Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:2164/07.3BELSB
Secção:CT
Data do Acordão:09/17/2020
Relator:CATARINA ALMEIDA E SOUSA
Descritores:EMBARGOS DE TERCEIRO
FALTA DE INQUIRIÇÃO DAS TESTEMUNHAS ARROLADAS
FUNDAMENTAÇÃO DA SENTENÇA
CESSÃO DE EXPLORAÇÃO DE ESTABELECIMENTO COMERCIAL - PENHORA
Sumário:I - A falta de inquirição de testemunhas não constitui nulidade porque não surge como diligência cuja realização se imponha inelutavelmente ao juiz, antes cabendo a este avaliar se a questão a dirimir no processo é meramente de direito ou, sendo também de facto, constam do processo todos os elementos pertinentes para a decisão e, nesse caso, decidir-se pelo imediato conhecimento do pedido.
II - É nula a sentença, além do mais, quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão. Para que a sentença padeça do vício que consubstancia esta nulidade é necessário que a falta de fundamentação seja absoluta, não bastando que a justificação da decisão se mostre deficiente, incompleta ou não convincente.
III - Ceder um estabelecimento comercial é um acto complexo, que consiste na entrega e transferência de exploração como um todo, de uma unidade económica de modo oneroso e por tempo indeterminado, com a obrigação de no estabelecimento continuar a ser praticado o mesmo ramo de negócio, com a faculdade de utilizar todos os móveis e utensílios, bem como do prédio onde a unidade do estabelecimento se encontra implantada, quer tenha estado ou não em funcionamento.
IV - De acordo com o artigo 819º do CC, sem prejuízo das regras do registo, são inoponíveis em relação à execução os actos de disposição, oneração ou arrendamento dos bens penhorados, pois que tais actos respeitantes aos bens penhorados comprometeriam a função da penhora se tivessem eficácia plena.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes que compõem a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul

I – RELATÓRIO

A K... – Hotelaria e Similares, SA, inconformada com a sentença do Tribunal Tributário de Lisboa que julgou improcedentes os embargos de terceiro deduzidos no âmbito dos processos de execução fiscal nº 3... e apensos e nº 3... e apensos, instaurados pelo Serviço de Finanças de Lisboa 8, contra a C... - P... SA, para cobrança coerciva de dívidas de IVA dos anos de 2002 a 2004, dela veio interpor o presente recurso jurisdicional.

Os embargos dirigem-se à penhora dos direitos de exploração dos estabelecimentos comerciais denominados K..., Kr..., Ka... e R....

A alegação recursória termina com o seguinte quadro conclusivo:


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Não foram apresentadas contra-alegações.

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O recurso jurisdicional foi inicialmente dirigido ao Supremo Tribunal Administrativo (STA), o qual se declarou incompetente em razão da hierarquia.

Na sequência de tal, os autos foram remetidos a este Tribunal Central Administrativo.


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Já no TCA Sul, o Exmo. Magistrado do Ministério Público (EMMP) emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso.

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Colhidos os vistos legais, vêm os autos à conferência para decisão.

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Conforme entendimento pacífico dos Tribunais Superiores, são as conclusões extraídas pelo recorrente, a partir da respectiva motivação, que operam a fixação e delimitação do objecto dos recursos que àqueles são submetidos, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que, face à lei, sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer.

Assim sendo, as questões que constituem objecto do presente recurso, são as seguintes:

(i) Saber se foi praticada a nulidade absoluta correspondente ao indeferimento dos “meios de prova, sem que previamente tenha sido notificada (leia-se, a Recorrente) para se pronunciar”, em violação do artigo 3º, nº 3 do CPC;

(ii) – Saber se a sentença errou na apreciação da matéria de facto, dela retirando um incorrecto juízo quanto à qualificação jurídica do denominado “direito pessoal de gozo” e, bem assim, quanto à alegada prática concertada entre a executada e a embargante, o que determinou o erro de julgamento quanto à não verificação de um dos pressupostos da procedência dos embargos;

(iii) – Saber se a sentença padece de uma insuficiente discriminação/fundamentação dos factos dados como provados.


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2 - FUNDAMENTAÇÃO

2.1. De facto

É a seguinte a decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida:

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2.2. De direito

Convocando o disposto no artigo 237º do CPPT, a Mma. Juíza a quo, embora tenha considerado reunidos, no caso, os requisitos da tempestividade da petição de embargos e da qualidade de terceiro por parte da embargante, ora Recorrente, julgou os embargos improcedentes com fundamento em que não se verifica o requisito da invocada ofensa da posse ou de qualquer outro direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência aqui sindicada.

