Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:12174/15
Secção:CA-2º JUÍZO
Data do Acordão:12/19/2017
Relator:SOFIA DAVID
Descritores:DIREITO DE ACÇÃO POPULAR CORRECTIVA
ILEGITIMIDADE ACTIVA
Sumário:I – O instituto da acção popular implica um alargamento da legitimidade processual activa, porquanto se confere uma legitimidade activa difusa, indirecta, ou impessoal, para propor a acção a quem não seja titular das posições jurídico-substantivas que se invocam no processo. Por esta via, faz-se depreender o interesse substancial do interesse procedimental e processual, afastando-se a regra geral indicada n art.º 9.º, n.º 1, do CPTA, de que é parte legitima (apenas) quem alega ser parte na relação material controvertida – cf. art. 2.º da LAP.

II – O direito de acção popular previsto no art.º 55.º, n.º 2, do CPTA, visa conferir legitimidade activa aos eleitores, que estando no gozo dos seus direitos civis e políticos, pretendam impugnar as decisões e deliberações adoptadas por órgãos das autarquias locais sediadas na circunscrição onde se encontrem recenseados. O A. não sendo um cidadão naquelas condições, mas um movimento de cidadãos, que assim se se terá constituído como pessoa jurídica, não se enquadra naquela previsão.

III – Igualmente, o A. não detém legitimidade activa como actor popular nos termos do art.º 9,º, n.º 2, do CPTA, se através desta acção visa apenas a defesa da legalidade objectiva e se entre as suas atribuições e fins para os quais se constituiu não consta a defesa dessa legalidade
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Proc. n.º 12174/15
Recorrente: Grupo de Cidadãos Eleitores ……………………………
Recorrido: Freguesia de Queluz e Belas

Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Central Administrativo Sul

I - RELATÓRIO

Grupo de Cidadãos Eleitores - ……………………. com Independência, interpôs recurso da decisão do TAF de Sintra, que indeferiu liminarmente a PI apresentada, por ilegitimidade activa.

Em alegações são formuladas pelo Recorrente, as seguintes conclusões: “
« Texto no original»

O Recorrido nas contra-alegações formulou as seguintes conclusões: “1.º A douta sentença ora sindicada não merece qualquer censura, porquanto, ao decidir como decidiu, fez uma correcta aplicação do direito aos factos;
2º - Decorre das disposições conjugadas dos art°s. 52°, n° 3 da CRP, dos arts0. 12°, n° 1, 2o, n° 1 e 3º da Lei n° 83/95, de 31 de agosto, retificada em 12 de outubro de 1995 (declaração de retificação n° 4/95) e art° 9o, n° 2 do CPTA, que a legitimidade ativa na ação popular, se afere pela defesa de interesses difusos relacionados com a saúde pública, o ambiente, o urbanismo, o ordenamento de território, a qualidade de vida, o património cultural, os direitos dos consumidores, os bens do Estado, das Regiões Autónomas e das Autarquias Locais - domínio público;
3a - Têm legitimidade ativa na defesa de tais interesses, quaisquer cidadãos no gozo dos seus direitos civis e políticos e, no caso das associações e fundações defensoras desses interesses, desde que tenham personalidade jurídica e incluam expressamente nas suas atribuições ou nos seus objetivos estatutários a defesa dos interesses em causa no tipo de ação que se trate, o que não é manifestamente o caso dos autos;
Pois que,
4a - Do alegado na petição inicial - violação da legalidade -, bem como, constando dos seus estatutos que o ora recorrente é um movimento independente de cidadãos empenhado na contribuição para uma sociedade civil mais participativa, mais proactiva, mais aberta à discussão, à valorização do potencial humano, tendo em vista o bem comum, cfr. art° Io, é bom de ver que não preenche os requisitos legais necessários para que detenha legitimidade ativa na presente causa;
5a - Também não colhe a tese, invocada em sede de alegação de recurso, de que o que o que aqui estaria em causa era “bens do domínio público, interesse de proteção do domínio público, gestão do domínio público, bens jurídicos do Estado”;
Porquanto,
6.º- No ordenamento jurídico português só a lei fundamental e a lei ordinária, define quais os bens que integram o domínio público, designadamente o domínio público das Autarquias Locais, cfr. art.º 84.º da CRP, pelo que, o caso sub judice não se enquadra em tal domínio expressamente tipificado na lei”.

O DMMP apresentou a pronúncia de fls. 55 a 57, no sentido da improcedência do recurso.

