Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:12873/16
Secção:CA- 2º JUÍZO
Data do Acordão:02/11/2016
Relator:NUNO COUTINHO
Descritores:ASILO
RAZÕES HUMANITÁRIAS
Sumário:I - Formulado pedido de asilo por razões humanitárias, o mesmo apenas pode ser recusado se for inquestionável que um país que não é Estado membro possa ser considerado primeiro país de asilo.

II – Não pode ser considerado como primeiro país de asilo um país que, não obstante ter emitido, através de uma embaixada, visto turístico não apreciou pedido de asilo formulado pelo recorrido, constituindo o referido visto apenas uma forma de simplificar o acesso a solicitar protecção internacional.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

I – Relatório

O Ministério da Administração Interna interpôs recurso da sentença proferida pelo T.A.C. de Lisboa, em 29 de Setembro, no âmbito de acção administrativa especial intentada por Samer ……………, na qual se decidiu anular o acto impugnado – praticado pelo Director Nacional do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras em 2 de Junho de 2015 - que indeferiu o pedido de asilo formulado pelo ora recorrido e condenou o referido Serviço na concessão de autorização de residência por razões humanitárias.

Formulou as seguintes conclusões:

“1. O cidadão sírio Samer ………. entrou em território brasileiro na posse de um visto especial concedido unicamente aos cidadãos afectados pelo conflito armado na Síria, “Considerando os laços históricos que unem a República Árabe Síria à República Federativa do Brasil, onde reside grande população de ascendência síria.
2. Em território brasileiro o referido cidadão solicitou protecção internacional às autoridades brasileiras.
3. A 27/05/2015 apresentou novo pedido de protecção internacional ao Estado Português.
4. Tendo em conta o estatuto concedido pelo Estado Brasileiro aos cidadãos requerentes de asilo e que decorre do respectivo regime jurídico, temos por evidente que, da análise dos autos e do Processo Administrativo se pode concluir que se verifica preenchido o requisito previsto na alínea z) do nº 1 do artº 2º da Lei 27/2008, de 30 de Junho, nos termos do qual se pode considerar o Brasil como primeiro país de asilo, impondo a lei como consequência imediata que fosse proferida a decisão de inadmissibilidade, e para os efeitos da alínea c) do nº 1 do artº 19-A do mesmo diploma legal.
5 – E assim sendo, as autoridades nacionais, in casu o SEF, não têm de analisar se os factos ora aduzidos na petição inicial preenchem os requisitos quer do artº 3º, quer subsidiariamente do artº 7º da Lei nº 27/2008, de 30 de Junho, na redacção que lhe foi dada pela Lei nº 26/2014, de 05 de Maio.
6 – O ora Recorrente não pode deste modo concordar com a douta sentença, por considerar que procedeu num incorrecto enquadramento e interpretação dos factos e do direito.

Contra-alegou o recorrido concluindo da seguinte forma:

1. O recorrente limita-se a invocar os mesmos e exactos argumentos que lançou mão na sua contestação, não alegando nem demonstrando de que forma a decisão recorrida violou disposições ou princípios constitucionais ou legais, pelo que o recurso não é admissível nos termos do disposto no artº 141º do CPTA.
2. Dos factos assentes resulta que o requerente solicitou refúgio no Brasil, no entanto, sobre tal pedido não recaiu qualquer decisão.
3. No Brasil, o requerente não foi reconhecido como refugiado, não beneficia de protecção de refugiado, nem usufrui de protecção suficiente incluindo o benefício do princípio de não repulsão.
4. Conforme resulta da matéria de facto assente, a qual o recorrente aceita, o recorrido não foi, em momento algum, reconhecido como refugiado no Brasil.
5. Ao recorrente não é, ainda, aplicável a protecção especificamente prevista na Lei do Asilo Brasileira, já que o recorrido não solicitou refúgio por ser alvo de perseguição religiosa em virtude de raça, nacionalidade, grupo social ou opinião política, mas apenas porque foge de uma guerra.
6. O único documento que existe emitido por uma entidade brasileira é a dita declaração do Vice-Consul, atestando às autoridades Turcas que o recorrente é beneficiário de um visto que lhe permite a entrada e saída do território brasileiro com vista a que venha a pedir refúgio.
7. O Brasil não pode ser considerado como primeiro país de asilo do recorrente.
8. Ao recorrente é devida concessão da autorização de residência por protecção subsidiária prevista no artº 7º da Lei 27/2008 de 30 de Junho, considerando que o recorrido invocou factos suficientes que traduzam um receio objectivo de perseguição, com justo receio de sofrer ofensa grave.

