Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:511/05.1BEBJA
Secção:CA
Data do Acordão:12/06/2018
Relator:SOFIA DAVID
Descritores:ALTERAÇÃO DE USO
PROPRIEDADE HORIZONTAL
TÍTULO CONSTITUTIVO DA PROPRIEDADE HORIZONTAL
Sumário:I – O destino a atribuir às várias fracções autónomas pode resultar apenas implícito na escritura de constituição de propriedade horizontal;
II - Sendo requerida a uma Câmara Municipal a alteração de uso de uma fracção autónoma, é lícita a exigência por essa Câmara da comprovação pelo particular requerente de que existe prévio acordo de todos os condóminos relativamente a essa alteração;
III- Do regime legal constante dos art.sº 1418.º, n.º 2, a), 3 e 1422.º, n.º 2, al. b) e 4, do Código Civil, decorre que o uso que foi atribuído pelo projecto de construção ao prédio e às várias fracções será o único uso que pode figurar no título constitutivo da propriedade horizontal. Caso este título divirja do que consta no projecto, torna-se parcialmente nulo, ou essa estipulação negocial torna-se nula. Na mesma lógica, estando omissa a indicação do uso no título constitutivo da propriedade horizontal, essa mesma circunstância irreleva para efeitos de se poder dar um uso diferente ao prédio ou à fracção. Isto é, na omissão dessa indicação no título constitutivo da propriedade horizontal terá sempre que valer o que ficou fixado no projecto de construção aprovado.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral: I - RELATÓRIO
O Município de Sines interpôs recurso do acórdão do TAF de Beja, que indeferiu a reclamação apresentada da decisão proferida por aquele mesmo TAF, que julgou procedente a presente acção e condenou o Município de Sines “a praticar o acto administrativo devido, com respeito pelas vinculações legais aplicáveis, ou seja, a decidir o pedido de alteração de uso apresentado pelo Autor com respeito pelo disposto no artigo 1422.º do Código Civil e demais normativos legais aplicáveis”.
Em alegações são formuladas pelo Recorrente, as seguintes conclusões: ”A) A douta decisão recorrida padece de erro de julgamento, tendo o digníssimo tribunal “a quo” efetuado uma errada interpretação e aplicação do disposto no artº 1422, nº 4, conjugado com o disposto no artº 1419º, artº 1416º, artº 9º, artº 9º, artº 12º todos do CC, conjugados ainda por mera cautela com o disposto nos artºs 236º, 238º, 280º e 294º todos do CC, bem como efetuou uma errada interpretação e aplicação do disposto no artº 67º, conjugado ainda com o disposto nos artºs 9º, nº 1, 11º, nºs 1, 2 e 6 e 62º todos do DL nº 555/99, de 16/12 na redação vigente à data do ato administrativo impugnado.
B) Ao caso concreto é de aplicar o disposto no artº 1419º do CC, o qual exige o acordo de todos os condóminos e não o disposto no nº 4 do artº 1422º do CC, o qual entrou em vigor em 01/01/1995, sendo certo, ainda, que, tal norma não afasta a aplicação do artº 1419º do CC, pelo contrário.
C) Conforme resulta dos factos assentes – Cfr. Alíneas B) a D) e respetivos documentos – todas as frações autónomas, com exceção da destinada a cave, são destinadas a habitação.
D) Da conjugação do disposto no artº 1416º, nº 1 do CC com o disposto no artº 1419º, nº 1 do CC, a alteração ao uso das frações autónomas apenas é lícita mediante autorização escrita de todos dos condóminos e implica a alteração da escritura pública, sob pena de nulidade;
E) Sendo certo que nenhum uso pode ser dado às frações em manifesta contrariedade com o projeto licenciado e respetivo alvará de utilização para habitação, sob pena de nulidade. – Cfr. artº 1416º, artº 1419º, artº 280º, artº 294º todos do CC.
F) O digníssimo tribunal “a quo” efetuou uma errada interpretação e aplicação do disposto no artº 67º do DL nº 555/99, 16/12, sendo certo ainda que no caso presente estamos perante questão que prejudica a apreciação do pedido de alteração do uso pretendido pela A.
G) E, sem conceder, caso fosse de entender que ao concreto é de aplicar o disposto no nº 4 do artº 1422º do CC – O que não se admite mas que se refere por era cautela – não menos certo é que existindo oposição de um dos condóminos, por razões de tranquilidade e paz pública, podem as autarquias locais exigir a concordância de todos os condóminos para que então se possa apreciar um qualquer pedido de alteração do uso constante do título constitutivo da propriedade horizontal.