No essencial e em resumo, considerou o TT de Lisboa que da factualidade provada resulta que a embargante celebrou um contrato de cessão de exploração de estabelecimento comercial, tendo, pois, adquirido um direito pessoal de gozo e, assim, mesmo a admitir-se que o cessionário — enquanto possuidor precário — possa socorrer-se dos meios de defesa da posse e embargos de terceiro, esse direito pessoal de gozo não é, no caso concreto dos autos, incompatível com as diligências de penhora realizadas nos processos de execução fiscal (melhor identificadas nas alíneas C) a I) e N) a P) do probatório), sendo notório que os actos de penhora precederam a respectiva aquisição do direito de exploração dos estabelecimentos comerciais e estando verificada, por isso, a previsão do artigo 820º do CCivil, nos termos do qual, “sendo penhorado algum crédito do devedor, a extinção dele por causa dependente da vontade do executado ou do seu devedor, verificada depois da penhora, é inoponível à execução”. Ou seja, não pode, pois, a posterior aquisição, pela embargante, do direito de exploração dos estabelecimentos comerciais “K...”, “Kr...”, “Ka...” e “R...” ser eficaz em relação ao exequente.

A Recorrente discorda da conclusão retirada pelo TT de Lisboa na sentença ora recorrida, nos termos já assinalados nas questões autonomizadas em (i), (ii) e (iii).

Vejamos, então, o que nos vem pedido que apreciemos neste recurso, começando pela questão indicada em (i) supra, a saber: se foi praticada a nulidade absoluta correspondente ao indeferimento dos “meios de prova, sem que previamente tenha sido notificada (leia-se, a Recorrente) para se pronunciar”, em violação do artigo 3º, nº 3 do CPC.

Tenhamos presentes as seguintes ocorrências processuais:

- na p.i, a Embargante arrolou 4 testemunhas;

- a Embargante, notificada da contestação apresentada pela FP, veio expressar o seu entendimento no sentido de que “a matéria de facto carreada para os autos se encontra provada” e que “não se encontrado impugnada a matéria de facto alegada pela embargante a mesma não carece de prova em juízo para que possa proceder o pedido formulado pela embargante” – cfr. fls. 175;

- a fls. 187 foi proferido despacho judicial com, além do mais, o seguinte teor:

“Salvo melhor opinião, encontra-se reunida nos autos a prova necessária à prolação de decisão final, pelo que dispenso a realização da diligência de produção de prova testemunhal.

Notifique”;

- tal despacho foi notificado às partes, as quais nada disseram;

- seguidamente, foi emitido parecer pelo EMMP junto do TT de Lisboa – cfr. fls. 192 e 193;

- após, foi proferida sentença.

Como os Tribunais Superiores repetidamente têm sustentado, a falta de produção da prova testemunhal oferecida não constitui nulidade processual (neste sentido, entre muitos outros, os acórdãos da SCT do STA, de 28/10/13, processo n.º 388/13; de 27/11/13, processo n.º 1159/09; de 9/04/14, processo n.º 1869/13; de 14/09/16, processo nº 946/16).

Como se lê no último aresto citado, e que vale por tantos outros, “Nulidades processuais são desvios do formalismo processual seguido em relação ao formalismo processual prescrito na lei e a que esta faça corresponder – embora não de modo expresso – uma invalidação mais ou menos extensa de actos processuais (Vide MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pág. 176.). Ora, a falta de inquirição das testemunhas não consta do rol exaustivo de nulidades insanáveis constante do art. 98.º do CPPT, nem constitui uma nulidade processual à luz do regime do art. 195.º e segs. do CPC, segundo o qual «a prática de um acto que a lei não admita, bem como a omissão de um acto ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa».

