Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:83/07.2BELRS
Secção:CT
Data do Acordão:01/28/2021
Relator:TÂNIA MEIRELES DA CUNHA
Descritores:TAXA SOBRE A COMERCIALIZAÇÃO DE PRODUTOS DE SAÚDE
INCONSTITUCIONALIDADE
DIRETIVA 76/768/CEE
RCPIT
DIREITO DE AUDIÇÃO
APROVEITAMENTO DO ATO
Sumário:
I. A falta de prolação de despacho sobre a produção de prova testemunhal não configura nulidade processual secundária.

II. A taxa sobre a comercialização de produtos de saúde não se se aplica apenas a produtos cosméticos e de higiene corporal que sejam simultaneamente produtos de saúde.

III. Quer o tributo mencionado em II. seja considerado imposto, quer seja considerado contribuição financeira, o mesmo não era aplicável aos meses compreendidos entre janeiro e março de 2000, por violação ou do princípio da não retroatividade dos impostos ou do princípio da proteção da confiança.

IV. O DL n.º 312/2002, de 20 de dezembro, não padece de inconstitucionalidade orgânica.

V. A disciplina atinente ao tributo mencionado em II. não atenta contra o princípio da tributação pelo lucro real nem contra o princípio da igualdade.

VI. A disciplina atinente ao tributo mencionado em II. não atenta contra o art.º 7.º, n.º 1, da Diretiva 76/768/CEE do Conselho, de 27 de julho de 1976, nem contra o art.º 28.º do Tratado CE.

VII. O RCPIT é aplicável no âmbito das ações inspetivas levadas a cabo pelo Infarmed, exceto naquilo que a disciplina específica do tributo mencionado em II. expressamente consagrar (onde se inclui a competência para os atos de inspeção).

VIII. Resultando as liquidações oficiosas emitidas de atos de inspeção praticados não estamos perante situação subsumível no n.º 2 do art.º 60.º da LGT.

IX. Considerando o referido em VIII., a preterição do direito de audição é, nesses casos, uma irregularidade do procedimento inspetivo, em regra cominada com a anulação das liquidações do mesmo decorrentes.

X. A aplicação do princípio do aproveitamento do ato em situações como as referidas em IX. depende de um juízo de prognose póstuma, no sentido da inexistência de qualquer possibilidade de o que viesse a decorrer do exercício do direito de audição poder influenciar o conteúdo daquele ato.

Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
Acórdão

I. RELATÓRIO

S.....,Lda (doravante Recorrente ou Impugnante) veio apresentar recursos, do despacho interlocutório de 22.04.2009 proferido no Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Sintra, no qual foi indeferida arguição de nulidade, e da sentença proferida a 15.01.2009, no mesmo TAF, na qual foi julgada improcedente a impugnação por si apresentada, que teve por objeto o indeferimento da reclamação graciosa que, por seu turno, visou as liquidações oficiosas de taxa sobre a comercialização de produtos de saúde, relativas aos meses compreendidos entre janeiro de 2000 e dezembro de 2004.

Nas alegações de recurso atinentes ao despacho interlocutório concluiu nos seguintes termos:

“                                                                             1.ª

Sem que tivesse sido notificada de qualquer decisão que recaísse sobre o requerimento de inquirição de duas testemunhas por si formulado na petição inicial, a Impugnante e ora Recorrente foi notificada da decisão final proferida nos presentes autos, que decide do mérito da causa julgando improcedente a Impugnação e que nada diz sobre a requerida produção de prova: nem quanto à sua necessidade ou desnecessidade, nem sequer quanto ao facto de ter sido apresentado tal requerimento.


2a

Arguida pela Recorrente a nulidade processual consubstanciada na omissão de despacho que apreciasse o referido requerimento probatório por si apresentado, o Tribunal a quo veio indeferir a arguida nulidade por considerar que «a lei não impõe qualquer despacho sobre os requerimentos de produção de prova», entendimento com o qual a Recorrente não pode deixar de discordar.

3a

A necessidade da realização das diligências pode ser controlada objectivamente, em face da sua real necessidade para o apuramento da verdade, podendo, por isso, ser apreciada em recurso a correcção da decisão de recusa de realização de qualquer diligência.

4a

É a obrigatoriedade de fundamentação das decisões judiciais, consagrada constitucionalmente no art. 205° n° 1 da Lei fundamental, que garante às partes a possibilidade de reagir contra tais decisões, sendo precisamente uma das funções do dever de fundamentação dos actos o permitir a sua sindicabilidade pelo visado, assim se obstando à arbitrariedade da entidade decisora na medida em que se exige a explicitação das razões de facto e de Direito que presidiram à decisão, por forma a permitir às partes reagir contra a decisão caso discordem dessas razões.

5a

Com efeito, é o dever de fundamentação das decisões judiciais que impõe que, tendo sido requerida a produção de prova pela Impugnante, o Tribunal a quo tenha de proferir despacho sobre esse requerimento no qual explicite as razões pelas quais decidiu ser desnecessária a produção de prova, por forma a que esse seu juízo possa ser sindicado pela Impugnante.


Entender que não é necessário proferir qualquer despacho a indeferir o requerimento apresentado pela Impugnante, de produção de prova testemunhal, bastando que tal indeferimento se extraia implicitamente da marcha do processo, como faz o despacho recorrido, é admitir que pode haver decisões judiciais de indeferimento tácitas e portanto necessariamente não fundamentadas.


Tal entendimento manifestado no despacho recorrido atenta contra as mais elementares garantias dos particulares, violando de forma flagrante o direito da ora Recorrente a uma tutela jurisdicional efectiva e o dever de fundamentação das decisões judiciais, consagrados nos arts. 268.° n.° 4 e 205.° n.° 1 daCRP .

8a

É inegável que a decisão de dispensar a inquirição de testemunhas é relevante, podendo influir decisivamente na decisão da causa, como o é no caso sub iudice, em que a Impugnante reputou a inquirição das testemunhas por si arroladas como essencial para a prova de factos por si alegados.

9a

Mesmo depois de notificada da sentença, atento o seu teor — não se dizendo se se decidiu de imediato porque os autos já continham toda a matéria de facto relevante para a decisão da causa, sendo desnecessária a produção de mais prova ou se, pura e simplesmente, por lapso, não foi apreciado o requerimento de produção de prova apresentado com a petição inicial —, a Impugnante continuou sem saber quais as razões que levaram à não inquirição das testemunhas por si requerida ou sequer se tal requerimento de produção de prova fora ou não apreciado pelo Tribunal a quo, pelo que é manifesta, no caso sub iudice, a necessidade de notificação à Impugnante e ora Recorrente de despacho fundamentado que aprecie o requerimento de prova por si formulado.

10a

Acresce que, não é nada inútil a notificação à Impugnante e ora Recorrente do despacho, fundamentado, que aprecie (ainda que indeferindo) o requerimento probatório apresentado em sede da petição inicial, dado que, uma vez notificado à Impugnante e ora Recorrente esse despacho, a Impugnante, ao poder recorrer desse despacho, poderá dar a conhecer ao Tribunal a quo as razões pelas quais considera essencial para a boa decisão da causa a inquirição dessas testemunhas, podendo o Tribunal a quo, designadamente em face dessas razões invocadas em sede de recurso, inclusivamente reparar a decisão recorrida e ordenar ainda a produção de prova recorrida.

11a

Como tal, ao não ter sido proferida qualquer decisão sobre a inquirição de testemunhas requerida pela Impugnante, estamos perante a omissão de acto processual que a lei impõe ao consagrar o dever de fundamentação das decisões judiciais, omissão esta que pode influir decisivamente na decisão da causa”.

O recurso foi admitido, com subida a final e com efeito meramente devolutivo.

O Infarmed – Instituto Nacional da Farmácia e do Medicamento, IP (doravante Recorrido ou Infarmed) apresentou contra-alegações, nas quais formulou as seguintes conclusões:

“1.ª Das disposições conjugadas do n.° 1 do artigo 113.° e do artigo 114.° do Código de Procedimento e Processo Tributário, resulta que, quanto à oportunidade do conhecimento do mérito da causa, o que importa é saber se, sendo a questão também de facto, o processo fornece os elementos necessários para a prolacção da sentença.

2.ª Trata-se de uma decisão essencialmente vinculada e dlrectamente imposta pela lei, pelo que não carece de qualquer fundamentação adicional nem existe violação do n.° 1 do artigo 205.° da Constituição.

3.ª A bondade do conhecimento imediato do mérito da causa só pode ser questionada pela Impugnante em sede de recurso que eventualmente interponha da decisão que venha a recair sobre esse mérito da causa, conforme resulta do artigo 712.° do Código de Processo Civil, aplicável por força do artigo 2.°, e), do Código de Procedimento e Processo Tributário.

4.ª A decisão judicial quanto à suficiência de determinados elementos probatórios para a decisão judicial quanto ao mérito não viola o princípio constitucional da tutela jurisdicional efectiva consagrado no n.° 4 do artigo 268.° da Constituição, visto que a Impugnante goza de outras garantias processuais, designadamente em sede de recurso da decisão final, no caso de vir a demonstrar-se o desacerto da decisão quanto à suficiência ou insuficiência das provas em causa”.

Por seu turno, o recurso da sentença foi admitido, com subida imediata nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

Nesse seguimento, a Recorrente apresentou alegações, nas quais concluiu nos seguintes termos:

 “                                                                            1.ª

A douta sentença sub judice é nula, nos termos do art. 125.°, n.° 1, do CPPT, o que expressamente se argui, por não ter conhecido a questão da inaplicabilidade do art. 72.º da Lei n ° 3-B/2000 atenta a base de incidência nele definida e a consequente ilegalidade das liquidações efectuadas ao abrigo desse diploma, ou, no limite, da contagem de juros, questão esta que lhe foi expressamente submetida pela Recorrente na impugnação judicial (cfr. os seus artigos 236.° a 263.°), não tendo o conhecimento dessa mesma questão ficado prejudicado pela solução dada a outras.


2.ª

A douta sentença sub judice é também nula, nos termos do art. 125.°, n.° 1, do CPPT, o que expressamente se argui, por não ter conhecido das questões da falta de credenciação, da falta de notificação da nota de diligência e da falta de notificação do relatório final da inspecção a que o próprio Infarmed se auto-vinculara e ainda da ultrapassagem do prazo máximo de duração da inspecção, questões estas que lhe foram expressamente submetidas pela Recorrente na impugnação judicial (cfr. os seus artigos 52.°, 54.°, 83.° a 119° e 134° a 142°), não tendo o conhecimento dessas questões ficado prejudicado pela solução dada a outras.

3.ª

A douta sentença sub judice contém um erro evidente na alínea H) dos factos provados, pois como decorre dos Docs. n.°s 1 a 60 que se encontram anexos à reclamação graciosa que, por sua vez, constitui o Doc. n.° 1 junto à petição inicial e que consubstanciam cópia dos actos de liquidação oficiosa, que aliás são expressamente referidos na alínea D) dos factos provados (que julgou como provado estarem em causa “liquidações oficiosas”), não se deduziu (neste caso) reclamação graciosa contra um acto tributário de autoliquidação, mas sim reclamação graciosa contra sessenta actos de liquidações oficiosas.

4.ª

Assim, deve a douta sentença ser rectificada - nos termos do art. 667.° do CPC - ou então alterada - nos termos do art. 712.°, n.° 1, alínea a) do CPC - de modo a passar a constar, na alínea H) dos factos provados, em vez de “[...] deduziu reclamação graciosa contra o acto tributário de autoliquidação [...]”, a menção “[...] deduziu reclamação graciosa contra os actos de liquidação oficiosa […]”.

A douta sentença sub judice fez errada aplicação do disposto no art. 113.°, n.° 1, do CPPT, na medida em que conheceu imediatamente do pedido sem que as questões a decidir fossem apenas de Direito e sem que o processo fornecesse já todos os elementos necessários.