II - Na sentença recorrida foram dados como assentes os seguintes factos:

A) O Requerente nasceu em 20/03/1985, em Allepo, República Árabe da Síria e é nacional deste país (cfr. fls. 15 do processo administrativo apenso, que ora se dá por integralmente reproduzido);
B) O Requerente apresentou-se no posto de fronteira do Aeroporto de Lisboa em 27/05/2015, proveniente de Belo Horizonte, no voo TP102 (cfr. fls. 5 do processo administrativo apenso, que ora se dá por integralmente reproduzido);
C) Veio a constatar-se que o Requerente não era portador de documento de viagem válido, pelo que, por esse motivo foi-lhe recusada a entrada em Portugal (cfr. fls. 9 do processo administrativo apenso, que ora se dá por integralmente reproduzido);
D) O Requerente, aquando da informação dos motivos da recusa de entrada, efectuou pedido de asilo ao Estado Português (cfr. fls. 21, do processo administrativo apenso, que ora se dá por integralmente reproduzido);
E) Resulta do P.A. apenso, a fls. 20 a 24 o seguinte:
«(Texto no original)»

F) O Requerente é titular de passaporte da República Árabe da Síria, com o n.º 008976270, emitido em 17/02/2014, válido até 16/02/2020, no qual se encontra aposto visto turístico da República Federal do Brasil, n.º 543058MH, emitido a 23 de Junho de 2014, válido por 90 dias.
(cfr. fls. 15 a 19 do processo administrativo apenso, que ora se dá por integralmente reproduzido);
G) Em 29/05/2015, o Autor prestou declarações perante o SEF, quanto aos fundamentos do seu pedido de asilo, com o seguinte teor:
«(Texto no original)»

(cfr. PA a fls. 40 a 42, que ora se dá por integralmente reproduzido);

H) Em 01/06/2015, foi elaborada a informação n.º 408/GAR/15, pelo Gabinete de Asilo e Refugiados do SEF, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, na qual se exarou nomeadamente que:
«(Texto no original)»


(cfr. PA apenso, de fls. 43 a 48, ibidem);
I) Em 02/06/2015, o Director-Nacional do SEF proferiu o seguinte despacho:
«(Texto no original)»