Ou seja, as nulidades, enquanto violações da lei processual, têm que revestir uma de três formas: (i) prática de um acto proibido; (ii) omissão de um acto prescrito na lei; (iii) realização de um acto imposto ou permitido por lei, mas sem as formalidades requeridas. Concomitantemente, têm de poder influir no exame ou na decisão da causa (Como salienta JORGE LOPES DE SOUSA, Código de Procedimento e de Processo Tributário anotado e comentado, Áreas Editora, 6.ª edição, volume II, anotação 9 d) ao art. 98.º, pág. 87, «como decorre do citado art. 201.º, n.º 1, do CPC [hoje, 195.º], na falta de norma especial que comine a sanção de nulidade para determinada irregularidade, estas só produzem nulidade quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa. Isto significa que, quando não há tal possibilidade de influência, não há nulidade, mas também que, para haver nulidade basta a mera possibilidade de influência da irregularidade na decisão da causa, não dependendo a existência de uma nulidade da demonstração de que houve efectivo prejuízo. No entanto, se se demonstrar positivamente que a irregularidade que tinha potencialidade para influenciar a decisão da causa acabou por não ter qualquer influência negativa para a parte a quem o cumprimento da formalidade ou o eliminação do acto indevidamente praticado podia interessar, a nulidade deverá considerar-se sanada, pois, nessas condições, seria cumprir essa formalidade ou eliminar o acto indevidamente praticado».).

Ora, a falta de inquirição de testemunhas não constitui nulidade porque não surge como diligência cuja realização se imponha inelutavelmente ao juiz, antes cabendo a este avaliar se a questão a dirimir no processo é meramente de direito ou, sendo também de facto, constam do processo todos os elementos pertinentes para a decisão e, nesse caso, decidir-se pelo imediato conhecimento do pedido.

Compete ao juiz aferir da necessidade ou não de produzir prova, decidindo «se deve ou não realizar diligências que forem requeridas, podendo oficiosamente realizar as diligências que entender úteis para a descoberta da verdade, em relação aos factos alegados ou de que oficiosamente possa conhecer (art. 99.º, n.º 1, da LGT)» (JORGE LOPES DE SOUSA, ob. cit., IV volume, anotação 8 g) ao art. 278.º, págs. 312/313.).

Ou seja, a lei não prescreve que deve haver sempre lugar a produção de prova, antes conferindo ao juiz o poder de ajuizar da necessidade da sua produção; pelo que, não havendo essa imposição legal, se o juiz dispensa a produção de prova não se pode dizer que foi preterida uma formalidade legal geradora de nulidade processual.

O que não obsta a que a omissão de diligências de prova, quando existam factos controvertidos que possam relevar para a decisão da causa, possa afectar o julgamento da matéria de facto, acarretando a anulação da sentença por défice instrutório com vista a obter o devido apuramento dos factos. Por conseguinte, se a avaliação efectuada pelo juiz – que suporta a decisão de prescindir da inquirição das testemunhas arroladas – estiver inquinada de erro, por, ao contrário do que ele julgou, os elementos disponíveis nos autos não serem suficientes para permitir um cabal conhecimento das causas de pedir e do pedido formulado, esse erro inquinará o valor doutrinal da sentença que venha a ser proferida, por insuficiência da matéria de facto e/ou erro de julgamento de facto”.

Regressando ao caso sub judice, a Senhora Juíza do Tribunal a quo considerou dispensável a inquirição das testemunhas e essa dispensa, nos termos que deixámos referidos, não constitui nulidade processual.

Diga-se, ainda, que mal se percebe o alcance da afirmação da Recorrente segundo a qual o indeferimento da produção da prova testemunhal não foi precedido da sua notificação para sobre tal se pronunciar (em violação do artigo 3º, nº 3 do CPC), já que, como dos autos emerge, o despacho de fls. 187, acima transcrito, foi comunicado à Embargante que, aliás, contra o mesmo não reagiu.

Como se referiu já, saber se os elementos disponíveis nos autos são suficientes para uma completa apreciação das questões colocadas e do pedido enunciado, é matéria a que regressaremos mais adiante.

Concluindo, e sem necessidade de maiores desenvolvimentos, improcede a arguida nulidade processual e as conclusões 1, 2 e 3 que lhe estão subjacentes.


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Impõe-se que passemos à análise da questão da falta de discriminação/fundamentação da matéria de facto, a que nos reportámos em (iii) supra.

Com efeito, defende a Recorrente que “A sentença recorrida não discriminou os factos dados como provados em que se baseou no alegado acto concertado entre o executado e o devedor, pois, alega sem qualquer fundamentação de prova carreada nos autos que sustente tal interpretação”.

Vejamos.

Dispõe o nº 2 do artigo 123º do CPPT, respeitante à sentença, que “O juiz discriminará também a matéria provada da não provada, fundamentando as suas decisões.”

