Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:02274/08
Secção:CT - 2.º JUÍZO
Data do Acordão:03/13/2014
Relator:BENJAMIM BARBOSA
Descritores:SIGILO BANCÁRIO - PROVA
Sumário:i O sigilo bancário visa três finalidades: proteger a actividade bancária, salvaguardar a integridade dos dados pessoais daqueles que se relacionam com o sistema bancário e preservar o interesse público num sistema bancário robusto, idóneo e confiável.
ii Não podem ser valoradas as provas obtidas com derrogação ilícita do sigilo bancário. Se os respectivos factos ficarem sem suporte probatório devem ser considerados não provados.
iii Contudo, as provas ilícitas só contaminam os factos a que dizem respeito, não tendo qualquer influência sobre os restantes e a sua ilicitude não abrange também as demais provas.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:ACORDAM EM CONFERÊNCIA NA SECÇÃO DE CONTENCIOSO TRIBUTÁRIO DO TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO SUL:

1 - Relatório

a) - As partes e o objecto do recurso

A FAZENDA PÚBLICA, não se conformando com a sentença proferida pelo TAF de Leiria que na impugnação judicial que a recorrida ... - Representações Ortopédicas, Lda., deduziu contra as liquidações de IRC e juros compensatórios relativas aos anos de 2003 e 2004, veio interpor recurso jurisdicional cujas alegações remata com estas conclusões:
1.ª Foi deduzida impugnação judicial contra liquidação de IRC, do exercício de 2004, no valor de € 118.898,99, fundada em ilegalidade do relatório inspectivo, por se basear em informações sujeitas a sigilo bancário, violação do princípio da participação, falta de fundamentação e erro na qualificação e quantificação da matéria tributável.
2.ª A referida liquidação resultou de correcção técnica à matéria tributável e de apuramento de imposto em falta, efectuados no âmbito de acção de inspecção realizada junto da sociedade impugnante.
3.ª Assim, as correcções realizadas desdobraram-se numa dupla vertente: a detecção de proveitos omitidos, no valor de € 449.902,83 e o apuramento de imposto em falta no montante de € 2.942,33.
4.ª Para sustentar as correcções efectuadas, os serviços inspectivos lograram ter acesso a diversos elementos e documentos obtidos junto dos clientes da sociedade impugnante, e recolhidos da contabilidade e arquivos contabilísticos da sociedade inspeccionada, tais como: cópias de cheques, contratos promessa de compra e venda, facturas, vendas a dinheiro, notas de encomenda, extractos bancários, balancetes...
5.ª Foram ainda fornecidas, pelas entidades financeiras intervenientes, cópias das propostas de crédito celebradas com a impugnante.
6.ª Considerou o Tribunal a quo que as informações prestadas pelas instituições financeiras em causa, respeitantes aos contratos celebrados pela impugnante, nos anos de 2003 e 2004, por se tratarem de elementos referentes às relações daquelas instituições com a impugnante, cujo conhecimento lhes adveio exclusivamente da prestação dos respectivos serviços, estavam abrangidos pelo segredo profissional referido no Art. 78° n.° 1 do DL 298/92, de 31/12.
7.ª Entendendo que a administração fiscal não havia feito prova, nem tal indicação constava do relatório inspectivo, de que a impugnante tivesse autorizado a prestação das informações em causa ou houvesse sido levantado o sigilo bancário, nos termos previstos na legislação em vigor, concluiu que a liquidação impugnada enfermava de vício de violação de lei, por afronta ao disposto no Art.63°, n° 2 e 63°-B, n° 10, ambos da LGT, facto que determinava a respectiva anulação na sua totalidade.
