Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1590/17.4BEPRT
Secção:CT
Data do Acordão:07/11/2019
Relator:HÉLIA GAMEIRO SILVA
Descritores:INTIMAÇÃO PARA PROTEÇÃO DE DIREITOS, LIBERDADES E GARANTIAS
PROTEÇÃO DE DIREITOS PESSOAIS DE RESERVA DA VIDA PRIVADA
ATOS DE GERÊNCIA DE PESSOA COLETIVA
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
Sumário:i. A causa de pedir não se confunde com os motivos, as razões ou os argumentos que sustentam o pedido, o que, nem sempre é fácil diferenciar, facilitando a doutrina e a jurisprudência distinguem por um lado, “questões” e, por outro, “razões” ou “argumentos” para concluir que só a falta de apreciação das primeiras (ou seja, das “questões”) integra a nulidade prevista no citado normativo.
ii. A interpretação das normas referentes a direitos, liberdades e garantias, reveste alguma complexidade na medida em que, por vezes, os respetivos preceitos acolhem variadas faculdades, podendo integrar mais do que um direito o que exige, por parte do interprete, uma análise cuidada que lhe permita aplicar a cada caso a norma apropriada.
iii. A proteção do direito a que se reporta o n.º 4 do artigo 34.º da CRP, não abarca atos de gerência de pessoas coletiva, praticados no exercício de uma atividade profissional de gestão.
Votação:MAIORIA
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes que compõem a 1.ª Subsecção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul

l – RELATÓRIO

R...., melhor identificado nos autos, veio deduzir, nos termos do disposto nos artigos 109º e seguintes do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), Intimação para Proteção de Direito Liberdades e Garantias contra a Autoridade Tributária e Aduaneira representada pela Diretora Geral dos Impostos quantos aos atos e comportamentos praticados pela Divisão Operacional do Norte da Direção de serviços Antifraude.

O Tribunal Tributário de Lisboa, por decisão de 31 de janeiro de 2019, julgou improcedente a ação.

Inconformado, R...., veio recorrer contra a referida decisão, tendo apresentado as suas alegações e formulado as seguintes conclusões:

«1.º Quer com a apresentação da intimação que deu origem aos presentes autos, quer nas alegações, o Requerente levantou um conjunto de questões jurídicas, sendo que o Tribunal ad quo não se pronunciou, de todo, quanto à principal questão levantada: admissibilidade da utilização dos meios de prova obtidos em processo-crime em procedimentos tributários e a consequente violação do direito à inviolabilidade das comunicação e do direito à reserva da vida privada.

2.º Dispõe o n.º 4 do artigo 34.º da CRP que: “É proibida toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, salvo os casos previstos na lei em matéria criminal”.

3.º O facto de a correspondência electrónica ter sido obtida no âmbito de um processo-crime não legitima a sua utilização fora do processo-crime, e muito menos no âmbito de procedimentos tributários.

4.º Dada a importância dos bens jurídicos tutelados (direitos, liberdades e garantias pessoais), a CRP só permite a sua compressão em sede de processo criminal, e, por sua vez, a Lei Penal só admite essa compressão dentro de limites estritos.

5.º A utilização, em procedimentos de natureza administrativa, como são os procedimentos tributários, de transcrições de correio electrónico obtidas por via de apreensão em processo-crime, viola a CRP e o direito pessoal fundamental que esta confere ao Requerente da reserva da intimidade da sua vida privada, bem como a garantia, também fundamental, da inviolabilidade dos meios de comunicação fora dos casos taxativamente previstos na lei.

6.º A sentença recorrida não se debruça, de todo, sob esta questão primordial.

7.º Verificando-se omissão de pronúncia quanto à principal questão levantada pelo Recorrente, deverá a sentença recorrida ser declarada nula, ao abrigo do artigo 615.º, n.º 1, al. c) do CPC, ex vi do artigo 1.º do CPTA, substituindo- se por outra que declare a inadmissibilidade da utilização destes meios de prova obtidos no processo-crime em procedimentos tributários.