II – FUNDAMENTAÇÃO

II.1 – OS FACTOS

Nos termos dos art.ºs 662.º, n.º 1 e 665.º, do CPC, ex vi art.º 1.º do CPTA, dão-se por provados os seguintes factos:
1) O artigo 1.º dos Estatutos do …………….. com Independência indica que tal movimento tem por objecto a “contribuição para uma sociedade civil mais participativa, mais proactiva, mais aberta à discussão, à valorização do potencial humano, tendo em vista o bem comum” – cf. os referidos estatutos, de fls. 28 a 29, verso, dos autos.

II.2 - O DIREITO

As questões a decidir neste processo, tal como vêm delimitadas pelas alegações e contra-alegações de recurso e respectivas conclusões, são:
- aferir do erro decisório, por o A. e ora Recorrente ter legitimidade activa para apresentar a presente acção, por estar a exercer um direito de acção popular, nos termos do art.º 9.º, n.º 2, ou nos termos do art.º 55.º, n.º 2, ambos do CPTA, pois pretende-se a defesa da legalidade de actos administrativos, relacionados com bens do domínio público - com o espólio, o orçamento e a gestão de dinheiros públicos - porque na Assembleia de Freguesia em que se deliberou o acto ora impugnado foram exercidos ilegalmente direitos de votos e nela participaram vogais que já tinham renunciado ao seu mandato.