8.ª No presente não se vem discutir a questão particular do levantamento do sigilo bancário, nem as considerações legais que, a propósito, são, pertinentemente, tecidas pela Mma Juiz a quo, mas a abrangência das mesmas, a sua extensão a elementos e documentos que não foram fornecidos pelas entidades financeiras e que, com essa precisa base de fundamentação, nunca poderiam ser, pura e simplesmente, desconsiderados como legítimos para sustentar as correcções efectuadas, determinando, a final, a anulação do imposto que veio a ser, por tal via, apurado.
9.ª Ou melhor: a inclusão de todo o acervo documental recolhido em sede inspectiva na categoria de “documento bancárío” e, por conseguinte, sujeito a sigilo bancário e dependente de procedimento próprio para o seu levantamento, não traduz a realidade factual dos autos.
10.ª Efectivamente, desde logo, o apuramento de IRC em falta no montante de € 2.942,33, fundou-se na análise do balancete analítico de 31/12/2004 (ponto III.1.2 do relatório inspectivo final), face ao qual se tornou possível verificar da existência de encargos fiscalmente aceites relacionados a viaturas ligeiras de passageiros, sujeitos nos termos do art. 81° do CIRC a tributação autónoma à taxa de 6%.
11.ª O imposto em causa foi apurado com recurso exclusivo a elementos e documentos contabilísticos da impugnante, designadamente, o referido balancete analítico.
12.ª Ou seja, sem recurso a qualquer documento externo e desconhecido da impugnante e, fundamentalmente, sem o apoio de qualquer documento fornecido pelas sociedades financeiras.
13.ª Factos profusamente referidos no relatório inspectivo e seus anexos e, em tempo, alegados nos autos.
14.ª Ao não distinguir a proveniência dos vários elementos e documentos utilizados em sede inspectiva, consoante o carácter das correcções efectuadas, a douta Sentença estabelece, avalia e pondera de modo incompleto a matéria de facto.
15.ª Ao fundar a decisão de anulação da liquidação de imposto na ausência de levantamento do sigilo bancário e na ilegalidade dos documentos por tal via obtidos, a douta Sentença determina a aplicação de um quadro legal a factos face aos quais, verdadeiramente, não tem qualquer aplicabilidade.
16.ª Há omissão de pronúncia quanto a matéria que a Mma Juiz a quo deveria ter conhecido e sobre a qual deveria ter-se pronunciado, em violação dos artigos 99°/1 da LGT e 13°/1 do CPPT e dos artigos 493°/3 e 496° do CPC, aplicáveis por via do art. 2° do CPPT.
17.ª Ao não se pronunciar quanto a matéria que devia conhecer, a douta sentença é nula por via do disposto no art. 125° do CPPT e no art. 668°/1-d) do CPC, aplicável “ex vi” o art. 2o do CPPT.
18.ª Depois, também quanto à correcção relativa aos proveitos omitidos, no valor de € 449.902,83, tendo por base as vendas corrigidas e os restantes proveitos e custos contabilizados, importará reafirmar que aqui não vem discutir o que vem firmado na douta sentença, com referência a não ter sido instaurado o procedimento conducente ao levantamento do sigilo bancário, nem as ilações legais que, pertinentemente, se retiram de tal facto.
19.ª Contudo, entendemos que as correcções efectuadas nesta matéria poderiam (e deveriam) manter-se, mesmo sem os documentos fornecidos pelas entidades financeiras.