8.º Sem prescindir, sempre se dirá que é irrelevante aferir do conteúdo das comunicações para se concluir que houve violação dos direitos do Requerente, bem como é irrelevante a titularidade das contas de e-mail para se aferir se os direitos do Requerente foram concretamente violados.

9.º O conteúdo da correspondência electrónica é absolutamente irrelevante, se a sua obtenção para o procedimento tributário é ilegal, sendo que a violação dos direitos, liberdades e garantias do Requerente inicia-se e consuma-se com o acesso aos e-mails fora do procedimento criminal e não depende, mínimo que seja, do concreto conteúdo das mensagens de correio electrónico em causa – rigorosamente nada!

10.º Além disso, o facto de se tratar da utilização de e-mails profissionais recolhidos na entidade para quem o Requerente trabalha, não afasta os princípios constitucionais, nem as normas legais que regem a matéria de acesso às comunicações, sendo tal entendimento pacificamente acolhido pela jurisprudência.

11.º Assim, a sentença recorrida viola, de forma flagrante, os artigos 26.º, n.º 1 e 2 e 34.º, n.º 4 da CRP, e os artigos 109.º e 111.º do CPTA.

Nestes termos e nos demais de direito, deve o presente recurso ser julgado procedente por provado e, em consequência, deve a sentença recorrida ser declarada nula, por total omissão de pronúncia, que constitui vício de nulidade de sentença, ao abrigos dos artigos 1.º do CPTA conjugado com o artigo 615º, n.º 1, c) do CPC, substituindo-se por outra que declare a inadmissibilidade da utilização de meios de prova obtidos no processo crime em procedimentos tributários e, consequentemente a Autoridade Tributária e Aduaneira ser intimada a:

▪ De imediato, a desentranhar de todos os procedimentos findos e em curso das certidões, seja em papel ou formato digital, contendo mensagens de correio electrónico enviadas e/ou recebidas pelo Requerente, apreendidas, no âmbito do processo de inquérito 4/14.6ARLSB que corre termos no DIAP de Santo Tirso, e a entregá-las ao ora Requerente ou, em alternativa, ao procurador do MP titular do processo de inquérito do DIAP de Santo Tirso;

▪ Deverá ainda a Autoridade Tributária e Aduaneira ser intimada a abster-se de utilizar, em qualquer outro procedimento tributário em curso ou que venha a desencadear, quaisquer mensagens de correio electrónico enviadas e/ou recebidas pelo Requerente que tenham sido apreendidas no âmbito do processo de inquérito 4/14.6ARLSB, que corre termos no DIAP de Santo Tirso.»


»«

A recorrida, FAZENDA PÚBLICA, notificada do recurso, apresentou as suas contra-alegações, tendo formulado as seguintes conclusões:

«A. O Recorrente imputa à douta sentença do tribunal a quo vício de omissão de pronúncia, sustentando a existência de violação de direitos de natureza privada, mas a argumentação trazida aos autos em nada contraria a fundamentação da decisão recorrida não se revelando susceptível de alterar o sentido da mesma decisão.

B. Na sequência dos procedimentos inspetivos que foram efetuados à sociedade I.... – I...., Lda., o Recorrente suscita a questão da admissibilidade da prova recolhida no âmbito do processo crime e ação efetuada pelo Organismo Europeu de Luta Antifraude/OLAF, referente a mensagens de correio eletrónico.

C. No que concerne às mensagens de correio eletrónico em questão, o Recorrente atuou sempre como representante legal/gerente da empresa, e toda a correspondência, consubstanciada nos e-mails trocados entre o representante/gerente da I…. e os seus fornecedores, repercute unicamente na esfera jurídica da empresa, os quais se reportam exclusivamente às negociações e/ou a operações de importação.

D. O facto de a conta de e-email ser do Recorrente, “enquanto profissional da sociedade, tendo como endereço o servidor da sociedade”, não lhe confere, ao invés do invocado, qualquer dimensão de natureza pessoal.