(cfr. PA apenso, de fls. 49, ibidem);
J) Em 03/06/2015, o Requerente foi notificado do despacho impugnado, referido na alínea anterior (cfr. PA, a fls. 50);
K) Em 29/05/2015, o Conselho Português para os refugiados emitiu parecer, pronunciando-se pela não (1) admissão do pedido de asilo formulado e do qual consta, nomeadamente, o seguinte:
«(Texto no original)»
(…)
Procede a Lei do Asilo, nos artigos 19º e 19º-A, a uma enumeração taxativa das cláusulas de tramitação acelerada e de inadmissibilidade cuja verificação determina, respectivamente, o indeferimento liminar do pedido de protecção internacional, por manifestamente infundado, ou, em alternativa, a inadmissibilidade do mesmo, com o consequente prescindir da análise do mérito/do preenchimento dos requisitos de reconhecimento do estatuto de refugiado/concessão de protecção subsidiária.
Por oposição à fase de concessão, plasmada na Secção III do Capítulo III do diploma supra citado, não se trata aqui de nos pronunciarmos, a título principal, sobre a provável verificação dos requisitos substantivos subjacentes ao reconhecimento do estatuto de refugiado ou da concessão da protecção subsidiária. Objecto principal deste parecer deverá ser, em nosso entender, a eventual verificação de uma das cláusulas de tramitação acelerada ou de inadmissibilidade consagradas nos artigos supra citados.
Valorizadas as declarações do ora requerente, premente será aqui apreciar, em primeiro lugar, da verificação da cláusula de admissibilidade prevista na alínea c) do n.º 1 do artigo 19-Aº da Lei n.º 27/2008, de 30 de Junho, com as alterações introduzidas pela Lei nº 26/2014 de 5 de Maio, onde se determina que “O pedido é considerado inadmissível, quando se verifique que (…) Um país que não é um Estado membro [da UE] é considerado primeiro país de asilo.”
Analisemos a estadia do requerente na República Federativa do Brasil e o seu enquadramento na alínea supra citada; nas suas declarações, o requerente relata a obtenção de um visto turístico, de duração de 90 dias, na Embaixada do Brasil na Turquia, através do qual acedeu ao território brasileiro, onde permaneceu quatro meses.
A emissão do visto foi realizada ao abrigo da política especial de emissão de vistos de turismo para os cidadãos sírios, estabelecida pela Resolução Normativa CONARE Nº17, que pretende auxiliar o acesso ao território do Brasil a todos os cidadãos e residentes na República Árabe Síria que manifestem a vontade de procurar “refúgio” (asilo), através da dispensa dos requisitos usuais para a emissão do visto.
O visto de turismo cumpre a missão de ser um modo de acesso à proteção de um Estado terceiro, contudo, não constitui, isoladamente, uma forma de asilo, antes apenas pretende simplificar o acesso à solicitação de protecção internacional em território brasileiro. De facto, a Resolução Normativa é clara no seu texto ao afirmar que será concedido visto a “indivíduos afetados pelo conflito armado na República Árabe Síria que manifestem vontade de buscar refúgio no Brasil. 12” (destaque nosso), ou seja, o pedido de protecção internacional apenas será concretizado, no momento em que os indivíduos, após a chegada ao Brasil, se dirijam às autoridades competentes, e, junto destas, apresentem o seu pedido de asilo. O processo de concessão de protecção internacional seguirá, a partir deste momento, os trâmites do procedimento normal.
Por esta razão, discordamos da caracterização do Brasil enquanto primeiro país de asilo, segundo a definição presente na alínea z) do nº1 do art.2º da Lei n.º 27/2008, de 30 de Junho, com as alterações introduzidas pela Lei nº 26/2014 de 5 de Maio, já que esta figura jurídica pressupõe o reconhecimento efectivo do estatuto de refugiado, ou quanto menos, a existência da concessão do gozo de protecção efectiva estadual, o que não existiu no caso em apreço, pois apesar de o requerente ter apresentado um pedido de protecção internacional em solo brasileiro, não recebeu qualquer decisão, temporária ou definitiva, excluindo assim a possibilidade de aplicação desta cláusula.
A ausência de uma decisão de protecção internacional afasta a aplicação da figura de primeiro país de asilo, mas invoca a possibilidade de aplicação da cláusula da alínea d), nº1 do art.19º-A, relativo ao país terceiro seguro.
Analisemos, então, esta hipótese.
Sobre a definição de “país terceiro seguro”, cumpre ressalvar que a sua aplicação exige a existência de uma “ligação entre o requerente de asilo e o país terceiro em causa que permita, em princípio, que essa pessoa se dirija para esse país;13”.
A interpretação do conceito de “país terceiro seguro”, e a natureza da ligação exigida entre o requerente e o país terceiro em causa com vista à sua aplicação, foi objecto de apreciação pelo ACNUR na sua análise à proposta de Directiva do Conselho relativa a normas mínimas aplicáveis ao procedimento de concessão e retirada do estatuto de refugiado nos Estados-Membros. Revestindo-se de particular pertinência no caso em apreço, nela podemos ler, que:
“A responsabilidade [internacional] primária pela concessão de protecção incumbe ao Estado onde o pedido é apresentado. A transferência de responsabilidade apenas deverá ser ponderada entre Estados com sistemas de protecção comparáveis, e tendo por base um acordo que defina claramente as respectivas responsabilidades. (…)
O requerente deverá apresentar uma ligação genuína ou laços estreitos com o país terceiro. Tal ligação deverá ser mais intensa do que a ligação que este mantém com o Estado onde apresentou o pedido de asilo. (…) O Estado terceiro deverá concordar expressamente com a readmissão do requerente no seu território e com a análise do mérito do pedido em sede de um procedimento justo. (…)
Exemplos de ligações que poderão legitimamente relevar [para efeitos de aplicação do conceito de país terceiro seguro] incluem a existência de vínculos familiares, (…), anteriores estadias tais como visitas ou estudos, bem como elos linguísticos ou culturais.
(…) Do ponto de vista do ACNUR, o simples trânsito não constitui um elo relevante (…)
Ora, o requerente admite que a sua estadia no Brasil foi bipartida, este permaneceu durante dois meses e meio em território brasileiro, (de Julho de 2014 a Setembro do mesmo ano), onde requereu a protecção internacional, não obtendo, todavia, qualquer resposta das autoridades brasileiras. A ausência de qualquer solução por parte do Estado brasileiro levou o requerente a regressar para junto da sua família na Turquia, retornando em Novembro ao Brasil, ficando por um período de sete meses com o intuito de obter uma passagem para a Europa, pois em território brasileiro não obteve qualquer resolução legal no âmbito do seu processo de protecção internacional. Se a primeira passagem pelo Brasil é caracterizada pela busca de asilo, a segunda traduz-se num mero trânsito entre a Turquia e a União Europeia.