20.ª Efectivamente, somente foram fornecidas as propostas de crédito e, mesmo estes documentos apenas serviram para conferir/confirmar as correcções efectuadas através de todos os demais documentos com origem nos clientes ou na contabilidade da impugnante, ou seja, as cópias de cheques, os contratos de compra e venda, as vendas a dinheiro, as notas de encomenda, as facturas, os extractos bancários, os balancetes...
21.ª Obtidos dentro do quadro legal aplicável aos actos de inspecção, designadamente, os artigos 59° e 63° da LGT, artigos 9o, 27°, 28° e 29° do RCPIT e 125° do CIRC.
22.ª E a cuja obtenção, porque não implicando a instauração do procedimento para levantamento do sigilo bancário, consequentemente, se torna inaplicável a fundamentação fixada na douta sentença.
23.ª Há erro quanto ao julgamento, porquanto dos autos constam documentos e elementos cuja consideração implicaria uma decisão em sentido diverso, e mesmo inverso, aquele em que veio a decidido - artigo 669°/2 -b) do CPC, aplicável por via do art. 2° do CPPT.
24.ª Ademais, na douta sentença não foi realizado o exercício de indagar se as correcções efectuadas se poderiam manter, total ou parcialmente, mesmo com a expurgação dos documentos judicialmente havidos como indevidamente obtidos.
25.ª Porque a ter sido empreendido tal esforço inquisitório, o sentido da decisão haveria de ser substancialmente diverso, e mesmo oposto, àquele a que ora objectamos.
26.ª Efectivamente, através do cruzamento dos dados fornecidos pelos extractos bancários com a informação das vendas a dinheiro (documentos existentes e recolhidos junto da contabilidade da impugnante) seria possível apurar os valores ora em crise.
27.ª Tal como o relatório inspectivo o afirma e o depoimento da Sra. Inspectora, testemunha da FN, no nosso ponto de vista, terá deixado evidenciado quando, falando da metodologia inspectiva, afirmou que as correcções efectuadas não se haviam circunscrito aos elementos fornecidos pelas sociedades financeiras, tendo servido para confirmar, no sentido de reforçar, os valores que se haviam apurado por via dos elementos fornecidos pela contabilidade da própria impugnante e pelos clientes desta.
28.ª Além de que existem mesmo correcções que não poderiam nunca envolver a consideração de quaisquer documentos fornecidos pelas sociedades financeiras, porquanto os clientes da impugnante não recorreram ao crédito para aquisição dos produtos.
29.ª Todavia, toda esta panóplia de situações factuais não vem apurada, estabelecida e considerada na douta sentença.
30.ª Com todo o respeito, e é muitíssimo, todos os elementos documentais foram englobados numa única categoria, sem cuidar de estabelecer a sua real origem, de molde a estabelecer a prova documental indevidamente obtida, as correcções nesta fundadas, mas também a determinar as correcções alicerçadas em documentos provenientes de fonte legítima, com inerentes correcções, por tal via, inatacáveis.
31.ª Ao não proceder deste modo, a Mm.ª Juiz a quo fixou deficientemente a matéria factual, vindo a decidir de modo avesso à verdade material dos autos.
32.ª Não tendo o tribunal a quo realizado ou ordenado oficiosamente todas as diligências úteis de molde a conhecer a verdade relativamente aos factos dos autos, tal como o princípio do inquisitório impõe - artigos 99°/1 da LGT e 13°/1 do CPPT.
33.ª Não se pronunciando quanto a matéria que devia conhecer, a douta sentença padece de nulidade por omissão de pronúncia, tal como decorre do art. 668°/1-d) do CPC, aplicável “ex vi” o art. 2o do CPPT, vindo a decidir em sentido contrário à verdade material dos autos.

