Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:671/10.0BESNT
Secção:CT
Data do Acordão:06/09/2021
Relator:MARIA CARDOSO
Descritores:OBJECTO RECURSO JURISDICIONAL
FALTA DE ATAQUE A UM DOS FUNDAMENTOS DA SENTENÇA RECORRIDA
Sumário:I. O âmbito do recurso jurisdicional é delimitado pelo Recorrente nas conclusões da alegação de recurso (artigo 684.º, n.º 3 do CPC, actual 635.º), pelo que, a sentença não pode ser sindicada pelo tribunal ad quem, na parte em que não sofre impugnação, por ficar fora dos seus poderes de cognição, uma vez que os efeitos do julgado, na parte não recorrida, não podem ser prejudicados pela decisão do recurso, nos termos do disposto no n.º 4, do artigo 684.º do CPC (actual 635.º, n.º 5).
II. Persistindo a anulação contenciosa da correcção impugnada com fundamento em fundada dúvida sobre a existência do acto tributário, decretada por sentença, nessa parte transitada, importa consequentemente que não se possa tomar conhecimento do presente recurso, por este se destinar a obter a revogação da decisão recorrida e a manter o acto impugnado na ordem jurídica, sendo que tal aspiração é processualmente impossível.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os Juízes que constituem a 1.º Subsecção do Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:

I - RELATÓRIO

1. A Fazenda Pública veio interpor recurso jurisdicional da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, proferida em 27/01/2012, que julgou procedente a impugnação judicial deduzida por "S… M... Portugal, Lda.", contra o acto de correcção dos prejuízos fiscais por si apurados no exercício de 2005, o qual resultou da desconsideração como custos dos juros pagos a uma entidade não residente, por excesso de endividamento, nos termos do disposto nos n.ºs 1, e 6, do artigo 61º do CIRC, por aplicação das regras de subcapitalização àquelas operações.

2. A Recorrente apresentou as suas alegações de recurso, formulando as seguintes conclusões:

«I. No que respeita ao não cumprimento do disposto no artº 63º do CPPT, sempre se dirá, que é unânime a posição de que o regime de subcapitalização previsto no art.61º do CIRC se enquadra no conceito de abuso de direito. Mas também é posição assente da doutrina que não se tratando de uma cláusula geral anti-abuso como se encontra plasmada no nº 2 do art.38º da LGT, ela reveste a forma de uma cláusula anti-abuso específica;

II. Questão diferente á a de saber se, sendo o regime de subcapitalização ínsito no art.61º do CIRC reveste a forma de uma cláusula anti-abuso especifica, exige a aplicação do procedimento previsto no art.63º do CPPT.

III. As cláusulas anti-abuso tem por finalidade prevenir e reprimir as crescentes práticas de evasão e fraude fiscais. Cláusulas que se apresentam como cláusulas especiais e cláusulas gerais.

IV. No entanto, nem todas estas disposições podem ser tidas por cláusulas anti-abuso, pura e simples, pois, pelo menos algumas delas como as dos artigos 59º, 60º e 61º do CIRC limitam-se a estabelecer presunções a afastar através de procedimento do art.64º do CPPT, e não cláusulas a aplicar seguindo o procedimento de aplicação de normas anti-abuso previsto no art.63º do CPPT.

V. Tais disposições especiais usualmente qualificadas como normas anti-abuso, entre as quais se encontram os artigos 59º, 60º e 67º (anterior 61º) – subcapitalização, do CIRC, são normas que não se enquadram na hipótese do art.63º do CPPT, em face da definição dada no seu nº2.

VI. Ora, de facto o nº 2 do art.63º estabelece quais as normas anti-abuso que seguem o procedimento estabelecido neste artigo, sendo que considera para tal ¯quaisquer normas legais que consagrem a ineficácia perante a administração tributária de negócios ou actos jurídicos celebrados ou praticados com manifesto abuso das formas jurídicas de que resulte a eliminação ou redução dos tributos que de outro modo seriam devidos.

VII. O endividamento excessivo (subcapitalização) estabelecido no art.61º do CIRC não é uma norma que consagre ineficaz perante a AT negócios jurídicos praticados com manifesto abuso das formas jurídicas dos quais resultem redução ou eliminação de tributos.

VIII. O art.61º do CIRC apenas se limita a estabelecer presunções, presunções que podem ser afastadas pelo sujeito passivo nos termos do art.64º do CPPT.

IX. Sendo essa a posição assumida pela Administração Fiscal, conforme Despacho do Director Geral dos Impostos de 17-01-2004 – Proc.771/2002

X. No que respeita à invocada falta de fundamentação da desconsideração da demonstração pretendida pelo interessado a que se referem as alíneas D) e E), quanto à existência de idêntico nível de endividamento e em condições análogas, se recorresse a uma entidade independente, salvo o devido respeito não podemos concordar com o entendimento vertido na douta sentença recorrida.

XI. Os Serviços de Inspecção Tributária consideraram que o montante de 2.327.266,44€ não podia ser aceite para efeitos de dedução à matéria colectável de IRC pelo facto de ser excessivo face às regras de subcapitalização previstas no art.61º do CIRC;

XII. Consideraram ainda os Serviços de Inspecção que a Impugnante não logrou provar que os empréstimos contraídos entre a Impugnante e a sociedade M... R... Inc se justificavam e que haviam sido contratados em condições e termos idênticos aos que seriam contratados em condições normais de mercado.

XIII. Dos elementos probatórios constantes dos autos dúvidas não restam que a Impugnante no ano de 2005 excedeu o rácio de endividamento a que se refere o nº 3 do artº .61º do CIRC através de empréstimos contraídos com a M... R... Inc., sociedade que detêm 99,998% do capital social da Impugnante os quais foram considerados excessivos 68,51% dos juros no montante de 2.327.266,44€.

