Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1596/16.0BELSB
Secção:CA-2º JUÍZO
Data do Acordão:10/04/2017
Relator:PAULO PEREIRA GOUVEIA
Descritores:AQUISIÇÃO DA NACIONALIDADE PORTUGUESA
“ÓNUS” DA PROVA
Sumário:I – O chamado “ónus” da prova consagrado no ordenamento jurídico português é uma regra ou critério material dirigido ao juiz. Tem natureza objetiva e não subjetiva, pois independe da posição processual das partes e é compatível com os princípios da aquisição processual e do inquisitório.

II – Numa situação de dúvida sobre a realidade dos factos essenciais à pretensão da parte ou de falta de qualquer demonstração dos mesmos, o juiz, com base nas regras gerais de distribuição do “ónus” objetivo da prova (arts. 342º e 343º do C.C.), tem a obrigação de decidir contra essa parte; sem prejuízo das exceções ou regras especiais previstas na lei.

III – Tendo presente os Acs. de UJ do S.T.A. nº 3/2016 e nº 4/2016, (i) se, numa ação de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa, o processo não adquirir, a final, quaisquer factos (essenciais) para o juiz os integrar no conceito indeterminado “inexistência de ligação efetiva à comunidade nacional”, ou (ii) se o juiz ficar na dúvida sobre tais factos-fundamento, a ação improcederá (precisamente por falta, insuficiência ou dúvida quanto aos factos-fundamento da pretensão).

IV – Neste contexto, este tipo de ação não pode ser considerada uma ação de simples apreciação negativa imposta pela lei ao MP
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Secção do Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

I. RELATÓRIO

· O MINISTÉRIO PÚBLICO, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 9.º e segs. da Lei nº 37/81, de 3 de outubro (Lei da Nacionalidade), na redação introduzida pela Lei nº 2/2006, de 17 de abril, e artigos 56º e segs. do Decreto-Lei nº 237º-A/2006, de 14 de dezembro,

intentou no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa ação administrativa de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa contra

· IVAN …………………….., cidadão indiano.

Por sentença de 03-02-2017, o referido tribunal veio a prolatar decisão, onde julgou a ação improcedente, sem se referir diretamente ao pedido.

*

Inconformado com tal decisão, o autor interpôs o presente recurso de apelação, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:

1) Atendendo a que a redação dos nºs 1 e 2 do art. 3º da Lei nº 37/8 1. foi mantido pela Lei 2/2006, de 17 de abril, continua o estrangeiro casado há mais de três anos com nacional português. a poder adquirir, em determinadas circunstâncias, a nacionalidade 0ortuguesa.

2) No entanto, enquanto o art. 9°, na redação anterior, estabelecia que constituem fundamento de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa, designada mente, a "não comprovação, pelo interessado, de ligação efetiva à comunidade nacional";

3) Na redação atual refere-se que constituem fundamento de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa, designadamente a "inexistência de ligação efetiva á comunidade nacional".

4) Da leitura e análise dos arts 56° nº 2 e 57°, n.º e 7 do Regulamento da Nacionalidade, aprovado pelo DL nº 237-A/2006, de 14 de dezembro retira-se que deixou o legislador de exigir que o interessado comprove a sua ligação efetiva à comunidade nacional, sendo fundamento da oposição a "não comprovação" dessa ligação efetiva.

5) Ou seja, na atual lei não se faz menção a essa "não comprovação”, mas tão só à inexistência de ligação à comunidade nacional, devendo ser feita ao Ministério Público a participação de factos suscetíveis de fundamentarem a oposição.

6) É que o interessado passou a ter necessidade de "pronunciar-se sobre a existência de ligação efetiva à comunidade nacional", crendo-se que será a partir dessa pronúncia que o conservador poderá aquilatar da existência/inexistência de ligação à comunidade nacional e, no caso de se indiciar a inexistência, comunicá-lo ao Ministério Público para instauração da ação de oposição.

7) Em suma, no que tange à falta de ligação efetiva à comunidade nacional deverá o interessado, que pretende adquirir a nacionalidade portuguesa, considerando que lhe assiste esse direto, pronunciar-se sobre a existência daquela ligação.

8) Mas, constatando-se, face à. explicações apresentadas com vista à alegada ligação à comunidade nocional. que as razões aduzidas serão insuficientes para se concluir por essa ligação, levará à comunicação ao Ministério Público para a instauração do processo de oposição.