O direito de acção popular encontra-se consagrado no art.º 52.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa (CRP) e está regulamentado na Lei n.º 83/95, de 31-08 – Lei de Acção Popular (LAP) - e nos art.ºs 9.º, n.º 2 e 55.º, n.º 2, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA).
Assim, no CPTA prevê-se duas modalidades de acção popular: a acção popular genérica - que vem indicada no art.º 9.º, n.º 2 - e a acção popular de âmbito autárquico, correctiva – referida no art.º. 55.º, n.º 2.
Em qualquer dos casos, o instituto da acção popular implica um alargamento da legitimidade processual activa, porquanto se confere uma legitimidade activa difusa, indirecta, ou impessoal, para propor a acção a quem não seja titular das posições jurídico-substantivas que se invocam no processo. Por esta via, faz-se depreender o interesse substancial do interesse procedimental e processual, afastando-se a regra geral indicada n art.º 9.º, n.º 1, do CPTA, de que é parte legitima (apenas) quem alega ser parte na relação material controvertida – cf. art. 2.º da LAP.
Por conseguinte, nos termos do art.º 9.º, n.º 2, do CPTA, qualquer pessoa, bem como a associações e fundações defensoras dos interesses em causa, as autarquias e o Ministério Público, independentemente do interesse pessoal na demanda, podem figurar em juízo como Autores para a “defesa de valores e bens constitucionalmente protegidos, como a saúde pública, o ambiente, o urbanismo, o ordenamento do território, a qualidade de vida, o património cultural e os bens do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais”.
Por seu turno, nos termos do art.º 55.º, n.º 2, do CPTA, pode ser titular do direito de acção popular de âmbito autárquico qualquer eleitor, no gozo dos seus direitos civis e políticos, quando vise impugnar as decisões deliberações adoptadas por órgãos das autarquias locais sediadas na circunscrição onde se encontre recenseado, assim como das entidades instituídas por autarquias locais ou que destas dependam.
Conforme art.º 3.º, al. b), da LAP “constituem requisitos da legitimidade activa das associações e fundações: (…) b) O incluírem expressamente nas suas atribuições ou nos seus objectivos estatutários a defesa dos interesses em causa no tipo de acção de que se trate”
Como refere Mário Aroso de Almeida, “O exercício dos poderes que decorrem da legitimidade processual prevista no art. 9.°, n.º 2, do CPTA processa-se, como refere o preceito, "nos termos previstos na lei". A remissão tem em vista a Lei n.º 83/95, que, entre outros aspetos, disciplina o exercício do direito fundamental de ação popular, na parte em que, nos arts. 2.° e 3.°, densifica o critério de legitimidade que apenas se encontra genericamente formulado no CPTA e, depois, nos arts. 13.° e segs., estabelece um conjunto de regras a aplicar nos processos intentados por atores populares que sigam termos perante os tribunais administrativos.
A remissão para a Lei n.º 83/95 significa, pois, que a legitimidade processual ativa prevista no art. 9.º, n.º 2, do CPTA deve ser exercida nos termos observando, para além das regras gerais, as regras específicas de tramitação e sobre a decisão judicio que resultam daquela Lei. A remissão tem, assim um duplo alcance.
a) Em primeiro lugar, no plano da legitimidade tem o alcance de complementar e, desse modo, densificar a previsão do art, 9.º, n.º 2, do CPTA, precisando que, para além do Ministério Público (a que a Lei n.º 83/95 não se refere), a legitimidade ativa decorrente do referido artigo só pertence: (i) aos "cidadãos no gozo dos seus direitos civis e políticos" (ii) às associações e fundações defensoras dos interesses em causa, desde que preencham os requisito: estabelecidos no art, 3.º da Lei n." 83/95, e (iii) às autarquias locais, "em relação aos interesses de que sejam titulares residentes na área da respectiva circunscrição",
(…) Já no que respeita às associações e fundações, infere-se, no entanto, do art. 3.°, n.º 2, da Lei n.º 83/95 que a sua legitimidade ativa só compreende os bens ou interesses cuja defesa se inclua expressamente no âmbito das suas atribuições ou dos seus objetivos estatutários, segundo um princípio de especialidade e de territorialidade. Isto implica que o exercício do direito de ação popular através destas entidades se circunscreve à área da sua intervenção principal (ambiente, património natural, património construído, conservação da natureza, património cultural, promoção da qualidade de vida) e depende da respetiva incidência geográfica, que tanto poderá ser de âmbito nacional como regional ou local (cfr. art. 7.°, n.º 3, da Lei n.º 35/98, de 18/7) ,
(..) b) Em segundo lugar, no plano da determinação do regime processual a observar no âmbito da ação a propor, a Lei n.º 83/95 submete os processos intentados no exercício do direito de ação popular a adaptações ao modelo de tramitação que em outras circunstâncias deveria ser seguido, segundo o disposto no CPTA.” (in ALMEIDA, Mário Aroso de - Sobre a legitimidade popular no contencioso administrativo português. Cadernos de Justiça Administrativa, Braga, n.º 101 (Set.-Out. 2013), pp. 50-51). Cf., também a este propósito, os Acs. do TCAN n.º 125/13.2BEMDL, de 14-02-2014 e n.º 00580/15.6BEBRG, de 20-05-2016.
Ora, no caso em apreço, o direito de acção popular não se enquadrará no previsto no art.º 55.º, n.º 2, do CPTA, pois esta modalidade de acção popular visa conferir legitimidade activa aos eleitores, que estando no gozo dos seus direitos civis e políticos, pretendam impugnar as decisões e deliberações adoptadas por órgãos das autarquias locais sediadas na circunscrição onde se encontrem recenseados e o A. não é um cidadão naquelas condições, mas um movimento de cidadãos, que assim se se terá constituído como pessoa jurídica.
É certo que face às alegações do A. e ora Recorrente, o que o mesmo pretenderá é, precisamente, exercer uma acção popular correctiva, pois pretende impugnar deliberações da Assembleia de Freguesia que diz ilegalmente tomadas porque não cumpriram as regras e os procedimentos exigidos por lei. Acontece, porém, que para a acção popular correctiva são partes legitimas apenas os cidadãos eleitores, enquanto pessoas singulares. De fora desta acção popular correctiva ficam, portanto, as pessoas colectivas, associações ou fundações.
Igualmente, atendendo ao preceituado no art.º 9.º, nº 2, do CPTA, ter-se-á que concluir que o Grupo de Cidadãos Eleitores - Movimento Sintra Paixão com Independência, não ostenta legitimidade activa para interpor a presente acção.
Através desta acção o A. não alega que vise a salvaguarda de nenhum dos valores ou bens que vêm referidos no art.º 9,º, n.º 2, do CPTA. Diversamente, o A. afirma visar apenas a defesa da legalidade, dizendo que a Assembleia de Freguesia deliberou ilegalmente, assim pondo em causa o (bom) uso dos dinheiros públicos. Ademais, apreciadas as atribuições e fins deste movimento, dali não consta a indicação de que a mesma vise a defesa da legalidade objectiva. Diferentemente, conforme os indicados fins, o Grupo de Cidadãos Eleitores - Movimento Sintra Paixão com Independência constitui-se para fomentar a participação da sociedade civil. Ou seja, trata-se de um movimento que se dirige, antes de mais, à sociedade civil e ao incentivo para que dentro dessa sociedade se discutam diversas questões com interesse para o “bem comum”. Portanto, não visará tal Grupo o cassar das competências e actuações dos órgãos públicos e o validar das suas condutas. Em suma, a defesa pura e simples da legalidade objectiva frente às actuações públicas não se será um fim estatutariamente previsto como sendo um fim a prosseguir por este movimento.
Há, portanto, que manter a decisão recorrida, por a mesma estar certa.

III- DISPOSITIVO

Pelo exposto, acordam:
- em negar provimento ao recurso interposto, confirmando a decisão recorrida.
- sem custas pelo Recorrente, por isenção objectiva (cf. art.ºs. 527.º n.ºs 1 e 2 do CPC, 4.º, n.º 1, al. b), do RCP e 189.º, n.º 2 do CPTA).

Lisboa, 19 de Dezembro de 2017.
(Sofia David)
(Conceição Silvestre)
(Cristina Santos)