XIV. Face ao exposto, bem como ao disposto no artº 61º, nº 6º do CIRC, contrariamente ao invocado na douta sentença recorrida, cabia à Impugnante, e não à Administração Fiscal, provar que poderia ter obtido o mesmo nível de endividamento em condições análogas de uma entidade independente, o que não logrou fazer.

XV. No que respeita ao juros indemnizatórios que a douta sentença entende serem devidos, entendemos, salvo o devido respeito, que não existe fundamentação legal para tal decisão;

XVI. Resulta da douta sentença recorrida, o Tribunal a quo entendeu que assistia razão à impugnante, em virtude da Administração Fiscal não ter dado cumprimento ao disposto no artº 63º do CPPT, o que consubstancia uma preterição de formalidade essencial;

XVII. Considerou ainda que a desconsideração da demonstração pretendida pelo interessado a que se referem as alíneas D) e E), quanto à existência de idêntico nível de endividamento e em condições análogas, se recorresse a uma entidade independente, não se encontra devidamente fundamentada, sendo certo, embora a douta sentença recorrida não o invoque, que tal situação consubstancia uma preterição de formalidade essencial;

XVIII. Pelo que, no caso em apreço não se verifica nenhuma situação subsumível à previsão do artº 43º da LGT, pelo que, a verificar-se a procedência da impugnação, não deverá a Administração Fiscal ser condenada no pagamento de Juros Indemnizatórios.

XIX. Assim, face ao exposto entendemos que a douta sentença recorrida enferma de erro de julgamento, e violação do disposto nos artºs 63º do CPPT, 61º do CIRC e 43º da LGT razão pela qual deverá ser revogada.

Termos em que, com o douto suprimento de Vossas Excelências, deve o presente Recurso ser provido e, consequentemente ser revogada a sentença proferida pelo Douto Tribunal “a quo”, assim se fazendo a costumada Justiça.»

3. A recorrida apresentou as suas contra-alegações, tendo formulado as conclusões seguintes:

«A. Deve ser mantida a douta sentença recorrida, que decidiu pela anulação do ato de liquidação impugnado pela ora Recorrida por preterição de formalidades essenciais, consubstanciadas na violação do procedimento especial previsto no artigo 63.º do CPPT.

B. Isto porque a norma da subcapitalização é considerada unanimemente pela doutrina como uma cláusula específica antiabusiva, de onde se pode concluir que se insere no âmbito de aplicação do referido artigo 63.º do CPPT.

C. Caso assim não se entenda (o que apenas se admite por mero dever de patrocínio), deverão ser conhecidas as restantes ilegalidades suscitadas na p.i., nos termos do n.º 3 do artigo 149.º do CPTA, ex vi artigo 2.º do CPPT.

D. A Recorrente apresenta doutrina contra a aplicação do procedimento especial previsto no artigo 63.º do CPPT ao presente caso, sem no entanto se dar conta que esta mesma doutrina apenas assim o faz porque considera que o regime de subcapitalização não é mais do que uma presunção legal, sendo-lhe aplicável o regime do artigo seguinte, ou seja, o artigo 64.º do CPPT.

E. Acontece que, também pela aplicação do artigo 64.º do CPPT, a liquidação é ilegal visto que a Recorrida apresentou requerimento de abertura de procedimento contraditório próprio, nos termos do n.º 6 do artigo 61.º do Código do IRC e do artigo 64.º do CPPT, tendo o mesmo sido tacitamente deferido, por força do n.º 3 desta última norma.

F. Assim, a liquidação impugnada ou é ilegal por preterição de formalidades essenciais previstas no artigo 63.º do CPPT ou é necessariamente ilegal por violação do artigo 64.º do CPPT e dos artigos 108º, 140º e 141º do CPA, sendo que o próprio RFP reconhece, nas suas alegações de recurso, que era aplicável o artigo 64.º do CPPT.

G. Qualquer interpretação do artigo 64.º do CPPT que exclua da sua aplicação o presente caso configurará uma inconstitucionalidade, por violação do princípio do respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos por parte da Administração neste caso concreto, e ainda da atuação com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa-fé, previstos nos n.ºs 1 e 2 do artigo 266.º da CRP.

H. Isto porque, ao nunca responder ao requerimento de abertura de procedimento contraditório próprio apresentado pela Recorrida, para vir quase 4 anos depois desconsiderar o aí exposto por via de inspeção, configura um venire contra factum proprium inaceitável e inconstitucional por parte da Administração Tributária.

I. A sentença recorrida não considerou provado, nem considerou especificamente por provar, o facto de as condições estabelecidas nos empréstimos entre a Recorrida e a sua casa-mãe serem ou não análogas às condições estabelecidas entre entidades independentes, que é a questão substantiva central nos autos, por força do n.º 6 do artigo 61.º do Código do IRC.

J. No entanto, a sentença recorrida considera que "dos factos com interesse para a decisão da causa e constantes da impugnação, todos objecto de análise concreta, não se provaram os que não constam da factualidade supra descrita", tendo no entanto, em momento prévio, deixado de inquirir a testemunha arrolada, cujo depoimento incidiria precisamente sobre este facto.

K. Não pode o Tribunal a quo deixar de inquirir a testemunha, seja por lapso, seja por considerar que os autos contém todos os elementos... para depois dar por não provado nos autos o facto em relação ao qual a testemunha ia depor, sob pena de violar o princípio do inquisitório e o artigo 511.º, n.º 1 do CPC.

L. A aceitação desta tese, a saber, a não inquirição da testemunha arrolada, por lapso ou com o fundamento de que os autos contêm todos os elementos com interesse para a decisão da causa, e a consequente consideração do facto sobre o qual a mesma iria depor como não provado, redunda na inconstitucionalidade do princípio do inquisitório assim interpretado, por violação do princípio da tutela efetiva.