E. Embora uma conta profissional possa até ser utilizada para comunicar assuntos pessoais, não foi, contudo, o que ocorreu no caso presente quanto aos e-mails em questão, porquanto não se extrai do seu teor que o direito à reserva da intimidade da vida privada do cidadão R.... tenha sido violado ou ameaçado, que em todos atua no âmbito da actividade comercial e na qualidade de gerente da sociedade I.... – I...., Lda.

F. Quanto ao conteúdo da correspondência eletrónica, e à afirmação do Recorrente de que aquele é irrelevante se a sua obtenção para o procedimento tributário é ilegal, reitera-se que, conforme já se referiu em primeira instância, o método de recolha dos referidos e-mails exclui à partida as mensagens de correio eletrónico alheias ao fim visado pelas ações efetuadas, quer no âmbito do processo de inquérito, quer no procedimento de inspeção tributária, mormente as relativas a informação incluída na reserva da intimidade da vida privada, tendo a prova sido obtida mediante o cumprimento dos formalismos legais previstos no Código de Processo Penal.

G. Existindo interligação entre os procedimentos inspetivos tributários e os processos sancionatórios de natureza penal tributária, a prova recolhida em sede de inquérito, em colaboração com os serviços inspetivos da AT, ou de inspeção tributária, pode ser aproveitada para ambos os processos, verificando-se uma intercomunicabilidade probatória.

H. A obtenção dos elementos probatórios é efetuada pelos órgãos de polícia criminal, nos quais se incluem serviços da AT integrados em diferentes unidades orgânicas, como é o caso da Direção de Serviços Antifraude Aduaneira, que, quanto aos crimes aduaneiros, atua sob a direção do Ministério Público, sendo que, em qualquer fase do processo, as respetivas decisões finais e os factos apurados relevantes para a liquidação dos impostos em dívida são sempre comunicados à Autoridade Tributária e Aduaneira ou à Segurança Social (artigos 40.º e seguintes, e n.º 2 do artigo 50.º do Regime Geral das Infrações Tributárias).

I. No caso concreto a recolha deste tipo de prova foi efetuada no âmbito da investigação com recurso a um software específico, sendo utilizado o critério de palavras-chave, que separa as mensagens, tratando-se de um procedimento tecnológico objectivo, de acordo com a autorização concedida pelo Sr. Juiz de Instrução, conforme resulta do despacho/conclusão de 13.01.2017, do Juízo de Instrução Criminal de Matosinhos - Juiz 4, depois de analisado o conteúdo das mensagens ao abrigo da Lei n.º 109/2009, de 15 de Setembro, e do artigo 179.º do Código de Processo Penal.

J. As normas que atribuem competência à AT, em sede inspetiva, legitimam as ações de natureza inspetiva realizadas e a prova obtida no âmbito destas, recolhida no cumprimento estrito da lei (artigos 63.º e 64.º da Lei Geral Tributária, artigos 5.º e seguintes, 22.º, 28.º e 29.º do Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária e Aduaneira).

K. A AT atuou, assim, no âmbito dos procedimentos inspetivos, e quanto à recolha da prova, de acordo com as competências e poderes/deveres a que está adstrita por lei, com vista à prossecução dos fins que lhe estão cometidos, tendo sido passada certidão no âmbito do processo de inquérito, nos termos da lei, das peças processuais pertinentes, envolvendo prova recolhida ou a recolher, com vista à instrução dos processos de liquidação dos direitos aduaneiros devidos pela sociedade arguida, em conformidade com a cópia do despacho do MP/Procuradoria da República da Comarca do Porto, junto aos autos.

L. Quanto à questão decidenda, não se incluem no processo de inquérito, nem dos procedimentos inspetivos, quaisquer e-mails de carácter pessoal, que não respeitem, exclusivamente, às transações comerciais que foram objeto de investigação e análise, tendo sido enviados e recebidos pelo representante da I…., e seus fornecedores, entre si, não se verificando qualquer violação à reserva da intimidade privada e familiar do Recorrente, repercutindo-se os efeitos dos procedimentos inspetivos unicamente na esfera da empresa, mormente quanto às liquidações e pagamento dos direitos aduaneiros devidos.

