Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:772/06.9BEALM
Secção:CT
Data do Acordão:05/07/2020
Relator:TÂNIA MEIRELES DA CUNHA
Descritores:AUTOCONSUMO EXTERNO DE BENS
OFERTAS
USOS COMERCIAIS
IVA
Sumário:I. Em sede de IVA, são tributadas as situações de autoconsumo externo de bens, visando dar resposta a situações em que determinados bens da empresa são afetos a fins estranhos a essa própria empresa, deixando de ter a utilização para a qual teriam sido adquiridos, desde que tenha existido dedução, total ou parcial, do IVA suportado na sua aquisição.
II. Está excluído do conceito de autoconsumo externo de bens o caso das amostras ou ofertas de pequeno valor, em conformidade com os usos comerciais.
III. Numa aproximação ao conceito de “usos comerciais” ter-se-á de atentar em padrões de habitualidade em termos de prática comercial, designadamente no tocante às práticas promocionais.
IV. A oferta de determinados artigos de merchandising da Recorrente aos seus colaboradores enquadra-se no conceito de oferta de pequeno valor em conformidade com os usos comerciais.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
Acórdão

I. RELATÓRIO

A…..– ….., Lda (doravante Recorrente ou Impugnante) veio apresentar recurso da sentença proferida a 29.08.2017, no Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Almada, na qual foi julgada improcedente a impugnação por si apresentada, que teve por objeto as liquidações adicionais de imposto sobre o valor acrescentado (IVA) e as dos respetivos juros compensatórios, relativas aos anos de 2002 e 2003.

O recurso foi admitido, com subida imediata nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

Nesse seguimento, a Recorrente apresentou alegações, nas quais concluiu nos seguintes termos:

“A) O presente recurso vem interposto da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada, de 29/08/2017, que julgou “a presente impugnação improcedente, e consequentemente absolvo a Fazenda Pública do pedido”, sobre a impugnação judicial apresentada pela ora Recorrente contra os atos de liquidação de IVA e juros compensatórios n.° ….., ….., ….. e ….., correspondentes aos períodos de Julho de 2002 e de Dezembro de 2003, relativamente ao IVA suportado na aquisição de artigos para oferta, no montante total de € 7.142,81 (sete mil, cento e quarenta e dois euros e oitenta e um cêntimos).

B) De acordo com a sentença recorrida, considerou o Tribunal a quo “(...) que o IVA suportado pela ora Recorrente com a aquisição de bens publicitários com o objetivo de promoção comercial não pode ser deduzido pois tal dedução é proibida pelo artigo 21.° do Código do IVA. (...)”

C) Sucede que, as despesas objeto do presente recurso não se subsumem a nenhuma das situações taxativamente previstas no artigo 21.° do Código do IVA.

D) Com efeito, ficou provado que as despesas objeto do presente recurso respeitam a bens com imagens da empresa, adquiridos e atribuídos exclusivamente aos colaboradores da empresa, conforme o uso comercial do grupo V….., com o único objetivo de promoção comercial dos bens produzidos.

E) Ficou de igual forma provado que esta ação promocional não é estranha ao fim da empresa, ora Recorrente.

F) Por seu turno, ficou de igual forma demonstrado que o artigo 21.° do Código do IVA é uma norma de exclusão das operações com direito à dedução.

G) Significa isto portanto que se estivermos perante uma situação que se subsuma taxativamente a alguma das operações descritas no artigo 21.° do CIVA, então não poderão ser deduzidas.

H) Conforme ficou demonstrado, as despesas incorridas pela ora Recorrente com a aquisição de bens para oferta promocional dos seus produtos, não está excluída pelo artigo 21.° do Código do IVA, pelo que deverá ser aceite a sua dedução nos termos da regra geral prevista no artigo 20.° do Código do IVA.

I) Deste modo, deverá a decisão ora recorrida ser revogada por erro na aplicação do direito em virtude de interpretação errónea de norma expressa o que consubstancia violação de lei substantiva e, consequentemente, substituída por sentença que determine a anulação dos atos de liquidação impugnados, com as demais consequências legais, designadamente o pagamento dos respetivos juros indemnizatórios”.

A Fazenda Pública (doravante Recorrida ou FP) não apresentou contra-alegações.

Foram os autos com vista ao Ilustre Magistrado do Ministério Público, nos termos do então art.º 289.º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), que emitiu parecer, no sentido de ser negado provimento ao recurso.