5.ª

A douta sentença sub judice padece dos vícios de erro de julgamento e insuficiência da matéria de facto dada como provada para a decisão proferida, sendo essencial à boa decisão da causa a ampliação da matéria de facto, uma vez que a douta sentença não refere os factos que deveriam ter sido objecto de apreciação por serem relevantes para o correcto enquadramento das questões a apreciar e decidir, não contendo a douta sentença os factos pertinentes à decisão da causa, tendo, além disso, o Tribunal a quo acabado por assentar a sua decisão em factos que não estão provados nos termos da própria douta sentença recorrida (não foram provados quaisquer factos relativos a uma eventual diferente natureza dos produtos que o Tribunal a quo refere a propósito do vício de violação de lei por ofensa do princípio da igualdade, nem foram julgados provados vários factos relativos ao decurso do procedimento de inspecção que eram relevantes para efeitos de apreciação da caducidade do direito de liquidar, nem foi julgado provado que “[...] o tributo é repercutido no consumidor final”, tal como o Tribunal a quo refere a propósito da violação do Direito Comunitário e, ainda, na conclusão que apresenta no penúltimo parágrafo da pág. 34 da sua douta sentença).

6.ª

A decisão recorrida padece ainda de insuficiente instrução, tendo a Impugnante sido ilegalmente impedida de ouvir as testemunhas que arrolou acerca dos factos por si alegados (e alegados pela Fazenda Pública), factos esses essenciais para a boa decisão do mérito da causa e que, se tivessem sido julgados provados, teriam conduzido a outra decisão, nos termos em que a Recorrente configurou a sua impugnação judicial.

7.ª

A decisão recorrida fez um errado enquadramento dos factos e uma errada interpretação das normas que regulam o procedimento de inspecção tributária levado a cabo pelo Infarmed, devendo ser tidas em conta não só as normas constantes do DL n° 312/2002, da própria LGT e do CPPT aplicáveis à inspecção, como ainda as regras a que o próprio Infarmed se auto-vinculou no decurso do procedimento e ainda a normas constantes do RCPIT, que são igualmente aplicáveis ao caso sub Júdice, devendo a legalidade da inspecção ser aferida em função do conjunto destas normas aplicáveis ao caso sub judice.

Como tal o procedimento de inspecção levado a cabo pelo Infarmed padece de vários vícios, que deverão determinar a sua anulação e a anulação dos actos de liquidação nos quais culminou, entre os quais os vícios de incompetência e falta de credenciação dos elementos que levaram a cabo a inspecção, de falta de notificação da nota de diligência, de ultrapassagem do prazo máximo de duração da inspecção, de alta de notificação do projecto de conclusões do relatório e de falta de notificação do relatório final da inspecção.


8.ª

A douta sentença sub judice fez um errado enquadramento dos factos e uma errada interpretação do art. 77.° da LGT, do art. 123° do CPA e do e art. 268°, n.° 3 da CRP, os quais foram efectivamente violados, padecendo os actos de liquidação da Taxa e dos respectivos juros compensatórios impugnados do Vício de falta de fundamentação, pelo que devem ser anulados.

9.ª

A douta sentença sub judice fez ainda um errado enquadramento dos factos e uma errada interpretação dos arts. 46.° e 47.° da LGT, os quais foram efectivamente violados, impondo uma correcta interpretação destes preceitos legais e uma correcta consideração dos factos ocorridos em sede de inspecção que os actos de liquidação respeitantes aos meses de Janeiro de 2000 a Novembro de 2001 sejam julgados já caducados à data em que a ora Recorrente foi notificada da sua liquidação.

Vindo, como se espera, a ser anulado o procedimento de inspecção realizado nos presentes autos e, consequentemente, anuladas as liquidações a que o mesmo deu origem, deve ser reconhecida a caducidade do direito a proceder a toda e qualquer liquidação da Taxa em apreço respeitante aos meses em causa nos presentes autos, uma vez que distam mais de 4 anos sobre o início da eventual nova inspecção que pudesse vir a ser ordenada e portanto, neste momento, já caducou o direito de proceder à liquidação da Taxa em apreço relativamente a todos os meses entre Janeiro de 2000 e Dezembro de 2004, o que deverá ser declarado pelo Tribunal.


10.ª

A douta sentença sub judice fez um errado enquadramento dos factos e uma errada interpretação do art. 72.°, n.°s 1 e 2, alínea b), da Lei n.° 3- B/2000 e do art. 1.°, n.° 1, alínea a), do Decreto-Lei n.° 312/2002 (desrespeitando o art. 9.°, n. 2, do Código Civil, aplicável por força do art. 11.°, n.° 1, da LGT, e o art. 103.°, n ° 3, da CRP, e ignorando quer o n.° 2 do art. 1.° do Decreto-Lei n.° 312/2002, quer o art. 55.° da Lei n.° 109-B/2001, quer ainda o art. 6.°, n.° 2, do Decreto-Lei n.° 495/99 (entretanto revogado), que definia “produtos cosméticos e de higiene corporal” como “produtos de saúde, para efeitos [apenas] do presente diploma”), pois os citados normativos [o art. 72.°, n.°s 1 e 2, alínea b), da Lei n.° 3-B/2000 e o art. 1.°, n.° 1, alínea a), do Decreto-Lei n.° 312/2002] devem ser interpretados no sentido de a Taxa aí prevista só se aplicar a produtos cosméticos e de higiene corporal que sejam simultaneamente produtos de saúde, entendidos estes como aqueles que são comercializados através do canal de distribuição “farmácia”.

Os produtos cosméticos e de higiene corporal comercializados pela Recorrente, não sendo produtos de saúde, não estão sujeitos à Taxa, pelo que padece de ilegalidade, nos termos do disposto no art. 99 ° do CPPT, por violação das normas de incidência objectiva, as liquidações da Taxa referentes aos meses de Janeiro de 2000 a Dezembro de 2004, o que tem como consequência a revogação da douta sentença recorrida e a anulação, à qual deve o Tribunal ad quem proceder, do indeferimento da reclamação graciosa apresentada em 28 de Abril de 2006 e dos actos de liquidação impugnados.

O art. 72.° da Lei n.° 3-B/2000, ao prever como base de incidência o “preço de venda ao consumidor” (no seu n.° 3) é inaplicável, uma vez que os produtos cosméticos e de higiene corporal têm preços livres para o consumidor final, que a Recorrente não conhece nem pode conhecer, sendo que as liquidações feitas pelo INFARMED ao abrigo do referido preceito, com referência ao preço de venda pela própria Recorrente, foram-no com base numa interpretação correctiva, sem qualquer correspondência no texto legal, de uma norma que fixou a base de incidência de forma expressa e clara, o que viola quer o art. 9.°, n.° 2, do Código Civil, quer o próprio art. 72.°, n ° 3, da Lei n.° 3-B/2000.

Consequentemente, padece de ilegalidade a liquidação da Taxa referente aos meses de Janeiro de 2000 a Dezembro de 2002, inclusive, devendo, pois, o Tribunal ad quem, uma vez que o Tribunal a quo não o fez, anular o indeferimento da reclamação graciosa apresentada em 28 de Abril de 2006 e anular os actos de liquidação impugnados.


12.a

Mas ainda que se entendesse ser admissível a interpretação que o INFARMED fez do art. 72.°, n.° 3, da Lei n.° 3-B/2000 (hipótese esta que se rejeita em absoluto e só por mero dever de patrocínio se equaciona), nunca podem ser exigidos à ora Recorrente - tal como efectivamente o foi - quaisquer juros compensatórios relativamente às liquidações respeitantes aos meses de Janeiro de 2000 a Dezembro de 2002, inclusive, pois a Recorrente, confrontada com uma lei cujo texto a torna inexequível, não tinha ela própria de proceder à interpretação que veio a ser proposta pelo INFARMED (interpretação essa da qual discorda, aliás veementemente!), sendo certo que não foi julgado provado qualquer facto donde resulte ter o INFARMED comunicado à Recorrente que o art. 72.°, n.° 3, da Lei n.° 3 B/2000 devia ser interpretado com o sentido que, com as liquidações, implicitamente (e só implicitamente) lhe veio aparentemente (e erradamente) atribuir. Foi, assim, violado o art. 35.°, n.° 1, da LGT, pois não existe facto imputável à Recorrente que esteja na origem do retardamento na liquidação da Taxa.

Consequentemente, mesmo que se considere admissível ler-se o art. 72.°, n.° 3, da Lei n.° 3-B/2000 como se tivesse o sentido de incidir a Taxa sobre o montante das vendas da própria Recorrente e com referência ao preço praticado por esta (hipótese esta que se rejeita convictamente!), sempre se tem de considerar, pelo motivo ora exposto, padecer de ilegalidade a liquidação da Taxa referente aos meses de Janeiro de 2000 a Dezembro de 2002, inclusive, devendo, pois, o Tribunal ad quem, uma vez que o Tribunal a quo não o fez, anular o indeferimento da reclamação graciosa apresentada em 28 de Abril de 2006 e anular os actos de liquidação impugnados.


13.a

Tendo a Taxa sido introduzida pela Lei n.° 3-B/2000, que entrou em vigor no dia 16 de Abril de 2004, o art. 72.° e o art. 103.° da Lei n.° 3-B/2000 de 4 de Abril, na interpretação do Tribunal a quo, segundo a qual a Taxa prevista no art. 72.° da Lei n.° 3-B/2000 é também devida em relação aos meses de Janeiro a Abril de 2000, por o princípio da irretroactividade da lei fiscal não ser aplicável à lei do Orçamento de Estado, são inconstitucionais, por violação do art. 103.°, n.° 3, da CRP.

Consequentemente, padece de ilegalidade a liquidação da Taxa referente aos meses de Janeiro de 2000 a Abril de 2000, por violação de lei, nos termos do art. 99.° do CPPT, o que tem como consequência a revogação da douta sentença recorrida e a anulação, à qual deve o Tribunal ad quem proceder, do indeferimento da reclamação graciosa apresentada em 28 de Abril de 2006 e dos actos de liquidação impugnados.


14a

Se a Taxa não constituir um imposto (o Tribunal ad quem poderá apreciar em sentido divergente do que fez o Tribunal a quo, havendo boas razões, expostas supra em capítulo autónomo, para se considerar que constitui uma verdadeira taxa ou uma contribuição especial), então o Decreto-Lei n.° 312/2002, ao abrigo do qual foram efectuadas a inspecção tributária e as liquidações, padece de inconstitucionalidade orgânica por violação do art. 165.°, n.°s 1, alínea a), 4 e 5, da CRP, o qual foi erradamente interpretado pelo Tribunal a quo, tal como o foi também o art. 55.°, n.° 1, da Lei n.° 109- B/2001 (que tem por objecto uma autorização legislativa que já caducara no momento da aprovação do Decreto-Lei n.° 312/2002), o Decreto do Presidente da República n.° 24-A/2002 e a Lei n.° 16-A/2002.

Consequentemente, padece de ilegalidade a liquidação da Taxa referente aos meses de Janeiro de 2000 a Dezembro de 2004, por violação de lei, nos termos do art. 99.° do CPPT, o que tem como consequência a revogação da douta sentença recorrida e a anulação, à qual deve o Tribunal ad quem proceder, do indeferimento da reclamação graciosa apresentada em 28 de Abril de 2006 e dos actos de liquidação impugnados.


15.a

Se a Taxa constituir um imposto, então o art. 72.° da Lei n.° 3-B/2000 e o art. 1.°, n.° 1, alínea a), do Decreto-Lei n.° 312/2002, interpretados no sentido de consagrarem um imposto sobre o rendimento, ao tributarem as empresas que comercializam produtos cosméticos e de higiene corporal pelo seu lucro presumido, e não pelo seu lucro real, padecem de inconstitucionalidade material por violação do art. 104.°, n.° 2, da CRP, o qual foi erradamente interpretado pelo Tribunal a quo, tal como o foi também a Lei n.° 3-B/2000 e a próprio Decreto-Lei n.° 312/2002.

Consequentemente, padecem de ilegalidade as liquidações da taxa referentes aos meses de Janeiro de 2000 a Dezembro de 2004, por violação de lei, nos termos do art. 99.° do CPPT, o que tem como consequência a revogação da douta sentença recorrida e a anulação, à qual deve o Tribunal ad quem proceder, do indeferimento da reclamação graciosa apresentada em 28 de Abril de 2006 e dos actos de liquidação impugnados.