Por seu turno, de acordo com o 125º, nº 1 do mesmo diploma “Constituem causas de nulidade da sentença a falta de assinatura do juiz, a não especificação dos fundamentos de facto e de direito da decisão, a oposição dos fundamentos com a decisão, a falta de pronúncia sobre questões que o juiz deva apreciar ou a pronúncia sobre questões que não deva conhecer”.

Recuperando acórdão deste TCA, de 28/09/17, proferido no processo nº 105/17.9 BCLSB, em cujo colectivo interviemos, deve ter-se presente que “Nos termos do preceituado no citado artº.615, nº.1, al.b), do C.P.Civil, é nula a sentença, além do mais, quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão. Para que a sentença padeça do vício que consubstancia esta nulidade é necessário que a falta de fundamentação seja absoluta, não bastando que a justificação da decisão se mostre deficiente, incompleta ou não convincente. Por outras palavras, o que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação, tanto de facto, como de direito. Já a mera insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, podendo afectar o valor doutrinal da sentença, sujeitando-a ao risco de ser revogada em recurso, mas não produz nulidade. Igualmente não sendo a eventual falta de exame crítico da prova produzida (cfr.artº.607, nº.4, do C.P.Civil) que preenche a nulidade sob apreciação (cfr.Prof. Alberto dos Reis, C.P.Civil anotado, V, Coimbra Editora, 1984, pág.139 a 141; Antunes Varela e Outros, Manual de Processo Civil, 2ª. Edição, Coimbra Editora, 1985, pág.687 a 689; Luís Filipe Brites Lameiras, Notas Práticas ao Regime dos Recursos em Processo Civil, 2ª. edição, Almedina, 2009, pág.36).

No processo judicial tributário o vício de não especificação dos fundamentos de facto e de direito da decisão, como causa de nulidade da sentença, está previsto no artº.125, nº.1, do C.P.P.Tributário, norma onde estão consagrados todos os vícios (e não quaisquer outros) susceptíveis de ferir de nulidade a sentença proferida (cfr.Jorge Lopes de Sousa, C.P.P.Tributário anotado e comentado, II volume, Áreas Editora, 6ª. edição, 2011, pág.357 e seg.; ac.S.T.A-2ª.Secção, 24/2/2011, rec.871/10; ac.S.T.A-2ª.Secção, 13/10/2010, rec.218/10; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 28/5/2013, proc.6406/13; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 31/10/2013, proc.6531/13).

Analisando, agora, a questão do exame crítico da prova, dir-se-á que a nulidade em causa (não especificação dos fundamentos de facto da decisão) abrange não só a falta de especificação dos factos provados e não provados, conforme exige o artº.123, nº.2, do C.P.P.T., igualmente podendo nela enquadrar-se a falta de exame crítico da prova, requisito previsto no actual artº.607, nº.4, do C.P.Civil (cfr.Jorge Lopes de Sousa, C.P.P.Tributário anotado e comentado, II volume, Áreas Editora, 6ª. edição, 2011, pág.358; ac.S.T.A-2ª.Secção, 12/2/2003, rec.1850/02; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 10/7/2015, proc.8473/15; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 5/11/2015, proc.8773/15; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 16/12/2015, proc.6439/13).

Na realidade, a fundamentação de facto da decisão judicial deve incluir, não só a indicação dos elementos de prova que foram utilizados para formar a convicção do juiz, como a sua apreciação crítica, sendo caso disso, de forma a ser possível conhecer as razões por que se decidiu no sentido em que o foi e não noutro. Assim, a fundamentação de facto não deve limitar-se à mera indicação dos meios de prova em que assentou o juízo probatório sobre cada facto, devendo revelar o itinerário cognoscitivo e valorativo seguido pelo juiz ao decidir como decidiu sobre todos os pontos da matéria de facto, tudo dependendo do meio probatório em causa. Nos casos em que os elementos probatórios tenham um valor objectivo (como sucede, na maior parte dos casos, com a prova documental) a revelação das razões por que se decidiu dar como provados determinados factos poderá ser atingida com a mera indicação dos respectivos meios de prova, sem prejuízo da necessidade de fazer uma apreciação crítica, quando for questionável o valor probatório de algum ou alguns documentos ou existirem documentos que apontam em sentidos contraditórios. Já quando se tratar de meios de prova susceptíveis de avaliação subjectiva (como sucede com a prova testemunhal) será indispensável, para atingir tal objectivo de revelação das razões da decisão, que seja efectuada uma apreciação crítica da prova, traduzida na indicação das razões por que se deu ou não valor probatório a determinados elementos de prova ou se deu preferência probatória a determinados elementos em prejuízo de outros, relativamente a cada um dos factos face aos quais essa apreciação seja necessária (cfr.Jorge Lopes de Sousa, C.P.P.Tributário anotado e comentado, II volume, Áreas Editora, 6ª. edição, 2011, pág.321 e seg.; ac.S.T.A-2ª.Secção, 15/4/2009, rec.1115/08; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 10/7/2015, proc.8473/15; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 5/11/2015, proc.8773/15; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 16/12/2015, proc.6439/13)”.