A recorrida, alegando em contra-mão, pugna pela improcedência do recurso.

Neste TCAS o EMMP emitiu parecer no sentido de ser concedido provimento ao recurso.


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Colhidos os vistos vem o processo à conferência.

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b) As questões essenciais a decidir:
¾ Saber se a violação da lei sobre o sigilo bancário fulmina de ilegalidade as liquidações in tottum ou apenas na parte em que a prova obtida por meios ilícitos é relevante:
¾ Em caso de resposta negativa, determinar que parte não é afectada in casu pelo vício de violação de lei;
¾ Em terceiro lugar apurar se é possível, mesmo na hipótese de ser procedente a arguição da referida ilegalidade, manter as liquidações com base em meios de prova que não envolvam violação do sigilo bancário.


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2 – Fundamentação

a) - De facto

A sentença considerou provados os seguintes factos:
(1). A impugnante foi alvo de uma acção de inspecção, abrangendo os exercícios de 2003 e 2004, que culminou com a elaboração do relatório de fls. 1 a 18 do apenso, que se dá por integralmente reproduzido onde, entre o mais, consta o seguinte:
«4.º Cruzamento de Informação com Instituições Financeiras
Da análise dos movimentos financeiros nas contas bancárias da empresa, destaca-se ainda o grande movimento de transferências para as contas de que a empresa é titular no ... ... e ... /... relativas a contratos de crédito ao consumo, em que a ... é o beneficiário.
Os valores transferidos para as contas da empresa, são facilmente identificados pelo descritivo da operação, fazendo referência ao n° do contrato ou proposta de crédito. Constata-se que por vezes existem anulações de contratos que são debitados nas mesmas contas. Ainda assim, a diferença dos créditos e dos débitos associados às transferências financeiras resultantes dos contratos de crédito é por si só muito superior ao das vendas a dinheiro emitidas quer por mês quer por ano.
Foi pedido às empresas de crédito ao consumo que trabalharam com a ... , concretamente à Creditar (... e ... ) e à ... que enviassem os contratos celebrados em 2003 e 2004, que não tivessem sido objecto de anulação posterior, bem como os valores efectivamente pagos à ... .
A ... pertencia ao grupo do ... , n entanto foi adquirida em Maio de 2005 pela ... , a mesma que detém a ... .
A ... , enviou cópia em suporte papel dos contratos de crédito ao consumo, efectivos, celebrados em 2003 e 2004 relativos à ... , em que o vendedor dos bens foi a empresa ... , e enviou cópia em suporte informático dos contratos celebrados pela ... e, que em Maio de 2005, (data da venda da ... do Grupo ... à ... ) ainda estavam em vigor.
Os contratos celebrados em 2003 e 2004, cujo “terminus' foi antes de Maio de 2005, ficaram na posse do ... , não tendo havido acesso aos mesmos.
No extracto da conta bancária detida pela ... no ... , detectaram-se inúmeros créditos associados a contratos aos quais não houve acesso, não sendo possível confirmar se houve emissão de VD e registo contabilístico das vendas.
(2). A coberto do ofício datado de 11/05/2006, foi remetida à impugnante notificação nos termos e para efeitos do disposto nos Art. 60.º da LGT e 60.° do RCPIT - fls. 31 do apenso
(3). A notificação referida na alínea antecedente foi devolvida ao remetente com a indicação “Não reclamado” - fls. 32 e 32 v.º do apenso.
(4). A coberto do ofício n.° 4554, datado de 06/06/2006, a impugnante foi notificada do relatório final da inspecção tributária - fls. 33 a 34.
(5). Foi emitida a demonstração da liquidação n.° 2006 8310034330, datada de 19/06/2006, referente a IRC do ano de 2004, de fls. 53, que se dá por integralmente reproduzida.

Nos termos do art.º 662.º. n.º 1, do CPC, adita-se a seguinte matéria de facto:
(6). No relatório referido em (1) consta também o seguinte:
“5° Cruzamento de elementos existentes na empresa com documentos fornecidos por terceiros - Clientes e Empresas Financeiras
As informações prestadas pelos adquirentes dos bens e os contratos enviados pelas Empresas de crédito, foram comparadas com os dados recolhidos na empresa relativos às Vendas a Dinheiro emitidas, tendo para o efeito sido elaborados os mapas em anexo n° 1 e 2.
Nos mapas consta nomeadamente o n° da nota de encomenda (que representa o n° do cliente e é em alguns casos mencionado nas cópias dos cheques); nome do adquirente e cônjuge (em algumas situações); valor do contrato, n° de venda a dinheiro, data, valor da venda a Dinheiro (com IVA incluído); forma de pagamento, n° do contrato de crédito e valor creditado na conta da ... ; e apuramento da diferença dos proveitos (com iva incluido) não contabilizada”.
(7). No relatório referido em (1), no seu ponto III.1.2, referente ao Exercício de 2004, está escrito o seguinte:
“Não foram entregues a declaração modelo 22 de IRC e a declaração anual de informação contabilístico/fiscal relativamente ao exercício de 2004 (art° 112° e 113° do CIRC).
O sujeito passivo foi notificado para regularizar a contabilidade uma vez que o exercício de 2004 não se encontrava encerrado.
Não foi exibida no prazo fixado a contabilidade devidamente regularizada, infringindo os artigos 52° do CIRC e 88° da LGT.
Com base num balancete do mês 12 de 2004 foram apurados os valores de custos e proveitos contabilizados no exercício.
O valor registado na conta 71-Vendas ascende apenas a 364.948,26 €. Pela análise do mapa anexo n° 2, conclui-se que a empresa recebeu 535.384,37 €, sendo 19% (85.481,54 €) respeitante a IVA, não tendo procedido à contabilização do respectivo proveito e IVA liquidado.
Assim, houve omissão de registo de proveitos no montante de 449.902,83 €, pelo que o valor contabilizado na conta 71.1 será corrigido para 814.851,09 €.
Rúbricas
Valor
Proveitos
Vendas Apuradas
€814.851,09
Proveitos e Ganhos Fianceiros
€ 1.101,60
Total Proveitos
815.952,69
Custos
Compras
€ 84.050,46
Existência Inicial em 01/01/2004
€ 36.750,00
FSE
€ 185.500,94
Impostos
€715,10
Custos com Pessoal
€69.910,69
Custos e Perdas Financeiras
€22.837,07
Custos e Perdas Extraordinárias
€7.441,15
Total Custos
€ 407.205,41
Resultado líquido/Lucro Tributável
€ 408.747,28