9) De resto. o artigo 9, al. a) da Lei da Nacionalidade estabelece um fundamento (negativo) de oposição à aquisição da nacionalidade, sendo que, a ação destinada à declaração da inexistência da ligação à comunidade portuguesa deve ser qualificada como uma ação de simples apreciação negativa: art. 10, nº 3, al. a) do NCPC.

10) Esta ação destinada à demonstração da inexistência da ligação à comunidade nacional é consequência de uma pretensão, junto dos Registos Centrais, por banda do interessado, que aí manifesta a sua intenção de adquirir a nacionalidade portuguesa.

11) Na instrução deste procedimento administrativo exige-se que o requerente do pedido de aquisição da nacionalidade, "pronúncia" sobre a existência de ligação efetiva à comunidade nacional, não podendo indiciar a falta dessa ligação, sob pena de recair sobre o Conservador dos Registos Centrais o dever de participar tal facto ao Ministério Público e sobre este o dever de intentar ação de oposição à aquisição de nacionalidade (n.ºs 1, 7 e 8 do artigo 57º do Regulamento da Nacionalidade).

12) Face à matéria factual e documental carreada aos autos, o tribunal a quo errou na análise que realizou dos factos que se mostram provados, na consideração de que " O Requerido tem ligação à comunidade portuguesa, pelos laços familiares suficientemente duradouros resultantes do casamento. O EMMP não requereu a produção de prova qualquer facto impeditivo da ligação efetiva a Portugal. Considera-se, pois, que não se mostra provado o fundamento de oposição deduzida.

13) Pois não é suficiente para instruir e deferir o pedido de aquisição da nacionalidade portuguesa, a vontade manifestada pelo Requerido, por ter celebrado casamento com cidadã portuguesa, já que o "casamento”, sendo um dos pressupostos legais, não tem por efeito " automático" a pretendida aquisição da nacionalidade portuguesa.

14) E da matéria factual apurada resulta apenas que o R. nasceu na Índia, reside no Qatar, sendo casado com uma cidadã de nacionalidade portuguesa desde 1997.

15) Ou seja, os factos provados não evidenciam a existência de persistentes elos que possam corporizar um sentimento de pertença perene à comunidade nacional, de modo a poder afirmar-se que o R. é psicológica e sociologicamente português, nada demonstrando que o seu trajeto de vida tenha abrangido, de forma relevante, a realidade portuguesa, uma vez que nunca residiu ou sequer trabalhou em Portugal.

16) Sendo claro e objetivo, ante tais factos, que não existe qualquer integração ou ligação efetiva, C" 1 material e continuada, deste cidadão estrangeiro à comunidade nacional portuguesa, sendo manifesta a omissão de prova, pelo Requerido, e de que não comprovou, de modo suficiente e convincente, ter preenchido o requisito da inserção na comunidade nacional.

17) Pelo que, face à matéria de facto dada como provada, deveria o Tribunal a quo, considerar que o R. não tinha ligação efetiva à comunidade portuguesa e, em consequência, declarar procedente a ação.

18) Ao não o fazer, o Tribunal a quo violou o disposto nos arts 9, al. a) da Lei da Nacionalidade, 56° nº 2, al a), 57°, nº 1, ambos do Regulamento da Nacionalidade, aprovado pelo DL nº 237-A/2006.

19) Pelo que a sentença recorrida, deve ser revogada e substituída por outra em que se declare a procedência da presente ação.

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O réu recorrido contra-alegou, concluindo assim:

1) Não podendo o recorrente afrontar diretamente a Lei e o Acórdão de uniformização de jurisprudência nº 3/2016 sobre o ónus da prova da ligação efetiva à comunidade nacional, sustentou que cabia ao interessado demonstrar no processo administrativo a existência de ligação efetiva à comunidade nacional. A referida tese não tem o menor cabimento legal, nem tampouco doutrinário.

2) Tendo o legislador de 2006 eliminado expressamente os requisitos da prova da ligação efetiva à comunidade através de prova documental e por depoimento do interessado, é forçoso concluir que tal deixou de ser obrigatório.

3) Assim, ao contrário do que sustentou o recorrente, após a reforma de 2006, o interessado não passou a ter de fazer prova da ligação efetiva à comunidade nacional perante o conservador do registo civil.

4) Na verdade, a reforma de 2006 veio precisamente eliminar tal ónus e requisitos até então a cargo do interessado, transferindo-os para o Ministério Público.

