Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:11403/14
Secção:CA - 2º. JUÍZO
Data do Acordão:10/23/2014
Relator:ESPERANÇA MEALHA
Descritores:PROVIDÊNCIA CAUTELAR; CRITÉRIO DA EVIDÊNCIA; REGIME CONTRATO TRABALHO EM FUNÇÕES PÚBLICAS; DURAÇÃO DO PERÍODO NORMAL DE TRABALHO
Sumário:I – O critério de evidência, vertido no artigo 120.º/1-a) do CPTA, exige que se verifique uma “dupla evidência”: a “evidência de facto”, no sentido de se verificarem as circunstâncias que consubstanciam o vício em causa e a “evidência de direito”, por não ser questionado (ou não o ser, em termos minimamente atendíveis) o direito aplicável àqueles factos. Além disso, o critério é o da evidência da procedência da ação e não (apenas) o da evidência do vício invocado na ação impugnatória,
II – Embora tenha ficado provado que os despachos dos Municípios Recorridos não foram precedidos das consultas prévias, previstas no artigo 135.º/2 do Regime de Contrato de Trabalho em Funções Públicos, tal certeza de facto não conduz necessariamente à evidência de direito, consubstanciada na violação do citado dispositivo legal. Para tanto, necessário seria que também fosse evidente, por um lado, que essa norma é aplicável aos despachos em apreço e, por outro, que sendo-lhes aplicável, determina inevitavelmente a sua invalidade, sem possibilidade de aproveitamento dos atos III – No caso, essa certeza jurídica é abalada, além do mais, pela existência de argumentos atendíveis no sentido de tais despachos – que aplicam a Lei n.º 68/2013, na parte em que veio aumentar a duração do “período normal de trabalho” – poderem não se incluir no âmbito de aplicação do artigo 135.º, que se refere ao “horário de trabalho”, bem como pela discussão em torno da própria natureza jurídica dos atos suspendendos, que tem gerado jurisprudência que os qualifica, diversamente, como meros atos de execução, atos regulamentares ou atos administrativos.praticados.
IV – O que é suficiente para demonstrar que a questão de saber se os atos suspendendos violam o disposto no artigo 135.º/2 do RCTFP, em termos de tal vício determinar irremediavelmente a invalidade de tais atos, não é uma questão que mereça uma resposta inequívoca, sem qualquer esforço exegético, mas antes um problema contestado ou controverso.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo, 2.º Juízo, do Tribunal Central Administrativo Sul


I. Relatório
Nos presentes autos, em que é Recorrente STAL – SINDICATO NACIONAL DOS TRABALHADORES DA ADMINISTRAÇÃO LOCAL e são Recorridos o MUNICÍPIO DE OLEIROS, o MUNICÍPIO DE PENAMACOR, o MUNICÍPIO DE VILA DE REI, o MUNICÍPIO DE VILA VELHA DE RÓDÃO e o MUNICÍPIO DE PROENÇA-A-NOVA, vem interposto recurso jurisdicional da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Castelo Branco, de 19.05.2014, que indeferiu a providência cautelar de suspensão de eficácia dos despachos dos Presidentes daqueles Municípios que decidiram aplicar a Lei n.º 68/2013 aos serviços respetivos.
O Recorrente conclui as suas alegações como se segue:
1. No requerimento inicial, mais precisamente no artigo 13°, foi alegado que os despachos, cuja suspensão da eficácia foi pedida, foram prolatados sem que, previamente, tivessem sido cumpridos os requisitos do art°135°, n° 2 do RCTFP, que obrigam à consulta prévia dos trabalhadores e das suas estruturas representativas, como determina o n°2 daquele artigo;
2. Facto que é reiterado nos artigos 15°, 25° e 26°, do mesmo articulado, onde se refere basicamente, que uma coisa era a duração dos horários outra a organização dos mesmos e que, tendo em conta as repercussões nas vidas dos trabalhadores, mais exigível se tornava o cumprimento dos procedimentos de consulta aos trabalhadores e suas estruturas representativas, concluindo pelo enquinamento dos actos por vício de violação de lei;
3. Dos factos tidos por provados nos autos resulta que os requeridos procederam à aplicação da lei em causa sem terem cuidado dos procedimentos concernentes à audição dos trabalhadores e das estruturas que os representam e que também decorre dos articulados e a existência de estruturas representativas, em suma, o que emana dos autos é o desrespeito na aplicação dos procedimentos contidos no art°135° do RCTFP,
4. Não se pode sufragar a tese do douto arresto recorrido segundo o qual a preterição de procedimentos não merece a dignidade de se poder considerar que é manifesta a ilegalidade dos actos suspendendos que imponham a alteração específica do horário de trabalho.