H) Pelo que, o ato impugnado é válido, lícito, eficaz e assim deve ser mantido na ordem jurídica, revogando-se o douto Acórdão recorrido.”

O Recorrido não contra-alegou.
A DMMP apresentou pronúncia no sentido da improcedência do recurso.

II – FUNDAMENTAÇÃO
II.1 – OS FACTOS
Na 1.ª instância foram fixados os seguintes factos, que se mantêm:
A) Encontra-se inscrito na Conservatória do Registo Predial de Sines sob o n.º 02…, da freguesia de Sines, o prédio urbano sito na Rua da R…– Talhão … – Moradia composta por cave destinada a arrecadação, rés- do-chão, 1º e 2º andares com um terraço destinado a miradouro e local acessório com a área de 176m2, integrado pelas fracções A, B, C, D, E, F e G (cfr. documento n.º 1 junto com a petição inicial);
B) Em 2-12-1976, foi concedida a J… e J …. licença para habitabilidade por referência ao prédio identificado na alínea que antecede (cfr. documentos n.ºs 5 e 6 juntos com a contestação do Município Demandado e fls. 112 do processo administrativo apenso);
C) No dia 30-12-1976, foi outorgada no Cartório Notarial de Sines escritura pública de constituição de propriedade horizontal e de compra e venda respeitante ao prédio urbano melhor identificado em A) supra, de cujo teor se extrai o seguinte:«(…) Que o referido prédio satisfaz os requisitos legais para nele ser constituída a propriedade horizontal, sendo composto por sete fracções autónomas, distintas e isoladas entre si, que são as seguintes:
Fracção A – é constituída por cave, destinada a arrecadação e armazém, pendente de legalização administrativa para escritórios e fins conexos (…)
Fracção B – é constituída pelo rés-do-chão direito, com corredor, cozinha, despensa, duas casas de banho e quatro assoalhadas, tem a área coberta de oitenta e dois metros quadrados, correspondendo-lhe a área de seis metros quadrados como quota parte nas circulações comuns. (…)
Fracção C – é constituída nos termos rigorosamente exarados para a anterior fracção e corresponde ao rés-do-chão esquerdo.
Fracção D – é constituída pelo primeiro andar direito, composto por igual números de divisões e pela mesma descrição, valor e permilagem das fracções anteriores B) e C).
Fracção E – é constituída pelo primeiro andar esquerdo, tem a mesma constituição, área, valor, permilagem e descrição referidas para a fracção B.
Fracção F – é constituída pelo segundo andar direito, com constituição, área, valor, permilagem e descrição iguais às mencionadas na fracção B.
Fracção G- é constituída pelo segundo andar esquerdo, com constituição, área, valor, permilagem e descrição iguais às referidas na fracção anterior.(…)» (cfr. Documento n.º 3 junto com a petição inicial);
D) Pela apresentação n.º 02, de 6-04-1977, foi inscrita na Conservatória do Registo Predial de Sines, a constituição da propriedade horizontal sobre o prédio melhor identificado na alínea que antecede (cfr. documento n.º 1 junto com a petição inicial).