A aplicação do conceito de país terceiro seguro exige a avaliação do Estado por onde passou o requerente, antes de solicitar asilo no país onde se encontra, logo o presente caso será estudado à luz dos critérios estabelecidos pela alínea r), nº1, art.2º, que condiciona a aplicação prática deste conceito à observação de três regras, contidas nas subalíneas i), ii) e iii), correspondentes à avaliação da ligação, segurança e possibilidade de contestação da aplicação desta medida.
Avaliando o caso em apreço, e de acordo com os critérios exigidos, focar-nos-emos na compreensão da relação do requerente com o país terceiro estabelecendo a sua ligação ao Brasil; este requisito, como nos informa o ACNUR15, não se poderá conformar com o mero trânsito pelo país, antes exige um vínculo significativo que tornaria razoável a transferência do requerente para o país terceiro seguro. A consubstanciação deste laço ao país terceiro deverá incluir ligações familiares, culturais, e linguísticas, bem como estadias prévias no Estado avaliado ora no caso estudado, os presentes critérios encontram-se ausentes, não se verificando a presença de laços familiares no Brasil, pois, por admissão do próprio requerente, a sua família encontra-se na Turquia, adicionando-se à separação familiar a diferença linguística, que assim afastam o elo entre o requerente e o país terceiro.
Ainda que se invocasse as estadias em solo brasileiro para estabelecer a conexão do requerente com este país, esta não supriria a inexistência de qualquer laço de ligação ao Brasil, pelo contrário, pois a ausência de qualquer resposta das autoridades brasileiras ao pedido de protecção internacional cumulada com o retorno com o único intuito de alcançar os Estados europeus, apenas salienta a caracterização deste Estado como um mero país de trânsito, que, como acima referido, é manifestamente insuficiente para criar um laço entre o requerente e o estado brasileiro.
Aqui chegados, será ainda necessário relembrar que a ausência de um acordo entre a República Portuguesa e a República Federativa do Brasil para a repartição de responsabilidades pela análise dos pedidos de protecção internacional, ou readmissão de requerentes de asilo, que segundo a Conclusão Nº 15 (XXX) supra citada, deverá obstar à utilização desta cláusula de inadmissibilidade.
Por todas estas razões, não podemos aceitar que se verifique o preenchimento da regra da subalínea i), da alínea r), do nº1, art.2º da Lei nº 27/2008 com as alterações introduzidas pela Lei nº 26/2014 de 5 de Maio, não apenas por o caso em apreço carecer do preenchimento cumulativo das três subalíneas, o que torna impossível a sustentação da tese de caracterização do Brasil como país terceiro de asilo, mas ainda pela ausência de qualquer acordo de transferência de migrantes entre o Brasil e Portugal. Em consequência, pensamos estar excluída a aplicação da cláusula de inadmissibilidade da alínea d), nº1, art.19º-A.
Considerando as declarações da ora requerente, premente será aqui apreciar da eventual verificação das cláusulas de tramitação acelerada previstas nas alíneas c) e e) do n.º 1 do artigo 19º da Lei do Asilo.
De acordo com a informação recolhida sobre o país de origem relativa à insegurança generalizada na Síria e, de resto, como é ampla e publicamente divulgado, o número de vítimas mortais do conflito armado na Síria ascende actualmente a centenas de milhar. A insegurança e a instabilidade resultantes do conflito armado são generalizadas, bem como as violações do Direito Internacional Humanitário e dos Direitos Humanos, perpetradas por ambas as partes do conflito. Verificam-se ainda grandes dificuldades no acesso a bens e serviços essenciais.
Sendo o requerente cidadão de um país que, como é público e notório, se encontra a braços com um conflito armado interno generalizado e extremamente violento, a análise das necessidades de protecção internacional dos respectivos cidadãos tenderá a ser predeterminada pela convicção de que o risco acrescido para as suas vida e/ou integridade física resultará, não de uma qualquer característica ou actividade individual, antes consistindo num risco difuso e generalizado, válido para todos, ou para parcelas relevantes da população síria. Isto é, que tal risco resultará da simples residência ou presença dos requerentes em qualquer ponto do território nacional do país, onde provavelmente viriam a ser vítimas incidentais do conflito, e não vítimas premeditadas da guerra levada a cabo pelos beligerantes, por um qualquer motivo com enquadramento convencional
Recorde-se ainda que a zona de proveniência da requerente tem sido, desde o início do conflito, um dos principais focos de confronto entre as partes envolvidas no conflito armado.
Sobre a ausência de protecção estatal, cumpre aqui relembrar a informação supra citada que indicia, de forma clara, a indisponibilidade de ambas as partes do conflito em oferecerem protecção eficaz à população civil.
Muito pelo contrário, ambas as partes do conflito têm vindo a desrespeitar os direitos básicos da população e a atentar de forma grave e sistemática contra a mesma.
Refira-se que a crise humanitária na Síria e a necessidade de protecção dos cidadãos que conseguem abandonar o país tem tido impactos particularmente intensos e gravosos nos países vizinhos, cuja capacidade de resposta está a ser levada ao limite, como demonstram as informações publicamente disponíveis acerca da situação dos refugiados no Líbano e na Turquia.
Daquilo que ficou dito em cima sobre os critérios que deverão nortear a aplicação das cláusulas de tramitação acelerada dos pedidos de protecção, o ónus da prova que nesta fase impende sobre o requerente no sentido de demonstrar o risco de perseguição alegado será necessariamente menos intenso. Os elementos de que dispomos permitem-nos pugnar, neste momento, por um eventual preenchimento dos critérios tendentes ao reconhecimento do estatuto de refugiado e consequente concessão do asilo.
(…)
VI – CONCLUSÃO
Considerando,
A invocação, a favor do requerente, do princípio do benefício da dúvida;
A necessidade de protecção demonstrada pelo requerente e o necessário respeito pelo princípio de non-refoulement;
A não verificação de cláusulas de inadmissibilidade ou de tramitação acelerada, tal como previstas pelo artigo 19º e 19º-A da Lei de Asilo;
O Conselho Português para os Refugiados pronuncia-se pela admissibilidade do pedido de asilo, propondo a sua consequente instrução, nos termos do artigo 28º da Lei n.º 27/2008 de 30 de Junho, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 26/2014, de 5 de Maio, com vista ao eventual reconhecimento do estatuto de refugiado, nos termos do artigo 3º do mesmo diploma.
(cfr. PA apenso, de fls. 65 a 95, ibidem);