16.a

Em todo o caso (ou seja, independentemente de se estar perante uma verdadeira taxa, um imposto ou uma contribuição especial), o art. 72.°, n.° 2, alínea b), da Lei n.° 3-B/2000 e o art. 1.°, n.° 1, alínea a), do Decreto-Lei n.° 312/2002, interpretados no sentido de que sobre os produtos cosméticos e de higiene corporal recai uma Taxa de 2%, enquanto sobre os demais produtos sujeitos a supervisão do INFARMED, mais concretamente os produtos farmacêuticos homeopáticos, dispositivos médicos não activos e dispositivos para diagnóstico in vitro [cfr. a alínea a) do n.° 2 do art. 72.° da Lei n.° 3-B/2000 e as alíneas b) e c) do n.° 1 do art. 1.° do Decreto-Lei n.° 312/2002], bem como os medicamentos (cfr. o art. 1.°, n.° 3, do Decreto- Lei n.° 282/95), recai uma taxa de apenas 0,4%, padecem de inconstitucíonalidade material por violação do art. 13.° da CRP (princípio da igualdade, mais concretamente na vertente do princípio da proporcionalidade), normativo este que foi erradamente interpretado pelo Tribunal a quo, que procedeu também a um errado enquadramento dos factos e, ainda, a uma errada interpretação da Lei n.° 3-B/2000 (mais conretamente do seu art. 72.º, n.°s 1 e 2) do Decreto-Lei n.° 312/2002 (mais concretamente do seu art. 1.°, n.°s 1 e 2), do Decreto-Lei n.° 176/2006, do Decreto-Lei n.° 282/95, da Portaria n.° 396/2005, da Portaria n.° 377/2005, da Portaria n.° 693/97, do Decreto-Lei n.° 273/95, da Portaria n.° 196/2004 e da Portaria n.° 1253/97, pois na verdade, ao contrário do que entendeu o Tribunal a quo, existem situações semelhantes - essencialmente, a matéria relativa à fiscalização a posteriori, que é matéria que resulta desde logo da própria lei - que merecem tratamento igual ou pelo menos semelhante (e, em todo o caso, proporcional).

Consequentemente, padecem de ilegalidade as liquidações da Taxa referentes aos meses de Janeiro de 2000 a Dezembro de 2004, nos termos do art. 99.° do CPPT, por violação de lei, o que tem como consequência a revogação da douta sentença recorrida e a anulação, à qual deve o Tribunal ad quem proceder, do indeferimento da reclamação graciosa apresentada em 28 de Abril de 2006 e dos actos de liquidação impugnados.


17.ª

O art. 72.°, n.° 2, alínea b), da Lei n.° 3-B/2000 e o art. 1.°, n.° 1, alínea a), do Decreto-Lei n.° 312/2002, ao instituírem um requisito adicional aplicável à comercialização dos produtos cosméticos e de higiene corporal e portanto ao restringirem a colocação no mercado dos produtos cosméticos que obedecem às prescrições da Directiva 76/768/CEE e dos seus anexos por razões relacionadas com as exigências contidas nessa mesma Directiva, violam o art. 7.°, n.° 1, da mencionada Directiva 76/768/CEE (na redacção em vigor), a qual foi erradamente interpretada pelo Tribunal a quo, que fez também um errado enquadramento e apreciação dos factos relevantes à apreciação desta questão e, ainda, uma errada interpretação do Decreto-Lei n.° 296/98 (e diplomas posteriores), do art. 72.° da Lei n.° 3-B/2000, do Decreto-Lei n.° 312/2002 - nomeadamente do seu preâmbulo, do seu art. 1.°, n.° 2, e, ainda, do seu art. 3.°.

Consequentemente, o art. 72.°, n.° 2, alínea b), da Lei n.° 3-B/2000 e o art. 1.°, n.° 1, alínea a), do Decreto-Lei n.° 312/2002 não são aplicáveis, o que deve ser reconhecido pelo Tribunal ad quem, pelo que padecem de ilegalidade as liquidações da Taxa referentes aos meses de Janeiro de 2000 a Dezembro de 2004, por violação de lei, nos termos do art. 99.° do CPPT, o que tem como consequência a revogação da douta sentença recorrida e a anulação, à qual deve o Tribunal ad quem proceder, do indeferimento da reclamação graciosa apresentada em 28 de Abril de 2006 e dos actos de liquidação impugnados.


18.a

O art. 72.°, n.° 2, alínea b), da Lei n.° 3-B/2000 e o art. 1.°, n.° 1, alínea a), do Decreto-Lei n.° 312/2002, ao constituírem uma regulamentação (ainda para mais desproporcionada face às reais necessidades do INFARMED) susceptível de entravar, ainda que porventura só indirecta e potencialmente, o comércio intracomunitário, consubstanciam uma medida de efeito equivalente a uma restrição quantitativa à importação e violam o art. 28.° do Tratado CE, o qual foi erradamente interpretado pelo Tribunal a quo, tal como o foi também a Lei n.° 3-B/2000, o Decreto-Lei n.° 312/2002 e o art. 30.° do Tratado CE, sendo que, na verdade, e ao contrário do que entendeu o Tribunal a quo, é totalmente irrelevante, para a boa apreciação desta questão à luz dos requisitos do Direito Comunitário, o facto de o tributo em causa se aplicar tanto aos produtos cosméticos e de higiene corporal fabricados em Portugal como aos fabricados noutros países, incluindo os demais Estados-Membros da União Europeia.

Consequentemente, o art. 72.°, n.° 2, alínea b), da Lei n.° 3-B/2000 e o art. 1.°, n.° 1, alínea a), do Decreto-Lei n.° 312/2002 não são aplicáveis, o que deve ser reconhecido pelo Tribunal ad quem, pelo que padecem, também por esta via, de ilegalidade, as liquidações da Taxa referentes aos meses de Janeiro de 2000 a Dezembro de 2004, o que tem como consequência a revogação da douta sentença recorrida e a anulação, à qual deve o Tribunal ad quem proceder, do indeferimento da reclamação graciosa apresentada em 28 de Abril de 2006 e dos actos de liquidação impugnados.


19.a

Se o Tribunal ad quem tiver dúvidas quanto à interpretação do Direito Comunitário ora defendida pela Recorrente (no que não se concede e apenas e só por dever de patrocínio se equaciona), deve, então, ao abrigo do art. 234.°, segundo parágrafo, do Tratado CE, submetê-las ao Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, para decisão a título prejudicial.

20.a

Reitera-se o requerimento já anteriormente formulado nos presentes autos, no sentido de que fosse atribuído efeito suspensivo à presente impugnação judicial, tendo a Impugnante e ora Recorrente requerido para o efeito a prestação de garantia através de garantia bancária, continuando-se a aguardar a notificação pelo Tribunal para vir prestar garantia, não sendo imputável à ora Recorrente o facto de a garantia não ter sido ainda prestada.

À cautela, uma vez que tal requerimento de atribuição de efeito suspensivo à impugnação através da prestação de garantia também consubstancia questão autónoma sobre a qual o Tribunal a quo não se pronunciou, também se argui a nulidade da sentença por o Tribunal não ter conhecido de questão sobre a qual se deveria ter pronunciado, nos termos do disposto no art. 125°doCPPT.


19.a

Mais se requer que suba, nos presentes autos e com este recurso, o recurso interposto da douta decisão proferida no dia 22 de Abril de 2009, que julgou improcedente arguição de nulidade processual oportunamente deduzida”.

O Recorrido não apresentou contra-alegações.

Foram os autos com vista ao Ilustre Magistrado do Ministério Público, nos termos do então art.º 289.º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), que emitiu parecer, no sentido de ser negado provimento ao recurso da sentença, nada tendo dito quanto ao recurso do despacho interlocutório.

Colhidos os vistos legais (art.º 289.º, n.º 2, do CPPT) vem o processo à conferência.

São as seguintes as questões a decidir:

Quanto ao recurso do despacho de 22.04.2009:
a) Verifica-se erro de julgamento, na medida em que a decisão de dispensar a inquirição de testemunhas pode influir decisivamente na decisão da causa, configurando-se a sua ausência como nulidade processual secundária?

Quanto ao recurso da sentença:
b) Verifica-se nulidade da sentença, por omissão de pronúncia?
c) Existe erro no julgamento da matéria de facto?
d) Existe erro na aplicação do disposto no art.º 113.º, n.º 1, do CPPT, na medida em que o processo não fornecia todos os elementos necessários?
e) Existe erro de julgamento, por défice instrutório?
f) Verifica-se erro de julgamento, dado, em sede inspetiva, serem de aplicar as normas do Regime Complementar de Procedimento de Inspeção Tributária (RCPIT), erro de julgamento que se manifesta em vícios de diversa natureza (incompetência, falta de credenciação, falta de notificação da nota de diligência e da falta de notificação do relatório final da inspeção a que o próprio Infarmed se auto-vinculara e da ultrapassagem do prazo máximo de duração da inspeção)?
g) Verifica-se erro de julgamento, em virtude de os atos em causa padecerem de falta de fundamentação?
h) Verifica-se erro de julgamento, em virtude de se verificar caducidade do direito à liquidação?
i) Verifica-se erro de julgamento, na medida em que a disciplina em causa deve ser interpretada no sentido de a taxa só se aplicar a produtos cosméticos e de higiene corporal que sejam simultaneamente produtos de saúde, entendidos estes como aqueles que são comercializados através do canal de distribuição “farmácia”, e de não ser aplicável a produtos com preços livres para o consumidor final?
j) Verifica-se erro de julgamento, quanto aos juros compensatórios, dado inexistir qualquer facto imputável à Recorrente que esteja na origem do retardamento na liquidação?
k) Verifica-se erro de julgamento, dada a violação do princípio da irretroatividade da lei fiscal?
l) Há erro de julgamento, dado que o DL n.º 312/2002, de 20 de dezembro, padece de inconstitucionalidade orgânica?
m) Se o tributo em causa constituir um imposto, há erro de julgamento, dada a inconstitucionalidade material, por violação do art.º 104.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa (CRP)?
n) Verifica-se erro de julgamento, uma vez que o art.º 72.º, n.º 2, alínea b), da Lei n.º 3-B/2000, de 4 de abril, e o art.º 1.º, n.º 1, alínea a), do DL n.º 312/2002, de 20 de dezembro, atentam contra o princípio da igualdade, concretamente na vertente do princípio da proporcionalidade?
o) Ocorre erro de julgamento, uma vez que o art.º 72.º, n.º 2, alínea b), da Lei n.º 3-B/2000, de 4 de abril, e o art.º 1.º, n.º 1, alínea a), do DL n.º 312/2002, de 20 de dezembro, violam o art.º 7.º, n.º 1, da Diretiva 76/768/CEE do Conselho, de 27 de julho de 1976?
p) Há erro de julgamento, dado que o art.º 72.º, n.º 2, alínea b), da Lei n.º 3-B/2000, de 4 de abril, e o art.º 1.º, n.º 1, alínea a), do DL n.º 312/2002, de 20 de dezembro, consubstanciam uma medida de efeito equivalente a uma restrição quantitativa à importação e violam os art.ºs 28.° e 30.º do Tratado que institui a Comunidade Europeia (Tratado CE)?
q) Deve ser efetuado reenvio prejudicial?
r) Verifica-se nulidade da sentença, por nunca ter sido notificada a Recorrente para prestação de garantia?

II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

II.A. O Tribunal recorrido considerou provada a seguinte matéria de facto:

“A) A impugnante é uma sociedade comercial que se dedica, entre outras actividades, à comercialização de produtos cosméticos e de higiene corporal, em território nacional (art. 1o da p.i.).

B) A impugnante foi notificada pelo INFARMED do início da acção inspectiva, através do ofício n° ....., datado de 10/12/2004, recebido em 15/12/2004, conforme documentos de fls. 27 a 30, constantes da pasta 1 do processo administrativo.

C) Em 07/02/2005 o INFARMED procedeu nas instalações da impugnante à recolha de documentação, ao abrigo do disposto no art. 2º, n° 4 do Decreto- lei n° 312/2002 de 20 de Dezembro, conforme consta dos autos de recolha de documentação a fls. 251 a 255 do processo administrativo (pasta 1), que aqui se dá por integralmente reproduzido (fls. 93 a 97), os quais se encontram assinados por um representante da impugnante, pelo TOC e pelo INFARMED.