E) Pela apresentação n.º …, de 26-01-2004, mostra-se inscrita a favor do ora Autor e M…., casados no regime de comunhão de adquiridos, o rés-do-chão esquerdo, com corredor, cozinha, despensa, duas casas de banho e 4 divisões, com a área coberta de 82 m2 e cabendo-lhe a parcela de 6m2 nas circulações comuns (cfr. documento n.º 1 junto com a petição inicial);
F) Pela apresentação 1, de 5-09-1988, mostra-se inscrita a favor dos Contra-Interessados M…. e F…. a fração autónoma sita na Rua da R…., n.º 1, correspondente ao rés-do-chão direito (cfr. documento n.º 1 junto com a petição inicial);
G) Em 19-05-2004, a Contra-Interessada M…. apresentou uma queixa contra a existência de uma escola de inglês no prédio identificado em A) supra (cfr. documento n.º 7 junto à contestação do Município Demandado);
H) Com data de 11-06-2004, a Entidade Demandada expediu o ofício n.º 3…/1/4 dirigido ao Autor para que procedesse ao licenciamento da alteração de uso da fração correspondente ao R/C Esquerdo do prédio sito na Rua da R…., n.º 1, em Sines (cfr. fls. 189 do processo administrativo apenso);
I) Em 13-10-2004, reuniram em assembleia-geral extraordinária os condóminos do prédio urbano sito na Rua da R…, número um, em Sines, tendo deliberado «…a administração informou que a concordância dada pelos condóminos na anterior assembleia ao funcionamento da escola de inglês na fracção C não tinha sido suficiente para ser aceite pela Câmara Municipal de Sines, pelo que colocou a votação uma nova proposta, com o seguinte teor: uma vez que o título constitutivo não dispõe sobre o uso das fracções, os condóminos deliberam nos termos do disposto no nº 4 do artigo 1422º do código civil, autorizar e aprovar a alteração do uso da fracção C, de habitação para prestação de serviços, de modo a permitir a legalização junto da Câmara Municipal de Sines, do funcionamento da Escola de Inglês “K…”. A proposta foi aprovada com o voto contra da fracção B, correspondente ao R/C Dto e os restantes votos a favor, correspondendo a oitocentos e cinquenta e sete vírgula dezasseis por mil do capital do prédio. (…)» (cfr. documento n.º 4 junto com a petição inicial);
J) Em 29-10-2004, a advogada do Autor requereu o prosseguimento do processo de licenciamento de alteração do uso da fracção correspondente ao R/C Esq.º do prédio sito na Rua da R…., n.º 1, em Sines, de modo a permitir o funcionamento da escola de inglês “K….” (cfr. fls. 215 a 233 do processo administrativo apenso);
K) Em 19-01-2005, a Contra-Interessada M….. apresentou, junto da Entidade Demandada, uma reclamação devido a utilização ilegal da fração do Autor e lesão do seu direito ao descanso e propriedade (cfr. documento n.º 2 junto com a contestação apresentada pelos Contra-Interessados);
L) Em 28-02-2005, M…. requereu a junção ao processo com o n.º 415/1/71, a ata n.º 2 da reunião do condomínio do prédio sito na Rua da R…, 1 (cfr. fls. 234 a 240 do processo administrativo apenso);
M) Em 16-03-2005, foi lavrado parecer com o assunto «Reclamação de M….. //Licenciamento do estabelecimento “K....”», de cujo teor resulta, nomeadamente, o seguinte:«(…)Neste sentido, resulta que o título constitutivo não diz expressamente que as fracções autónomas se destinam a habitação, sendo que, limita-se a descrevê-las, caracterizando-as. Na verdade, a única fracção que tem uma especificação expressa quanto às possibilidades de uso é a que se refere à cave – fracção A. Porém, há que ter em consideração que no título constitutivo se faz menção expressa à licença de habitabilidade, a qual, corresponde à licença de habitação, pelo que, numa primeira análise dir-se-á que o destino das fracções autónomas se encontra definido implicitamente.
Importa ainda reter o seguinte: - O Título constitutivo não pode atribuir às fracções autónomas do edifício um destino ou utilização diferente da constante do respectivo projecto aprovado pela Câmara Municipal, sob pena de nulidade parcial. Daqui resulta desde logo que o título constitutivo pese embora não refira expressamente o uso das fracções, na parte em que as identifica, a verdade é que também não poderia referir outro destino que não fosse o da habitação.
- Por outro lado, o destino das fracções autónomas tanto pode ser estabelecido no título constitutivo de propriedade horizontal através de declaração expressa, como pode resultar da forma como elas se encontram ali descritas, designadamente no que respeita às características das divisões que as integram, tendo sempre em conta o que resultar da respectiva licença de utilização (…).
- Ora, o título constitutivo deve ser interpretado de acordo com o significado corrente das expressões usadas, tendo ainda em consideração o momento e o contexto legislativo em que foi concretizado. – Assim, qual o uso que se pode depreender quando no título constitutivo se caracterizam as fracções autónomas utilizando as seguintes expressões – cozinha, despensa, duas casas de banho e quatro assoalhadas – associado ao facto de que a licença emitida pela Câmara Municipal expressamente ser referida à respectiva habitabilidade? E o que dizer quando expressamente se refere no título constitutivo que “pelas declarações das partes, verifica-se que as restantes fracções autónomas, em face das áreas, preços, fim a que se destinam, valores matriciais (…) estão isentos de SISA(…)”? – é que não só se faz menção ao fim de forma implícita, como ainda tal resulta da declaração de isenção de SISA, sendo que a aludida isenção do imposto só ocorria no caso de a fracção autónoma se destinar a habitação e, em face do valor. É que a fracção autónoma tem de ser utilizada de acordo com o seu destino económico, dentro das limitações impostas por lei ou pelo título constitutivo.
