrocínio judicial, majorando-se a mesma para € 8 610 (oito mil, seiscentos e dez euros);
- condenar o recorrido a pagar à recorrente juros de mora, a contar da citação, até integral pagamento, calculados à taxa de 4% ao ano e correspondentes taxas legais subsequentemente em vigor, sobre as quantias fixadas a título de indemnização dos custos com taxas de justiça (€ 3 284,13) e patrocínio judicial (€ 8 610).

II – Condenar a recorrente e o recorrido nas custas na proporção:
- de 24% e 79%, respectivamente, nesta instância de recurso.
- de 21% e 79%, respectivamente, em 1ª instância.
III – Registe e notifique.



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Lisboa, 15 de Dezembro de 2016


_________________________________________
(Catarina Jarmela - relatora)



_________________________________________
(Conceição Silvestre)



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(Carlos Araújo)