5) Ao contrário do que sustentou o Ministério Público, é pacífico na jurisprudência que a oposição à aquisição da nacionalidade não é uma ação de simples apreciação negativa, de onde decorreria que era ao interessado que cabia provar a existência da referida ligação efetiva. (vide Ac. do Supremo Tribunal Administrativo de 18/6/2015 (processo 01053/14) e disponível em www.dgsi.pt)

6) O teor das conclusões 12 a 15 do recurso do Ministério Público revela bem a profunda incompreensão sobre a estrutura da oposição à aquisição da nacionalidade e o papel do Ministério Público no referido processo. E demonstra de forma clara que, apesar de afirmar que não desconhece o Acórdão de uniformização de jurisprudência nº 3/2016, a verdade é que não o respeita e continua, na prática, a pugnar por uma solução que transforme o vazio, por falta de alegação e prova, em “inexistência de ligação efetiva”.

7) Atento o disposto no art. 414º do CPC, aplicável ex vi art. 1º do CPTA, cabendo ao A., ora recorrente, alegar e provar factos que permitam concluir pela inexistência de ligação efetiva à comunidade nacional, bem andou o Mmº Juiz a quo ao julgar improcedente a oposição concluindo que “O EMMP não requereu a produção de prova qualquer facto impeditivo da ligação efetiva a Portugal. Considera-se, pois, que não se mostra provado o fundamento de oposição deduzida”

8) O que releva para justificar a aquisição da nacionalidade (originária ou derivada) é que a ligação à comunidade nacional seja efetiva, isto é, que seja real, verdadeira, genuína; no que respeita ao cônjuge de cidadão português, a referida ligação efetiva afere-se pela

9) existência de uma relação matrimonial real, verdadeira, efetiva, acompanhada da declaração de vontade do interessado.

10) Ou, dito de outra forma, não haverá ligação efetiva à comunidade nacional por parte do cônjuge de cidadão português sempre que se trate de um “casamento branco”, i.e., de um casamento simulado, em que para lá da aparência formal, não exista efetivamente ligação à comunidade.

11) Os factos assentes no processo demonstram que existe uma ligação duradoura, estável e consistente com cidadãos portugueses, que permite concluir pela existência de um interesse sério e legítimo em adquirir a nacionalidade, sendo esse o meio adequado de realizar a unidade da nacionalidade familiar.

12) Ao contrário do que sustentou o Ministério Público, a inexistência de ligação efetiva à comunidade nacional não é, nem pode ser encarada como impondo uma verdadeira assimilação cultural e sociológica de um tipo ideal de português nascido, criado ou residente em Portugal. E tal conceito não pode prevalecer, pelas seguintes ordens de razão:

-Desde logo, porque a Lei não o exige;

-Porque tais exigências - restritivas de um direito fundamental - são manifestamente incompatíveis com o disposto no art. 18º nºs 2 e 3 da CRP, uma vez que são vagas, incertas, arbitrárias e potencialmente discriminatórias; e ainda

-Finalmente, porque um tal conceito criaria uma inadmissível discriminação entre a comunidade dos cidadãos nascidos ou residentes em Portugal e os portugueses nascidos ou residentes no estrangeiro, quando os mesmos são perfeitamente iguais perante a Lei e a Constituição, ofendendo o disposto no art. 13º da CRP.

13) Conforme resulta do exposto, a oposição à aquisição de nacionalidade portuguesa baseada na inexistência de ligação efetiva por parte de cônjuge de cidadão português só poderá ser julgada procedente quando se provar que a referida ligação não é real – nomeadamente por o casamento ser simulado – ou que é meramente instrumental para servir de fundamento à aquisição da nacionalidade, ou ainda, eventualmente, se existirem factos que tornem o interessado de tal forma indesejável para o seio da comunidade portuguesa (de Portugal e do resto do Mundo) que se sobreponha ao princípio da unidade familiar e da vontade do indivíduo, dividindo a família e deixando um dos seus membros de fora. Tais razões são, naturalmente, excecionais, como alias entende a doutrina mais avisada.

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Cumpridos os demais trâmites processuais, importa agora apreciar e decidir em conferência.

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II. FUNDAMENTAÇÃO

II.1. FACTOS PROVADOS

1. O Requerido é natural de Bombai, República da Índia, onde nasceu em 11.4.1969, sendo filho de Reman ………………. (cf. doc. de fls. 29 dos autos).

2. O Requerido contraiu casamento em 5.01.1997, com a cidadã portuguesa Maria ……………., conforme certidão junta a fls. 6 dos autos.