Colhidos os vistos legais (art.º 657.º, n.º 2, do CPC, ex vi art.º 281.º do CPPT) vem o processo à conferência.

É a seguinte a questão a decidir:

a) Há erro de julgamento, em virtude de as despesas suportadas respeitarem a bens com a imagem da empresa, adquiridos e atribuídos exclusivamente aos colaboradores da empresa, com o único objetivo de promoção comercial dos bens produzidos, sendo, por isso, o IVA respetivo dedutível?

II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

II.A. O Tribunal recorrido considerou provada a seguinte matéria de facto:

“1. No âmbito de uma acção de fiscalização tributária desencadeada pela Direcção de Finanças de Setúbal, ao abrigo da ordem de serviço nº OI….. e nº OI….., foram analisadas, designadamente, as deduções de IVA suportado pela impugnante, relativamente a artigos para oferta, nos exercícios de 2002 e 2003 (cfr. relatório de inspecção a fls. não numeradas do processo administrativo apenso);

2. Na sequência dessa acção de fiscalização, a Administração Tributária (AT) propôs diversas correcções à matéria tributável, em sede de IVA, por, nos termos do artº 20º do CIVA, ter considerado a dedução indevida do montante de € 2.174,15, no exercício de 2002, e do montante de € 4.250,39, no exercício de 2003 (cfr. idem);

3. Tal imposto havia sido facturado pela sociedade “M….. - ….., Lda.”, na venda de t-shirts, no ano de 2002, e, designadamente, de bolas de futebol e vólei, bonés, esferográficas, gravatas, lenços, relógios de secretária, guarda-chuvas, no ano de 2003 (cfr. fls. 29 a 32 dos autos e anexos 15 e 31 do relatório de inspecção junto ao PA apenso);

4. Exercendo o seu direito de audição, a impugnante invocou que os artigos (T-shirts) foram adquiridos e atribuídos exclusivamente aos seus colaboradores, com finalidade publicitária, de acordo com os usos comerciais definidos pelo Grupo V….., e que tais artigos integram o conceito de “pequeno valor”, por não ultrapassarem unitariamente o montante de € 14,96, definido na circular nº 19/89, de 18 de Dezembro;

5. No relatório final a AT fez constar, no ponto 1.2.1.3 que: “ O s.p. contabilizou numa conta de IVA dedutível o IVA incluído numa factura da empresa M….. - ….., Lda. Essa factura é relativa à compra de t-shirts, as quais foram oferecidas a colaboradores e familiares. Entende -se que não estão em causa “amostras” ou “ofertas”, mas “outros gastos”, pelo que não sendo estes bens adquiridos pelo s.p. para a realização de operações tributadas em IVA, o direito à dedução está limitado pelo disposto no artigo 20º do CIVA. (…). No mesmo relatório, no ponto III.1.3, invocou que: “(…) as lembranças oferecidas não se enquadram na parte final da alínea f) do nº 3 do artº 3º do CIVA, uma vez que não correspondem a ofertas de acordo com os usos comerciais, como resulta do circulado 111.980, de 88.12.07.” E, na sequência do exercício do direito de audição, a AT referiu que: “Pretende o s.p. fazer demonstrar que se tratam de ofertas com “finalidade publicitária”. Se atendermos à actividade económica desenvolvida pelo s.p. (fabricação de veículos automóveis) verificamos que o desempenho da sua actividade não depende de forma directa e verificável das ofertas em questão. (…)”. (cfr. ponto IX fls. 58-59 do relatório de inspecção);

6. Na sequência das conclusões do relatório, a AT emitiu as liquidações nºs ….., ….., ….. e ….. ora impugnadas (cfr. fls. 21 a 24 dos autos);

7. A impugnante procedeu ao pagamento do montante de € 14.784,54 relativo ao IVA considerado indevidamente deduzido, acrescido dos correspondentes juros compensatórios, no valor de € 2.072,36 (cfr. fls. 21 a 24 dos autos; print de 17.10.2006 a fls. não numeradas do PA apenso; por acordo)”.

II.B. Refere-se ainda na sentença recorrida:

“Não se provaram quaisquer outros factos passíveis de afectar a decisão de mérito em face das possíveis soluções de direito e que, por conseguinte, importe registar como não provados”.

II.C. Foi a seguinte a motivação da decisão quanto à matéria de facto:

“A convicção do Tribunal fundou-se na prova documental junta aos autos, e, em concreto, no teor dos documentos indicados em cada um dos pontos supra”.

III. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

III.A. Do erro de julgamento

Considera a Recorrente que o Tribunal a quo laborou em erro, na medida em que inexiste qualquer situação configurável como de exclusão do direito à dedução, sendo que as despesas em causa respeitam a bens com a imagem da empresa, adquiridos e atribuídos exclusivamente aos seus colaboradores, conforme uso comercial do grupo.

In casu, estão correções efetuadas pela administração tributária (AT) em sede de IVA, de acordo com as quais, por ter sido entendido não se enquadrarem as ofertas em causa no âmbito da al. f) do n.º 3 do art.º 3.º do Código do IVA (CIVA), não é dedutível o IVA suportado na sua aquisição, atento o disposto no art.º 20.º do CIVA.

Vejamos então.

O Imposto sobre o Valor Acrescentado é um imposto plurifásico, que assenta numa estrutura de entrega e respetiva dedução, pelos vários intervenientes na cadeia, até ao consumidor final, que o suporta, sem o poder deduzir.

O direito à dedução do IVA é um direito que assiste aos sujeitos passivos deste imposto, desde que os bens e os serviços, a que respeita tal imposto a deduzir, sejam utilizados para os fins das próprias operações tributáveis (1).

O IVA funciona, pois, pelo método indireto subtrativo, de acordo com o qual o sujeito passivo deduz, ao imposto liquidado nos seus outputs, o imposto liquidado nos respetivos inputs.

Trata-se de um reflexo do princípio da neutralidade, subjacente a este imposto, que, no que toca ao direito à dedução em específico, se reflete na necessidade de o IVA não condicionar os produtores a alterar o seu processo produtivo.

Nos termos do art.º 3.º do CIVA (na redação então em vigor):

“1 - Considera-se, em geral, transmissão de bens a transferência onerosa de bens corpóreos por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade.

(…) 3 - Consideram-se ainda transmissões de bens, nos termos do n.º 1 deste artigo:

(…) f) Ressalvado o disposto no artigo 25º, a afetação permanente de bens da empresa, a uso próprio do seu titular, do pessoal, ou em geral a fins alheios à mesma, bem como a sua transmissão gratuita, quando, relativamente a esses bens ou aos elementos que os constituem, tenha havido dedução total ou parcial do imposto. Excluem-se do regime estabelecido por esta alínea as amostras e as ofertas de pequeno valor, em conformidade com os usos comerciais”.

Prevê esta disposição legal a tributação, em sede de IVA, do chamado autoconsumo externo de bens [cfr., para os serviços, o então art.º 4.º, n.º 2, al. a), do CIVA].

Esta norma tem a sua génese no art.º 5.º, n.º 6, da Sexta Diretiva (2). O objetivo do legislador da União Europeia prendeu-se com a necessidade de combater a fraude e a evasão fiscais, tributando consumos que decorram da desafetação à atividade produtiva.

Como refere Patrícia Noiret da Cunha (3):

“O auto-consumo corresponde a uma saída de bens da empresa que se caracteriza pela inexistência de contraprestação. Esta operação é considerada transmissão de bens com vista a evitar consumos privilegiados, sem pagamento de IVA (auto-consumo externo) ou a evitar o exercício de deduções que não correspondem à utilização real dos bens (auto-consumo interno). A neutralidade do imposto exige que estas operações sejam tributadas, uma vez que o seriam se fossem realizadas por terceiros, sujeitos passivos de imposto. Caso contrário, o sujeito passivo que auto-consome estaria numa situação de concorrência desleal face aos restantes agentes económicos. A tributação do auto-consumo visa combater a evasão e fraude fiscal e a concorrência desleal.

Estão abrangidas no conceito de auto-consumo externo a afectação permanente de bens da empresa a uso próprio do seu titular, ou do pessoal ou, em geral, a afectação permanente daqueles bens para fins alheios à actividade económica exercida. Por afectação a lei designa o destino inicial que é dado a determinados bens que são desviados do seu destino natural, sendo adstritos a outra finalidade.

Estão também abrangidas as transferências de bens da empresa efectuadas sem contraprestação: as ofertas ou doações de bens da empresa a terceiros constituem igualmente auto-consumo.