M. Decorre, indubitavelmente, do teor das mensagens que foram redigidas em nome e por conta da empresa, tendo o Recorrente agido sempre na qualidade de seu representante, constando, inclusivamente, dos e-mails, no destinatário do conhecimento (cc), a identificação de funcionários da empresa.

N. Não estando em causa quaisquer factos de natureza privada da vida do Recorrente, enquanto cidadão, não se verifica, consequentemente, qualquer violação do direito à reserva da intimidade da vida privada ou do direito à inviolabilidade de correspondência e outros meios de comunicação privada, consagrados nos artigos 26.º, n.º 1, e 34.º, n.º 4, da CRP.

O. A AT atuou, pois, no âmbito das suas competências, ao abrigo do poder-dever de controlo que lhe está atribuído, tendo utilizado os elementos de prova legalmente permitidos, não existindo, no caso concreto, um direito, liberdade ou garantia do particular constitucionalmente consagrado, que se encontre violado ou ameaçado.

P. Concluindo-se, consequentemente, que a sentença recorrida teve em consideração quanto à matéria de facto uma correta aplicação do direito e da justiça, inexistindo, a omissão e violação invocadas pelo Recorrente, não merecendo, por isso, qualquer censura a decisão do Tribunal a quo, devendo esta ser mantida, integralmente, com as legais consequências.

Termos em que, nos melhores de direito e sempre com o mui douto suprimento de Vossas Excelências, deve ser negado provimento ao recurso, mantendo-se a douta sentença do tribunal a quo, assim se fazendo Justiça.»


»«

O Exmo. Procurador-Geral Adjunto junto deste Tribunal, veio oferecer o seu parecer no sentido da improcedência do recurso, por a decisão sob recurso não padecer de quaisquer vícios que lhe vem imputados.

»«

Com dispensa dos vistos, atento o carácter urgente dos presentes autos, vem o processo submetido à conferência desta 1.ª Subsecção do Contencioso Tributário para decisão.

Objeto do recurso

Como é sabido, são as conclusões das alegações do recurso que definem o seu objeto e consequente área de intervenção do Tribunal “ad quem”, não obstante a ressalva para as questões que, sendo de conhecimento oficioso, encontrem nos autos os elementos necessários à sua integração (art. 639.º n.º 1 do NCPC ex vi art.º 1.º do CPTA. Art.º 97.º n. 1al. q) e 2.º al. c) do CPPT).

No caso sub judice, as questões suscitadas são as de saber se a decisão recorrida deixou de se pronunciar quanto á questão da admissibilidade da utilização dos meios de prova obtidos em processo-crime nos procedimentos tributários e a consequente violação do direito à inviolabilidade das comunicações e do direito à reserva da vida privada e, nessa medida, se a mesma padece de omissão de pronúncia.

II - FUNDAMENTAÇÃO

A sentença recorrida considerou os seguintes factos provados:


«A)

Por comunicação da Autoridade Tributária e Aduaneira foi instaurado processo de Inquérito n.º 4/14.6ARLSB no DIAP de Santo Tirso – Secção Única – Ministério Público, Comarca do Porto;

(cf. doc. 1 junto com a PI)


B)

No âmbito do Processo de Inquérito n.º4/14.6ARLSB foi emitido pela Procuradora do Ministério Público de Santo Tirso – Comarca do Porto- DIAP - Secção Única, um Mandado de Busca e Apreensão às instalações da sociedade «I… – I…, Lda.» de cujo teor se retira que:

«(…)


(“texto integral no original; imagem”)

(…)”

(cf. doc. 1 junto com a PI)


C)

Do Auto de Busca e apreensão constam do quadro n.º8 a descrição pormenorizada dos objetos e documentos apreendidos tendo ainda sido elaborado um Anexo I com a descrição dos seguintes elementos apreendidos:

(“texto integral no original; imagem”)

(cf. doc. 3 junto com a PI)

D)