3. Em 22.09.2015, prestou a declaração para aquisição da nacionalidade portuguesa, nos termos do artigo 3° da Lei 37/81, de 03.10, com base no referido casamento, tendo declarado através de inscrição de X (Sim) do impresso respetivo na resposta à pergunta “Tem ligação efetiva à comunidade portuguesa?”.

4. A partir de tal declaração, foi instaurado na Conservatória dos Registos Centrais o processo nº. 34574/15, onde se observou onde se observou a existência de facto impeditivo à pretensão da Requerida, razão pela qual o registo em questão não chegou a ser lavrado e por esta razão o registo em questão não chegou a ser lavrado (cf. doc. junto aos autos).

5. O Requerido reside atualmente no Qatar com a sua mulher e filhos;

6. O Requerido e a sua mulher têm dois filhos, nascidos em 26.04.1998 e 8.06.2001, cf. DOCs. juntos aos autos.

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II.2. APRECIAÇÃO DO RECURSO

Aqui chegados, há, pois, condições para se compreender esta apelação e para, num dos momentos da verdade do Estado de Direito (o do controlo jurisdicional), ter omnipresentes, “inter alia”, os seguintes princípios jurídicos fundamentais: (i) juridicidade e legalidade da administração pública, ao serviço do bem (no sentido grego original, "agathós") comum; (ii) igualdade de tratamento material axiológico de todas as pessoas humanas, que têm todas a mesma dignidade; (iii) certeza e segurança jurídicas; e (iv) tutela jurisdicional efetiva dos direitos das pessoas.

Na decisão jurisdicional, o tribunal, no pressuposto da existência prévia de lei no sentido do artigo 1º/2/1ª parte do Código Civil, procede a várias operações consecutivas relativas à correção externa e à correção interna da sua decisão: (1ª) a obtenção legal racional da premissa menor da sentença, isto é, da factualidade relevante; (2ª) a interpretação jurídica prescritiva das fontes de direito, de acordo com os artigos 9º e 10º do Código Civil e orientada pela CRP (em que o tribunal deve ter particular contenção na utilização do delicado argumento teleológico-objetivo, face aos artigos 3º/3, 111º/1, 203º e 204º da CRP), para obtenção da premissa maior; e, finalmente, (3ª) a escolha racional-prática da solução que, no estrito espectro das possibilidades reveladas pelo direito objetivo aplicável, (i) seja aceitável de um ponto de vista jurídico-racional e (ii) possa ser generalizável para casos análogos futuros (cf. artigos 2º, 13º e 202º ss da CRP e artigos 8º ss do Código Civil). Os momentos 2º e 3º representam aquilo que Hans Kelsen considerava como a “interpretação jurídica autêntica”.

OBJETO DO RECURSO:

Erro de direito quanto à demonstração da inexistência de ligação efetiva do réu à comunidade nacional portuguesa.

Vejamos.

Do erro de direito quanto à demonstração da inexistência de ligação efetiva da ré à comunidade nacional portuguesa

1.

Na verdade, como veremos, está em causa saber se os factos adquiridos no processo ao abrigo dos arts. 410º a 414º do C.P.C., permitem ou não ao juiz concluir que o réu não tem ligação efetiva à comunidade nacional portuguesa (cf. arts. 9º/a) da LN e 56º/1/2-a) do RN).

O TAC, com os factos provados atrás descritos, absolveu o réu do pedido (declaração de inexistência da cit. ligação; um puro pedido de simples apreciação negativa), porque o MP não teria satisfeito o “ónus” da prova (não de factos, mas) do requisito ou condição de procedência desta ação, que é a “inexistência de ligação efetiva à nação portuguesa” (cf. ANSELMO DE CASTRO, DPCD, III, p. 351).

Portanto e baseados no regime português da distribuição da carga da prova dos factos essenciais, concluímos que o TAC terá considerado, antes de decidir sobre a matéria de facto, que tinha uma dúvida insanável sobre a realidade dos factos relativos à verificação da condição de procedência desta ação que é a “inexistência de ligação efetiva à nação portuguesa”. Porém, o TAC talvez tenha sido influenciado por uma discussão sobre um tema hoje um pouco residual, mas abordado, i.a., na seguinte jurisprudência:

- Acs. de UJ do S.T.A. nº 3/16 e nº 4/2016(1), e

- Acs. deste T.C.A. Sul 11-06-2015, p. nº 12086/15, de 16-12-2015, p. nº 12527/15, de 10-03-2016, p. nº 12843/15, e de 19-05-2016, p. nº 12987/16.

Com efeito, em lado algum o TAC referiu a falta de factos essenciais ou ter uma dúvida insanável sobre a prova de algum facto para a procedência da ação.