- Na verdade, o nº 4 do artº 1422º do C.C. dispõe que “sempre que o título não disponha sobre o fim de cada fracção autónoma…”, o que desde logo significa que não é obrigatória a menção do fim. Porém, a menção de tal fim não tem necessariamente de ser expressa, podendo ser aferida de forma implícita, tácita, para além de que tal normativo só deve operar quando de facto se verifique uma omissão total. (…)
- Por tudo o exposto é possível entender que o título constitutivo da propriedade horizontal em apreço não é omisso quanto ao destino a dar às fracções em apreço, até porque houve uma intenção nítida de identificar expressamente e somente o fim a que se destinava a cave diferenciando-a das restantes fracções.
- Nesta ordem de ideias a alteração ao título constitutivo está dependente da aprovação de todos os condóminos, sendo certo que tal aprovação não pode ser suprida judicialmente, carecendo de ser efectivada por escritura pública.
Ora, porque a Câmara Municipal antes de proferir qualquer decisão quanto à admissibilidade de alteração do uso, deve aferir da legitimidade do respectivo requerente a qual, no caso concreto, tem implícita a necessidade de verificar da necessidade de deliberação de todos os condóminos para os efeitos previstos, não deve autorizar a alteração do uso da fracção em apreço em face da falta de verificação do requisito supra referido.
Aliás, independentemente da questão supra, ou seja, caso a mesma não se colocasse, não obstante, há ainda que ter em consideração o seguinte:
- A Câmara Municipal não está obrigada a alterar as condições da licença de utilização (…), há ainda que ter em atenção o facto de que nem sempre o direito que se consubstancia na prossecução de tal actividade, se sobrepõe ao direito ao repouso e à privacidade, no sentido que as relações de vizinhaça implicam limitações ao direito de propriedade as quais mais não visam do que proteger direitos subjectivos que se inscrevem no âmbito da tutela do direito de personalidade e da reserva da vida privada, pelo que, colidindo o direito de personalidade, na vertente da saúde, a um ambiente sadio, ao descanso e ao repouso, com o direito de propriedade - exploração de actividade de prestação de serviços em causa, deve prevalecer o direito de personalidade e da própria reserva da privacidade. É óbvio que esta última questão se afigura, numa primeira análise como de direito privado, ou seja, não compete à Câmara Municipal de Sines resolver, decidir ou interferir nas relações de vizinhança. Porém, a paz pública e as condições de segurança – de prevenção de ruídos subjazem ao princípio do interesse público, pelo que, neste sentido sempre poderá a Câmara Municipal prosseguir o fim que melhor assegure esse interesse. (…)
Pelo exposto, em face da questão prévia levantada e das respectivas conclusões, não deve a Câmara Municipal autorizar a alteração de uso, sendo que, estando em causa uma matéria de direito privado, não tem a Câmara Municipal competência para dirimir qualquer litígio que sobre ela possa surgir, como, aliás, resulta do processo, devendo, nesse sentido, remeter as partes para os tribunais comuns, caso assim o entendam» (cfr. documento n.º 5 junto com a petição inicial);
N) Em reunião da Câmara Municipal de Sines de 6-04-2005, foi deliberado não autorizar a alteração à utilização da fração enquanto não for apresentada ata da Assembleia de Condóminos com aprovação de todos os condóminos (cfr. fls. 246 do processo administrativo apenso);
O) Por ofício 743, de 8-04-2005, com o assunto «LICENCIAMENTO DE OBRAS PARTICULARES – PROC. 415/1/71 – ALTERAÇÃO DE USO DE FRACÇÃO CORRESPONDENTE AO R/C ESQº DO PRÉDIO SITO NA RUA DA R…, Nº 1 – SINES – ESCOLA DE INGLÊS “K....”» foi comunicado ao Autor que «…em reunião de 06.04.05, a CMS deliberou não autorizar a alteração à utilização da fracção, enquanto não for apresentada acta da Assembleia de Condóminos, com aprovação de todos os condóminos, considerando o teor do parecer jurídico que se anexa» (cfr. documento n.º 2 junto com a petição inicial).”

Nos termos dos art.ºs. 662.º, n.º 1 e 665.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil – CPC, acrescentam-se os seguintes factos, por provados:
P) Consta da memória descritiva e justificativa referente ao projecto de construção da moradia referida em A) que é uma “construção multi-habitacional” com “fogos que possuem quatro compartimentos assoalhados, além de cozinha e casas de banho excepto o piso de entrada em que um dos fogos só possui três casas assoalhadas” – cf. doc. de fls. 132.