5. Tal tese encerra o perigo de esvaziamento do campo de aplicação das normas do art°135°, n° 2 do RCTFP e seria pouco conforme ao princípio constante dos artigos 267°, n° 5 da CRP e 8° do Código Proc. Administrativo.
6. Ora, a comprovada inobservância dos procedimentos do art°135°, n°2 do RCTFP, pese embora a inexorabilidade da duração semanal e horária contida na lei aplicável, está longe de corresponder à preterição de uma mera formalidade não essencial;
7. No âmbito do contrato individual de trabalho e, portanto, da aplicação do Código do Trabalho, a violação de normas em tudo semelhantes às do art°135° do RCTFP, designadamente as do Código do Trabalho, constitui contra-ordenação grave (cfr. art°217°, n° 6 do Código do Trabalho);
8. A efectivação ou aplicação das leis, na maioria dos casos, não dispensa uma actividade intermediária da parte dos entes públicos ou privados. A alteração das normas do Código do Trabalho obriga, naturalmente, a procedimento por parte das entidades empregadoras no sentido de ajustar a realidade empresarial às novas regras.
9. Do mesmo modo a aplicação a aplicação da lei 68/13, não pode passar sem a intermediação das entidades de direito público, pelas razões que de seguida se passam a explanar;
10.Pela necessidade de informação e divulgação aos trabalhadores da dita lei destinatários, dos novos deveres que passaram a enformar a relação jurídica de emprego público;
11. Pela necessidade de ajustar as normas da nova lei às diferentes realidades dos serviços concretos, nomeadamente antecipando ou adiando o período de funcionamento dos serviços, iniciar as jornadas de trabalho mais cedo ou mais tarde, em quanto tempo, uma hora, meia hora, reduzir, se possível, os intervalos;
12.Decorrendo inexoravelmente do que se acaba de expor, que os actos que tenham como escopo a aplicação da lei em causa jamais se aplicariam de forma mecânica e decalcada, já que a mesma lei limitou-se a alterar as normas do RCTFP referentes ao período de atendimento e período de duração semanal e diária de trabalho;
13.Só assim não seria se a lei em causa, o que só por hipótese académica se admitiria pelo resultado incaracterístico a que conduziria, determinasse os horários concretos nas suas diversas modalidades, em que a duração semanal e diária passaria a ser observada.
14.Ou seja, chamando a atenção para a citação que João Leal Amado faz de Fernando Pessoa, na obra Contrato de trabalho, 3ª Edição, Coimbra Editora, página 269, quando este refere a hipnose que tinha frequentes vezes do "patrão Vasques" dizendo a este propósito: "... Que me é esse homem, salvo o obstáculo ocasional de ser dono das minhas horas, num período mínimo da minha vida...".
15. Em suma, os actos cuja suspensão se requer, foram emitidos com a preterição/violação de procedimentos essenciais;
16. Pelo que o douto arresto recorrido viola as normas do art°120°, n°1 do CPTA, também por interpretação desconforme com os artigos 267°, n°5 e 135º, nº2 do RCTFP.
17.Em conformidade com o pugnado pelo recorrente pronunciou-se em recente Acórdão essa instância em 6-03-2014, em Conferência, na 1ª Secção no proc. n° 10828/14 em que a temática-decisória é de total similitude com a dos presentes autos.
Os Recorridos Municípios de Penamacor, Oleiros, Proença-A-Nova e Vila Velha de Ródão contra-alegaram, concluindo o seguinte:
1ª O recorrido revê-se inteiramente no teor da douta sentença proferida pelo Mma Juiz a quo que indeferiu o pedido de adopção da providência cautelar de suspensão de eficácia dos atos suspendendos formulados pelo requerente;
2ª Os atos suspendendos limitam-se a aplicar a lei n° 68/2013 de 29/08, não alterando unilateralmente o horário dos associados do ora recorrente;
3ª A imposição legislativa decorrente da entrada em vigor da lei 68/2013 não carecia de consulta prévia dos trabalhadores prevista no n°2 do art.º135° do RCTFP;
4ª O acórdão do Tribunal Constitucional n° 794/2013 não declarou a inconstitucionalidade das normas dos art. 2° em articulação com o art.10°, 3°, 4° e 11° todos da lei 68/2013;
5ª O Acórdão do TCA-Sul de 23/01/2014 (Proc. n° 10748/13) conclui no sentido de que os atos suspendendo são atos de mera execução de um preceito legal, contido em diploma legislativo emanado da Assembleia da República, no exercício de funções legislativas, de modo nenhum violando o artº135° n° 2 do RCTFP;
6º Os despachos que fixaram os novos horários não são mais que meios imediatos e necessários de execução do alargamento do período normal de trabalho dos trabalhadores em funções públicas operado pela Lei 68/2013 de 29/08;
7ª O requerente de modo nenhum demonstra os prejuízos irreparáveis ou de difícil reparação na afetação dos planos de vida dos seus representados;
8ª Nem os atos suspendendo incorrem em ilegalidade manifesta;
9ª De modo nenhum podendo pois dar-se como verificados os requisitos do fomus bonus iuris e do periculum in mora.