D) Através de ofícios datados de 27/12/2005, foi a impugnante notificada das liquidações oficiosas relativas à taxa de comercialização de produtos cosméticos e de higiene corporal e respectivos juros compensatórios respeitante a todos os meses dos anos de 2000, 2001 e até Novembro de 2002, ( cfr. documentos de fls 209 a 303 juntos com a petição inicial, que aqui se dão por integralmente reproduzidos).

E) Através de ofícios datados de 03/01/2006, foi a impugnante notificada das liquidações oficiosas relativas à taxa de comercialização de produtos cosméticos e de higiene corporal e respectivos juros compensatórios respeitante ao mês de Dezembro de 2002 e todos os meses dos anos de 2003 e 2004, (cfr. documentos de fls 304 a 328 juntos com a petição inicial, que aqui se dão por integralmente reproduzidos).

F) O termo do prazo de pagamento das liquidações referidas em D) e E) era o dia 31 de Janeiro de 2006 (cfr. documentos de fls. 209 a 328 juntos com a petição inicial.

G) Das referidas notificações consta o seguinte:

“Face à não apresentação das declarações de vendas de produtos cosméticos e de higiene corporal e à não auto-liquidação e pagamento a este Instituto da taxa sobre a comercialização dos mesmos produtos, procedeu o INFARMED à liquidação oficiosa da mesma taxa, nos termos dos artigos 1º e 2° do Decreto-Lei n° 312/2002, de 20 de Dezembro.

A referida liquidação teve por base as declarações e os elementos contabilísticos obtidos junto de V. Exa. (s), ao abrigo, designadamente, do n° 1 do artigo 31° e do n° 1 do art. 63° da lei geral tributária, estas liquidações evidenciam o volume de vendas realizadas que abaixo se indica.

A liquidação a que se procede, nos termos dos artigos 1º e 2º do Decreto-Lei n° 312/20’2, de 20 de Dezembro; dos artigos 35°, 60°, n° 2 e 77° da Lei Geral Tributária, do n° 1 do art. 559° do Código Civil e das Portarias n°s 263/99, de 12 de Abril, e 291/2003, de 8 de Abril é a seguinte (...)”

H) Em 28/04/2006, a impugnante deduziu reclamação graciosa contra o acto tributário de autoliquidação da taxa sobre a comercialização de produtos de saúde a que aludem as alínea D) e E) do probatório (fls. 111 e segs. dos autos, e doc. n.° 2 junto à p.i.).

I) A impugnante pronunciou-se em sede de audiência dos interessados no âmbito da reclamação graciosa a que alude a alínea H) do probatório (fls. 1515 a 1547 do p.a. e fls. 453 a 474 dos autos).

J) A presente impugnação deu entrada em juízo em 29/01/2007, conforme consta do teor do carimbo aposto a fls. 1 dos autos”.

II.B. Relativamente aos factos não provados, refere-se na sentença recorrida:

“Inexistem factos não provados com interesse para a decisão da causa”.

II.C. Foi a seguinte a motivação da decisão quanto à matéria de facto:

“A decisão da matéria de facto efectuou-se com base no exame dos documentos, não impugnados, que constam dos autos e do processo administrativo, conforme referido a propósito de cada uma das alíneas do probatório”.

II.D. Atento o disposto no art.º 662.º, n.º 1, do CPC, ex vi art.º 281.º do CPPT, acorda-se aditar a seguinte matéria de facto provada:
K) Por deliberação de 10.12.2004 do Conselho de Administração do Infarmed, foi ordenada a realização, pelos serviços competentes desse instituto, de uma inspeção externa às instalações, entre outros, da Impugnante, com vista à recolha de elementos tendentes à liquidação oficiosa das taxas sobre a comercialização de produtos de saúde (cfr. fls. 1 a 26 do processo administrativo – vol. I).

L) A impugnante remeteu ao Infarmed ofício, que deu entrada nos serviços deste a 27.12.2004, onde requereu a notificação de elementos aí identificados (cfr. fls. 103 a 110 do processo administrativo – vol. I, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

M) Foi enviado ofício pelo Infarmed à Impugnante, datado de 29.12.2004, em resposta ao ofício referido em L), em anexo ao qual foram remetidos os seguintes elementos:

a.  Carta aviso, nos termos do art.º 49.º do RCPIT;

b. Parecer e despacho homologado pelo Conselho de Administração do Infarmed, de 10.12.2004.

(cfr. fls. 338 a 348 dos autos em suporte de papel e fls. 97 a 100 do processo administrativo – vol. I).
N) De ofício do Infarmed, datado de 11.01.2005 e enviado, via fax, nessa mesma data, dirigido ao Inspetor-Geral da Inspeção-Geral de Finanças (IGF), consta designadamente o seguinte:

“… Na sequência dos vários contactos havidos e tendo em conta o disposto no n.º 4 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 312/2002, de 29 de Dezembro, vimos por este meio informar V. Exa. de que este Instituto se propõe desencadear, a partir de 12 de Janeiro de 2005, um conjunto de visitas a alguns sujeitos passivos das taxas sobre a comercialização de produtos de saúde…”.

(cfr. fls. 124 a 143, do processo administrativo – Vol. I, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).
O) Foi enviado ofício pelo Infarmed à Impugnante, datado de 13.01.2005, do qual consta designadamente o seguinte:

“… Na sequência da Deliberação de 10 de Dezembro de 2004 do Conselho de Administração do Infarmed e da Carta-Aviso (…) informamos que, previsivelmente, no próximo dia 07-02-2005, (…) se deslocarão às instalações dessa empresa Técnicos do Infarmed devidamente credenciados, a fim de, ao abrigo do disposto no n.º 4 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 312/2002, e atento o disposto no n.º 5 do mesmo diploma, recolher os elementos e informações seguintes 1:

· Balancetes Gerais e Analíticos mensais;

· Relatório e contas dos exercícios objecto de análise (…);

· Modelo 22 e Declaração Anual (dossier fiscal);

· Estatística anual de movimentos por família de produtos, em quantidade e valor…;

· Mapa de Facturação detalhado por família de produtos;

· Listagem de existências reportada a 31 de Dezembro de cada exercício;

· Listagem de Clientes e Fornecedores;

· Plano de contas. (…)

1 Sem prejuízo de serem solicitadas outras informações consideradas relevantes…”.

(documento junto a fls. 349 e 350 dos autos em suporte de papel).

II.E. Da impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto

Entende a Recorrente que a decisão proferida sobre a matéria de facto padece de erro evidente, no que respeita à alínea H) do probatório, porquanto, como resulta quer dos documentos n.º 1 a 60 juntos à reclamação graciosa, quer do documento n.º 1, junto com a petição inicial, o objeto da reclamação graciosa não foi qualquer ato de autoliquidação, mas sim sessenta atos de liquidação oficiosa.

Mais adiante considera igualmente que se verifica uma insuficiência da matéria de facto. No entanto, neste caso tudo está configurado como erro de julgamento e eventual violação do princípio do inquisitório, não sendo propriamente impugnada a matéria de facto (considerando os requisitos previstos no art.º 685-B.º do CPC/1961).

Prosseguimos, pois, exclusivamente para análise do alegado quanto à alínea H) do probatório.

Considerando o disposto no art.º 685.º-B do CPC/1961 (a atentar para efeitos de análise das alegações de recurso, em virtude da data de apresentação das mesmas, correspondendo, em grande medida, ao disposto no art.º 640.º do CPC/2013), a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto carateriza-se pela existência de um ónus de alegação a cargo do Recorrente, que não se confunde com a mera manifestação de inconformismo com tal decisão[1].

Assim, o regime então vigente relativo à impugnação da decisão atinente à matéria de facto impõe ao Recorrente o ónus de especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considere incorretamente julgados [cfr. art.º 685.º-B, n.º 1, al. a), do CPC/1961, equivalente ao art.º 640.º, n.º 1, al. a), do CPC/2013];
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impõem, em seu entender, decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida [cfr. art.º 685.º-B, n.º 1, al. b), do CPC/1961, equivalente ao art.º 640.º, n.º 1, al. b), do CPC/2013], sendo de atentar nas exigências constantes dos n.ºs 2 e 4 do mesmo art.º 685.º-B, do CPC/1961.

Como tal, não basta ao Recorrente manifestar de forma não concretizada a sua discordância com a decisão da matéria de facto efetuada pelo Tribunal a quo, impondo­‑se-lhe os ónus já mencionados[2].

Transpondo estes conceitos para o caso dos autos, verifica-se que tais ónus foram cumpridos quanto ao mencionado relativamente à alínea H).

Passando, então, à apreciação do requerido, assiste razão à Recorrente. Com efeito, como resulta inequivocamente da reclamação graciosa apresentada, o seu objeto foram os atos de liquidação oficiosa relativos aos meses compreendidos entre janeiro de 2000 e dezembro de 2004, mencionados em D) e E) do probatório.

Como tal, defere-se o requerido, passando a redação do facto H) a ser a seguinte.

H) Em 28/04/2006, a impugnante deduziu reclamação graciosa tendo por objeto as liquidações mencionadas em D) e E) (fls. 111 e segs. dos autos, e doc. n.º 2 junto à p.i.).

III. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

III.A. Do erro de julgamento, relativamente ao despacho proferido a 22.04.2009

Considera a Recorrente que o despacho proferido a 22.04.2009 padece de erro de julgamento, na medida em que a falta de decisão sobre o requerimento de inquirição de duas testemunhas se configura como nulidade processual secundária.

Vejamos.

Do que se trata aqui é de aferir se a falta de prolação de despacho sobre a produção de prova testemunhal configura uma nulidade processual secundária, nos termos plasmados, então, no art.º 201.º do CPC/1961.

Considerando esta disposição legal, concretamente do seu n.º 1:

“[A] prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa”.

Vejamos se é este o caso dos autos.

Desde já se refira que não assiste razão à Recorrente.

A este respeito chama-se à colação o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 14.09.2016 (Processo: 0946/16), onde se refere:

“[A] lei não prevê decisão alguma a dispensar a produção da prova oferecida pelas partes. O que a lei refere, no n.º 1 do art. 131.º do CPPT, é que o juiz, após verificar se pode ou não conhecer do pedido sem que haja lugar à produção da prova, caso conclua pela afirmativa, deve, após vista ao Ministério Público, de imediato proferir sentença. A lei não impõe qualquer despacho em que o juiz expresse o seu juízo sobre a possibilidade ou impossibilidade de conhecimento imediato do pedido, juízo que fica implícito na tramitação que imprimir ao processo: se ordenar a realização de qualquer diligência de prova, quer ela tenha sido requerida pelo impugnante ou pela Fazenda Pública, quer o faça oficiosamente, é porque entende que o processo ainda não reúne as condições para conhecer do pedido; se proferir sentença de imediato (após dar vista ao Ministério Público, entenda-se), é porque entende desnecessária a produção de prova.

Ora, se a lei não prescreve tal despacho, não vemos como sustentar que a omissão do mesmo consista um desvio ao formalismo processual que deveria ter sido seguido e, consequentemente, como sustentar que se verifica uma nulidade. Recorde-se que a nulidade processual consiste num desvio entre o formalismo prescrito na lei e o formalismo efectivamente seguido nos autos.

Aliás, qual seria a utilidade desse despacho? Se o juiz entende conhecer imediatamente do pedido, não vemos por que há-de proferir despacho a anunciar que o vai fazer e só depois conhecer do pedido, ao invés de fazê-lo de imediato. Tal despacho não teria utilidade alguma, nem sequer a de dar a conhecer às partes que não houve lugar à produção de prova. É que estas, logo que notificadas da sentença, facilmente se podem aperceber de que não houve fase de instrução, quer porque não foram notificadas da prática de quaisquer diligências instrutórias, quer porque não foram notificadas para alegar nos termos do art. 120.º do CPPT, quer porque na sentença não existirá qualquer referência àquelas diligências na apreciação crítica dos elementos de prova que o juiz utilizou para formar a sua convicção.