III) Fundamentação jurídica

O recorrente centra a discórdia com a decisão recorrida no entendimento segundo o qual estaria preenchido o requisito previsto na alínea z) do nº 1 do artigo 2º da Lei 27/2008, de 30 de Junho, de acordo com “…o qual se determina considerar o Brasil como primeiro país de asilo, impondo a lei como consequência imediata que fosse proferida a decisão de inadmissibilidade, e para os efeitos da alínea c) do nº 1 do artº 19º-A do mesmo diploma legal.”

Analisemos os argumentos esgrimidos pelo recorrente:

O pedido de asilo apresentado pelo ora recorrido foi considerado inadmissível com fundamento na alínea c) do nº 1 do artº 19º-A da Lei nº 27/2008, de 30 de Junho, na redacção conferida pela Lei nº 26/2014, de 05 de Maio, preceito que se transcreve:
“Artigo 19.º-A
Pedidos inadmissíveis
1 - O pedido é considerado inadmissível, quando se verifique que:
a) Está sujeito ao procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de protecção internacional, previsto no capítulo IV;
b) Beneficia do estatuto de proteção internacional noutro Estado membro;
c) Um país que não um Estado membro é considerado primeiro país de asilo;
d) Um país que não um Estado membro é considerado país terceiro seguro;
e) Foi apresentado um pedido subsequente em que não surgiram nem foram apresentados novos elementos ou dados relacionados com a análise do cumprimento das condições para beneficiar de proteção internacional;
f) Foi apresentado um pedido por uma pessoa a cargo do requerente, depois de ter consentido que um anterior pedido fosse apresentado em seu nome e não existam elementos que justifiquem um pedido separado.
2 - Nos casos previstos no número anterior, prescinde-se da análise das condições a preencher para beneficiar do estatuto de proteção internacional.”

No entendimento do ora recorrente encontra-se garantido ao recorrido, pelo Estado Brasileiro, o benefício do princípio da não repulsão, devendo considerar-se o Brasil como primeiro país de asilo.

Recordando a matéria de facto assente importa recordar que o requerente é titular de passaporte da República Árabe da Síria, com o nº 008976270, emitido em 17/02/2014, válido até 16/02/2020, no qual se encontra aposto visto turístico da República Federal do Brasil nº 543058MH, emitido a 23 de Junho de 2104, válido por 90 dias – cfr. alínea F) dos factos apurados – constando do “Questionário para Solicitação de Refúgio e Identificação” declaração emitida pelo Vice-Cônsul do Brasil em Istambul que atesta que o mesmo pode entrar e sair livremente do Brasil. – cfr. alínea E) dos factos apurados.