Com efeito, a dúvida insanável – após o cumprimento das regras legais sobre produção e avaliação da prova produzida - é a condição normal para o funcionamento das regras (legais!) de distribuição do chamado “ónus” da prova (cf., em especial,

-ANSELMO DE CASTRO, DPCD, III, pp. 349 ss e 173-175;

-J. P. REMÉDIO MARQUES, A ação Declarativa…, 3ª ed., 2011, pp. 592-593;

-ANTUNES VARELA et alínea, Manual…, 2ª ed., 1985, p. 450; e

-LEO ROSENBERG, Die Beweislast auf der Grundlage des Bürgerlichen Gesetzbuchs und der Zivilprozessordnung, 5ª ed.,1965 (2), e Zivilprozessrecht, 17ª ed., 2010).

Vejamos melhor, tentando arredar alguns mal-entendidos sobre o que é o chamado “ónus” da prova em processo não penal.

2.

Explicitemos algumas disposições legais essenciais para se compreender o que é o “ónus” (imperfeito e objetivo) da prova na ordem jurídica civil portuguesa.

Dispõe hoje o nosso C.P.C.:

- As ações declarativas podem ser de simples apre­ciação, de condenação ou constitutivas. As ações referidas no número anterior têm por fim: as de simples apreciação, obter unicamente a de­claração da existência ou inexistência de um direito ou de um facto; as de condenação, exigir a prestação de uma coisa ou de um facto, pressupondo ou prevendo a violação de um direito; as constitutivas, autorizar uma mudança na ordem jurídica existente (artigo 10º/2/3);

- A instrução tem por objeto os temas da prova enunciados ou, quando não tenha de haver lugar a esta enunciação, os factos necessitados de prova (artigo 410º); e não conceitos ou condições de procedência de ação como o de “falta de ligação efetiva à comunidade nacional portuguesa”;

- Incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosa­mente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhece (artigo 411º); muito diferente do processo civil da época liberal, pré-anos 1950 e anterior ao C.C. de 1966, em que não o princípio inquisitório era muito residual;

- O tribunal deve tomar em consideração todas as provas produzidas, tenham ou não emanado da parte que devia produzi-las, sem prejuízo das disposições que declarem irrelevante a alegação de um facto, quando não seja feita por certo interessado (artigo 413º); corresponde ao artigo 515º/2 do C.P.C. de 1939;

- A dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repar­tição do ónus da prova resolve -se contra a parte a quem o facto aproveita (artigo 414º); corresponde ao artigo 516º do C.P.C. de 1939.

Como se sabe, o julgamento da matéria de facto faz-se de acordo, i.a., com o previsto nos arts. 413º e 607º/4/5 do C.P.C. (o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência; o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto; a livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formali­dade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes).

Por sua vez, o nosso atual C.C., tal como o italiano (artigo 2697º do Codice Civile), impõe-nos o seguinte:

- O tribunal não pode abster-se de julgar, invocando a falta ou obscuridade da lei ou alegando dúvida insanável acerca dos factos em litígio (artigo 8º/1);

- Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado (= os que respeitam à existência do direito ou pretensão no momento em que a relação jurídica se forma ou acaba de formar-se). A prova dos factos impeditivos (= as ocorrências imputadas no momento em que a relação jurídica se forma ou acaba de formar-se e que obstam à formação do direito ou pretensão), modificativos (= os que alteram objetiva ou subjetivamente o direito validamente constituído) ou extintivos (= os que em momento posterior àquele em que a relação jurídica se forma ou acaba de formar-se, operam a cessação dos efeitos da relação constituída) do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita (artigo 342º/1/2); corresponde ao artigo 515º/1 do C.P.C. de 1939;

- Nas ações de simples apreciação ou declaração negativa, compete ao réu a prova dos factos constitutivos do direito que se arroga (artigo 343º/1);

3.

Ora, as referidas disposições legais, lidas em conjunto (cf. o artigo 9º do C.C.), não impõem às partes processuais qualquer dever de fazer a prova.

Ou seja, não é juridicamente correto concluir que a cada uma das partes incumbe um dever de fazer a prova dos factos que lhe sejam favoráveis em decorrência do direito objetivo aplicável. É o que decorre dos arts. 411º e 413º do C.P.C.

Não se pode confundir interesse ou vantagem com dever. Até porque a parte contrária não detém um direito correspondente àquele suposo “dever”.