(…) O auto-consumo externo transcende a unidade económica produtiva, uma vez que se verifica quando os bens ou serviços são `retirados' dos bens da empresa, sem qualquer contraprestação, seja por transferência gratuita para terceiros, seja por afectação dos bens a uso próprio do titular desses bens ou do pessoal da empresa. É o facto de os bens serem desviados para fins estranhos à sua actividade produtiva que justifica a tributação do auto-consumo externo, de modo a evitar que os bens da empresa sejam desviados pelo sujeito passivo para uso próprio, o que lhe traria vantagens relativamente a um consumidor final que adquire bens e suporta o respectivo imposto.

É o caso do sujeito passivo que adquire um computador e o afecta à sua actividade, deduzindo o IVA suportado. Posteriormente, afecta-o a uso próprio, o que constitui auto-consumo tributado nos termos da alínea f) do n.° 3 do presente artigo”.

O Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), no seu Acórdão de 16 de fevereiro de 2012 (Eon Aset Menidjmunt, C-118/11, ECLI:EU:C:2012:97, n.º 39), sublinha que “… o conceito de entrega de um bem não se refere à transferência da propriedade nas formas previstas pelo direito nacional aplicável, mas inclui qualquer operação de transferência de um bem corpóreo por uma parte que confira à outra parte o poder de dispor dele, de facto, como se fosse o proprietário desse bem (v. acórdãos de 8 de fevereiro de 1990, Shipping and Forwarding Enterprise Safe, C320/88, Colet., p. I285, n.° 7, e de 6 de fevereiro de 2003, Auto Lease Holland, C185/01, Colet., p. I1317, n.° 32)”.

Quanto ao direito à dedução, em sede de IVA, como já referimos supra, o seu exercício revela-se de importância fundamental na mecânica do imposto, sendo o mesmo que permite assegurar o respeito pelo princípio da neutralidade (4).

O CIVA, a este respeito, prevê as regras inerentes à dedução de IVA, que passam pela definição das suas linhas gerais nos art.ºs 19.º e 20.º e pela consagração expressa de situações de exclusão do direito à dedução (art.º 21.º).

Assim, chamando à colação o art.º 19.º do CIVA, especificamente o seu n.º 1, al. a), do mesmo decorre que os sujeitos passivos de IVA podem deduzir, ao imposto incidente sobre as suas operações tributáveis, o imposto devido ou pago pela aquisição de bens e serviços a outros sujeitos passivos de IVA.

Por seu turno, previa o então art.º 20.º do CIVA:

“1 - Só poderá deduzir-se o imposto que tenha incidido sobre bens ou serviços adquiridos, importados ou utilizados pelo sujeito passivo para a realização das operações seguintes:

a) Transmissões de bens e prestações de serviços sujeitas a imposto e dele não isentas;

b) Transmissões de bens e prestações de serviços que consistam em:

I) Exportações e operações isentas nos termos do artigo 14º;

II) Operações efetuadas no estrangeiro que seriam tributáveis se fossem efetuadas no território nacional;

III) Prestações de serviços cujo valor esteja incluído na base tributável de bens importados, nos termos da alínea b) do n.º 2 do artigo 17.º;

IV) Transmissões de bens e prestações de serviços abrangidas pelas alíneas b), c), d) e e) do n.º 1 e pelos n.ºs 8 e 10 do artigo 15.º;

V) Operações isentas nos termos dos n.ºs 28) e 29) do artigo 9.º, quando o destinatário esteja estabelecido ou domiciliado fora da Comunidade Económica Europeia ou que estejam diretamente ligadas a bens que se destinam a ser exportados para países não pertencentes à mesma Comunidade;

VI) Operações isentas nos termos do artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 394-B/84, de 26 de dezembro.

2 - Não haverá, porém, direito à dedução do imposto respeitante a operações que deem lugar aos pagamentos referidos na alínea c) do nº 6 do artigo 16º”.

Esta disposição legal acaba por ter franca conexão com o art.º 23.º do Código do IRC, cujo corpo do n.º 1, dispunha: “… [c]onsideram-se custos ou perdas os que comprovadamente forem indispensáveis para a realização dos proveitos ou ganhos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora…”, seguindo-se, na previsão legal, uma enumeração exemplificativa dos mesmos.