Através do Oficio n.º DON…./2017 a Divisão Operacional Norte da AT procedeu à notificação do projeto de conclusões do relatório inspetivo, que teve origem na ordem de serviço OI201….. como o objetivo de notificação da sociedade para o exercício do direito de audição prévia;

(cf. doc. 3 junto com a PI)


E)

Através do Oficio n.º DON…/2017 a Divisão Operacional Norte da AT procedeu à notificação do projeto de conclusões do relatório inspetivo, que teve origem na ordem de serviço OI20… como o objetivo de notificação da sociedade para o exercício do direito de audição prévia;

(cf. doc. 4 junto com a PI)


F)

Das conclusões do Relatório da Inspeção da Direção de Serviços Antifraude Aduaneira – Divisão Operacional do Norte sob a Ordem de serviço OI201… consta transcrita a correspondência eletrónica trocada entre os colaboradores da sociedade «I… Lda.» e a empresa «O…. LTD/T…. Com.» constante do processo de inquérito n.º4/14.6ARLSB com o seguinte teor:

«(…)

(“texto integral no original; imagem”)

(cf. doc. 5 de fls. 107 a 110 junto com a PI)


G)

Das conclusões do Relatório da Inspeção da Direção de Serviços Antifraude Aduaneira – Divisão Operacional do Norte sob a Ordem de serviço OI201 consta transcrita a correspondência eletrónica trocada entre os colaboradores da sociedade «I…. Lda.» e a empresa «C….. LTD/S…. LTD.» constante do processo de inquérito n.º4/14.6ARLSB com o seguinte teor:

«(…)


(“texto integral no original; imagem”)

(cf. doc. 6 de fls. 128 a 136 junto com a PI)


H)

Em 20.04.2017 o Requerente na qualidade de sócio gerente bem como a sociedade «I…. – I…., Lda.» foram constituídos arguidos, conforme os respetivos termos juntos como documento n.º2 da Petição Inicial;

I)

A ação deu entrada no Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, e, 03.07.2017, onde foi registada com o n.º544973, conforme fls.3 dos autos;

III.II - Factos não provados.

1. – Não se provou que o correio eletrónico apreendido e transcrito nos relatórios da inspeção tributária contenha ou faça alusão a factos da vida íntima ou privada do Requerente, uma vez que apenas fazem referência a contactos comerciais e uso de termos estritamente profissionais com as empresas com quem a sociedade efetuava os acordos comerciais relativos à importação da mercadoria pretendida.

Não se provam outros factos com relevância para a presente decisão.

Motivação.

A convicção do tribunal baseou-se na análise crítica dos documentos juntos aos autos, referidos nos factos provados, com remissão para as folhas do processo onde se encontram.»


»«

Aditamento oficioso de factos:

Ao abrigo do disposto no art.º 662º do CPC aditamos ao probatório os seguintes factos que resultam documentalmente provados nos autos:


J)

Por despacho proferido em 21/04/2017, no processo n.º 4/14.6ARLSB – Z380905829 – Procuradoria da República da Comarca do Porto – DIAP – Secção de Santo Tirso, a administração fiscal foi autorizada a proceder á extração de certidões das peças processuais pertinentes, envolvendo prova recolhida ou a recolher, com vista à instauração dos processos de liquidação dos direitos aduaneiros devidos pela sociedade arguida - cfr. 173 dos autos.

L)


Por despacho de 26/04/2017, do Chefe de Divisão da Divisão Operacional do Norte da DSAFA foi autorizada a ação de inspeção com a natureza de procedimento interno a coberto do processo n.º OI2….. e OI20….., que teve o seu início em 27/04/2017, face à certidão extraída do processo de inquérito n.º 4/14.6ARLSB referida em J) deste probatório – cfr. fls. 63 e 78 os autos;

M)


Em 09/05/2017 a Divisão Operacional Norte da AT, endereçou à sociedade I… I…., Lda., cartas registadas com AR, dando-lhe conta das diligências supra enunciadas e bem assim do projeto as conclusões do relatório, fundamentado, para, querendo, aquela exercer o direito de audição prévia – cfr. fls. 58 e 74 dos autos – doc. 3 e 4 junto á pi