Hoje, o que verdadeiramente releva, em sede do chamado “ónus (objetivo) da prova”, é saber a que parte interessa que certos factos essenciais alegados acabem demonstrados no processo, para efeitos da decisão jurisdicional.

Assim, se o juiz da matéria de facto, no final da fase da instrução, ficar em situação de dúvida irresolúvel sobre determinada factualidade, julgará a mesma em sentido contrário aos interesses da parte que seria beneficiada pela demonstração dessa factualidade; por outras palavras, julgará como não provados os factos essenciais em que se baseia a pretensão do autor ou do réu.

Em consequência disso, a repartição legal do ónus (imperfeito) da prova deve ser vista, sobretudo, como um verdadeiro critério de decisão do juiz da matéria de facto, em caso de dúvida sobre a realidade de um facto. Reporta-se ao risco que cada uma das partes corre quanto à demonstração ou não demonstração de certo facto essencial à sua pretensão; tal risco decorre de, na dúvida irresolúvel sobre a realidade de certo facto, o juiz dos factos ter o dever legal de decidir contra a parte a quem interessava a demonstração da mesma.

Citando A. ANSELMO DE CASTRO (in DPCD, III, 1982, p. 350), a regra do “ónus” da prova traduz-se num critério decisório do juiz e, mediatamente, no encargo de fornecer a prova do facto visado, incorrendo-se na desvantajosa consequência de se ter tal facto como inexistente.

Portanto, o “ónus” objetivo da prova, consagrado nas legislações nacionais de muitos países nos últimos 70 ou 80 anos (ou na doutrina e jurisprudência alemães há mais tempo), não tem a ver com a imposição às partes de um dever de fazerem a demonstração de certos factos, como poderia transparecer da utilização contemporânea, pela lei ou por alguns tribunais, de expressões enganadoras e herdeiras do antigo ónus subjetivo da prova, como as seguintes: “incumbe ao autor provar o facto X”; “cabe ao réu provar o facto Y”; “a prova do direito subjetivo invocado é um encargo de …”.

Tais expressões, filtradas com rigor pelo direito vigente, querem apenas dizer o seguinte:

- ”é do interesse do autor que fique provado o facto X” (se o julgador, após a fase de instrução, ficar numa situação de dúvida irresolúvel sobre a realidade de tal facto X, deverá julga-lo como não provado, isto é, contra o interesse do autor);

- “é do interesse do réu que fique provado o facto Y” (se o julgador, após a fase de instrução, ficar numa situação de dúvida irresolúvel sobre a realidade de tal facto Y, deverá julga-lo como não provado, isto é, contra o interesse do réu);

- “é do interesse da parte que fiquem demonstrados os factos concretos Z e R, factos em que assenta o invocado direito subjetivo S”.

Com efeito, a repartição do “ónus” (objetivo) da prova prevista nos arts. 342º/1/2 e 343º do C.C. e no artigo 414º do C.P.C. constitui um regime jurídico dirigido imediatamente ao julgador e não apenas às partes (cf. artigo 413º do C.P.C. e artigo 8º/1 do C.C.), após o juiz exercitar o previsto nos arts. 411º a 413º e 607º/4/5 do C.P.C.

Não corresponde, portanto, a um verdadeiro ónus (necessidade, imposta pela ordem jurídica a uma pessoa, de proceder de certo modo para conseguir ou manter uma vantagem), nem a uma tarefa a cargo das partes, embora naturalmente as impulsione a certa atividade processual no respetivo interesse; as partes fornecerão as provas em atenção aos seus interesses (assim H. D. ECHANDIA, Teoria General de La Prueba Judicial, 5ª Ed, Buenos Aires, Ed. Victor P. de Zavalía, 1981, p. 424).

Assim, e estando abandonado - há muito tempo - o “ónus subjetivo da produção da prova”, dizer-se que o ónus (da produção) da prova deste ou daquele facto essencial incumbe ao autor (ou ao réu) é, em rigor, o mesmo que dizer:

(i) - se o julgador da matéria de facto ficar, a final, numa situação de dúvida insanável quanto à realidade de determinado facto essencial à composição do litígio, tem o dever legal de o julgar - como não provado - contra a parte que beneficiaria da demonstração do mesmo durante a instrução;

(ii) - se os factos essenciais que interessam à pretensão do autor (ou do réu) não ficarem provados e o juiz ficar numa situação de “non liquet” (cf. artigo 8º/1 do C.C. e artigo 414º do C.P.C.), tal pretensão é julgada improcedente.