No caso concreto, tendo presente o circunstancialismo de facto fixado, não restam dúvidas que são expressamente discriminados no probatório todos factos que importaram para a decisão da causa, sendo certo que a Mma. Juíza não deixou de evidenciar, com detalhe e sem margem para equívocos, a base documental para a decisão proferida.

Nesta conformidade, considerando as referências supra exaradas à fundamentação da decisão de facto constante da sentença, deve julgar-se improcedente a alegação da Recorrente, visto que o vício que consubstancia esta nulidade, conforme mencionado acima, consiste na falta de fundamentação absoluta, não bastando que a justificação da decisão se mostre deficiente, incompleta ou não convincente.

Tendo presente, aliás, o conteúdo das conclusões 6) e 7), que dão a base argumentativa à conclusão expressa em 8), dir-se-á ainda, parafraseando o EMMP junto do STA (cfr. parecer de fls. 276 e ss), que “inexiste omissão de matéria de facto relativamente ao que vem alegado nas Conclusões 6 a 8 – “acto concertado entre o executado e o devedor”. O que a esse propósito unicamente se diz na sentença recorrida, comentando o artigo 820º do CC, é que o preceito visa “obstar a que o exequente seja prejudicado deliberadamente por acto concertado entre o executado e o devedor”.

Para vermos que assim é basta ler atentamente a asserção onde se escreveu o seguinte - a propósito do enquadramento legal correspondente aos artigos 819º e 820º do CC - expondo, além do mais, o alcance da norma respeitante à disposição ou oneração dos bens penhorados e, bem assim, a ratio legis subjacente ao preceito relativo à penhora de créditos:

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Em suma, e concluindo, improcede também a questão que vimos de analisar.


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Avançando para a última questão que aqui nos ocupará, ou seja, e tal como formulada, saber se a sentença errou na apreciação da matéria de facto, dela retirando um incorrecto juízo quanto à qualificação jurídica do denominado “direito pessoal de gozo” e, bem assim, quanto à alegada prática concertada entre a executada e a embargante, o que determinou o erro de julgamento quanto à não verificação de um dos pressupostos da procedência dos embargos.

A este propósito, defende a Recorrente que não é de aceitar “a qualificação jurídica vertida na sentença proferida a fls. 15, denominada de “direito pessoal de gozo”, em que o devedor é o senhorio e o credor o inquilino, porque na realidade o que se verificou foi a denuncia do contrato de cessão de exploração com a executada”. Mais refere que a Embargante “não tem qualquer contrato nem nunca teve com a Executada”, pois o mesmo foi anteriormente denunciado pela proprietária do locado. A sentença, no entendimento da Recorrente, tem subjacente uma prática concertada entre a Executada e a Embargante, a qual, contudo, não está demonstrada. De resto, “a prova carreada para os autos é a de que o contrato com a executada foi valida e legalmente denunciado e que só posteriormente foi celebrado novo contrato com a Embargante, pelo que a penhora caducou com a denuncia do contrato, pois a terceira embargante não pode ser lesada com as vicissitudes pretéritas do locado, sob pena de não haver segurança nos contratos”.

Vejamos, então, o que se nos oferece dizer a este propósito.

Como se percebe, está em causa a penhora de direitos de exploração de quatro estabelecimentos comerciais já identificados.

Em termos muito sucintos, pode dizer-se que o estabelecimento comercial se consubstancia num complexo de elementos heterogéneos, corpóreos e incorpóreos, integrados numa organização dinâmica destinada ao exercício de uma atividade económica comercial, configurável como universalidade de direito.