»«

De Direito

Em sede de aplicação do direito, a sentença recorrida sopesou, em síntese, julgar improcedente a presente ação de intimação para proteção de direitos liberdades e garantias deduzida por R...., ora Recorrente, por considerar que a utilização da transcrição dos e-mails nos procedimentos tributários para fundamentação das correções efetuadas, quanto aos direitos aduaneiros antidumping não viola o direito à reserva da vida íntima e privada do Requerente por conterem apenas vocábulos alusivos e estritamente conexionados com a atividade profissional e comercial da sociedade.

O Recorrente vem arguir nulidade da decisão por considerar que o Tribunal a quo não se pronunciou, de todo, quanto à principal questão levantada e que se consubstancia na admissibilidade da utilização dos meios de prova obtidos em processo-crime em procedimentos tributários e a consequente violação do direito à inviolabilidade das comunicações e do direito à reserva da vida privada, situação que explana ao longo de todo o articulado com apelo ao n.º 4 do art.º 34.º da Constituição da Republica Portuguesa (CRP) atentando que a utilização em procedimentos de natureza administrativa, como são os procedimentos tributários, de transcrições de correio eletrónico obtidas por via de apreensão em processo-crime, viola a CRP e o direito pessoal fundamental que esta confere ao Requerente da reserva da intimidade da sua vida privada, bem como a garantia, também fundamental, da inviolabilidade dos meios de comunicação fora dos casos taxativamente previstos na lei.

Analisemos então se a decisão recorrida padece de tal vício, porém, não sem antes recordar que o modelo de apelação restrita que vigora no direito português colima na reapreciação da decisão proferida dentro dos mesmos condicionalismos em que se encontrava o Tribunal “a quo” no momento em que proferiu a sentença e não no reexame da causa julgada em 1.ª Instância.

Ora, no que respeita à nulidade da sentença, indica-nos o artigo 615º n.º 1 al. d) do NCPC aqui aplicável “ex vi” do artigo 1º do CPTA, que a mesma é nula quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.

A “omissão de pronúncia” a que se reporta a primeira parte da norma, está assim relacionada com o dever imposto pelo nº 1 do art.º 95º do CPTA de que na sentença devem ser decididas todas as questões que as partes tenham submetido à apreciação do tribunal, sendo vedado ao juiz a possibilidade de ocupação por outras questões que não aquelas que lhe foram suscitadas, salvo quando a lei lhe permita ou imponha o conhecimento oficioso de outras.

No processo judicial tributário, o vício de omissão de pronúncia, como causa de nulidade da sentença, está previsto no artigo 125, nº.1, do CPPT.

A nulidade no incumprimento por parte do julgador reporta-se ao poder/dever de resolver todas as questões submetidas à sua apreciação (excetuadas aquela cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras), e só essas, ou seja, ao juiz apenas compete conhecer de questões que tenham sido suscitadas pelas partes (salvo aquelas de que a lei lhe permite conhecer oficiosamente) está previsto no n.º 2 do artigo 608.º do NCPC

Porém, uma coisa é a causa de pedir, outra coisa são os motivos, as razões ou argumentos que sustentam o pedido, o que, nem sempre é fácil diferenciar. A doutrina e a jurisprudência distinguem por um lado, “questões” e, por outro, “razões” ou “argumentos” para concluir que só a falta de apreciação das primeiras (ou seja, das “questões”) integra a nulidade prevista no citado normativo (vide cfr. Prof. Alberto dos Reis, CPC anotado, V, Coimbra Editora, 1984, pág.53 a 56 e 142 e seg.; Antunes Varela e Outros, Manual de Processo Civil, 2ª. Edição, Coimbra Editora, 1985, pág.690; Luís Filipe Brites Lameiras, Notas Práticas ao Regime dos Recursos em Processo Civil, 2ª. edição, Almedina, 2009, pág.37).