Uma vez que não foram exibidos os inventários de existências finais em 31/12/2004, consideramos como custo das mercadorias vendidas o somatório das existências iniciais em 01/01/2004 e o valor total das compras de 2004, ou seja, 120.800,46 €.
Não foram consideradas reintegrações e amortizações do exercício uma vez que se trata de um custo que é aceite apenas quando devidamente contabilizado, sendo facultativa a sua contabilização e, não foram contabilizadas amortizações e reintegrações do exercício.
Assim, o lucro tributável apurado com base nas vendas corrigidas e nos valores da contabilidade ascende a 408.747,28 €.
Pela análise do balancete analítico de 31/12/2004, verifica-se a existência de encargos relacionados com viaturas ligeiras de passageiros, aceites fiscalmente nos cálculos anteriores, os quais ficam sujeitos a tributação autónoma à taxa do art° 81° do CIRC, ou seja 6%.

Quadro IV
Conta
Valor Custo
6221227
€ 10.532,39
6221247
€22.768,71
6222317
€ 2.946,43
62232217
€7.359,18
62232227
€5.432,07
Total
€ 49.038,78
Tributação Autónoma 6%
€ 2.942,33
Os custos relacionados com as viaturas ligeiras de passageiros foram contabilizados nas seguintes contas:

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b) - De Direito

Apesar da desmesurada extensão das conclusões – quase idêntica à dimensão do corpo das alegações, a comprovar uma clara inobservância do disposto no art.º º 685.º-A, n.º 1, do CPC, na sua versão anterior – as questões que a recorrente coloca neste recurso são, como já se referiu, apenas três:

Em primeiro lugar a questão de se saber se, no caso sub judice, a violação da lei sobre o sigilo bancário fulmina de ilegalidade todas as liquidações ou apenas a parte destas que se encontra viciada pela ilícita obtenção de provas abrangidas pelo sigilo bancário.

Em caso de resposta negativa, determinar que parte não é afectada pelo correspondente vício;

Em terceiro lugar apurar se é possível em caso de vício relativo à obtenção de provas, manter as liquidações com base em meios de prova que não envolvam violação do sigilo bancário.

Vejamos então.

Não está em causa a preterição de formalidades legais ligadas à derrogação do sigilo bancário, realidade que a recorrente não contesta. Daí que a esse respeito não se justifique dizer mais do que já foi afirmado na sentença.

Mas importa acentuar uma ideia: a derrogação do sigilo bancário representa o fiel da balança onde se equilibram os interesses público e privado que em torno dele gravitam. Com efeito, o sigilo bancário visa proteger interesses privados, inserindo-se na linha de tutela do direito à reserva da vida privada, que a Constituição consagra o seu artigo 26.º(i), mas cuja protecção também é assegurada pelo art.º 16.º deste diploma(ii).

Mas há também nele uma finalidade de ordem pública, qual seja a de protecção do sistema de crédito, em que o dever de segredo do banqueiro é determinante para a confiança que o sistema bancário deve gerar como elemento fulcral da actividade económica, e que o Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei nº 298/92, de 31 de Dezembro, consagra como um dever inseparável da conduta do banqueiro (cfr. artigos 78.º e seguintes).