M. Assim, entende a Recorrida que este Alto Tribunal deverá considera o facto provado, tendo em conta a prova documental produzida, ou então deverá considerar que a sentença não contém os factos pertinentes à decisão da causa e que os autos não fornecem os elementos probatórios necessários à reapreciação da matéria de facto e anular a sentença oficiosamente (cfr. art. 712.º, n.º 4, do CPC, por força dos arts. 792.º e 749.º, do mesmo Código, e 1.º, do CPPT).

N. Tendo a Recorrida juntado aos autos as cotações fornecidas pelo B..., M... e B..., bem como o Relatório Deloitte, elaborado nos termos do artigo 58.º do Código do IRC e da Portaria n.º 1446-C/2001, de 21 de Dezembro, e os financiamentos concedidos à Recorrida por 4 instituições de crédito (B..., B…, B… e S…), todos eles demonstrando que as condições praticadas com a sua casa-mãe foram condições de mercado, e não tendo a Administração Tributária apresentado um único - repita­ se, um único - elemento de prova em contrário, deverá ser efetuado, com fundamento no disposto no artigo 712.º n.º l alínea a) do CPC, aplicável ex vi artigos 749.º e 762.º do mesmo Código, todos aplicáveis por força do disposto no artigo 281.º do CPPT, o aditamento de uma alínea à matéria de facto dada como provada na sentença recorrida, o que se requer e para a qual se sugere a seguinte redação: "As condições praticadas nos financiamentos entre a Impugnante a M... Inc. são análogas às praticadas por entidades independentes".

O. Estando este facto provado, é mister concluir que a liquidação deve seguir anulada, uma vez que viola a lei, visto que o n.º 1 do artigo 61.º do Código do IRC não é aplicável ao caso concreto, por força do seu n.º 6.

P. Mesmo que assim não se entenda, é forçosamente de concluir que exista uma fundada dúvida sobre a existência e quantificação do facto tributário, devendo o ato impugnado ser anulado, nos termos do n.º 1do artigo 100.º do CPPT.

Q. Tal resulta inelutável da constatação de que a Administração Tributária não juntou qualquer documento, informação, análise, estudo comparativo ou elemento que contradissesse os meios de prova apresentados pela Recorrida sobre as condições de mercado dos financiamentos obtidos junto da sua casa-mãe.

R. O que, cabendo à Administração Tributária o ónus da prova, determina a verificação de fundada dúvida sobre a existência e quantificação do facto tributário e a necessária consequência prevista no n.º l do artigo 100.º do CPPT de ser a questão julgada contra a mesma.

S. Mas mesmo que não se entenda que o facto está provado, e mesmo que se entenda também pela não aplicação do n.º 1 do artigo 100.º do CPPT, então deverá este Alto Tribunal considerar que a sentença não contém os factos pertinentes à decisão da causa e que os autos não fornecem os elementos probatórios necessários à reapreciação da matéria de facto e anular a sentença oficiosamente (cfr. art. 712.º, n.º 4, do CPC, por força dos arts. 792.º e 749.º, do mesmo Código, e l.º, do CPPT).

T. A liquidação viola ainda o disposto nos nºs 4 e 5 do artigo 26.° da CDT celebrada entre Portugal e os EUA, sendo por conseguinte inconstitucional por violação do artigo 8.º da Constituição, uma vez que estabelece uma discriminação entre juros pagos a residentes e juros pagos a um residente nos EUA, algo que não é permitido pela CDT, conforme explicitamente referem os Comentários ao Modelo de Convenção Fiscal sobre o Rendimento e o Património da OCDE.

U. E não se argumente contra o exposto referindo que o n.º 8 do artigo 11.° da CDT celebrado entre Portugal e os EUA permite a aplicação do n.º 1 do artigo 61.° do Código do IRC.

V. O n.º 8 do artigo 11.º da CDT permite apenas a desconsiderar fiscalmente o excesso de juros pagos entre entidades relacionadas, quando comparado com os juros que seriam pagos entre entidades independentes; pelo contrário, o n.º 1 do artigo 61.º do Código do IRC permite desconsiderar muito mais: todos os juros que decorrem de empréstimos que excedam o dobro da participação no capital próprio.

W. De acordo com a norma da CDT, a Administração Tributária teria de analisar qual o montante de juros que não seria pago entre entidades independentes (e desconsiderar esse excesso), sublinhando-se que este "excesso de juros " nada tem que ver com o "endividamento excessivo" referido no regime da subcapitalização da nossa lei interna: um diz respeito aos juros pagos em excesso face às condições de mercado, e o outro tem a ver com o limite de endividamento a partir do qual se aplica o regime.

X. A Administração Tributária apenas calculou quais os juros relativos a empréstimos que excedem o dobro da participação no capital, e desconsiderou todos esses juros, violando-se assim explicitamente o estabelecido na CDT, até porque a Administração Tributária nunca chegou a referir qual seria o juro de mercado, ou seja, o juro que seria praticado entre entidades independentes.

Y. Resulta do exposto que a liquidação impugnada é também violadora da CDT e, por conseguinte, do artigo 8.º da CRP.

Nestes termos, e com o doutro suprimento de V. Exas., não deverá ser dado provimento ao presente recurso ou, procedendo o mesmo, deverá ser anulada, nos termos do n.º 3 do artigo 149.º do CPTA, ex vi artigo 2.º do CPPT, a liquidação impugnada ou considerar-se que a sentença não contém os factos pertinentes à decisão da causa e que os autos não fornecem os elementos probatórios necessários à reapreciação da matéria de facto, anulando-se a sentença oficiosamente.

4. Recebidos os autos neste Tribunal Central Administrativo Sul, e dada vista ao Exmo. Procurador-Geral Adjunto, emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.