O Magistrado do Ministério Público junto deste TCA Sul emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
Sem vistos, cumpre apreciar e decidir
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II. Objeto do recurso
O presente recurso vem interposto da sentença do TAF de Castelo Branco que indeferiu a providência cautelar de suspensão de eficácia dos atos dos Municípios Recorridos que determinaram a aplicação da Lei n.º 68/2013 aos serviços respetivos e, consequentemente, determinaram o alargamento do período normal de trabalho, por forma a assegurar o cumprimento de 40 horas de trabalho semanal.
Para tanto, a decisão recorrida considerou, por um lado, que os atos suspendendos não eram manifestamente ilegais e, por isso, a providência não podia ser decretada ao abrigo do artigo 120.º/1-a) do CPTA e, por outro, que não estava verificado o periculum in mora, pelo que também não estavam verificados os pressupostos para o seu decretamento ao abrigo da alínea b) do mesmo preceito legal.
O Recorrente apenas contesta o assim decidido, na parte em que o tribunal a quo julgou não verificada a manifesta ilegalidade dos atos suspendendo, pelo que a única questão que cumpre apreciar é a de saber se a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento ao não decretar a providência ao abrigo da alínea a) do n,º 1 do artigo 120.º do CPTA.
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III. Factos
A matéria de facto pertinente é a constante da acórdão recorrida, para a qual se remete, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 663.º/6 do CPC/2013 ex vi artigos 1.º e 140.º do CPTA.
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IV. Direito
O Recorrente sustenta que é manifesta a ilegalidade dos atos suspendendos – despachos dos Municípios Recorridos que, na sequência da publicação da Lei n.º 68/2013, decidiram aumentar em uma hora a duração do período normal de trabalho diário nos serviços respetivos –, na medida em que tais despachos violam o disposto no artigo 135.º/2 do Regime de Contrato de Trabalho em Funções Pública (aprovado em anexo à Lei n.º 59/2008, com as alterações posteriores), que obrigam à consulta prévia dos trabalhadores e das suas estruturas representativas, a qual, como ficou provado nos presentes autos (cfr. ponto 14. da matéria de facto provada), não ocorreu.
Antes de mais, cumpre salientar que, no âmbito de um processo cautelar, a questão sob recurso não é a de saber se os atos em causa são ilegais por violação da citada norma legal, mas sim, a de saber se é evidente a procedência da pretensão de invalidação de tais atos com esse fundamento, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 120.º do CPTA, norma que permite o decretamento da providência com fundamento nesse critério de evidência.
Aquela primeira questão consiste na apreciação do fundamento de invalidade (no âmbito da apreciação do mérito da causa), por isso, só pode ser feita em sede da ação administrativa especial, da qual esta providência de suspensão de eficácia é meramente instrumental. Diversamente, a questão apreciada na sentença recorrida e aqui colocada por via de recurso, consiste em saber se a pretensão do Recorrente, de invalidação dos atos suspendendo, com fundamento na violação do artigo 135.º/2 do RCFP, é uma pretensão cuja procedência é evidente ou manifesta, ou seja, consiste em saber a ação de impugnação de tais atos, com esse fundamento, é manifestamente procedente.
Como há muito foi salientado no Acórdão do STA, de 22.10.2008, P. 0396/08, o critério de evidência vertido no artigo 120.º/1-a) do CPTA corresponde a algo que “salta a vista, que não oferece dúvida” e o “ato manifestamente ilegal” equivale a uma ilegalidade que “deve poder ser facilmente detectada, face aos elementos constantes do processo e pela simples leitura e interpretação elementar da lei aplicável, sem necessidade de outras averiguações ou ponderações”. O que implica que se verifique uma “dupla evidência”: a “evidência de facto”, no sentido de se verificarem as circunstâncias que consubstanciam o vício em causa e a “evidência de direito”, por não ser questionado (ou não o ser, em termos minimamente atendíveis) o direito aplicável àqueles factos.