Como se vê, hoje, releva mais aquela primeira dimensão, de natureza processual-probatória. A segunda, relativa à pronúncia final do juiz sobre o mérito da causa, não merece especial atenção, por ser demasiado óbvia no processo civil moderno e de Estado democrático de Direito, onde avulta o princípio da tutela jurisdicional plena e efetiva e o da juridicidade.

Antes de meados do século XX, a tradição nesta matéria era outra, o que, aliás, até lhe dava outra natureza e uma diferente composição desta figura jurídica, sobretudo por causa da inexistência do princípio inquisitório. E uma importância muito maior.

Mas, desde pouco antes da segunda metade do século XX, com a consagração dos princípios inquisitório (artigos 410º e 411º do CPC) e da aquisição processual (artigo 413º do CPC), vale, lógica e necessariamente, o “ónus” objetivo da prova baseado na chamada teoria das normas iniciada por LEO ROSENBERG, adotada na Alemanha há muito tempo; embora sem prejuízo de exceções decididas pelo legislador democrático (por ex., arts. 344º ss do C.C.) ou de adaptações exigidas pelos princípios da justiça e da razoabilidade em sede de cargas probatórias, como ocorre na responsabilidade civil na Alemanha através da “prova prima facie” ou entre nós com a equidade na determinação do dano (cf. o artigo 566º/3 do C.C.).

Pode sintetizar-se tal doutrina, subjacente aos artigos 342º/1/2 e 343º do C.C., assim: o “ónus” objetivo da prova (um “dever livre”), um ónus de averiguação (!), é uma regra de julgamento, uma decorrência da própria norma de direito material, convindo a cada parte alegar e fazer a prova dos pressupostos de facto dos preceitos jurídicos substantivos a si favoráveis; o fardo e risco da prova são, assim, atribuídos de acordo com a natureza jurídica do facto probando em que assenta a pretensão da parte.

É, assim, à luz do escalonamento sistemático das normas de direito substantivo que deve ser interpretada e aplicada a solução contida nos artigos 342º/1/2 e 343º do C.C. (cf., em especial, ANSELMO DE CASTRO, DPCD, III, pp. 349 ss e 173-175).

É também um problema de boa interpretação da lei substantiva.

É claro que teremos um sério problema quando a norma em que assenta a pretensão da parte não contém previsão fáctica (como é o caso presente).

Seja como for, nos poucos países que, recentemente, instituíram (parcialmente) o chamado “ónus” dinâmico ou distribuição dinâmica da carga da prova (América do Sul e Espanha: cf. JORGE W. PEYRANO), por influência estranha de um sistema jurídico muito distinto, o anglo-saxónico (cf. J. BENTHAM e J. GOLDSMITH), tal é feito em complemento, e não em substituição, da consagrada e segura teoria das normas refletida nos nossos arts. 342º/1/2 e 343º do C.C.

Mas, em Portugal, como na Alemanha, por ex., funciona mesmo a teoria normativa do “ónus” (imperfeito) objetivo da prova dos factos essenciais às pretensões das partes; é uma solução racional e segura (assim LEO ROSENBERG, La carga de la prueba, trad., Buenos Aires, EJEA, 1956. p. 59), cientificamente rigorosa embora não perfeita.

Aliás, a doutrina subjacente ao regime dos arts. 342º/1/2 e 343º do C.C./1966 e dos arts. 411º, 413º e 414º do atual C.P.C. não impede a previsão legal de regras especiais de distribuição da carga da prova para casos especiais, como vimos. É o que se passa ente nós, em Itália e na Alemanha; neste país, aliás, não existe uma disposição legal geral e abstrata como a do artigo 342º ou do artigo 343º do nosso C.C., pois as correspondentes normas jurídicas são as aplicadas há décadas.

Em suma, a prova dos factos-fundamento das normas jurídicas constitutivas, extintivas, modificativas ou impeditivas da situação jurídica favorável a cada parte não precisa de ser feita por essa parte, podendo até ser feita pelo juiz; mas, não havendo convicção de verdade sobre o facto, o risco da não da prova de cada um desses factos-fundamento dessas normas jurídicas - tendo sempre presente a norma substantiva aplicável - será aplicado ao respetivo litigante, o que é o mesmo que dizer contra ele (cf. assim ANSELMO DE CASTRO, DPCD, III, pp. 353-354).