5. Colhidos os vistos legais, vem o processo à Conferência para julgamento.

II – QUESTÕES A DECIDIR:

O objecto do recurso, salvo questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas conclusões do recorrente, como resulta dos artigos 684.º, nº s 3 e 4 e 685.º-A, n.º 1 do CPC (actuais artigos 635.º, n.ºs 3 e 4 e 639.º, n.º 1, do NCPC) ex vi artigo 281.º do CPPT.

Assim, considerando o teor das conclusões apresentadas, importa apreciar e decidir se a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento de direito (i) ao concluir que a Administração Tributária não deu cumprimento ao procedimento previsto no artigo 63.º do CPPT, face ao requerimento da Recorrida apresentado nos termos do n.º 6, do artigo 61.º do CIRC, para efeitos de demonstração de equivalência de endividamento perante entidade independente; (ii) na interpretação do artigo 61.º, n.º 6 do CIRC; e, (iii) por ter condenado a AT ao pagamento de juros indemnizatórios.


*

III - FUNDAMENTAÇÃO

1. DE FACTO

A sentença recorrida deu como provada a seguinte matéria de facto:

«A) A impugnante constituiu-se como sociedade subsidiária de uma entidade não residente em território português, tendo obtido desta um financiamento para investimento na sua actividade comercial, do qual resultou um endividamento no valor global de € 74.000.000,00 no ano de 2005. - cfr artºs 46º, da p.i. e Relatório da I.T. de fls 90 a 143, dos autos.

B) Nos termos dos contratos de financiamento mencionados em A), foi acordado a concessão de sete empréstimos, cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido, pelos prazos de 10 anos, 5 anos (dois), 4 anos (dois), 1 ano e três meses respectivamente, cujas taxas de juro fixas após majoração oscilam entre os 2,29% os 5,78%. - cfr Relatório de fls 90 a 143, dos autos.

C) Considerando a impugnante que se encontrava numa situação de excesso de endividamento perante aquela entidade, face à média de capital próprio por si apresentada naquele ano de 2005, em 27.01.06 apresentou um requerimento à Adm. Fiscal, nos termos do disposto no nº 6, do artº 61º do CIRC, para efeitos de demonstração de equivalência de endividamento perante uma entidade independente, cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido, o qual foi junto à documentação fiscal relativo a esse exercício, entregue com a declaração anual. - cfr doc. de fls 73 a 88, dos autos.

D) Em 03.07.2009, teve início uma acção inspectiva aos exercícios de 2005 e 2006 da impugnante, cujo Parecer e Despacho proferido sobre o Relatório elaborado pela I.T. se dá aqui por reproduzido, no âmbito da qual foi considerado que o sujeito passivo não deu cumprimento ao disposto no nº6, do artº 61º do CIRC, pelo que se deverá aplicar o nº l , do mesmo artigo, resultando correcções à matéria colectável quanto aos juros suportados em excesso, com base na Informação prestada pela D.S.l.R.C., sob a qual foi proferido Despacho de concordância pelo D.F. Adjunto da D.G.I., em 03.12.09 - cfr Relatório de fls 179 a 460, do P.A. apenso aos autos.

E) A apreciação do requerimento mencionado em C) foi incluído no processo de acção da I.T. e notificado ao requerente com o projecto de relatório para efeitos do exercício do direito de audição antes da conclusão daquele procedimento. - cfr Relatório da I.T. e Anexo 18, de fls 441 a 464 , do P.A apenso.

F) Na sequência do relatório mencionado em D), foi efectuada a liquidação de imposto ao s.p., tendo-se apurado um imposto a pagar no montante de € 390.566,87, o qual foi pago em 29.12.09. - cfr "Print Informático", de fls 499 a 503, do P.A. apenso.


X

Factos Não Provados


Dos factos com interesse para a decisão da causa e constantes da impugnação, todos objecto de análise concreta, não se provaram os que não constam da factualidade supra descrita.

X

Motivação da decisão de facto


A decisão da matéria de facto efectuou-se com base no exame dos documentos e informações oficiais, não impugnados, que dos autos constam, tudo conforme referido a propósito de cada uma das alíneas do probatório.»

*

2. DE DIREITO

A Recorrente assaca à sentença recorrida erro de julgamento porquanto, na sua óptica, o regime de subcapitalização ínsito no artigo 61.º do CIRC, reveste a forma de uma norma cláusula anti-abuso específica, que não exige a aplicação do procedimento previsto no artigo 63.º do CPPT, com a epígrafe “Aplicação de normas anti-abuso”, em face da definição dada no seu n.º 2.

Imputa ainda à decisão da primeira instância erro quanto à interpretação do n.º 6 do artigo 61.º do CIRC, por contrariamente ao invocado na sentença, cabia à Impugnante e não há AT provar que poderia ter obtido o mesmo nível de endividamento em condições análogas de uma entidade independente.

A sentença recorrida conheceu os vícios imputados às correcções efectuadas à matéria colectável do exercício de 2005, relativas ao enquadramento fiscal da subcapitalização das entidades sujeitas a IRC, da sua inserção nas normas sobre o abuso de direito e respectivas cláusulas anti-abuso específicas, da obrigatoriedade de recurso ao procedimento especial para a aplicação de normas anti-abuso, e da sua compatibilidade com as convenções destinadas a eliminar a dupla tributação.

A primeira instância anulou a correcção da matéria colectável em crise nos autos relativa a IRC do exercício do ano de 2005, por dois fundamentos distintos.

A saber:

a) Preterição de formalidade essencial por a AT não ter dado cumprimento ao artigo 63.º do CPPT;

b) Por resultar fundada dúvida sobre a existência do acto tributário (artigo 100.º, n.º 1 do CPPT).