Nem se diga que as partes não podem aperceber-se através da notificação da sentença de que não houve lugar à fase da instrução, que poderia ter ocorrido à sua revelia, que poderia ter ocorrido mesmo que não tenha havido notificação nos termos do art. 120.º do CPPT e, finalmente, que poderia ter tido ocorrido sem que lhe seja feita referência alguma para fundamentar o julgamento da matéria de facto. Na verdade, se em relação a esta última circunstância, é certo que a mesma, só por si, nada revela relativamente à prática ou não de diligências instrutórias (se bem que, normalmente, o juiz deva proceder à análise crítica de toda a prova produzida), já as duas primeiras circunstâncias – ter havido lugar à instrução à revelia das partes, que não teriam sido notificadas para assistir às diligências instrutórias ou aos seus resultados, e não terem as partes sido notificadas para alegarem – são situações patológicas, que não podem erigir-se em critério de normalidade para aferir da regularidade da tramitação processual; a regra é que seja observado o formalismo processual prescrito na lei: normal é que, se existir instrução, as partes sejam notificadas para as diligências instrutórias, designadamente para a inquirição das testemunhas, e normal é também que, terminada que seja a instrução, as partes sejam notificadas para alegações.

Mas, se porventura ocorressem tantos e tão graves atropelos no processo – que, esses sim, constituiriam nulidades (Na verdade, caso houvesse lugar à realização de diligências instrutórias, designadamente à inquirição de testemunhas, a falta de notificação das partes para estarem presentes na diligência, bem como a falta de notificação para alegações, constituiriam nulidades, porque desvios ao formalismo processual prescrito na lei – cfr. arts. 118.º, n.º 3, do CPPT, do qual se infere a necessidade de notificação das partes, e 120.º do mesmo Código – e susceptíveis de influir no exame e decisão da causa.) –, nem por isso as partes ficariam desprotegidas pela ausência de despacho a dispensar a realização de diligências instrutórias e respectiva notificação.

Na verdade, essas nulidades sempre poderiam ser arguidas no recurso a interpor da sentença final, bem como deveriam ser conhecidas oficiosamente pelo tribunal ad quem.

Nem se diga que esse despacho (a anunciar o conhecimento imediato do pedido) teria como vantagem a possibilidade de as partes poderem suscitar desde logo a sua reapreciação por instância superior, mediante recurso, assim obviando à prossecução do processo e à prolação de sentença que, a verificar-se a nulidade, viriam a ser anulados por força da mesma. É que, embora admitamos que, a ser proferido despacho que dispense a produção da prova, este será passível de recurso, tal recurso sempre seria a subir com o que fosse interposto da decisão final (cfr. art. 285.º do CPPT), motivo por que nem sequer se pode invocar que a prolação desse despacho teria o mérito de, através da possibilidade do recurso do mesmo, obstar à prossecução do processo e à prática de actos que poderiam vir a ser anulados.

Note-se, finalmente e de novo, que o facto de sustentarmos a desnecessidade de despacho expresso a dispensar a inquirição das testemunhas arroladas não significa que o juízo sobre a necessidade ou não de produção de prova não esteja sujeito a controlo. Na verdade, sempre essa decisão do juiz poderá ser sindicada em sede do recurso interposto da sentença. Aí, não só as partes podem sustentar a insuficiência da matéria de facto e/ou o erro no seu julgamento, como o próprio tribunal ad quem pode e deve, se considerar que a sentença não contém os factos pertinentes à decisão da causa e que os autos não fornecem os elementos probatórios necessários à reapreciação da matéria de facto, anular a sentença oficiosamente [cfr. art. 682.º, n.º 3, do CPC, por força do art. 2.º, alínea e), do CPPT].

Assim, também a falta de notificação do despacho que dispensou a inquirição das testemunhas não constitui nulidade (Neste sentido, não encontramos jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, mas do Tribunal Central Administrativo Sul, de que são exemplo mais antigo os seguintes acórdãos:

- de 19 de Outubro de 2004, proferido no processo n.º 7203/02, disponível em
http://www.dgsi.pt/jtca.nsf/170589492546a7fb802575c3004c6d7d/fd7c059808b3d0e180256f350037a5ee;

- de 7 de Março de 2006, proferido no processo n.º 1186/03, disponível em
http://www.dgsi.pt/jtca.nsf/170589492546a7fb802575c3004c6d7d/40870d90eef78fc58025712b00442a1a;

- de 30 de Setembro de 2008, proferido no processo n.º 2330/08, disponível em
http://www.dgsi.pt/jtca.nsf/170589492546a7fb802575c3004c6d7d/f55cb59c24ede773802574d7004e9b28;

- de 7 de Outubro de 2008, proferido no processo n.º 2065/07, disponível em

http://www.dgsi.pt/jtca.nsf/170589492546a7fb802575c3004c6d7d/d7316e11396cd64a802574e100333f43.)”.

Logo, face a este entendimento, que subscrevemos, não é obrigatória a prolação de tal despacho, não havendo qualquer violação ao nível da fundamentação, nos termos explanados no aresto citado.

Como tal, não assiste razão à Recorrente, não padecendo o despacho recorrido dos vícios que lhe são assacados.

Passemos à apreciação do alegado em sede de recurso da sentença.

III.B. Quanto ao efeito suspensivo da impugnação e correspetiva omissão de pronúncia

Alega a Recorrente que, não obstante ter requerido que fosse conferido efeito suspensivo à impugnação e requerido a prestação de garantia, nunca foi tal decidido, o que configura uma omissão de pronúncia.

Vejamos.

A falta de despacho expresso no sentido de ser prestada garantia pela Recorrente não é questão que tenha de ser decidida na sentença, motivo pelo qual não há qualquer omissão de pronúncia.

A questão poder-se-ia colocar, sim, sob a perspetiva se tratar de irregularidade processual (omissão de um ato que a lei prescreve), sendo, em abstrato, nos termos do art.º 195.º, n.º 1, do CPC (correspondente ao art.º 201.º do CPC/1961), passível de ser considerada nulidade processual secundária.

Atento o disposto no art.º 196.º do mesmo código (correspondente ao art.º 202.º do CPC/1961), tal nulidade tem de ser arguida, sendo que, em regra, as nulidades processuais secundárias devem sê-lo nos termos previstos no art.º 199.º do CPC (correspondente ao art.º 205.º do CPC/1961), considerando ainda o prazo geral de dez dias previsto no art.º 149.º do mesmo código (correspondente ao art.º 153.º do CPC/1961). Tem-se vindo, no entanto, a entender ser admissível a arguição da nulidade em sede de recurso, quando a omissão do ato só tenha sido do conhecimento do Recorrente com a notificação da sentença (situações em que a nulidade só se consumou verdadeiramente com a prolação da referida sentença)[3].

Vejamos se é este o caso dos autos.

É certo que, in casu, a Recorrente requereu a prestação de garantia e a notificação nos termos do art.º 103.º, n.º 4, do CPPT, notificação essa que nunca chegou a existir. No entanto, não se pode considerar que esta omissão de ato tenha sido só conhecida com a prolação da sentença. Com efeito, foram proferidos nos autos despacho de admissão liminar da impugnação, a 13.02.2007, despacho de admissão de documentos, a 18.04.2007, e decisão no Tribunal Tributário de Lisboa, no sentido de se considerar territorialmente incompetente, a 21.06.2007. Todos estes atos foram notificados à Recorrente.

Ora, logo com o despacho de admissão liminar, ficou evidenciada a irregularidade processual praticada, uma vez que a notificação nos termos do art.º 103.º, n.º 4, do CPPT, deverá ser efetuada no início da tramitação processual.

No entanto, a Recorrente nesse momento nada disse ou requereu, tendo vindo a ser sucessivamente notificada de outros atos processuais, nada dizendo nem requerendo.

Portanto, consideramos não se tratar de nulidade processual secundária de que a parte só tem conhecimento por efeito da prolação da sentença, única situação em que é admissível a sua alegação em sede de recurso.

Como tal, rejeita-se o recurso nesta parte.

Quanto à concreta notificação para, na presente sede, ser a Recorrente notificada para a prestação de garantia, atento o presente momento processual e uma vez que tal tem de ser efetuado pelo Tribunal de 1.ª instância, entende-se dever ser relegada tal eventual notificação, se a Recorrente ainda mantiver interesse, para momento ulterior ao presente, e sempre junto do Tribunal a quo.

III.C. Da nulidade da sentença, por omissão de pronúncia

Entende a Recorrente que a decisão em crise padece de nulidade, por omissão de pronúncia, em virtude de:
a) Não ter conhecido a questão da inaplicabilidade do art.º 72.º da Lei n ° 3-B/2000, de 4 de abril, atenta a base de incidência nele definida e a consequente ilegalidade das liquidações efetuadas ao abrigo desse diploma, ou, no limite, da contagem de juros, questão esta que lhe foi expressamente submetida pela Recorrente na impugnação judicial;
b) Não ter conhecido das questões da falta de credenciação, da falta de notificação da nota de diligência e da falta de notificação do relatório final da inspeção a que o próprio Infarmed se auto-vinculara e ainda da ultrapassagem do prazo máximo de duração da inspeção.

Vejamos.

Nos termos do art.º 125.º, n.º 1, do CPPT, há omissão de pronúncia, que consubstancia nulidade da sentença, quando haja falta de pronúncia sobre questões que o juiz deva apreciar [cfr. igualmente o art.º 615.º, n.º 1, al. d), do CPC/2013, correspondente ao art.º 668.º, n.º 1, al. d), do CPC/1961].

As questões de que o juiz deve conhecer são ou as alegadas pelas partes ou as que sejam de conhecimento oficioso.

In casu, desde já se refira que assiste em parte razão à Recorrente.

Explicitando.

No tocante à questão da inaplicabilidade do art.º 72.º da Lei n ° 3-B/2000, de 4 de abril, atenta a base de incidência nele definida e a consequente ilegalidade das liquidações efetuadas ao abrigo desse diploma, verifica-se que a sentença considerou que o mencionado art.º 72.º se aplica a todos os produtos cosméticos e de higiene corporal. Portanto, não se verifica, nesta parte, qualquer omissão de pronúncia.

Quanto ao alegado em específico relativamente aos juros compensatórios (cfr. os art.ºs 257.º a 263.º da petição inicial), com efeito o Tribunal a quo nada disse, sendo nesta parte a sentença nula, por omissão de pronúncia.

No que respeita às alegadas ilegalidades, por violação do RCPIT, não se verifica omissão de pronúncia, na medida em que, como resulta da sentença sob escrutínio, a mesma considerou que, in casu, em matéria de inspeção eram aplicáveis as normas contidas no art.º 63.º da Lei Geral Tributária (LGT), bem como as disposições especiais contidas no art.º 2.º, n.ºs 4 e 5 do DL n.º 312/2002, de 20 de dezembro (o que, a contrario, evidencia o entendimento de que o RCPIT não é aplicável). Como tal, atento esse entendimento, resultava prejudicada a apreciação do alegado quanto às violações do RCPIT.

Em suma, assiste em parte razão à Recorrente, no tocante à nulidade de sentença por omissão de pronúncia quanto ao alegado em relação aos juros compensatórios, nos termos explanados.

Nos termos do art.º 665.º, n.º 1, do CPC, ex vi art.º 281.º do CPPT, “[a]inda que declare nula a decisão que põe termo ao processo, o tribunal de recurso deve conhecer do objeto da apelação”, o que se fará infra, salvo que o seu conhecimento ficar prejudicado pela solução dada aos autos.

III.D. Do erro de julgamento, quanto à errada aplicação do disposto no art.º 113.º, n.º 1, do CPPT, e do défice instrutório

Entende, por outro lado, a Recorrente que o Tribunal a quo fez errada aplicação do disposto no art.º 113.º, n.º 1, do CPPT, na medida em que conheceu imediatamente do pedido, sem que as questões a decidir fossem apenas de direito e sem que o processo fornecesse já todos os elementos necessários. Entende ainda que a sentença padece de insuficiente instrução, porquanto não foram ouvidas as testemunhas quanto a factos essenciais para a boa decisão da causa e por não terem sido dados como provados diversos factos relevantes para a decisão.