Por seu turno, o art.º 21.º do CIVA (redação então vigente) consagra um conjunto de situações nas quais há exclusão do direito à dedução. Como mencionado por Alexandra Martins e Lídia Santos (5): “O legislador português [manteve] (…) as restrições à dedução do IVA que constavam do art. 21º do CIVA à data em que a Sexta Directiva entrou em vigor. Estas abrangem, essencialmente, despesas que, pela sua natureza e caraterísticas específicas, podem ser utilizadas para fins privados, consubstanciando um consumo final (…). // De acordo com o [Tribunal de Justiça da União Europeia] (…) [a]s exclusões podem aplicar-se a todo o tipo de despesas, incluindo aquelas que têm caráter estritamente profissional”.

O enquadramento que acabamos de fazer justifica-se em virtude de, do RIT, decorrer que a correção, no sentido da não dedutibilidade do IVA inerente aos custos incorridos com as ofertas em causa, se fundar no entendimento de que não se tratam de ofertas de pequeno valor, para efeitos do art.º 3.º, n.º 3, al. f), do CIVA. Deste raciocínio, concluiu-se que o IVA suportado não é dedutível. Sublinhe-se que, apesar de ser feito o enquadramento no âmbito do mencionado art.º 3.º, não houve qualquer tributação a título de autoconsumo externo de bens, mas tão-só uma desconsideração dos valores deduzidos ao abrigo do art.º 20.º do CIVA, o que nunca foi posto em causa. Como tal, a análise do art.º 3.º, n.º 3, al. f), do CIVA, será feita enquanto enquadramento para apreciação da conclusão extraída, no sentido de se estar perante IVA não dedutível.

Como tal, cumpre analisar o âmbito de aplicação do mencionado art.º 3.º, n.º 3, al. f), do CIVA.

Vejamos então.

Como se referiu supra, o autoconsumo de bens referido na al. f) do n.º 3 do art.º 3.º do CIVA visa dar resposta a situações em que determinados bens da empresa são afetos a fins estranhos a essa própria empresa, deixando, pois, de ter a utilização para a qual teriam sido adquiridos, desde que, naturalmente, tenha existido dedução, total ou parcial, do IVA suportado na sua aquisição.

O legislador, no entanto, excluiu deste conceito de autoconsumo externo de bens o caso das amostras ou ofertas de pequeno valor, em conformidade com os usos comerciais.

Desde já se refira que não consta da Sexta Diretiva qualquer densificação quer do conceito de “ofertas de pequeno valor” quer do conceito de “usos comerciais”.

Da mesma forma, à época, não constava de qualquer diploma legislativo português qualquer densificação a esse respeito.

O TJUE, a este propósito, especificamente quanto à existência de limites quantitativos às ofertas de pequeno valor, já se pronunciou no sentido de que “[o]s Estados Membros gozam de uma certa margem de apreciação no que respeita à interpretação desta última, desde que não desrespeitem a finalidade e a posição que essa disposição ocupa na economia da Sexta Diretiva” (6).

À época, a então direção-geral dos impostos (DGCI) emitiu uma instrução administrativa atinente a esta temática, a Circular 19/89, de 18 de dezembro (à qual, aliás, está associada muita litigância em torno dos limites quantitativos ali fixados (7), questão que ora não está em causa).

De acordo com a interpretação vertida na referida instrução administrativa:

“1. As ‘amostras’ deverão ser entendidas como respeitando a bens comercializados e/ou produzidos pela própria empresa, mas de formato ou tamanho diferente do produto que se pretende "mostrar" ou apresentadas, em quantidade, capacidade, peso ou medida, substancialmente inferiores aos que constituem as unidades de venda, e que, por esse facto, não serão destinadas a posterior comercialização.

2. As ‘Ofertas’, por sua vez, poderão ser constituídas, quer por bens comercializados ou produzidos pela própria empresa, quer por bens adquiridos a terceiros…”.

Verifica-se, pois, que também do ponto de vista de concretização do conceito de “ofertas de pequeno valor de acordo com os usos comerciais”, a interpretação expressa pela AT apenas esclarece que tais ofertas poderão tratar-se quer de bens produzidos pela empresa, quer por terceiros.

Assim, numa aproximação ao conceito de “usos comerciais” ter-se-á de atentar em padrões de habitualidade em termos de prática comercial, designadamente no tocante às práticas promocionais.