Vejamos, antes do mais, o que foi considerado sobre esta matéria na sentença recorrida, para o que passamos a transcrevê-la na parte relevante da fundamentação de direito:

Estamos aqui em presença de questões relativas ao enquadramento fiscal da subcapitalização das entidades sujeitas a IRC, da sua inserção nas normas sobre o abuso de direito e respectivas clausulas anti- abuso especificas criadas pelo legislador tributário e da obrigatoriedade de recurso ao procedimento especial para a sua aplicação vertido no CPPT, e finalmente da sua compatibilidade com as convenções destinadas a eliminar a dupla tributação.

Quanto ao 1º aspecto, importa sublinhar que as regras relativas à subcapitalização estão previstas no artº 61° do CIRC, sendo que a sua "ratio legis " se ancora na necessidade de travar a evasão fiscal através de "...esquemas de financiamento qualificados como abusivos ... em resultado do elevado endividamento contraído junto ... de entidades associadas não residentes ..." - v. Maria dos Prazeres Lousa "Enquadramento Fiscal da Subcapitalização das Empresas", CTF, nº 392, pags 115-128.

Na sua definição legal o legislador fiscal estabeleceu um principio de endividamento excessivo assente num coeficiente ou rácio entre o valor das dívidas em relação ás entidades relacionadas e dobro do valor da correspondente participação destas no capital próprio da sociedade financiada. - cfr nºl e 3, do artº 61° do CIRC. A consequência tributária que dela resulta é o da não aceitação como custo fiscal dos juros correspondentes á parte do endividamento considerado excessivo - cfr referido nº 1, do preceito legal, "in fine".

Mais se define nessa disposição legal, o que se entende por endividamento relevante, a expressão capital próprio, e as regras relativas ao afastamento da aplicação do excesso de endividamento. - cfr n°4, 5, 6 e 7, do mesmo artigo.

Quanto à sua consideração no âmbito das medidas de política fiscal, as mesmas visam, nas palavras da Ilte. Jurista no obra supra citada "... as mesmas têm como objecto limitar ou condicionar o regime fiscal normalmente concedido aos juros ...visam ...tão só, proteger as receitas fiscais contrariando quer a prática de operações que sob a aparência de contratos de empréstimos constituem verdadeiras entradas de capital. ..quer outras práticas tendentes a ampliar artificialmente as despesas relativas a juros.". Esta última razão é a que está subjacente à previsão normativa nacional na medida em que a mesma estabelece como vimos, limites à dedutibilidade dos juros.

Assim definido o âmbito do regime, importa verificar se a mesma é subsumível nas normas relativas ao abuso do direito.

Tendo presente que tais medidas têm subjacente a noção de fraude à lei em matéria fiscal e que o mesmo se traduz na "...situação de inconformidade entre o resultado concreto da aplicação da lei e o resultado pretendido pela norma, cujo sentido era o da tributação das operações que tivessem um certo resultado. E por isso se pode afirmar que o acto elisivo é um acto lesivo dos valores que ordenam e conferem sentido ao ordenamento jurídico-tributário. - vd nesse sentido J.L. Saldanha Sanches, in "Manual de Direito Fiscal, 2ª ed.2002, pags 116 e segs. Ora,

Tal significa que nesses casos se "... desconsidere os efeitos fiscais dos negócios cuja forma tenha sido escolhida com o objectivo principal de obter uma poupança fiscal"- cfr obra citada, pags 118 e segs. Assim sendo toma-se óbvio que o regime de subcapitalização vertido no CIRC, insere-se sem dificuldades de maior neste tipo de conceito de abuso de direito. Mas se assim é, também resulta claro que, não se tratando de uma cláusula geral anti-abuso como se encontra desenhado no nº2, do artº 38° da LGT, ela reveste necessariamente a forma de uma cláusula anti - abuso específica no âmbito das correcções para efeitos de determinação da matéria tributável das entidades sujeitas a IRC ( cfr artºs 58° e segs, do CIRC)- vd em sentido unânime da doutrina, as obras supra citadas e também J.Lopes de Sousa em comentário ao artº 63°, do CPPT anotado, 5ª Ed., vol 1 ,2006, pags 501 e Prof. J. Casalta Nabais, in "Direito Fiscal" 2ª Ed. 2003, pags 218 e segs.

Já as opiniões não são unânimes quanto á aplicação do procedimento regulado no artº 63°, do CPPT á situação "sub Júdice". Efectivamente, se em relação àquele último autor parece apontar para a necessidade de se socorrer daquele procedimento ainda nos casos de normas específicas anti­ abuso (cfr fls 222, da obra supra citada), já o IlTe Jurisconsulto Saldanha Sanches defende claramente esse recurso por iniciativa do sujeito passivo nesses casos sendo de excluir nos casos de aplicação da clausula geral, no estudo "Abuso de direito em matéria fiscal", in C.T.F. nº 398, pags 13 a 44, já na obra supra citada defende aquele procedimento especial nos casos de aplicação da clausula geral anti-abuso com base na condição da necessária existência de dois negócios, a saber, o que foi realizado por razões fiscais e o que seria realizado se não houvesse a intenção de por meio de outro negócio contornar a lei fiscal, e a consideração de naquelas clausulas anti­ abuso especificas não estar em causa a manipulação de formas jurídicas, o que parece depreender-se que tal procedimento não é adequado para estas últimas - vd fls 122 a 125, daquele Manual . O que segue o entendimento expresso nessa matéria pelo Mº Juiz Conselheiro J. Lopes de Sousa, in obra citada reportando-se à redacção do nº2, do referido preceito legal. O que dizer desta problemática?

Penso, salvo melhor opinião que efectivamente, se impunha aqui o procedimento referido no artº 63º do CPPT, por vários motivos.