Pela interconexão de ambas as questões, procede-se ao seu conhecimento em simultâneo.

Vejamos então.

Nos termos do art.º 113.º do CPPT:

“1 - Junta a posição do representante da Fazenda Pública ou decorrido o respetivo prazo, o juiz, após vista ao Ministério Público, conhecerá logo o pedido se a questão for apenas de direito ou, sendo também de facto, o processo fornecer os elementos necessários”.

Portanto, do que aqui se trata é de aferir se os autos já forneciam todos os elementos necessários para o conhecimento do peticionado.

Assim, apesar de inominadamente, a Recorrente imputa ao Tribunal a quo a violação do princípio do inquisitório.

O princípio do inquisitório é um dos princípios que enforma o processo tributário. Atento o mesmo, impõe-se que o juiz realize ou ordene todas as diligências que considere úteis ao apuramento da verdade material.

O mesmo encontra previsão expressa no n.º 1 do art.º 99.º da LGT, nos termos do qual “[o] tribunal deve realizar ou ordenar oficiosamente todas as diligências que se lhe afigurem úteis para conhecer a verdade relativamente aos factos alegados ou de que oficiosamente pode conhecer”, encontrando-se previsto, em termos idênticos, no art.º 13.º do CPPT.

O respeito pelo princípio do inquisitório implica, pois, que, sendo relevantes para a descoberta da verdade material, se levem a cabo diligências de prova, quer requeridas pelas partes, quer mesmo oficiosamente.

Assim, o respeito pelo princípio do inquisitório reflete-se, desde logo, na decisão de ordenar a realização das diligências necessárias à descoberta da verdade material.

In casu, como decorre da petição inicial, a Recorrente, além de ter juntado diversos documentos, arrolou duas testemunhas – que não foram ouvidas.

No entanto, considera-se que, de facto, atentas as questões suscitadas e, bem assim, o enquadramento legal do tributo em causa, a prova pertinente nos autos é a prova documental que já constava dos autos. Com efeito, não é pela circunstância de a parte indicar factos que, em abstrato, possam ser provados através de prova testemunhal que esta tem de ser realizada. Impõe-se que tais factos sejam pertinentes, o que não sucede in casu, como melhor se explanará infra.

Aliás, é neste contexto que a Recorrente refere não ter havido pronúncia sobre uma série de factualidade alegada (não tendo havido impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, dado não estarem minimamente respeitados os pressupostos exigidos pelo então art.º 685.º-B do CPC/1961, aplicável in casu), sendo que, tal como referimos, considera-se que, como se verá adiante (dado que grande parte da factualidade alegada pela Recorrente não se revela pertinente face ao quadro jurídico-legal aplicável), para cabal conhecimento dos autos é suficiente a prova documental, não havendo motivos para anulação da decisão. De qualquer forma, esse eventual erro deveria ser objeto de impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, pelo menos na parte suscetível de prova documental, o que, como referimos, não ocorreu nos termos exigíveis.

Como tal, não assiste razão à Recorrente nesta parte.

III.E. Do erro de julgamento, em virtude de o tributo em causa só se aplicar a produtos cosméticos e de higiene corporal que sejam simultaneamente produtos de saúde

Considera a Recorrente, por outro lado, que o Tribunal a quo errou o seu julgamento, na medida em que o tributo em causa se aplica apenas a produtos cosméticos e de higiene corporal que sejam simultaneamente produtos de saúde. Entende igualmente que o art.º 72.º da Lei n.º 3-B/2000, de 4 de abril, ao prever como base de incidência o “preço de venda ao consumidor” (no seu n.º 3), é inaplicável, uma vez que os produtos cosméticos e de higiene corporal têm preços livres para o consumidor final.

Vejamos então.

Cumpre, antes de mais, fazer um enquadramento, legal e jurisprudencial, atinente ao tributo sob escrutínio.

A taxa sobre a comercialização de produtos de saúde foi criada pela Lei n.º 3-B/2000, de 4 de abril [Lei do Orçamento do Estado (OE) para 2000].

Nos termos do art.º 72.º do referido diploma, sob a epígrafe Taxa sobre Comercialização de Produtos de Saúde:

“1 - Os produtores, importadores, ou seus representantes, de produtos de saúde colocados no mercado, ficam sujeitos ao pagamento de uma taxa de comercialização destinada ao sistema de garantia da qualidade e segurança de utilização daqueles produtos, à realização de estudos de impacte social e ações de formação para os agentes de saúde e consumidores, a realizar pelo INFARMED, - Instituto Nacional de Farmácia e do Medicamento.

2 - A taxa a que se refere o número anterior é de:

a) Produtos Farmacêuticos Homeopáticos, Dispositivos Médicos Não Ativos e Dispositivos Médicos Para Diagnóstico In Vitro: 0,4%;

b) Cosméticos e Produtos de Higiene Corporal: 2,0%.

3 - A taxa incide sobre o volume de vendas de cada produto, tendo por referência o respetivo preço de venda ao consumidor final, constituindo receita própria daquele Instituto, e sendo o seu valor pago, mensalmente, com base nas declarações de vendas mensais, nos termos e com os elementos a definir pelo mesmo Instituto…”.

Este tributo foi mantido em vigor pela Lei n.º 30-C/2000, de 29 de dezembro (art.º 58.º), e pela Lei n.º 109-B/2001, de 27 de dezembro.

Esta última, no seu art.º 55.º, autorizou o Governo a rever e regulamentar o mencionado tributo, o que veio a ocorrer com o DL n.º 312/2002, de 20 de dezembro, cujo art.º 1.º determinava que:

“1 - As entidades responsáveis pela colocação no mercado de produtos cosméticos e de higiene corporal, produtos farmacêuticos homeopáticos, dispositivos médicos não ativos e dispositivos para diagnóstico in vitro ficam obrigadas ao pagamento de uma taxa sobre a sua comercialização, nos seguintes termos:

a) Produtos cosméticos e de higiene corporal - 2%; (…)

2 - A taxa referida no número anterior constitui contrapartida do adequado controlo dos respetivos produtos de saúde, com a execução de ações inspetivas de caráter aleatório e subsequente controlo laboratorial dos produtos colocados no mercado, visando garantir a qualidade e segurança da utilização dos mesmos, bem como da realização das ações de informação e formação que visem a proteção da saúde pública e dos utilizadores, a assegurar pelo Instituto Nacional da Farmácia e do Medicamento (INFARMED).

3 - Para efeitos do disposto nos números anteriores, a taxa sobre a comercialização dos produtos cosméticos e de higiene corporal, (…) incide sobre o montante do volume de vendas dos mesmos produtos, deduzido o imposto sobre o valor acrescentado, pelas entidades responsáveis pela sua colocação no mercado”.

A disciplina do tributo em causa foi ainda objeto de alterações ulteriores, que, no entanto, não abarcam os exercícios ora em apreciação [cfr. o art.º 152.º da Lei n.º 53-A/2006, de 29 de dezembro (OE para 2007), o art.º 129.º da Lei n.º 67-A/2007, de 31 de dezembro (OE para 2008), o art.º 168.º da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de dezembro (OE para 2009), o art.º 155.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de abril (OE para 2010) e o art.º 176.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro (OE para 2013)].

Como resulta dos normativos transcritos, o âmbito objetivo da taxa de comercialização de produtos de saúde, designadamente o conceito de “produtos de saúde” e, dentro deste, o de “produtos cosméticos e de higiene corporal”, não resulta ali suficientemente densificado, o que implica que se tenha de recorrer a outros elementos interpretativos existentes no nosso ordenamento, maxime à legislação conexa.

Esta falta de densificação do conceito implica que caiba ao intérprete preenchê-lo, designadamente tendo em conta a ratio legislatoris e os lugares paralelos do sistema (cfr. art.º 11.º, n.ºs 1 e 2, da Lei Geral Tributária, e art.º 9.º, n.º 1, do Código Civil).

Assim, nos termos do art.º 6.º do DL n.º 495/99, de 18 de novembro (Lei Orgânica do INFARMED, revogada pelo DL n.º 269/2007, de 26 de julho):

“1 - As atribuições do INFARMED prosseguem-se nos domínios da avaliação, autorização, disciplina, inspeção e controlo da produção, distribuição, comercialização e utilização de medicamentos de uso humano e veterinários (…) e de produtos de saúde (…)

2 - São considerados produtos de saúde, para efeitos do presente diploma, nomeadamente:

a) Produtos cosméticos e de higiene corporal…”.

A circunstância de este normativo fazer a menção “para efeitos do presente diploma” não afasta a sua relevância do ponto de vista interpretativo, ao contrário do defendido pela Recorrente. Aliás, o seu teor só vem reforçar o que já decorre quer da Lei n.º 3-B/2000, de 4 de abril, quer do DL n.º 312/2002, de 20 de dezembro, dos quais, como já referimos, não resulta qualquer restrição nos termos defendidos pela Recorrente.

Ademais, veja-se que a própria configuração do tributo tem conexão com as competências do Infarmed em matéria de controlo da saúde pública, o que torna indissociável, designadamente para efeitos interpretativos, a noção constante da lei orgânica daquele instituto público.

É ainda de considerar, para efeitos interpretativos, a disciplina então constante do DL n.º 296/98, de 25 de setembro, atinente ao regime jurídico dos produtos cosméticos e de higiene corporal, que os define como “qualquer substância ou preparação destinada a ser posta em contacto com as diversas partes superficiais do corpo humano, designadamente epiderme, sistemas piloso e capilar, unhas, lábios e órgãos genitais externos, ou com os dentes e as mucosas bucais, com a finalidade de, exclusiva ou principalmente, os limpar, perfumar, modificar o seu aspeto e ou proteger ou os manter em bom estado e ou de corrigir os odores corporais”.

Logo, o âmbito objetivo da taxa sobre a comercialização de produtos de saúde tem de ser definido considerando este conjunto normativo, do qual não resulta a interpretação restrita defendida pela Recorrente, não havendo qualquer exigência de que os produtos em causa tenham de ser, em simultâneo, produtos de saúde nos termos definidos pela Recorrente.

Por outro lado, não se alcança o referido quanto à base de incidência, porquanto não resulta da disciplina do tributo em análise que o mesmo não se possa aplicar a produtos com preços livres para o consumidor final, não havendo, pois, qualquer exigência no sentido de tais produtos terem de ter previamente os preços fixados.

Como tal, não assiste razão à Recorrente nesta parte.

III.F. Do erro de julgamento, por não ser aplicável o regime aos meses compreendidos entre janeiro e abril de 2000

Considera, por outro lado, a Recorrente que o tributo em causa não é aplicável aos meses compreendidos entre janeiro e abril de 2000, sob pena de violação do princípio da irretroatividade da lei fiscal.

Vejamos.

Para a apreciação desta questão, há que previamente aferir qual a natureza do tributo em causa.

Cumpre, assim e antes de mais, atentar na tipologia de tributos previstos no ordenamento jurídico português.

Independentemente da nomenclatura utilizada pelo legislador para designar os tributos, a sua natureza depende das suas específicas caraterísticas.

Com efeito, o nosso ordenamento consagra um conceito amplo de tributo.

Como resulta desde logo do art.º 165.º, n.º 1, al. i), da CRP, os tributos têm uma natureza tripartida:

a) Impostos;

b) Taxas; e

c) Demais contribuições financeiras a favor das entidades públicas.

Este quadro tripartido surge, ao nível da lei ordinária, previsto no art.º 3.º da LGT.

Assim, esta configuração implica que cada um dos tributos tenha caraterísticas e finalidades próprias.

Quanto à sua noção, em traços largos, e começando pela de imposto, este define-se como uma prestação pecuniária unilateral, imposta coativa ou autoritariamente pelo Estado ou por uma entidade pública, sem caráter sancionatório, visando angariar receita. É ainda de atentar que, do art.º 103.º, n.º 1, da CRP, resulta igualmente que o sistema fiscal visa diminuir as desigualdades e promover a distribuição de rendimentos e riquezas, conjugando o que se poderá denominar como um interesse financeiro ou imediato com um interesse de justiça social, mediato ou metajurídico.