O referido visto foi emitido ao abrigo da Resolução Normativa CONARE nº 17 de 20/09/2013, prorrogada por um período de dois anos pela Resolução Normativa CONARE nº 20 de 21/09/2015 que dispõe sobre concessão de visto apropriado, com conformidade com a Lei nº 6.815, de 19 de Agosto de 1980, e do Decreto 86.715 de 10 de Dezembro de 1981, a indivíduos forçosamente deslocados por conta do conflito armado na República Árabe da Síria que manifestem vontade de buscar refúgio no Brasil, prevendo o nº 1 que “Poderá ser concedido, por razões humanitárias, o visto apropriado, em conformidade com a Lei nº 6.815 de 19 de Agosto de 1980 e do Decreto 86.715, de 10 de Dezembro de 1981, a indivíduos afectados pelo conflito armado na República Árabe Síria que manifestem vontade de buscar refúgio no Brasil.”

Conforme se refere na decisão recorrida “se é certo que o Requerente solicitou protecção internacional no Brasil não é menos verdade que não se logrou provar que sobre tal pedido recaiu qualquer decisão.”

Invocou a entidade demandada, para sustentar que o Brasil seria o primeiro país de asilo o disposto no artigos 1º e 7º § 1º da Lei n.º 9.474, de 22 de Julho de 1997 (Lei do Asilo Brasileira), que preceituam:
Artº 1º Será reconhecido como refugiado todo o indivíduo que:
I- devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas encontre-se fora de seu país de nacionalidade e não possa ou não queira acolher-se à protecção de tal país
II – não tendo nacionalidade e estando fora do país onde antes teve a sua residência habitual, não possa ou não queira regressar a ele, em função das circunstâncias descritas no inciso anterior;
III – devido a grave e generalizada violação de direitos humanos, é obrigado a deixar o seu país de nacionalidade para buscar refúgio em outro país.”

Art. 7º O estrangeiro que chegar ao território nacional poderá expressar sua vontade de solicitar reconhecimento como refugiado a qualquer autoridade migratória que se encontre na fronteira, a qual lhe proporcionará as informações necessárias quanto ao procedimento cabível.
§ 1º Em hipótese alguma será efetuada sua deportação para fronteira de território em que sua vida ou liberdade esteja ameaçada, em virtude de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opinião política.

O supra transcrito preceito constitui consagração expressa do princípio de “non refoulement” previsto no artigo 33º da Convenção de Genebra e que encontra abrigo, igualmente, na alínea aa) do nº 1 do artº 2º da Lei nº 27/2008, de 30 de Junho, na redacção conferida pela Lei 26/2014, de 5 de Maio que se transcreve:
aa) «Proibição de repelir ('princípio de não repulsão ou non-refoulement')», o princípio de direito de asilo internacional, consagrado no artigo 33.º da Convenção de Genebra, nos termos do qual os requerentes de asilo devem ser protegidos contra a expulsão ou repulsão, direta ou indireta, para um local onde a sua vida ou liberdade estejam ameaçadas em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, filiação em certo grupo social ou opiniões políticas, não se aplicando esta proteção a quem constitua uma ameaça para a segurança nacional ou tenha sido objeto de uma condenação definitiva por um crime ou delito particularmente grave;

Analisemos agora o que dispõe o artigo 2º, nº 1 al. z) da Lei nº 27/2008, de 30 de Junho com as alterações introduzidas pela Lei nº 26/2014, de 5 de Maio quanto à definição de primeiro país de asilo: z) «Primeiro país de asilo», o país no qual o requerente tenha sido reconhecido como refugiado e possa ainda beneficiar dessa proteção ou usufruir nesse país de proteção efetiva, nos termos da Convenção de Genebra, e onde, comprovadamente, não seja objeto de ameaças à sua vida e liberdade, onde sejam respeitados o princípio de não repulsão e o direito de não ser objeto de tortura ou tratamento cruel, desumano ou degradante, desde que seja readmitido nesse país;”

É indiscutível que o ora recorrido não foi admitido como refugiado, dado que o seu pedido de protecção internacional não foi objecto de decisão expressa, importando determinar se o recorrido usufruía no Brasil de protecção efectiva, para que se possa determinar se a decisão de indeferir o pedido de asilo ao abrigo da alínea c) do nº 1 do artigo 19-Aº da Lei nº 27/2008, foi conforme ao regime legal.