Q) A moradia indicada em A) tem a “licença de habitação” constante de fls. 134 e de fls. 138, que certifica a sua “habitabilidade” e foi alvo dos autos de vistoria constantes de fls. 136, 140 e 141 que indicam que o prédio em questão visa a “habitabilidade”, constitui uma “parte habitacional” e “possui boas condições de habitabilidade”, salvo a cave que visa “uma ocupação”.
R) Da escritura pública de constituição de propriedade horizontal e de compra e venda respeitante ao prédio urbano melhor identificado em A) supra consta ainda o seguinte:” Verifiquei: (…) A licença de habitabilidade, com a data de nove de Dezembro do ano em curso, emitida pela Câmara Municipal de Sines.(…) comprovativo do pagamento de Sisa, efectuado, hoje, na Tesouraria da Fazenda Pública, deste concelho e referente à transmissão das fracções autónomas, designada pela letra A (cave). Pelas declarações das partes verifiquei que as restantes fracções autónomas, em função das áreas, preços e fins que se destinam, valores matriciais e ainda ao facto de ser esta a primeira transmissão do prédio e em vista dos diversos elementos aludidos, estão isentas do pagamento de sisa, nos termos dos decretos leis números quatrocentos e setenta e dois, de vinte de Setembro de mil novecentos e setenta e quatro, e setecentos e trinta e oito – C, de trinta e um de Dezembro de mil novecentos e setenta e cinco.” (cf. doc. 3 junto com a PI).

II.2 - O DIREITO
As questões a decidir neste processo, tal como vêm delimitadas pelas alegações de recurso e respectivas conclusões, são:
- aferir do erro decisório e da violação dos art.ºs 9.º, 12.º, 236.º, 238.º, 280.º, 294.º, 1416.º, 1419.º, 1422.º, n.º 4, do Código Civil (CC), 9.º, n.º 1, 11.º, n.ºs 1, 2, 6, 62.º e 67.º do Decreto-Lei n.º 555/99, de 16-12, porque pelo facto de na escritura de constituição de propriedade horizontal não constar a indicação expressa que a fracção em questão, o r/c esq., se destina a habitação, não se pode retirar que esse fim não derive daquele título, atendendo aos documentos que sustentaram essa escritura, a saber, o projecto licenciado e o respectivo alvará de utilização, que assim o determinaram, exigindo-se, por isso, que a alteração do uso da fracção tivesse de ter acordo de todos os condóminos e não apenas de uma maioria;
- aferir do erro decisório porque ainda que se entendesse que a escritura de constituição de propriedade horizontal era omissa relativamente ao fim a que se destinava a fracção, a mesma teria sempre que conformar-se com o projecto licenciado e com o respectivo alvará de utilização, sob pena de nulidade e a alteração daquele título de constituição de propriedade horizontal só poder ocorrer com o acordo de todos os condóminos;
- aferir do erro decisório porque o Município, atendendo à oposição de um dos condóminos, também sempre poderia vetar a alteração de uso.

Conforme deriva do teor da escritura de constituição de propriedade horizontal, indicado em c), nessa escritura não se inscreveu de forma expressa o fim para o qual se destinava a fracção C, o r/c esq. da moradia em questão.
Porém, face à correspondente descrição, compreende-se, tratar-se de uma fracção que se destinará a habitação. Esse mesmo fim alcança-se por contraposição à descrição da fracção A, a cave, que se diz destinada a arrecadação e armazém.
Dos dizeres finais da escritura de constituição de propriedade horizontal, relativos ao confronto entre o que ficou lavrado e os documentos que suportavam a licitude do negócio, resulta identicamente que, com excepção da fracção A, as restantes fracções da moradia foram declaradas pelas partes e consideradas como sendo destinadas à habitação, ficando, por isso, isentas do imposto sisa.
Igualmente, atendendo ao conteúdo da memória descritiva e justificativa referente ao projecto de construção da moradia, decorre que a fracção em questão foi construída e licenciada para ser destinada à habitação e não a um uso comercial (cf. factos P e Q, ora acrescentados).
Esse mesmo fim habitacional resulta, como alega o Recorrente, das próprias características das várias divisões que integram a fracção (cf. factos C, P e Q).