Como referido por Mafalda Coelho Moreira (8), “… a referência legal a usos comerciais (…) visa essencialmente excluir conceptualmente as liberalidades que não apresentem qualquer conexão com a actividade empresarial do sujeito passivo. Às ofertas subsumíveis no preceito deverá, por força desta norma, estar subjacente um intuito económico ou comercial; inter alios, o de dar a conhecer os produtos comercializados e o de promover um incremento do volume de vendas. Em suma, desde que inseridas no âmbito das políticas comerciais instituídas com vista à promoção da imagem corporativa e desde [que] não lhes subjaza um mero animus donandi, podemos considerar a respectiva concessão abrangida pelos usos comerciais”.

Chama-se ainda à colação o Ofício-Circulado nº 111980, de 07.12.1988, referido no RIT, do qual se extrai a interpretação da AT no sentido de que as lembranças oferecidas aos empregados, por motivo de aniversário, por ocasião do natal e sorteios por todos os empregados de bens de uso pessoal, não se qualificam como amostras ou ofertas, mas como gastos de ação social.

Feito este introito, cumpre apreciar.

Está em causa nos autos a oferta de determinados artigos de merchandising da Recorrente aos seus colaboradores, o que não foi factualmente posto em causa pela AT, que se limitou, designadamente em sede de análise do exercício do direito de audição, a referir que o desempenho da atividade não depende de forma direta e verificável das ofertas em questão, não podendo ser aceite como respeitando a publicidade.

Desde já se adiante que não se acompanha este entendimento da AT, considerando-se que assiste razão à Recorrente.

Vejamos então.

Em termos de enquadramento no âmbito do art.º 3.º, n.º 3, al. f), in fine, do CIVA, de facto considera-se que as ofertas em causa se enquadram no conceito de ofertas de pequeno valor de acordo com os usos comerciais. Com efeito, trataram-se de artigos de merchandising diversos (t-shirts, bonés, esferográficas, bolas, etc… - cfr. facto 3), o que desde logo as distancia do conceito de lembrança a que respeita a interpretação da AT vertida no ofício circulado 111.980 (esta mais próxima do conceito de liberalidade, sem qualquer fim publicitário ou promocional).

Por outro lado, a AT, ao contrário do que era seu ónus, atento o disposto no art.º 74.º da LGT, limita-se a considerar, em sede de RIT, que estas ofertas não correspondem a ofertas de acordo com os usos comerciais.

Ora, apelando às regras da experiência, conclui-se que este raciocínio, per se, é falível, porquanto, no âmbito das opções de cariz publicitário e promocional, é muito frequente que as empresas ofereçam, designadamente aos seus colaboradores, artigos de merchandising, justamente com o objetivo de promover a sua imagem ou a sua marca, desde logo pelo próprio uso que seja feito pelos colaboradores dos artigos de merchandising em questão.

Ou seja, não se trata aqui de uma mera liberalidade, como poderá eventualmente suceder nas situações a que o ofício circulado 111.980 se refere, mas sim de uma ação promocional, consubstanciada na oferta de determinados produtos de merchandising junto dos colaboradores. Sublinhe-se, aliás, que não existe qualquer limitação subjetiva no CIVA quanto aos destinatários das ofertas de pequeno valor.

Assim, por essa via considera-se que assiste razão à Recorrente.

Ademais, como referimos, a AT, considerando não se enquadrar a situação em crise no âmbito do art.º 3.º, n.º 3, al. f), do CIVA, não procedeu à tributação daquele que, no seu entender, era um autoconsumo externo de bens, mas procedeu, sim, à correção da dedução do IVA suportado relativo aos artigos de merchandising em causa.

A este respeito, cumpre desde já sublinhar que a fundamentação da AT, constante do RIT, radica unicamente no disposto no art.º 20.º do CIVA. Assim, ao contrário do que decorre da sentença recorrida, não foi a situação controvertida configurada como caso de exclusão do direito à dedução, nos termos do art.º 21.º, n.º 1, al. d), do CIVA. Aliás, refira-se que nada nos autos permite configurar as despesas em causa como despesas de representação, nos termos consignados nesta última disposição legal mencionada, não tendo a AT demonstrado tal configuração, que a própria, como referimos, nem sequer fez.

Assim, no RIT, no qual teremos de ir exclusivamente aferir a fundamentação que esteve na origem da correção, uma vez que é esta a contemporânea do ato, o IVA suportado na aquisição dos produtos de merchandising referidos foi considerado não dedutível, em virtude de se tratar de bens que não foram adquiridos para a realização de operações tributadas em IVA.