Por conseguinte, o sigilo bancário não foi pensado para proteger uma só categoria de interesses; do que fica dito pode concluir-se que visa três finalidades: proteger a actividade bancária, salvaguardar a integridade dos dados pessoais daqueles que se relacionam com o sistema bancário e, por fim, preservar o interesse público num sistema bancário robusto, idóneo e confiável.

No entanto, embora garantido constitucionalmente o sigilo bancário não tem a natureza de direito absoluto, podendo por isso ceder no confronto com um interesse público relevante; diga-se, de resto, que o interesse público tem constituído o leitmotiv para a atenuação da rigidez do sigilo bancário um pouco por todo o mundo, não sendo por isso Portugal um caso único neste domínio, surgindo o combate aos crimes financeiros e à fraude e evasão fiscais como ponto comum de partida para a derrogação do sigilo bancário.

Contudo, dadas as implicações e danos de vária ordem que provoca, quer ao nível macroeconómico quer a nível pessoal, a lei desde sempre rodeou a quebra do sigilo bancário de acrescidas cautelas, as quais se impõe que o sistema de justiça particularmente adopte na sua missão de garante dos direitos de cidadania, sobretudo quando se trata de questões de índole fiscal, sabido que na maior partes dos casos a injustiça da política tributária só encontra freio nas decisões dos tribunais.

Como quer que seja, a derrogação do sigilo bancário só é justificável para efeitos probatórios, seja qual for o procedimento ou processo a que se destine; com efeito, não é concebível no estado actual do nosso sistema jurídico o levantamento do sigilo bancário para meros fins de curiosidade pessoal ou social, para efeitos de concorrência comercial ou para qualquer outra finalidade que não tenha por base um interesse público relevante.

Por isso, servindo unicamente para finalidades de prova, a sua dispensa deverá ser analisada com particular ponderação e rigor, evitando-se tudo o que seja excessivo ou desnecessário à demonstração dos factos a que respeita em juízo; ou seja, a verdadeira devassa da vida privada que a quebra do sigilo bancário representa impõe que se rejeite tudo o que não se mostra essencial e imprescindível, sendo fundamental nessa operação intelectual que se atenda ao princípio da proporcionalidade, tendo sempre presente que a colisão de direitos impõe que a cedência de cada um deve ser feita segundo a medida do estritamente necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito (cfr. art.º 335.º, n.º 1, do CC).

No caso sub judice a questão em discussão circunscreve-se à prova de factos que justificam a amplitude que foi imprimida às liquidações impugnadas. Sendo portanto uma questão de prova, vejamos o que nos dita a aplicação dos princípios que disciplinam tal matéria.

O princípio basilar consta do art.º 342.º do CC e do art.º 74.º, n.º 1, da LGT: quem se arroga a um direito deve provar os factos que o constituem; inversamente, aquele contra quem a sua invocação é feita deve provar os factos que o impedem, modificam ou extinguem.

O sistema processual acolhe estes princípios, assegurando a CRP, através do princípio da tutela jurisdicional efectiva previsto no art.º 20.º e consagrado também no art.º 9.º, n.º 1, da LGT, um verdadeiro acesso ao sistema de justiça e por conseguinte à prova; prova essa que, como resulta do artigo 20.º, n.º 4, do diploma fundamental, pressupõe o exercício do contraditório que é a única via para a obtenção de um processo equitativo, equidade que o art.º 98.º da LGT também acolhe.

O direito ao contraditório, como uma das faces do direito de defesa, traduz-se essencialmente na possibilidade de cada uma das partes poder controlar as provas da contraparte e pronunciar-se sobre o valor e eficácia dos meios probatórios oferecidos(iii).

Ora, desses princípios decorre que “a dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita” (art.º 516.º do CPC). Por outro lado as provas ilegais ou obtidas por meios ilícitos não têm qualquer eficácia probatória, isto é, não podem ser valoradas pelo tribunal [cfr. art.º 8.º, n.º 2, al e) e 72.º, da LGT].