Desde logo pelo elemento literal do nº l do preceito que delimita o âmbito daquele procedimento próprio, em relação às disposições anti- abuso nos termos dos códigos e outras leis tributárias sem qualquer limitação quanto a essas normas; em 2° lugar a disposição contida no nº2, do preceito não permite dizer que no âmbito da respectiva previsão se exclua as situações em que não haja manipulação estrita de formas jurídicas já que o que subjaz às clausulas anti- abuso como ficou dito supra é conseguir a tributação pretendida pelo ordenamento jurídico- tributário com a eliminação dos efeitos fiscais de uma certa forma negocial escolhida com a intenção predominante de reduzir o imposto, o que sempre se verificará "numa situação de clara manipulação da liberdade de conformação dos negócios jurídicos ...", com esse objectivo - cfr obra citada, "abuso de direito ..." , pags 31, que este autor já qualificava então como configurando uma situação de abuso de direito. É que aqui a expressão " manifesto abuso das formas jurídicas" significa que houve uma intencionalidade de utilizar uma certa forma negocial (empréstimo) por forma a evitar a intenção normativa de tributar um certo acto, negócio ou facto jurídico, através de operações que sob aquela aparência, "... constituem verdadeiras entradas de capital. ..(ou) outras práticas tendentes a ampliar artificialmente as despesas relativas a juros" , nas palavras da Ilte Jurista Maria dos Prazeres Lousa, in obra supra citada, o que neste caso se traduz no excesso de endividamento, o que conduz á desconsideração do negócio claramente artificial em razão das condições normais de mercado - daí que seja conferido ao interessado a faculdade legal de demonstrar a necessidade de financiamento externo e nível de endividamento e condições financeiras que poderia obter de qualquer entidade independente, nos termos do disposto no nº 6, do artº 61° do CIRC. De resto a cláusula geral anti-abuso introduzida no nº 2, do artº 38° da LGT, veio consagrar idêntica formulação da previsão contida no referido nº2, do artº 63º do CPPT, sendo que a referência aos deveres de fundamentação para a sua aplicação, quanto à descrição dos negócios ou actos de substância económica equivalente aos efectivamente celebrados ou praticados e das normas de incidência, visa tão somente a demonstração por parte da Adm. Fiscal, da intenção inequívoca do ordenamento jurídico -tributário de sujeitar tais operações a tributação (através daquelas limitações à dedutibilidade dos Juros pagos a uma entidade não residente). - Daí que o n°9, do referido preceito do CPPT, ressalve de tal conteúdo do dever de fundamentar, as situações que "de outro modo resulte da lei"- vd epígrafe daquele nº. Tal significa que nas situações de subcapitalização, a fundamentação daquele regime de limitação à dedução de juros se ancorará na verificação de endividamento excessivo para com uma entidade não residente com a qual existam relações especiais. O que em qualquer caso não se julga adequado será a aplicação do procedimento de elisão das presunções vertida no artº 64° do CPPT, pela razão muito simples de que, face á descrição da referida clausula anti- abuso específica, não resulta qualquer presunção enquanto ilação que a lei retira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido, já que o que resulta daqueles fundamentos da sua aplicação é a desconsideração dos actos ou negócios e a intenção normativa de sujeitar a tributação aqueles encargos. Posto isto,

Face ao apurado em C), D) e E), do probatório, verifica-se que a Adm. Fiscal não deu cumprimento ao disposto no procedimento próprio a que se refere o mencionado artº 63º do CPPT, face ao requerimento mencionado na alínea C), daquele segmento da presente sentença, nomeadamente a autorização a que se refere o nº 7, o valor do silencio face àquela solicitação do contribuinte, pelo que se verifica uma preterição de formalidade essencial que inquina o acto de correcção do prejuízo fiscal apurado pelo impugnante naquele ano. De resto,

Face à própria fundamentação da desconsideração da demonstração pretendida pelo interessado a que se referem as alíneas D) e E), quanto à existência de idêntico nível de endividamento e em condições análogas, se recorresse a uma entidade independente, compreendendo elementos retirados da própria empresa e elementos externos, não estão suficientemente fundamentados na óptica do Tribunal, impondo-se a esta a obtenção e/ou, a solicitação de outros elementos relevantes que permitissem aferir da sua conformidade com as condições de mercado, maxime os níveis de endividamento de empresas comparáveis no âmbito da sua actividade, outras declarações de entidades financeiras não necessariamente prévias ao recurso ao financiamento externo (para a demonstração de que o contribuinte poderia ter obtido o mesmo nível de endividamento e em condições análogas, de uma entidade independente, já que a lei não impõe que o sujeito passivo obtenha antecipadamente as opções de financiamento porque essa matéria não pode ser retirada ao exercício de competências próprias da gestão normal da sociedade e suas opções comerciais legítimas, cabendo à Adm. Fiscal apurar que tais operações visavam obter uma vantagem fiscal que o legislador fiscal pretende evitar , pelo que resulta a fundada dúvida sobre a existência do facto tributário.- cfr nº l , do artº 100° do CPPT. (…)

Ora, a Recorrente ataca a sentença quanto ao fundamento de anulação da correcção relativo à obrigatoriedade do procedimento referido no artigo 63.º do CPPT e quanto à interpretação do artigo 61.º, n.º 6 do CIRC (cfr. conclusões I a XIV das conclusões da alegação de recurso) deixando sem impugnação o fundamento de anulação por existência de fundada dúvida, como se vê das conclusões da alegação de recurso.

A decisão recorrida, ao contrário do alegado, não considerou que cabia à Administração Tributária, e não à Impugnante, provar que esta poderia obter o mesmo nível de endividamento em condições análogas de uma entidade independente, e também não interpretou erradamente o n.º 6, do artigo 61.º do CIRC.