Assim, segundo FERRER CORREIA:

«[…] na sua acepção mais lata e em sentido objectivo, estabelecimento comercial vem significar o mesmo que o complexo da organização comercial do comerciante, o seu negócio em movimento ou apto para entrar em movimento.

Tal organização versa, antes de mais nada, sobre um conjunto de bens de variada natureza: coisas corpóreas, móveis ou imóveis – dinheiro, títulos de crédito, mercadorias, máquinas, mobiliário, prédios – e incorpóreas ou imateriais: patentes de invenção, modelos e desenhos industriais, marcas, o nome ou insígnia do estabelecimento, a própria firma, os próprios direitos ou relações jurídicas como instrumentos do exercício do comércio. De resto, esses bens podem não pertencer em propriedade ao titular do mesmo estabelecimento: o que importa é que ele os possa utilizar (e tenha nessa medida a sua disponibilidade) para os fins da empresa.

Em segundo lugar, o estabelecimento é, normalmente, uma organização de serviços ou de pessoas. (…) Sem esse elemento pessoal, a empresa não poderia funcionar.

Por último, como elementos necessários à vitalidade da empresa, há que aludir ainda, de um lado, “às relações com os fornecedores e os bancos, donde afluem as matérias primas e os capitais, do outro, às relações com a clientela que lhes absorve os produtos” (…). São essas relações de facto com valor económico (…) uma das manifestações mais relevantes da empresa organizada e um dos índices mais salientes da sua capacidade lucrativa, do seu aviamento» - vide, Lições de Direito Comercial, Vol. I, Universidade de Coimbra, 1973, p201-203, e estudo intitulado Reivindicação do estabelecimento comercial como unidade jurídica, in Estudos de Direito Civil Comercial e Criminal, Almedina, Coimbra, 1985, pp. 255 e segs. (255-256).

No mesmo sentido, ORLANDO DE CARVALHO define o estabelecimento comercial ou industrial como:

«uma organização concreta de factores produtivos com valor de posição no mercado, organização, portanto, que, concreta como é, exige um complexo de elementos ou meios em que a mesma radica e que a tornam reconhecível.» - vide, Direito das Coisas, Coimbra, 1977, p. 196.

Como resulta do ac. do Tribunal da Relação de Lisboa, de 08/04/97, in, CJ, Ano XXII, T2,91) “ceder um estabelecimento comercial é um acto complexo, que consiste na entrega e transferência de exploração como um todo, de uma unidade económica de modo oneroso e por tempo indeterminado, com a obrigação de no estabelecimento continuar a ser praticado o mesmo ramo de negócio, com a faculdade de utilizar todos os móveis e utensílios, bem como do prédio onde a unidade do estabelecimento se encontra implantada, quer tenha estado ou não em funcionamento”.

Tal contrato regula-se pelas estipulações das partes (artigo 405º do CC) e, subsidiariamente, pelas normas do contrato típico de estrutura mais próxima, o de arrendamento para o exercício do comércio. Na falta de umas e outras normas, valem as regras gerais dos contratos – neste sentido, o acórdão proferido no processo nº 1558/04.0TBVRL.P1, de 09/06/09, do TRP e diversa jurisprudência aí citada a propósito.

Ainda neste enquadramento geral, não percamos de vista que, como a sentença não deixou de assinalar, não se confunde o contrato de arrendamento comercial com o de cessão de exploração comercial. São contratos diferentes, na medida em que “o primeiro consiste na cedência temporária do gozo de um imóvel mediante retribuição, com o fim de aí ser exercida uma qualquer actividade comercial ou industrial, enquanto o segundo consiste na cedência temporária, mediante retribuição, da unidade económica constituída por um determinado estabelecimento comercial, do qual faz parte a fruição do imóvel onde ele está instalado” – ac. proferido no processo nº 1289/09.5TBFUN.L1-6, de 28/06/12, do TRL.

Ora sobre o caso concreto, a sentença pronunciou-se, além do mais, nos seguintes termos:


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(…)”

A Recorrente discorda do decidido, nos termos já expostos.

Não tem razão, porém, mostrando-se a sentença absolutamente clara, detalhada e acertada, dispensando-nos, aliás, de desenvolvimentos aturados, até porque a Recorrente não traz à discussão elementos novos que infirmem o julgamento feito pelo TT de Lisboa.

Vejamos.

Em primeiro lugar, importa confirmar o entendimento da sentença quanto à natureza de direito pessoal de gozo adquirido, em resultado da celebração do contrato de cessão de exploração de estabelecimento comercial.