Na data em que a escritura de constituição de propriedade horizontal foi outorgada, o art.º 1418.º do Código Civil (CC) não fazia qualquer referência à indicação, nesse documento, do fim a que se destinavam as diferentes fracções. Tal alteração que só ocorreu pelo Decreto-Lei n.º 267/94, de 25-10. Identicamente, a estipulação de que a não coincidência entre o destino de cada fracção, expresso no título constitutivo da propriedade horizontal e o que foi fixado no projecto aprovado, determinava a nulidade daquele título, foi uma alteração inovatória que decorreu da alteração introduzida ao art.º 1418.º por aquele Decreto-Lei (cf. art.º 1418.º, n.º 1, al. a), e 4, na versão dada pelo Decreto-Lei n.º 267/94, de 25-10).
Consequentemente, atendendo ao enquadramento legal vigente à data da outorga da escritura de constituição de propriedade horizontal e às demais circunstâncias factuais, parece evidente que a fracção em questão foi construída e licenciada para se destinar à habitação e que se quis manter aquela mesma finalidade na referida escritura, não obstante tal indicação não ter ficado redigida de forma expressa.
Nos termos do art.º 236.º, n.º 2, do CC, a declaração negocial valerá de acordo com a vontade real do declarante, se esta for conhecida do declaratário. Não sendo tal vontade conhecida, a declaração valerá com o sentido que possa ser deduzido por um declaratário normal, colocado na posição do declaratário real, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele – cf. art.º 236.º, n.º 1, do CC. Nos negócios formais, o sentido que se retira da declaração, ou que possa ser deduzido por um declaratário normal, colocado na posição do declaratário real, terá de ter um mínimo de correspondência com o texto dessa mesma declaração, pelo que terá de ficar expresso naquele texto, ainda que de forma imperfeita – cf art.º 238.º, n.º 1, do CC. O sentido da declaração sem mínima correspondência no texto expresso pode, porém, ainda valer, se traduzir a vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem e essa validade – cf. art.º 238º, nº 2, do CC.
Nestes termos, por aplicação das citadas regras, atendendo a todas as indicações constantes da referida escritura de constituição de propriedade horizontal - desde a referência à venda de uma moradia, que se pressupõe habitacional, composta pelas várias fracções que se descrevem, até às declarações finais relativas à isenção de sisa, decorrente da declaração pelas partes do destino habitacional das fracções, declaração validada pelo notário face aos demais documentos juntos - dever-se-á dar por certa a intenção das partes de atribuir um fim habitacional a todas as fracções, com excepção da fracção A, a cave.
Esse será o melhor sentido a retirar da declaração das partes ou será o sentido que poderia ser retirado por um declaratário normal, colocado na posição do declaratário real. Igualmente, esse é o sentido que ficou indicado naquela escritura, ainda que de forma imperfeita, porque trata-se de uma declaração implícita e não totalmente expressa.
Portanto, no caso em análise, há que concluir que a escritura de constituição de propriedade horizontal contém uma menção implícita ao fim habitacional que é atribuído às várias fracções da moradia em questão, com a ressalva da fracção A.
Quanto à possibilidade da indicada menção estar apenas implicitamente feita naquele título, subscrevemos a posição de Pires de Lima e Antunes Varela quando referem que "o destino das fracções autónomas tanto pode ser estabelecido no titulo constitutivo, mediante declaração expressa, como resultar da forma como elas se encontram ai descritas, designadamente pelo que respeita as características das divisões que as integram" (in LIMA, Pires de/ VARELA, Antunes - Código Civil Anotado, Vol. III, 2ª ed. revista e actualizada (reimpressão). Coimbra: Coimbra Editora, 1987, p. 426. Cf. também neste sentido, entre outros, os Acs. do STJ n.º n.º 079124, de 12-06-1989, do TRL n.º 10801/2007-1, de 01-04-2008. Vide, ainda, o Ac. do STJ de 22-02-1997, in BMJ n.º 234, pp 241 e ss., citado por MESQUITA, M. Henrique – “A propriedade horizontal no Código Civil português”, in Revista de Direito e de Estudos Sociais, Ano XXIII, Jan-Dez, 1-2-3-4, p. 121.
Por conseguinte, os respectivos proprietários, quando compraram o indicado imóvel poderiam ter por certo que as respectivas fracções, com a ressalva da fracção A, a cave, teriam um uso habitacional e que estava vedado aos restantes condomínios dar à fracção um destino diverso desse fim (cf. art.º 1422.º, n.º 2, al. c), do CC).
Neste enquadramento, parece evidente que para efeitos da apreciação, em 2004, pelo Município de Sines, do pedido de alteração do uso da fracção C, este mesmo Município não deveria aplicar a regra constante do art.º 1422.º, n.º 4, do CC, mas sim, tal como o fez, a regra ínsita ao 1419.º, n.º 1, do mesmo Código.