Com efeito, no enquadramento legal da questão escreveu-se na sentença «É que aqui a expressão “manifesto abuso das formas jurídicas” significa que houve intencionalidade de utilizar uma certa forma negocial (empréstimo) por forma a evitar a intenção normativa de tributar um certo acto, (…) o que neste caso se traduz no excesso de endividamento, o que conduz à desconsideração do negócio claramente artificial em razão das condições normais de mercado – daí que seja conferido ao interessado a faculdade legal de demonstrar a necessidade de financiamento externo e nível de endividamento e condições financeiras que poderia obter de qualquer entidade independente, nos termos do disposto no n.º 6, do artigo 61.º do CIRC.».

Por outro lado, acresce salientar que a Recorrente não impugnou a decisão sobre a matéria de facto.

Entendendo o Mmo. Juiz a quo que verifica-se uma preterição de formalidade essencial que inquina o acto de correcção do prejuízo fiscal apurado pela impugnante no ano de 2005, por a Administração Tributária não ter dado cumprimento ao procedimento a que se refere o artigo 63.º do CPPT.

Apesar de ter julgado procedente o fundamento de preterição de formalidade essencial, sendo suficiente para anular a correcção em crise e, por isso, desnecessário a apreciação das demais questões suscitadas na petição inicial pela Impugnante, não deixou o Tribunal a quo de apreciar mais dois vícios imputados à mesma correcção, julgando um deles procedente e o outro improcedente.

Quanto à fundamentação da desconsideração da demonstração pretendida pela impugnante, entendeu o Mmo. Juiz a quo que a Administração Tributária não cumpriu cabalmente com o ónus da prova dos pressupostos do seu agir, resultando fundada dúvida sobre a existência do facto tributário, o que não é compaginável como erro na interpretação do n.º 6, do artigo 61.º do CIRC.

Na verdade, o endividamento da Recorrida não se trata de matéria controvertida, visto que foi aquela que tomou a iniciativa de apresentar requerimento, ao abrigo do n.º 6, do artigo 61.º do CIRC, para demonstração da equivalência de endividamento perante uma entidade independente, cujo requerimento foi posteriormente junto ao procedimento de acção inspectiva, onde acabou por ser considerado que o sujeito passivo não deu cumprimento ao disposto no n.º 6, do artigo 61º do CIRC, conforme decorre do probatório.

Ora, o Tribunal a quo julgou, face à prova produzida, que resulta a fundada dúvida sobre a existência do facto tributário, nos termos do n.º 1, do artigo 100.º do CPPT.

A norma ínsita no n.º 1 do artigo 100.º da LGT consubstancia uma aplicação da regra geral sobre o ónus da prova prevista no n.º 1, do artigo 74.º da LGT, e é aplicável quando da prova produzida resultem fundadas dúvidas sobre a existência do facto tributário.

Com efeito, caso se prove a existência ou inexistência de um facto tributário não haverá lugar à aplicação desta norma, porque não há dúvidas (num ou noutro sentido).

O n.º 1, do artigo 100.º do CPPT preceitua o seguinte: «Sempre que da prova produzida resulta fundada dúvida sobre a existência e quantificação do facto tributário, deverá o acto impugnado ser anulado.»

Como já se deixou expresso, este preceito constitui uma aplicação no processo de impugnação judicial da regra geral sobre o ónus da prova, enunciada no artigo 74.º, n.º 1 da LGT, regra que faz recair sobre o onerado com a prova de um facto a desvantagem da dúvida (vide neste sentido Ac. do TCAS de 25/06/2013, processo n.º 04830/11, disponível em www.dgsi.pt/).

Acontece que, no caso em apreço, as alegações de recurso e respectivas conclusões são totalmente omissas acerca deste concreto fundamento de anulação da correcção em crise, alegado nos pontos 323 e segs. da petição inicial, e declarado na sentença, em cumprimento do princípio in dubio contra fiscum.

A Recorrente limita-se de uma forma genérica a referir que cabia à Impugnante a prova da referida demonstração e que o Tribunal a quo errou na interpretação do n.º 6, do artigo 61.º do CIRC.

O âmbito do recurso jurisdicional é delimitado pelo Recorrente nas conclusões da alegação de recurso (artigo 684.º, n.º 3 do CPC, actual 635.º), pelo que, a sentença não pode ser sindicada pelo tribunal ad quem, na parte em que não sofre impugnação, por ficar fora dos seus poderes de cognição, uma vez que os efeitos do julgado, na parte não recorrida, não podem ser prejudicados pela decisão do recurso, nos termos do disposto no n.º 4, do artigo 684.º do CPC (actual 635.º, n.º 5).

Persistindo a anulação contenciosa da correcção impugnada com fundamento em fundada dúvida sobre a existência do acto tributário, decretada por sentença, nessa parte transitada, importa consequentemente que não se possa tomar conhecimento do presente recurso, por este se destinar a obter a revogação da decisão recorrida e a manter o acto impugnado na ordem jurídica, sendo que tal aspiração é processualmente impossível.

Sobre esta questão pronunciou-se o Supremo Tribunal Administrativo em acórdão de 14/01/2015, processo n.º 0973/13, que sufragamos, aderindo sem reservas ao seu discurso fundamentador, que com a devida vénia transcrevemos:

«Como resulta do que deixámos já dito, a impugnação judicial foi julgada improcedente com mais do que um fundamento.

Na verdade, o Juiz, começou por apreciar a excepção peremptória invocada pela Fazenda Pública – abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium –, que considerou proceder e determinar a absolvição da Fazenda Pública do pedido.
A nosso ver, porque o Juiz considerou que a impugnação constituía abuso de direito e, por isso, absolveu a Fazenda Pública do pedido (decisão que ora não cumpre sindicar porque fora do objecto do recurso) deveria a sentença ter-se quedado por aí, pois, as demais questões suscitadas nos autos – respeitantes aos vícios do procedimento inspectivo que esteve na origem da liquidação impugnada e que alegadamente se repercutiram na legalidade desse acto tributário – ficaram prejudicadas pela solução dada à questão do abuso do direito [cfr. art. 608.º, n.º 2 («
O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras».), do Código de Processo Civil (CPC)]. No entanto, o Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel entendeu prosseguir na apreciação das questões suscitadas pela Impugnante na petição inicial, julgando-as a todas improcedentes.