Assumimos assim e em síntese, o que, a este propósito, se deixou expresso no Ac. do TCAN proferido em 07/12/2018 no processo n.º 00439/18.5BECBR que “… a nulidade da decisão por “omissão de pronúncia” verificar-se-á quando exista uma omissão dos deveres de cognição do tribunal, o que sucederá quando o juiz não tenha resolvido todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação e cuja decisão não esteja prejudicada pela solução dada a outras. Assim, a “omissão de pronúncia” existe quando o tribunal deixa, em absoluto, de apreciar e decidir as questões que lhe são colocadas, e não quando deixa de apreciar argumentos, considerações, raciocínios, ou razões invocados pela parte em sustentação do seu ponto de vista quanto à apreciação e decisão dessas questões.

Ora voltando à situação em exame, e analisando a sentença recorrida verificamos que na mesma o Mmo. Juiz, procedeu à análise das normas de proteção à reserva da vida privada de acordo com a natureza do caso e á condição das pessoas (singulares e coletivas), para depois concluir que, in casu, a informação utilizada pela AT não corresponde a contas de correio eletrónico pessoal pertencentes a cada um dos colaboradores da sociedade «I….. Lda.», mas sim, de informação eletrónica comercial e profissional recolhida de servidores em rede ao serviço da sociedade «I…. Lda.», com respetiva identificação do seu utilizador.

Diz a sentença:

“(…)

Em relação ao conteúdo dos 11 e-mails a que o Requerente se refere, podemos verificar da sua transcrição, em D) e E) que, com exceção das saudações cordiais entre os interlocutores das mensagens eletrónicas, indicando os seus nomes nada mais é referido em termos pessoais ou particulares e familiares.

Constata-se assim, no correio eletrónico em causa que não existe qualquer referência/alusão pessoal ou individual da vida privada de cada interveniente, quer do Requerente quer dos demais colaboradores da sociedade o que se compreende uma vez que não se trata de contas de e-mail privadas, pessoais ou familiares. Ou seja, o que se verifica é que as contas de e-mail pertencem exclusivamente à sociedade.

Todas as mensagens transcritas que constam dos relatórios inspetivos versam apenas e só sobre o tipo de mercadorias a importar e, bem assim, o modus faciendi da sua importação e chegada ao território nacional.

Ao contrário do alegado está provado nos autos que não se verifica, na transcriação dos e-mails e sua tradução, a violação de qualquer direito pessoal de reserva da intimidade da vida privada do Requerente.

Neste conspecto, podemos com certeza concluir que a utilização da transcrição dos e-mails nos procedimentos tributários para fundamentação das correções efetuadas, quanto aos direitos aduaneiros antidumping não viola o direito à reserva da vida íntima e privada do Requente por conterem apenas vocábulos alusivos e estritamente conexionados com a atividade profissional e comercial da sociedade.

(…)” – fim de citação.

Regressando ao caso dos autos, adiantamos desde já que a sentença recorrida não padece do vício que lhe vem imputado, atento a que nela foram analisadas e decididas as causas de pedir (questões) estruturadas pelo recorrente na p.i. do presente processo, não se vislumbrando qualquer omissão de pronúncia.

Na verdade, infere-se do percurso argumentativo que o Mmo juiz a quo distinguiu e apreciou o direito pessoal de reserva da intimidade da vida privada do Requerente, protegido constitucionalmente, da atividade profissional e comercial da sociedade, para concluir que o primeiro não foi beliscado.

Acresce referir que a interpretação das normas referentes a direitos, liberdades e garantias, reveste alguma complexidade na medida em que, por vezes, os respetivos preceitos acolhem variadas faculdades, podendo integrar mais do que um direito, o que exige, por parte do intérprete, uma análise cuidada que lhe permita aplicar a cada caso a norma apropriada, porém nem é este o caso dos autos, já que os atos para os quais se pede a proteção do direito não são atos pessoais mas sim atos de gerência de pessoas coletiva, praticados no exercício de uma atividade profissional de gestão que, com ela (gestão) se confundem.