O art.º 1422.º, n.º 4, do CC, na sua nova redacção, não pode ser lido de forma estanque face às restantes alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 267/94, de 25-10. Como decorre da leitura conjugada dos art.sº1418.º, n.º 2, al. a), 3, 1419.º, n.º 1, 1422.º, n.º 2, al. b) e 1422.º-A do CC, na redacção dada por aquele Decreto-Lei, a alteração do título constitutivo de propriedade horizontal carece de acordo de todos os condóminos – com a ressalva prevista no art.º 1422.º-A, n.º 3. Assim, a maioria de 2/3 do valor total do prédio que vem indicada no art.º 1422.º, n.º 4, do CC, só valerá para as situações em que não se proceda a uma alteração do título constitutivo de propriedade horizontal e quando tal título seja omisso relativamente ao destino a dar a cada fracção autónoma, pretendendo-se alterar tal destino porque também já se alterou o correspondente projecto de construção nesse mesmo sentido.
Ora, esta não é a situação em apreço nos presentes autos. Como se disse, na escritura em causa indica-se de forma clara o fim da fracção A, a cave, como sendo destinada a arrecadação e armazém e indica-se, ainda que implicitamente, que as restantes fracções se destinam a habitação. Logo, no caso, não se pode entender que o título constitutivo não dispõe, em absoluto, sobre o fim de cada fracção. Diversamente, aquele título dispõe claramente sobre o fim da fracção A. Quanto às restantes, entende-as como habitacionais, apesar de não o dizer expressamente e se limitar, a final, à indicação de que atendendo ao fim a que se destinam as restantes fracções, tal como é declarado pelas partes, o negócio está isento do pagamento de sisa.
Esclareça-se, ainda, que nos termos dos art.ºs 1.º do Decreto-Lei n.º 472/74 de 20-09, a referida isenção de sisa aplicava-se precisamente aos “prédios ou suas fracções autónomas, destinados a habitação”.
Portanto, na situação em apreço dever-se-á entender que o uso da fracção C, para comércio, implicará uma alteração ao que resulta do título constitutivo e não apenas uma alteração ao projecto licenciado.
Nessa conformidade, não foi errada a conduta do Município de Sines quando aplicou ao caso o art.º 1419.º, n.º 1, do CC e não o art.º 1422.º, n.º 4, do CC, requerendo o prévio acordo de todos os condóminos para poder considerar a alteração do uso da fracção - cf. também os art.ºs. 11.º, n.ºs. 1, 2, 6, 62.º, n.º 1 e 67.º do Decreto-Lei n.º 555/99, de 16-12.
Nestes termos, há que revogar a decisão recorrida quando julgou procedente a acção e condenou o Município de Sines “a praticar o acto administrativo devido, com respeito pelas vinculações legais aplicáveis, ou seja, a decidir o pedido de alteração de uso apresentado pelo Autor com respeito pelo disposto no art.º 1422.º do CC e demais normativos legais aplicáveis”.

O Recorrente invoca um outro erro decisório, aduzindo que a escritura de constituição de propriedade horizontal terá sempre de conformar-se com o projecto licenciado e com o respectivo alvará de utilização, já passado, sob pena de nulidade e que a alteração daquele título de constituição de propriedade horizontal só pode ocorrer com o acordo de todos os condóminos. Diz igualmente o Recorrente, que atendendo à oposição de um dos condóminos, seria-lhe sempre lícito vetar a requerida alteração de uso.
A presente acção, tal como vem configurada pelo A. e Recorrido acaba, na verdade, por redundar numa tentativa de se defraudar o regime civil, regulado nos art.ºs 1418.º, n.º 2, a), 3 e 1422.º, n.º 2, al. b) e 4, do CC, porquanto o que se pretende é a condenação do Município de Sines a deferir o pedido de alteração de uso da fracção C, de habitacional para comercial, em desconformidade com o projecto aprovado e, consequentemente, em dissonância com o único uso que seria lícito figurar na correspondente escritura de propriedade horizontal.