Conforme se refere no parecer emitido pelo Conselho Português para os Refugiados “Analisemos a estadia do requerente na República Federativa do Brasil e o seu enquadramento na alínea supra citada; nas suas declarações, o requerente relata a obtenção de um visto turístico, de duração de 90 dias, na Embaixada do Brasil na Turquia, através do qual acedeu ao território brasileiro, onde permaneceu quatro meses.

A emissão do visto foi realizada ao abrigo da política especial de emissão de vistos de turismo para os cidadãos sírios, estabelecida pela Resolução Normativa CONARE nº 17, que pretende auxiliar o acesso ao território do Brasil a todos os cidadãos e residentes na República Árabe Síria que manifestem a vontade de procurar “refúgio” (asilo), através da dispensa dos requisitos usuais para a emissão do visto.

O visto de turismo cumpre a missão de ser um modo de acesso à protecção de um Estado terceiro, contudo, não constitui, isoladamente, um forma de asilo, antes apenas pretende simplificar o acesso à solicitação de protecção internacional em território brasileiro. De facto, a Resolução Normativa é clara no seu texto ao afirmar que será concedido visto a “indivíduos afectados pelo conflito armado na República Árabe da Síria que manifestem vontade de buscar refúgio no Brasil.” (….) ou seja, o pedido de protecção internacional apenas será concretizado, no momento em que os indivíduos, após a chegada ao Brasil, se dirijam às autoridades competentes e, junto destas, apresentem o seu pedido de asilo. O processo de concessão de protecção internacional seguira, a partir deste momento, os trâmites do procedimento normal.

Por esta razão, discordamos da caracterização do Brasil enquanto primeiro país de asilo, segundo a definição presente na alínea z) do nº 1 do artº 2º da Lei nº 27/2008, de 30 de Junho, com as alterações introduzidas pela Lei nº 26/2014, de 5 de Maio, já que esta figura jurídica pressupõe o reconhecimento efectivo do estatuto de refugiado, ou quanto menos, a existência da concessão do gozo de protecção efectiva estadual, o que não existiu no caso em apreço, pois apesar de o requerente ter apresentado um pedido de protecção internacional em solo brasileiro, não recebeu qualquer decisão, temporária ou definitiva, excluindo assim a possibilidade de aplicação desta cláusula.”

Aqui chegados importa recordar constituir entendimento do recorrente que o ora recorrido viajou para o Brasil na posse de um visto emitido pelo Consulado Geral do Brasil em Instambul, concedido ao abrigo da Resolução Normativa nº 17 do CONARE – Comité Nacional para os Refugiados, entidade que é, nos termos do artº 22 I e V, da Lei 9.474 de 22 de Julho de 1997 (Lei de Asilo Brasileira), o órgão competente para “analisar o pedido e declarar o reconhecimento, em primeira instância, da condição de refugiado” e “aprovar instruções normativas esclarecedoras à execução desta Lei”

O referido órgão, através da Resolução Normativa nº 17, de 20 de Setembro de 2013, decidiu que: “Considerando as dificuldades que têm sido registradas por parte desses indivíduos em conseguirem se deslocar ao território brasileiro para nele solicitar refúgio, inclusive por conta da impossibilidade de cumprir os requisitos regulamente exigidos para a concessão de visto (….) Art 1º Poderá ser concedido, por razões humanitárias, o visto apropriado, em conformidade com a Lei nº 6.815, de 19 de Agosto de 1980, e do Decreto 86.715, de 10 de Dezembro de 1981, a indivíduos afectados pelo conflito armado na República Árabe Síria que manifestem vontade de buscar refúgio no Brasil. Artº 2º O visto disciplinado por esta Resolução Normativa tem caráter especial e será concedido pelo Ministério das Relações Exteriores. Artº 3º Esta Resolução Normativa vigorará pelo prazo de 2 (dois anos) (a contar da data da sua publicação, 24/09/2013), podendo ser prorrogada” – cfr. informação elaborada em 1 de Janeiro de 2015 (item H) dos factos apurados na decisão recorrida.