Como já referimos supra, o n.º 1 do art.º 20.º do CIVA determina que é dedutível o IVA suportado na aquisição de bens ou serviços, desde que designadamente visem a realização de transmissões de bens e prestações de serviços sujeitas a imposto e dele não isentas.

Naturalmente que o âmbito de aplicação do disposto no art.º 20.º, n.º 1, do CIVA, abrange aquisições de bens ou serviços que, direta ou indiretamente, visem a realização de transmissões de bens e prestações de serviços sujeitas a imposto e dele não isentas.

Com efeito, ao contrário do que parece decorrer do RIT, tratando-se os bens em causa merchandising, como já referimos anteriormente, trata-se de despesas de publicidade, não sendo de acolher o argumento esgrimido pela AT no RIT, em sede de análise do direito de audição, no sentido de que o “desempenho da (…) actividade [da ora Recorrente] não depende de forma directa e verificável das ofertas em questão”.

Ora, as despesas de publicidade visam a promoção da imagem e/ou dos produtos comercializados por uma determinada empresa, visando, a final, naturalmente, que tal publicidade tenha repercussão positiva nas suas vendas. Como tal, enquadram-se no âmbito do art.º 20.º do CIVA, na medida em que se relacionam com a atividade desenvolvida pela Recorrente. Já se o método publicitário utilizado não é o mais eficaz, trata-se de opção gestionária do sujeito passivo, que não cabe à AT sindicar (9).

Como tal, o IVA suportado em causa enquadra-se no âmbito do art.º 20.º do CIVA, assistindo, pois, razão à Recorrente, o que se traduz igualmente no direito a juros indemnizatórios, dado estarmos perante uma situação de erro imputável aos serviços (art.º 43.º, n.º 1, da LGT).

IV. DECISÃO

Face ao exposto, acorda-se em conferência na 2.ª Subsecção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:

a) Conceder provimento ao recurso, revogando a sentença recorrida e, em consequência, julgar a impugnação procedente, com a decorrente anulação das liquidações em crise na parte impugnada, e condenar a Fazenda Pública no pagamento de juros indemnizatórios, contados desde a data do pagamento até emissão da nota de crédito respetiva;

b) Custas pela Recorrida em ambas as instâncias;

c) Registe e notifique.


Lisboa, 07 de maio de 2020

(Tânia Meireles da Cunha)

(Anabela Russo)

(Vital Lopes)


----------------------------------------------------------------------------
(1) Sobre o direito à dedução, v., v.g., os acórdãos do TJUE de 8 de junho de 2000, Midland Bank, C-98/98, ECLI:EU:C:2000:300, de 1 de abril de 2004, Bockemühl, C90/02, ECLI:EU:C:2004:206, n.° 38, e de 15 de julho de 2010, Pannon Gép Centrum, C368/09, ECLI:EU:C:2010:441, n.° 37 e jurisprudência aí referida
(2) Sexta Diretiva 77/388/CEE do Conselho, de 17 de maio de 1977, relativa à harmonização das legislações dos Estados Membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios – Sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado: matéria coletável uniforme.
(3) Patrícia Noiret da Cunha, Imposto sobre o Valor Acrescentado – Anotações ao Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado e ao Regime do IVA nas Transacções Intracomunitárias, Instituto Superior de Gestão, Lisboa, 2004, pp. 113 e 114.
(4) V. a este respeito Clotilde Celorico Palma, Introdução ao Imposto sobre o Valor Acrescentado, 6.ª Ed., Almedina, Coimbra, 2014, pp. 228 a 230, Patrícia Noiret da Cunha, ob. cit., p. 332.
(5) «Exclusões do direito à dedução – Art.º 21.º», Código do IVA e RITI – Notas e Comentários, Almedina, Coimbra, 2014, p. 258.
(6) Acórdão de 30 de setembro de 2010, EMI Group, C-581/08, ECLI:EU:C:2010:559, n.º 42.
(7) V., v.g., os Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 21.11.2007 (Processo: 0709/07), de 15.10.2008 (Processo: 0470/08), de 14.07.2008 (Processo: 0204/08), de 18.09.2008 (Processo: 0202/08) e de 30.10.2019 (Processo: 0216/10.1BESNT)
(8) «O IVA nas actividades promocionais com vista à fidelização e angariação de clientela», Cadernos IVA 2014, Almedina, Coimbra, 2014, pp. 259 e 260.
(9) V., a este propósito, o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, de 16.02.2017 (Processo: 01438/09.3BEBRG)