Do regime legal constante dos citados preceitos do CC decorre que o uso que foi atribuído pelo projecto de construção ao prédio e às várias fracções será o único uso que pode figurar no título constitutivo da propriedade horizontal. Caso este título divirja do que consta no projecto, torna-se parcialmente nulo, ou essa estipulação negocial torna-se nula – cf. art.º 1418.º, n.º 3, do CC. Na mesma lógica, estando omissa a indicação do uso no título constitutivo da propriedade horizontal, essa mesma circunstância irreleva para efeitos de se poder dar um uso diferente ao prédio ou à fracção. Isto é, na omissão dessa indicação no título constitutivo da propriedade horizontal terá sempre que valer o que ficou fixado no projecto de construção aprovado (cf. neste sentido, os Acs. do STJ, n.º 8284/07.7TBBRG.G1.S1, de 11-02-2014, n.º 04A3538, de 21-11-2004 , n.º 03B3615, de 22-01-2003, n.º 99B923, de 27-04-2000 ou do TRL n.º 1256/13.4TVLSB.L1-8, de 11-01-2018).
Logo, como acima se indicou, só no caso de o projecto aprovado admitir vários e diferentes usos para um mesmo edifício e/ou para uma mesma fracção, poder-se-á, na omissão do título constitutivo da propriedade horizontal, invocar a regra do art.º 1422.º, n.º 4, do CC e exigência de uma mera maioria. Igualmente, essa invocação poderá ocorrer nas situações em que tenha ocorrido uma alteração ao projecto, que já permita a mudança do uso da fracção.
Assim, no caso sub judice, considerando que o projecto aprovado indica o uso da fracção como sendo habitacional e que as suas características também estão vocacionadas para tal fim, nunca poderia o A. e Recorrido apenas invocar o preceituado no art.º 1422.º, n.º 4, do CC e a maioria aí indicada, para obter a condenação do Município de Sines a deferir o pedido de alteração de uso em desconformidade com o projecto inicial, sob pena de defraudar o regime imposto pelo art.º 1418.º, n.º 3, do CC. Ou seja, o respeito por tal regime impõe que previamente àquela alteração de uso se altere o projecto de construção aprovado.
Mais se indique, que nos autos não vem alegado que o A. e Recorrido tenha procedido a qualquer alteração ao projecto de construção, por forma a adaptá-lo a um diferente uso. Igualmente, nos presentes autos o A. e Recorrido não alega ou prova que a alteração para um uso comercial da fracção esteja em “conformidade (…) com as normas legais e regulamentares que lhe são aplicáveis” e que tal uso se mostre idóneo face ao edifício e correspondente fracção autónoma - cf. art.ºs. 4.º, n.º 2, al. e), 24.º, n.º 6, 62.º, n.ºs 1 e 66.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 555/99, de 16-12.
Portanto, nos presentes autos também não se alegou ou provou factos suficientes para se obter a condenação do Município de Sines a deferir o pedido de alteração de uso da fracção C, de habitacional para comercial, isto é, não se alegou e provou que se estava frente a uma conduta devida, porque totalmente vinculada. A alteração da finalidade da fracção, com a necessária alteração ao que ficou consignado no projecto de construção, depende quer de um requerimento do particular nesse sentido, quer de uma apreciação camarária relativa à correspondente conformidade legal, regulamentar e à idoneidade do local - do edifício e da fracção - para aquele uso, circunstâncias essas que não vêm alegadas como já tendo ocorrido ou como já estando verificadas.
Diga-se, também, que ao proceder à indicada apreciação a Câmara pode ponderar, tal como alega, os interesses urbanísticos, v.g. relacionados com as características do edifício em que se integra a fracção e a oposição manifestada por um dos condóminos.
Da mesma forma, pelas razões que já se expôs, porque a requerida alteração do uso da fracção constitui uma alteração ao que vinha fixado no projecto aprovado, ainda que se entendesse que o título constitutivo da propriedade horizontal era totalmente omisso em relação ao fim a dar às fracções, poderia a Câmara Municipal de Sines fazer depender a apreciação sobre a alteração do uso do do prévio acordo de todos os condóminos, por aplicação dos art.ºs 1418.º, n.º 2, al. a), 3 e 1419.º, n.º 1, do CC.
Em conclusão, o presente recurso procede integralmente.

III- DISPOSITIVO
Pelo exposto, acordam:
- em conceder provimento ao recurso interposto, revogando a decisão recorrida;
- em julgar totalmente improcedente a presente acção;
- custas pelo Recorrente (cf. art.ºs. 527.º n.ºs 1 e 2 do CPC, 7.º, n.º 2 e 12.º, n.º 2, do RCP e 189.º, n.º 2, do CPTA).

Lisboa, 6 de Dezembro de 2018.

(Sofia David)
(Conceição Silvestre)
(José Correia)