No que respeita às taxas as mesmas configuram-se como prestações pecuniárias impostas coativa ou autoritariamente, pelo Estado ou outro ente público, sem que tenham caráter sancionatório, pressupondo sim a existência de uma contraprestação, seja ela a prestação de um serviço público, a utilização de um bem do domínio público ou a remoção de um obstáculo jurídico.

A par das taxas e dos impostos surge a terceira categoria, a das contribuições financeiras, classificação de caráter residual, abrangendo os tributos que não são nem impostos nem taxas.

Como se refere no Acórdão n.º 539/2015, do Plenário do Tribunal Constitucional, de 20.10.2015:

“[A] revisão constitucional de 1997, introduziu, a propósito da delimitação da reserva parlamentar, a categoria tributária das contribuições financeiras a favor das entidades públicas, dando cobertura constitucional a um conjunto de tributos parafiscais que se situam num ponto intermédio entre a taxa e o imposto (artigo 165.º, n.º 1, alínea i)). As contribuições financeiras constituem um tertium genus de receitas fiscais, que poderão ser qualificadas como taxas coletivas, na medida em que compartilham em parte da natureza dos impostos (porque não têm necessariamente uma contrapartida individualizada para cada contribuinte) e em parte da natureza das taxas (porque visam retribuir o serviço prestado por uma instituição pública a certo círculo ou certa categoria de pessoas ou entidades que beneficiam coletivamente de um atividade administrativa) (Gomes Canotilho/Vital Moreira, em “Constituição da República Portuguesa Anotada,” I vol., pág. 1095, 4.ª ed., Coimbra Editora).

As contribuições distinguem-se especialmente das taxas porque não se dirigem à compensação de prestações efetivamente provocadas ou aproveitadas pelo sujeito passivo, mas à compensação de prestações que apenas presumivelmente são provocadas ou aproveitadas pelo sujeito passivo, correspondendo a uma relação de bilateralidade genérica. Preenchem esse requisito as situações em que a prestação poderá beneficiar potencialmente um grupo homogéneo ou um conjunto diferenciável de destinatários e aquelas em que a responsabilidade pelo financiamento de uma tarefa administrativa é imputável a um determinado grupo que mantém alguma proximidade com as finalidades que através dessa atividade se pretendem atingir (…).

Por via da nova redação dada à norma do artigo 165.º, n.º 1, alínea i), a Constituição autonomizou uma terceira categoria de tributos, para efeitos de reserva de lei parlamentar, relativizando as diferenças entre os tributos unilaterais e os tributos comutativos e obrigando a uma reformulação da discussão sobre a exigência da reserva de lei, relativamente às contribuições especiais que não se pudessem enquadrar no preciso conceito de taxa” (sublinhados nossos).

Como referido por Sérgio Vasques[4]:

“O que (…) carateriza os tributos que hoje em dia encontramos a meio caminho entre as taxas e os impostos é o estarem voltados à compensação de prestações de que só presumivelmente se pode dizer causador ou beneficiário o sujeito passivo, sendo o seu pressuposto constituído por factos que apenas com segurança relativa permitem concluir pela provocação ou aproveitamento das prestações administrativas. Em suma, o que as define é visarem uma troca entre a administração e grupos de pessoas que se presume provocarem os mesmos custos ou aproveitarem os mesmos benefícios”.

Sobre a natureza deste tributo, já a jurisprudência se pronunciou por diversas vezes, sendo defendida sobretudo a sua qualificação como imposto, havendo ainda quem considere estarmos perante uma contribuição financeira.

No sentido de o tributo em causa ser um imposto, chama-se à colação o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 127/2004, de 3 de março, onde se refere:

“[Aceita-se a] qualificação (…) do tributo em questão como verdadeiro imposto (pese embora a designação como “taxa sobre comercialização de produtos de saúde”), na medida em que não se divisa qualquer contrapartida com a qual o tributo se encontre em relação sinalagmática, não tendo de saber-se, aqui, se tal resultado interpretativo é o que deverá inferir-se da lei ordinária, à face dos respectivos cânones hermenêuticos. Trata-se de um imposto que visa tributar o consumo de certos “produtos de saúde” (imposto indirecto sobre o consumo), cujos sujeitos passivos são os “produtores e importadores, ou seus representantes, de produtos de saúde colocados no mercado” (que naturalmente o repercutirão no consumidor final, pelo que este é assim o seu sujeito económico)” (sublinhado nosso).

Como decorre do Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 04.06.2003 (Processo: 061/03):

“O conceito de taxa tem sido alvo de larga explanação doutrinal e jurisprudencial, podendo hoje terem-se por definidos, com suficiente base dogmática, os seus elementos essenciais. (…)

Assim, temos como elementos essenciais do conceito de taxa: prestação pecuniária imposta coactiva ou autoritariamente; pelo Estado ou outro ente público; sem carácter sancionatório; utilização individualizada pelo contribuinte, solicitada ou não; de bens públicos ou semi-públicos; com contrapartida numa actividade do credor especialmente dirigida ao mesmo contribuinte.

Essencialmente, a taxa distingue-se do imposto pela bilateralidade ou unilateralidade do tributo, respectivamente: aquela, ao contrário deste, supõe a existência de correspestividade entre duas prestações; a primeira a pagar pelo utente do serviço e a deste, a prestar pelo Estado ou outra entidade pública.

Esta relação tem, por um lado, carácter substancial ou material, que não meramente formal mas não vai tão longe quanto os contratos sinalagmáticos: não há uma equivalência económica rigorosa entre o valor do serviço e o montante da quantia a pagar, podendo até esta ser bastante superior ao custo daquele; salva sempre a "desproporção intolerável".

Ora, nos termos do preâmbulo do dec-lei 455/99, de 18Nov, que regula a orgânica e funcionamento do Infarmed, a criação do instituto procurou responder às necessidades "de assegurar um elevado nível de protecção da saúde pública em matéria de medicamentos e produtos de saúde e de desenvolver a informação ao público" bem como "reforçar as regras e o controlo dos produtos sanitários que passarão a designar-se por produtos de saúde, em termos de protecção de saúde pública".

Pelo que o seu artº 6º lhe atribuiu, como refere a impugnante, "a prossecução de atribuições nos domínios de avaliação, autorização, disciplina, inspecção e controlo da produção, distribuição, comercialização e utilização de medicamentos de uso humano e veterinários, incluindo os medicamentos à base de plantas e homeopáticos, e de produtos de saúde, nos termos da respectiva legislação específica, incumbindo-lhe especialmente, entre outras actividades - seu nº 3-:

al a) contribuir para a formulação da política geral de saúde, designadamente na definição e execução de políticas de produtos de saúde.

al c) garantir a qualidade dos produtos de saúde.

al e) assegurar o acesso dos profissionais de saúde e dos consumidores às informações necessárias à utilização racional dos produtos de saúde.

al f) assegurar sistemas de vigilância dos produtos de saúde.

Por sua vez, o nº 1 do artº 72º da lei 3-B/2000 que criou a taxa em causa, refere destinar-se a mesma "ao sistema de garantia da qualidade e segurança de utilização daqueles produtos, à realização de estudos de impacte social e acções de formação para os agentes de saúde e consumidor, a realizar pelo Infarmed".

Trata-se, assim, fundamentalmente, de concretizar a protecção da saúde pública, defendendo-a e promovendo-a, nos termos constitucionais - artº 64º -, o que passa nomeadamente por assegurar a garantia de que os produtos de saúde se encontram conformes às exigências legais.

Assim, os seus beneficiários directos não são os respectivos importadores ou produtores mas os cidadãos utentes ou consumidores ou, reproduzindo os dizeres da impugnante, ora recorrida, "a comunidade" - beneficiária directa do sistema.

Pelo que não pode afirmar-se a existência de uma vantagem específica para o devedor individualmente considerado, surgida da correspondente actividade pública e, assim, da contraprestação de um serviço prestado com vantagens imediatas para os a ela sujeitos.

Pelo contrário, está-se perante uma forma de financiar uma actividade do Estado vocacionada para a satisfação de necessidades públicas em geral: garantia da qualidade e segurança de utilização dos respectivos produtos e realização dos ditos estudos e acções de formação.

Não se verificando, pois, no caso os referidos elementos definidores, da taxa, nomeadamente a predita relação bilateral ou sinalagmática, a correspectividade entre as duas prestações: a paga pelo utente do serviço público e a prestada pelo Infarmed.

Por outro lado, não pode ver-se, no tributo em causa, uma qualquer remoção, por parte do Instituto, de um obstáculo jurídico à actividade da A... - cfr. artº 44º 2 da LGT. (…)

Pelo que a imposição em causa é de qualificar como um imposto ou, ao menos, como um tributo que, dada a sua natureza, há-de ter um tratamento constitucional semelhante. (…)”.

Mais recentemente, veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 21.11.2019 (Processo: 01152/06.1BELSB 0345/17) e ampla jurisprudência no mesmo citada, onde se refere:

“Assim, em sucessivos acórdãos do S.T.A., proferidos a respeito da dita taxa dos autos, considerou-se tratar-se de imposto, definindo-se impostos como “prestações pecuniárias, coactivas, sem carácter de sanção, exigidas por um ente público, com vista à realização de fins públicos, inexistindo o vínculo sinalagmático característico daquelas” (taxas) – assim, no acórdão do processo n.º 061/03 a 4-6-03, a que sucedeu o proferido no proc. n.º 0439/03, a 9-7-03, no proc. n.º 01063/03, a 15-10-03, no proc. n.º 1060/03, a 29-10-03 no proc. n.º 01296/03 a 12-11-03, no proc. n.º 01065/03 a 3-12-03, e nos processos n.ºs 0307/03 01638/03, a 21-1-2004, encontrando-se todos publicados em www.dgsi.pt.

Também desse modo foi considerado, pelo T.C., que refere que “não se divisa qualquer contrapartida com a qual o tributo se encontre em relação sinalagmática, não tendo de saber-se, aqui, se tal resultado interpretativo é o que deve inferir-se da lei ordinária, à face dos respectivos cânones interpretativos. Trata-se de um imposto que visa tributar o consumo de certos “produtos de saúde” (imposto indirecto sobre o consumo), cujos sujeitos passivos são os “produtores e importadores, ou seus representantes, de produtos de saúde colocados no mercado” (que naturalmente o repercutirão no consumidor final, pelo que este é assim o seu sujeito económico)” – reproduz-se extrato do acórdão n.º 127/04, proferido em Plenário, a 9-3-04, n.º 127/2004, sendo que no mesmo sentido foi entendido nos acórdãos n.º 134/04, da mesma data, e 166/04, de 13-4-04, todos acessíveis em acessível em www.tribunalconstitucional.pt.

Mesmo que se entenda que a dita taxa, sendo destinada ao INFARMED, conforme previsto nos artigos 1.º n.º 2 e 2.º n.º 4 do referido Dec.-Lei e 12.º, b), do Dec.-Lei n.º 46/2012, de 24/2, se trata de contribuição financeira - neste sentido, acórdão do Tribunal Constitucional (T.C.) n.º 135/2012, de 7-3-2012-, equipara-se a imposto de acordo com o art. 4.º n.º 2 da L.G.T., porquanto implica serviços próprios, nomeadamente, as Comissões de Dispositivos Médicos e de Cosmetologia, conforme previsto nos arts. 4.º d) e 8.º f) e g) da referido Dec.-Lei 46/2012”.

No sentido de o tributo em causa ser uma contribuição financeira, chama-se à colação o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 135/2012, de 7 de março, onde se refere a este propósito:

“[E]sta “taxa de comercialização” é exigida aos agentes económicos tidos como beneficiários desta atividade desenvolvida pelo INFARMED, no pressuposto de que a atividade prosseguida pelos sujeitos passivos da taxa é a causa da necessidade do INFARMED ter que empreender determinado tipo de ações integradas nas suas competências.