Acontece, porém, que a Impugnante atacou a sentença apenas quanto a esta última decisão – relativa à parte em que foram apreciados os vícios por ela assacados ao procedimento inspectivo –, nada dizendo no recurso relativamente à primeira parte, ou seja, àquela em que foi apreciada a excepção peremptória inominada do abuso de direito e, em consequência, se absolveu a Fazenda Pública do pedido. É certo que, como decorre dos n.ºs 2 e 4 do art. 635.º do CPC («[…] 2. Se a parte dispositiva da sentença contiver decisões distintas, é igualmente lícito ao recorrente restringir o recurso a qualquer delas, uma vez que especifique no requerimento a decisão de que recorre.
[…]
4. Nas conclusões da alegação, pode o recorrente restringir, expressa ou tacitamente, o objecto inicial do recurso. […]»), pode o recorrente restringir o recurso a uma parte da sentença quando esta contiver decisões distintas, desde que o especifique no requerimento de interposição do recurso ou essa restrição do objecto do recurso resulte, expressa ou tacitamente, das conclusões do recurso. Mas, fazendo-o, a parte da sentença que não seja recorrida transita em julgado, como resulta do disposto no art. 628.º do CPC («A decisão considera-se transitada em julgado logo que não seja susceptível de recurso ordinário ou de reclamação».) – com os efeitos previstos no n.º 1 do art. 619.º do CPC («1. Transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696.º a 702.º».) – e o afirma expressamente o n.º 5 do citado art. 835.º do CPC («5. Os efeitos do julgado, na parte não recorrida, não podem ser prejudicados pela decisão do recurso nem pela anulação do processo».).
Ou seja, no caso
sub judice, a sentença transitou em julgado na parte em que nela se considerou verificada a excepção peremptória inominada do abuso de direito e, em consequência, se absolveu a Fazenda Pública do pedido.

Assim, a apreciação do recurso revela-se inútil, uma vez que, ainda que fosse provido, nunca a Recorrente obteria o efeito jurídico pretendido – a revogação da sentença –, uma vez que sempre se manteria o julgamento nela efectuado, de absolvição do pedido com fundamento na excepção do abuso de direito.

A apreciação e decisão do recurso não teria qualquer interesse processual (Revestindo mero interesse teórico ou académico, que aos tribunais não compete tutelar.), interesse que constitui uma condição da admissibilidade do próprio recurso.
Neste sentido se tem vindo a pronunciar a jurisprudência (
Vide, por mais recentes, os seguintes acórdãos desta Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
- de 17 de Outubro de 2012, proferido no processo n.º 583/12, publicado no
Apêndice ao Diário da República de 8 de Novembro de 2013 (http://www.dre.pt/pdfgratisac/2012/32240.pdf), págs. 3006 a 3010, também disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/9f4ccd5a4dc9034880257aa10033483b?OpenDocument;
- de 24 de Outubro de 2012, proferido no processo n.º 696/12, publicado no
Apêndice ao Diário da República de 8 de Novembro de 2013 (http://www.dre.pt/pdfgratisac/2012/32240.pdf), págs. 3177 a 3185, também disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/3434984cdb89a15f80257aa8003b5358?OpenDocument;
- de 13 de Novembro de 2013, proferido no processo com o n.º 1020/13, publicado no
Apêndice ao Diário da República de 26 de Junho de 2014 (http://www.dre.pt/pdfgratisac/2013/32240.pdf), págs. 4474 a 4477, também disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/caec64fb82bc19fd80257c29004adb24?OpenDocument.) e a doutrina (Vide JORGE LOPES DE SOUSA, Código de Procedimento e de Processo Tributário anotado e comentado, Áreas Editora, 6.ª edição, IV volume, anotação 12 ao art. 279.º, pág. 337.).» (vide ainda Ac. do TCAS de 10/02/2004, proc. 07507/02, ambos disponíveis em www.dgsi.pt/).

Termos em que não tomamos conhecimento do recurso.


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Conclusões/Sumário:

I. O âmbito do recurso jurisdicional é delimitado pelo Recorrente nas conclusões da alegação de recurso (artigo 684.º, n.º 3 do CPC, actual 635.º), pelo que, a sentença não pode ser sindicada pelo tribunal ad quem, na parte em que não sofre impugnação, por ficar fora dos seus poderes de cognição, uma vez que os efeitos do julgado, na parte não recorrida, não podem ser prejudicados pela decisão do recurso, nos termos do disposto no n.º 4, do artigo 684.º do CPC (actual 635.º, n.º 5).

II. Persistindo a anulação contenciosa da correcção impugnada com fundamento em fundada dúvida sobre a existência do acto tributário, decretada por sentença, nessa parte transitada, importa consequentemente que não se possa tomar conhecimento do presente recurso, por este se destinar a obter a revogação da decisão recorrida e a manter o acto impugnado na ordem jurídica, sendo que tal aspiração é processualmente impossível.


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IV – DECISÃO

Termos em que, face ao exposto, acordam em conferência os juízes da 1.ª Subsecção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul, em não tomar conhecimento do recurso.

Custas pela Recorrente.

Notifique.

Lisboa, 9 de Junho de 2021.


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A Juíza Desembargadora,

Maria Cardoso

(assinatura digital)


(A Relatora consigna e atesta, nos termos do disposto no artigo 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13/03, aditado pelo artigo 3.º do DL n.º 20/2020, de 01/05, o voto de conformidade com o presente Acórdão das restantes Juízas Desembargadoras integrantes da formação de julgamento, Senhoras Juízas Desembargadoras Catarina Almeida e Sousa e Hélia Gameiro Silva).