De acordo com os ensinamentos de Henrique Mesquita (vide, Obrigações Reais e Ónus Reais, 1990, pág. 50/511), o que caracteriza os direitos pessoais de gozo e lhes confere especificidade, quando confrontados com outros direitos de natureza creditória, é apenas a circunstância de possibilitarem ao titular, com vista à satisfação do seu interesse, o gozo directo e autónomo de determinada coisa. O direito pessoal de gozo apresenta-se inicialmente como direito a uma prestação, para depois a actividade do titular (o gozo) se centrar directamente sobre a coisa. Mas o poder de gozo mantém-se sempre intimamente conexionado com a relação pessoal ou obrigacional que lhe subjaz. Este direito de gozo há-de dimanar duma vinculação obrigacional daquele a quem competia o gozo da coisa, ainda segundo Henrique Mesquita.

O direito pessoal de gozo confere ao seu titular não só um direito pessoal ou obrigacional, mas também a posse do direito adquirido, defendendo expressamente Vaz Serra (vide, RLJ, Ano 100, pág. 173) que os direitos pessoais de gozo de uma coisa são direitos susceptíveis de posse.

Contrariamente ao que a Recorrente parece sustentar, o Tribunal não desvalorizou ou não deixou de retirar as devidas consequências das denúncias do contatos verificadas em 15/02/05, denúncias estas relativas aos contratos por meio dos quais foi atribuído à sociedade executada o direito de exploração dos estabelecimentos comerciais K..., Kr..., Ka... e R..., realçando a Recorrente que nunca celebrou qualquer contrato com a executada.

A verdade é que – e isso releva – a denúncia dos contratos, operada em Fevereiro de 2005, ocorreu em momento posterior à penhora dos direitos de exploração dos estabelecimentos comerciais, a qual teve lugar (e foi comunicada) em Outubro de 2004.

Ora, de acordo com o artigo 819º do CC, sem prejuízo das regras do registo, são inoponíveis em relação à execução os actos de disposição, oneração ou arrendamento dos bens penhorados, pois que tais actos respeitantes aos bens penhorados comprometeriam a função da penhora se tivessem eficácia plena.

Contrariamente ao defendido pelo Recorrente, e na linha do ressaltado pelo EMMP junto do STA, carece totalmente de sentido, e de suporte legal, a afirmação de que a penhora caducou com a denúncia, sendo que nem a denúncia do primitivo contrato, nem a celebração de novo contrato de cessão de exploração do estabelecimento podem implicar a caducidade da penhora, desde logo porque os direitos penhorados não se extinguiram, antes subsistem na ordem jurídica, estando corporizados nos contratos identificados nos autos de penhora em que a posição contratual do primitivo cessionário veio a ser transmitida à Embargante.

Por seu turno, como a sentença evidenciou, o artigo 820º do CC preceitua que “sendo penhorado algum crédito do devedor, a extinção dele por causa dependente da vontade do executado ou do seu devedor, verificada depois da penhora, é igualmente inoponível à execução.”, o que bem se compreende para não comprometer a posição do exequente em resultado de vontade do executado ou do seu devedor.

Repudia-se aqui a alegação da Recorrente no sentido de que a sentença faz uso de um circunstancialismo que não resulta demonstrado, qual seja o da prática concertada entre a executada e a embargante. Note-se que a sentença recorre a tal expressão, se bem a interpretamos, para exprimir a ratio legis do artigo 820º, do CC e aí é claro que a extinção do crédito penhorado por vontade do devedor ou executado é, sem mais (sem reclamar outra demonstração factual), inoponível à execução.

Desta forma, sem necessidade de maiores considerações, confirma-se a sentença recorrida, reiterando-se que a aquisição pela K... do direito à exploração dos quatro identificados estabelecimentos comerciais não é eficaz em relação à exequente, Fazenda Pública.

Improcedem, pois, todas as conclusões da alegação de recurso.

Mantém-se, assim, a sentença recorrida que julgou improcedentes os embargos.


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III - DECISÃO

Termos em que, acordam os juízes da Secção do Contencioso Tributário do TCA Sul em negar provimento ao recurso e manter a sentença recorrida.

Custas pela Recorrente.

Lisboa, 17 de Setembro de 2020


(Catarina Almeida e Sousa)

(Hélia Gameiro)

(Cristina Carvalho)