Concluindo: sem dúvidas do julgador sobre a solução a dar ao objeto do processo (matéria sobre a qual o tribunal é chamado a pronunciar-se, constituída pela forma de tutela jurisdicional requerida para a invocada posição jurídica subjetiva favorável e pelos factos essenciais identificadores daquela posição), não interessam as regras do “ónus” objetivo da prova, já que a instrução está sujeita especialmente à disciplina dos arts. 410º a 414º e 607º/4/5 do C.P.C.

4.

4.1.

Ora, no caso presente, perante o ocorrido nos articulados e cumprindo o que o C.P.C. manda sobre o julgamento dos factos, não houve, nem há dúvidas sobre a realidade dos factos em discussão na causa.

Não há, pois, fundamento (“non liquet”) para recorrer às consequências das regras legais sobre o “ónus” objetivo da prova, a que se referem os Acs. de UJ do S.T.A. nº 3/2016 e nº 4/2016.

Também irreleva, pelo mesmo motivo, que a presente ação, especialmente imposta pela lei ao MP, seja, na verdade, de simples apreciação negativa.

4.2.

Fixados os factos de acordo com a lei processual (maxime os nucleares arts. 410º a 414º e 607º/4/5 do C.P.C.) – julgamento da matéria de facto no qual, por vezes, é exercitado o imposto nos arts. 342º e 343º do C.C. - o juiz passa à fase da qualificação jurídica desses factos adquiridos no processo.

E, analisando aqui os factos, para os enquadrar juridicamente (qualificação), temos presente que, implícito nos Acs. de UJ do S.T.A., cits., está o entendimento de que a causa de pedir desta ação corresponde aos “factos-fundamento da falta de ligação efetiva à nação portuguesa”; embora tais factos não correspondam a nenhuma previsão normativa, o que parece ir contra a doutrina subjacente aos arts. 342º/1/2 e 343º do C.C. (“teoria das normas”).

Por isso, teremos de concluir que, com aquela factualidade provada, não é possível considerar que este cidadão indiano, que vive com a mulher portuguesa e seus dois filhos no Qatar, não tem uma ligação efetiva à nação portuguesa.

Outra conclusão teríamos se se provasse que o réu interessado nunca tinha vindo ou residido em Portugal, e ou que não convive com portugueses, e ou que não conhece a comida e a música portuguesas, e ou que não sabe História de Portugal, e ou que não sabe quem governa o país, etc.

Quer dizer, não está satisfeito o que, segundo o S.T.A., é exigido no artigo 9º/a) da LN de 2006 e no artigo 56º/1/2-a) do DL que contém o RN (DL nº 237-A/2006). O que, a final, beneficia a posição do réu.

4.3.

Portanto:

- o TAC, não havendo um quadro de “non liquet”, socorreu-se ou invocou infundada e precipitadamente o instituto da distribuição da carga da prova dos factos essenciais como definido pelos Acs. de UJ do S.T.A. nº 3/2016 e nº 4/2016;

- mas, ainda assim, acabou por, involuntariamente, qualificar bem os factos provados, por referência à tese subjacente aos cits. Acs. nº 3/2016 e nº 4/2016 do S.T.A. no que aos factos-fundamento da condição de procedência da ação que é a “inexistência de ligação efetiva” diz respeito.

*

III. DECISÃO

Por tudo quanto vem de ser exposto e de harmonia com os poderes conferidos no artigo 202º da Constituição, acordam os juizes deste Tribunal Central Administrativo Sul em, negando provimento ao recurso, julgá-lo improcedente e manter a sentença recorrida com diferente fundamentação.

Sem custas.

Lisboa, 04-10-2017


Paulo H. Pereira Gouveia, relator

Nuno Coutinho

J. Gomes Correia



(1) Na ação administrativa de oposição à aquisição de nacionalidade portuguesa, a propor ao abrigo do disposto nos arts. 9.º, al. a) e 10.º da Lei n.º 37/81, de 3 de outubro [Lei da Nacionalidade] na redação que lhe foi introduzida pela Lei Orgânica n.º 2/2006, de 17 de abril, cabe ao Ministério Público o ónus de prova dos fundamentos da inexistência de ligação efetiva à comunidade nacional.
(2) Leo Rosenberg destaca os aspetos de direito material que são necessários na distribuição do ónus da prova. A cada parte compete comprovar os factos que se moldam às normas jurídicas que lhe são favoráveis, ou seja, é um critério de autobenefício. O autor parte da natureza dos factos alegados pelas partes e destaca que o ónus da afirmação e o da prova serão distribuídos segundo as características definidas na disposição legal em que se enquadram - La carga de la prueba, trad., Buenos Aires, EJEA, 1956. p. 91.