É inequívoco que o pedido de protecção internacional formulado pelo ora recorrido não foi objecto de decisão, sendo que este Tribunal não acolhe o entendimento segundo o qual o visto emitido ao abrigo da Resolução Conare nº 17 de 20 de Setembro de 2013, permite considerar o Brasil como primeiro país de asilo, segundo a definição presente na alínea z) do nº 1 do artº 2º da Lei nº 27/2008, de 30 de Junho, com as alterações introduzidas pela Lei nº 26/2014, de 5 de Maio, dado que, conforme se refere no parecer do Comité Português para os Refugiados “O visto de turismo cumpre a missão de ser um modo de acesso à protecção de um Estado terceiro, contudo, não constitui, isoladamente, um forma de asilo, antes apenas pretende simplificar o acesso à solicitação de protecção internacional em território brasileiro. De facto, a Resolução Normativa é clara no seu texto ao afirmar que será concedido visto a “indivíduos afectados pelo conflito armado na República Árabe da Síria que manifestem vontade de buscar refúgio no Brasil.” (….) ou seja, o pedido de protecção internacional apenas será concretizado, no momento em que os indivíduos, após a chegada ao Brasil, se dirijam às autoridades competentes e, junto destas, apresentem o seu pedido de asilo. O processo de concessão de protecção internacional seguira, a partir deste momento, os trâmites do procedimento normal.”

Importa também analisar se o ora recorrido, por força do referido visto, beneficia de protecção efectiva, para efeitos do artigo 2º, nº 1 al. z) da Lei nº 27/2008, de 30 de Junho com as alterações introduzidas pela Lei nº 26/2014, de 5 de Maio, o que nos leva a ponderar o argumento aduzido pelo recorrido da aplicação do princípio do “non refoulement” ao recorrido por força do art 7º da Lei 9.474, de 22 de Julho de 1997, que aqui se recorda:
“Art. 7º O estrangeiro que chegar ao território nacional poderá expressar sua vontade de solicitar reconhecimento como refugiado a qualquer autoridade migratória que se encontre na fronteira, a qual lhe proporcionará as informações necessárias quanto ao procedimento cabível.
§ 1º Em hipótese alguma será efetuada sua deportação para fronteira de território em que sua vida ou liberdade esteja ameaçada, em virtude de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opinião política.”
Conforme se conclui na sentença recorrida “…como se depreende das declarações prestadas, quer junto do SEG, quer junto do Departamento Jurídico do CPR, o Requerente solicitou refúgio junto do Consulado Geral do Brasil em Istambul, em virtude de o seu país de origem se ver envolvido num conflito armado interno que tem dizimado centenas de milhares de civis e não em função da sua raça, nacionalidade, grupo social ou opinião política.”

Analisado o preceito supra transcrito não pode deixar de se concluir que o mesmo não prevê, expressamente, a situação do requerente, que solicitou refúgio não por considerar que a sua vida, ou liberdade, estava ameaçada por motivos raciais, religiosos, de nacionalidade, grupo social ou opinião política mas apenas porque, tal como é do conhecimento comum, a Síria se encontra envolvida num conflito armado interno que tem dizimado centenas de milhares de civis, conflito esse que, conforme é também do conhecimento geral se arrasta, já por vários anos.

Assim, embora seja defensável numa interpretação não literal da lei que o ora recorrido se encontre abrangido pela aplicação do supra referido preceito, o certo é que a “protecção efectiva” prevista no artigo 2º, nº 1 al. z) da Lei nº 27/2008, de 30 de Junho não se compadece com esta dúvida, dado exigir a conclusão firme de que tal protecção existe efectiva e indubitavelmente, o que não sucede no caso dado o Estado Brasileiro não ter decido a pretensão do ora recorrido e o visto de que é titular, não obstante lhe permitir sair e entrar no Brasil, apenas cumprir a missão de constituir um modo de acesso à protecção de um Estado terceiro, visando simplificar o acesso à solicitação de protecção internacional em território brasileiro, solicitada pelo recorrido não decidida, o que abala a convicção sustentada pelo recorrente de o recorrido gozar de protecção efectiva.

Assim, tendo presente o exposto, deve entender-se que a pretensão recursiva formulada deve improceder importando recordar que o recorrente não atacou a segunda parte decisória da sentença recorrida que decidiu no sentido da condenação do recorrente na concessão de autorização de residência, por razões humanitárias.


III) Decisão

Assim, face ao exposto, acordam em conferência os juízes da secção de contencioso administrativo do TCA Sul, em negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente.
Lisboa, 11 de Fevereiro de 2016


Nuno Coutinho


Carlos Araújo


Rui Belfo Pereira


(1) Existirá um lapso de escrita, dado o Conselho Português para os Refugiados ter emitido parecer no sentido da admissibilidade do pedido de asilo formulado.