Não podendo ser valoradas, os factos que as provas ilícitas visam provar ficam sem suporte probatório devendo ser considerados não provados. Contudo, em caso algum a lei estende esse efeito aos restantes factos e aos restantes meios de prova. Isto é, as provas ilícitas só contaminam os factos a que dizem respeito, não tendo qualquer influência sobre os restantes e a sua ilicitude não abrange também as demais provas.

Ora, volvendo ao caso em apreço constata-se que a Mm.ª Juíza a quo fez exactamente o juízo inverso: partindo da ilicitude da prova obtida por meio de derrogação do sigilo bancário não autorizado estendeu os efeitos dessa ilicitude a toda a impugnação que considerou procedente, sem curar de saber se existiam factos provados e cuja prova não dependia da quebra do sigilo bancário.

E na verdade tais factos existem, como resulta de toda a matéria aditada, já que como sustenta a impugnante na conclusão 10.ª “o apuramento de IRC em falta no montante de € 2.942,33, fundou-se na análise do balancete analítico de 31/12/2004 (ponto III.1.2 do relatório inspectivo final), face ao qual se tornou possível verificar da existência de encargos fiscalmente aceites relacionados a viaturas ligeiras de passageiros, sujeitos nos termos do art. 81° do CIRC a tributação autónoma à taxa de 6%”.

Aliás, conforme se concluiu do ponto 8 do probatório deste acórdão, o apuramento do imposto em falta em sede de IRC foi feito com base num balancete do mês 12 de 2004, tendo sido apurados os valores de custos e proveitos contabilizados no exercício. Não houve, pois, recurso a dados protegidos pelo sigilo bancário. Destarte, não tendo sido validamente posta em causa a exactidão e eficácia probatória dos demais elementos de prova não podia a anulação das liquidações abranger o exercício de 2004.

Por fim pretende a recorrente que se considere a totalidade das liquidações efectuadas, argumentando que mesmo que não fossem obtidos os elementos cobertos pelo sigilo bancário as demais provas colectadas seriam suficientes para demonstrar o acerto daquelas.

Não nos parece, salvo o devido respeito, que assim seja. Com efeito basta percorrer o “Cruzamento de Informação com Instituições Financeiras” contido no ponto 1 do probatório para se concluir que não é possível isolar os elementos obtidos de forma ilícita da restante fundamentação, exceptuando, claro está a parte ressalvada e relativa ao ponto III.1.2 do relatório. Ou seja, em relação a 2003 a liquidação está apoiada em fundamentação que convoca os elementos obtidos ilicitamente por estarem sujeitos ao sigilo bancário, pelo que estando viciada por esse motivo não poderá deixar de ser anulada.

Dito isto concluiu-se que não é possível ir mais além do que acolher parte da argumentação expendida pela recorrente e considerar que, ao contrário do decidido em primeira instância, a liquidação referente a tal segmento do relatório (2004) não padece de ilegalidade e deve ser mantida, conclusão que se adequa ao princípio da divisibilidade do acto tributário e da sua subsistência na parte não viciada.

Para terminar não existe qualquer omissão de pronúncia, visto que com o enfoque que a sentença deu à solução da causa ficou prejudicada a apreciação das questões que a recorrente pretende ver apreciadas e a que dizem respeito as conclusões 17.ª e 33.ª


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3 - Dispositivo:

Em face de todo o exposto acordam em conceder provimento parcial ao recurso, revogar a sentença recorrida e julgar a impugnação procedente no tocante à liquidação de IRC do ano de 2003, que é anulada, e improcedente quanto ao mais.

Custas por ambas as partes na proporção do respectivo decaimento.

D.n.

Lisboa, 2014-03-13

________________________________________ (Benjamim Barbosa)

____________________________________________ (Anabela Russo)

________________________________________ (Joaquim Condesso)




i - Cfr. MENEZES CORDEIRO, Manual de Direito Bancário, 3.ª Ed., Coimbra, Almedina, 2006, pp. 264 e 265.

ii - Cfr. artigos 12.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, 17.º do Pacto Internacional Relativo aos Direitos Civis e Políticos, 7.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e8.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

iii - Cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 2.ª ed., Coimbra, Almedina, 2007, pp. 408 e ss.