Contudo, sabemos que, tal como vem invocado, os dados para os quais se apela aqui à proteção do direito foram colhidos no âmbito do processo-crime para utilização em procedimentos tributários, mas também sabemos que a AT não está impedida de o fazer, aliás tem o poder/dever de utilizar esse dados sempre que os mesmos possam assumir relevância para efeitos tributários, designadamente para determinar o apuramento do imposto legalmente devido, devendo contudo dar cumprimento aos requisitos de fundamentação e de notificação estabelecidos, em ordem a garantir ao visado o pleno exercício dos seus direitos de reação, contra essa decisão administrativa.

Neste conspecto, verificamos pela análise dos autos que os dados foram obtidos pela AT com autorização da Procuradoria da República da Comarca do Porto – DIAP – Secção de Santo Tirso e que a AT, e que foi dado cumprimento aos requisitos legais de modo a garantir ao interessado o exercício dos seus direitos de defesa, (pontos J. a M. do probatório), termos em que nada há a censurar ao procedimento.

Por outro lado, não olvidamos também que o ponto fulcral do salvatério recai na violação do direito à inviolabilidade das comunicações e do direito à reserva da vida privada, porém, também aqui o decisório não nos merece reparo.

Com efeito na sentença em exame vem apreciados e diferenciados os direitos de personalidade e a atuação do individuo no âmbito da gestão empresarial concluindo-se que a informação constante dos e-mails em causa tem carater profissional, o que, desde logo a afasta da proteção jurídica contida no artigo 34.º da CRP em que o Recorrente se escuda e que tem em vista a proteção das pessoas singulares, nomeadamente do “ … domicílio e o sigilo da correspondência e dos outros meios de comunicação privada …”.

Aqui chegados e por considerar, que a utilização de dados de gestão da sociedade não se confunde com qualquer tipo de invasão particular da vida privada dos seus gerentes, nada obsta que se confirme o decidido.

Improcedem, por isso, in totum as conclusões recursivas, sendo de confirmar a sentença recorrida.

III - Decisão
Termos em que, acordam os juízes da 1.º Subsecção do Contencioso Tributário do TCA Sul em negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida que assim se mantém na ordem jurídica.

Custas pela Recorrente.

Lisboa, 11/07/2019

__________________________

(Hélia Gameiro Silva)

_________________________

(Jorge Cortez) (Vencido, conforme declaração de voto)

_________________________

(Lurdes Toscano)


Voto de vencido

Os presentes autos suscitam a questão de saber se é suficiente à garantia do controlo jurisdicional do uso no procedimento inspectivo por parte da Administração Tributária de transcrições de mensagens de correio electrónico trocadas entre o gerente de uma empresa e sociedades terceiras obtidas no processo de inquérito, ao abrigo de um mandado de busca e apreensão às instalações da sociedade emitido pela Procuradora do Ministério Público de Santo Tirso, Comarca do Porto - DIAP, Secção Única.

É pacífico que a apreensão de correio eletrónico trocado entre sociedades comerciais contende com a inviolabilidade do domicílio e da correspondência (artigo 34.º da CRP e artigo 8.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e, entre outros, Acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem de 14.03.2013, Bernh Larsen Holding AS e outros v. Noruega, queixa nº 24117/08).

É consensual que a licitude do uso em procedimento administrativo da prova obtida em processo-crime implica garantir ao visado o acesso a uma via jurisdicional de controlo da proporcionalidade de tal uso (Acórdão do TEDH de 16.06.2016, Versini-Campinchi e Crasnianski c. França, queixa n.º 49176/11).

Perante as leis tributárias, o sujeito passivo, confrontado com o uso, no procedimento inspectivo, de prova obtida no processo-crime pode, designadamente, recorrer à oposição à diligência (artigo 63.º, n.ºs 5 e 6, da LGT) ou à intimação para um comportamento (artigo 147º.º do CPPT).

Não resulta dos autos que este controlo tenha sido assegurado e, nesta medida, não posso aderir à posição que fez vencimento.


Jorge Cortês