Além disso, o critério legal vertido na alínea a) do n.º 1 do artigo 120.º é o da evidência da procedência da ação e não (apenas) o da evidência do vício invocado na ação impugnatória, pois não apenas é necessário que seja evidente a verificação do vício, como também tem que ser manifesto que tal vício conduz inevitavelmente à invalidade do ato, sem possibilidade, por exemplo, de aproveitamento do ato, em casos de mera anulabilidade do ato, sustentados em vício de forma ou procedimental (neste sentido, v. Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa, 12ª ed., 2012, 311-312).
No caso vertente, salvo o devido respeito por opinião contrária – cfr. o Acórdão do TCA Sul, de 06.03.2014, P. 10828/14, invocado pelo Recorrente – entendemos que não está preenchido o critério da evidência da procedência da ação, entendido nos termos acima enunciados.
Relembremos que, segundo a tese do Recorrente, seria evidente a procedência da ação de impugnação dos despachos em causa, na medida em que é manifesto que estes violaram o disposto no artigo 135.º/2 do RCTFP, não tendo sido precedidos da consulta prévia dos trabalhadores e das suas estruturas representativas aí prevista.
Ora, embora tenha sido dado como provado que tal consulta não existiu, essa evidência de facto não conduz necessariamente à evidência de direito, consubstanciada na violação do citado dispositivo legal. Para tanto, necessário seria que também fosse evidente, por um lado, que essa norma é aplicável aos despachos em apreço e, por outro, que sendo-lhes aplicável, determina inevitavelmente a sua invalidade, sem possibilidade de aproveitamento dos atos praticados (mesmo havendo preterição da audiência previa dos interessados, pode haver aproveitamento do ato quando, por exemplo, se conclua que outro não podia ser o sentido da decisão).
Ora, esta evidência de direito não se verifica no caso em apreço.
Desde logo, porque como já resulta da fundamentação da decisão recorrida, não é líquido nem seguro que os despachos em causa estivessem sujeitos ao cumprimento da formalidade prevista no artigo 135.º/2 do RCTFP. Pelo contrário, existem argumentos atendíveis no sentido de excluir tais despachos do âmbito de aplicação daquela norma legal, assim como existem argumentos, igualmente atendíveis, no sentido de os incluir no escopo da norma.
É desde logo perturbador de tal certeza, a constatação de que a Lei n.º 68/2013 (que, os despachos em causa visam cumprir) veio proceder a uma alteração do artigo 126.º do RCTFP que regula o “período normal de trabalho”, aumentando-o para 8h/dia e 40h/semana (contra as anteriores 7h/dia e 35h/semana) e que, por isso, a alegada “alteração do horário de trabalho” poderá confundir-se ou consumir-se numa “alteração do período normal de trabalho”, a qual não está, por lei, sujeita a tal audição.
Também contribui para a controvérsia da questão em apreço, a circunstância de ser discutível a própria natureza jurídica dos atos suspendendos, que, em casos semelhantes, já foram qualificados como meros atos de execução de disposição legal imperativa (cfr. Acórdão do TCAS, de 20.02.2014, P. 10706/13, onde se concluiu pela incompetência absoluta do tribunal para apreciar a legalidade de tais atos), como atos regulamentares (cfr. Acórdão do TCAS, de 24.04.2014, P. 11002/14, que também concluiu pelo não preenchimento do critério de evidência, embora com fundamentação diversa da que vimos alinhando) e como atos administrativos (cfr. o citado Acórdão do TCAS, de 06.03.2014, P. 10828/14).
O que ficou dito é suficiente para demonstrar que a questão de saber se os atos suspendendos violam o disposto no artigo 135.º/2 do RCTFP, em termos de tal invalidade determinar irremediavelmente a invalidade de tais atos, não é uma questão que mereça uma resposta inequívoca, sem qualquer esforço exegético, mas antes um problema contestado ou controverso, por se prefigurarem argumentos credíveis no sentido da tese do Recorrente e outros argumentos, pelo menos tão credíveis como os anteriores, no sentido contrário.
Pelo que a providência cautelar não pode ser decretada ao abrigo do artigo 120.º/1-a) do CPTA, tal como decidido na decisão recorrida.
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V. Decisão
Pelo exposto, acordam em negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida na parte em que não decretou a providência cautelar com fundamento na alínea a) do n.º 1 do artigo 120.º do CPTA.
Custas pelo Recorrente.
Lisboa, 23.10.2014


(Esperança Mealha)




(Maria Helena Canelas)




(António Vasconcelos)