Deste modo, as ditas taxas de comercialização não constituem tributos unilaterais, uma vez que tal natureza não é evidenciada pela sua história e função e o próprio legislador, ao disciplinar tais taxas, teve a preocupação de reforçar e deixar clara a ideia de que elas constituem antes uma contrapartida de serviços que aproveitam ao conjunto dos agentes económicos a elas sujeitos (vide, o preâmbulo do Decreto-Lei n.º 312/2002, de 20-12, que procede à revisão e regulamentação daquela taxa, onde se refere que «as contrapartidas pelo pagamento da taxa, a assegurar pelo Instituto Nacional da Farmácia e do Medicamento (INFARMED), estão a ser reforçadas, em resultado de este Instituto se encontrar dotado de mais e melhores meios para assegurar o sistema global de garantia de qualidade dos produtos cosméticos e de higiene corporal, produtos farmacêuticos homeopáticos, dispositivos médicos não ativos e dispositivos para diagnóstico in vitro, no âmbito do qual os serviços prestados e a correspondente taxa se incluem.»)

Não estamos, pois, no seu aspeto dominante, perante uma participação nos gastos gerais da comunidade, em cumprimento de um dever fundamental de cidadania, nem perante a retribuição de um serviço individualizável concretamente prestado por uma entidade pública ao sujeito passivo, pelo que a referida “taxa” não se pode qualificar nem como imposto, nem como uma verdadeira taxa, sendo tais tributos antes qualificáveis como contribuições, incluídas na designação genérica dos tributos parafiscais, figuras que se situam a meio caminho entre o imposto e a taxa, e que se dirigem a um grupo restrito de pessoas, porque estas fundadamente se presumem causadoras ou beneficiárias de prestações administrativas determinadas (vide, adotando esta qualificação relativamente às “taxas” financiadoras da atividade das entidades reguladoras, Gomes Canotilho e Vital Moreira, em “Constituição da República Portuguesa anotada”, vol. I, pág. 1095, da 4ª ed., da Coimbra Editora, Cardoso da Costa, em “Sobre o princípio da legalidade das “taxas” (e das “demais contribuições financeiras”)”, em Estudos em homenagem ao Professor Doutor Marcello Caetano no centenário do seu nascimento”, pág. 805, e Sérgio Vasques, em “As taxas de regulação económica em Portugal: uma introdução”, em “As taxas de regulação económica em Portugal”, pág. 34, da ed. de 2008, da Almedina, e em “Remédios secretos e especialidades farma­cêuticas”, em Ciência e Técnica Fiscal, n.º 413, Janeiro-Junho 2004, págs. 159-166)”.

Adiantemos, no entanto, que, quer se entenda que estamos perante um imposto, quer se entenda que estamos perante uma contribuição financeira, assiste razão à Recorrente, na parte relativa aos meses compreendidos entre janeiro e março de 2000 (dado que o diploma que a criou foi publicado a 4 de abril de 2000).

Concretizando.

Sob a perspetiva de se estar perante um imposto, cumpre considerar que, nos termos do art.º 103.º da CRP, existe, desde a revisão constitucional de 1997, uma proibição expressa da retroatividade da lei fiscal, como resulta do seu teor, que ora se transcreve:

“1. O sistema fiscal visa a satisfação das necessidades financeiras do Estado e outras entidades públicas e uma repartição justa dos rendimentos e da riqueza.

2. Os impostos são criados por lei, que determina a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes.

3. Ninguém pode ser obrigado a pagar impostos que não hajam sido criados nos termos da Constituição, que tenham natureza retroativa ou cuja liquidação e cobrança se não façam nos termos da lei”.

O Tribunal Constitucional tem vindo a interpretar esta norma da lei fundamental em termos de a mesma só proibir a chamada retroatividade autêntica.

Assim, tem-se partido da distinção entre retroatividade autêntica ou de primeiro grau, que se verifica quando os efeitos da lei nova se pretendem projetar sobre factos que se verificaram integralmente antes da sua entrada em vigor, e a inautêntica, que abrange, designadamente, situações de rendimento ainda em formação.

Evidenciando esta distinção, chama-se à colação o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 128/2009, de 12.03.2009:

“Foi na revisão constitucional de 1997 que o legislador constituinte tomou a opção de consagrar, no n.º 3 do artigo 103.º da Constituição, o princípio geral de proibição de cobrança, pelo Estado, de impostos retroactivos. Explicitou-se, aqui, diz a doutrina, algo que já decorria do princípio da protecção de confiança e da ideia de Estado de direito nos termos do artigo 2.º da CRP (…).

Decorre deste preceito constitucional que qualquer norma fiscal desfavorável (…) será constitucionalmente censurada quando assuma natureza retroactiva, sendo a expressão «retroactividade» usada, aqui, em sentido próprio ou autêntico: proíbe-se a aplicação de uma lei fiscal nova, desvantajosa, a um facto tributário ocorrido no âmbito da vigência da lei fiscal revogada (a lei antiga) e mais favorável.

(…) Uma vez expresso no texto da Constituição a proibição da retroactividade em matéria fiscal, o Tribunal passou a ler esta proibição já não numa dimensão subjectiva (…) mas antes numa dimensão objectiva. Diz o Tribunal, a este propósito, que à proibição expressa da retroactividade da lei fiscal “não pode deixar de estar ínsita uma garantia forte de objectividade e auto-vinculação do Estado pelo Direito” (Cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 172/2000, in www.tribunalconstitucional.pt)

Quer isto dizer que, actualmente, e consagrado que está o princípio geral de irretroactividade da lei fiscal, a mera natureza retroactiva de uma lei fiscal desvantajosa para os particulares é sancionada, de forma automática, pela Constituição, qualquer que tenha sido, em concreto, a conduta da administração fiscal ou do particular tributado. (…).

(…) [A] retroactividade proibida no n.º 3 do artigo 103.º da Constituição é a retroactividade própria ou autêntica. Ou seja, proíbe-se a retroactividade que se traduz na aplicação de lei nova a factos (no caso, factos tributários) antigos (anteriores, portanto, à entrada em vigor da lei nova). (…)

(…) No Acórdão n.º 287/90, de 30 de Outubro, o Tribunal estabeleceu já os limites do princípio da protecção da confiança na ponderação da eventual inconstitucionalidade de normas dotadas de «retroactividade inautêntica, retrospectiva». (…) Foi neste aresto ainda que o Tribunal procedeu à distinção entre o tratamento que deveria ser dado aos casos de «retroactividade autêntica» e o tratamento a conferir aos casos de «retroactividade inautêntica» que seriam, disse-se, tutelados apenas à luz do princípio da confiança…”.

A este respeito, chama-se ainda à colação o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 399/10, de 27.10.2010, onde se refere:

“[O] (…) Tribunal Constitucional, na sua mais recente jurisprudência em matéria fiscal, designadamente nos acórdãos n.ºs 128/2009 e 85/2010, também considerou que a retroactividade consagrada no artigo 103.º, n.º 3, CRP é somente a autêntica. Disse-se no primeiro acórdão:

Decorre deste preceito constitucional que qualquer norma fiscal desfavorável (…) será constitucionalmente censurada quando assuma natureza retroactiva, sendo a expressão «retroactividade» usada, aqui, em sentido próprio ou autêntico: proíbe-se a aplicação de uma lei fiscal nova, desvantajosa, a um facto tributário ocorrido no âmbito da vigência da lei fiscal revogada (a lei antiga) e mais favorável.”

E mais adiante, no referido acórdão, reitera-se:

“A retroactividade proibida no n.º 3 do artigo 103.º da Constituição é a retroactividade própria ou autêntica. Ou seja, proíbe-se a retroactividade que se traduz na aplicação de lei nova a factos (no caso, factos tributários) antigos (anteriores, portanto, à entrada em vigor da lei nova).”

(…) Na doutrina, Autores há que consideram que o âmbito de aplicação do artigo 103.º, n.º 3, CRP abrange somente a retroactividade autêntica e não a imprópria ou "inautêntica" (Casalta Nabais, Direito Fiscal, p. 147; Rui Guerra da Fonseca, Comentário à Constituição Portuguesa, II volume, coordenação de Paulo Otero, pp. 872 e segs., Américo Fernando Brás Carlos, Impostos, p. 145 e segs.), enquanto outros mostram mais simpatia pela posição contrária, como é o caso de Paz Ferreira (in Constituição da República Portuguesa Anotada, org. Jorge Miranda e Rui Medeiros, Tomo II, Coimbra, 2006, p. 223, seguindo a posição de Diogo e Mónica Leite de Campos e Jorge Bacelar Gouveia)”.

In casu, encarando este tributo como imposto, é-lhe aplicável o referido n.º 3 do art.º 103.º da CRP (v. o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 127/2004, de 03.03.2004).

Com efeito, a Lei do Orçamento do Estado para 2000 criou este tributo, que ainda não existia no nosso ordenamento até então.

Sendo certo que a entrada em vigor do referido Orçamento do Estado foi antecipada para data anterior à da sua publicação, em virtude, designadamente, do princípio da anualidade do orçamento do Estado, a verdade é que o mesmo criou este tributo e foi apenas publicado em 4 de abril de 2000.

Ora, a data de um diploma é a data da publicação (cfr. art.º 1.º, n.º 2, da Lei n.º 74/98, de 11 de novembro – alterada pelas Leis n.ºs 2/2005, de 24 de janeiro, 26/2006, de 30 de junho, 42/2007, de 24 de agosto, e 43/2014, de 11 de julho, que a republicou).

Conforme referido no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 02.11.2005 (Processo: 0572/05), “… essa retroactividade significaria sempre a violação do princípio da confiança, que afectava, como bem se refere no acórdão recorrido, de forma intolerável os legítimos direitos do contribuinte. Basta pensar na impossibilidade do impugnante fazer repercutir o imposto sobre os consumidores. (…) E nem vale referir (…) com a ampla discussão e a evidente publicidade que sempre rodeiam a discussão e posterior aprovação do Orçamento do Estado, publicidade essa que permite aos destinatários conhecer as alterações que o Governo se propõe fazer nas leis. A isto se responderá que ninguém é obrigado a dar atenção à discussão pública das leis e sua posterior aprovação. Tem é que conhecer as leis que forem publicadas no Diário da Republica, de publicação obrigatória…”.

Não obstante a disposição expressa, constante da Lei n.º 3-B/2000, de 4 de abril, em termos de data para início de produção de efeitos, não pode deixar de se considerar que o tributo em causa foi criado, dotado de efeitos retroativos, porque se projetam em data anterior à data da publicação da lei que o criou.

Acresce que o facto de se estar perante um tributo novo, periódico, que a jurisprudência tem classificado como de imposto sobre o consumo (cfr., por todos, o Acórdão do Plenário do Tribunal Constitucional n.º 127/2004, de 03.03.2004). Logo, uma possível eficácia retroativa implicaria coartar, designadamente, a possibilidade de fazer repercutir o tributo nos consumidores.

Ainda que se entendesse estarmos perante uma contribuição financeira, o resultado seria o mesmo, ainda que por violação do princípio da proteção da confiança, no tocante aos meses compreendidos até março de 2000.

A este respeito, chama-se à colação o já mencionado Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 135/2012, de 7 de março, onde se refere, a este propósito:

“Estamos, pois, perante um tributo de obrigação única, incidindo sobre operações avulsas que se produzem e esgotam de modo instantâneo, em que o facto gerador do tributo surge isolado no tempo, originando, para o contribuinte, uma obrigação de pagamento com caráter avulso. Ou seja, a “taxa sobre a comercialização de produtos de saúde” aqui em análise não se refere a um período de tempo, mas a um momento: o da operação isolada sujeita à taxa, sem prejuízo de o modo de apuramento do montante devido pelos agentes económicos sujeitos à referida “taxa” ser periódico, continuado e duradouro, existindo, nos termos dos n.ºs 3 e 4, do artigo 72.º, da Lei n.º 3-B/2000, de 4 de abril, a obrigação por parte dos sujeitos passivos de apresentação das declarações de vendas mensais.

Tendo-se por assente que a norma questionada nos autos determinou a aplicação retroativa de uma contribuição financeira a factos ocorridos anteriormente à sua criação, importa decidir se esta retroatividade é ou não constitucionalmente admissível.

O princípio da proteção da confiança, ínsito na ideia de Estado de Direito democrático (artigo 2.º, da Constituição), só exclui a possibilidade de leis retroac­tivas, quando se esteja perante uma retroatividade intolerável, que afete de forma inadmissível e arbitrária os direitos e expectativas legitimamente fundados dos cidadãos contribuintes.

O Tribunal Constitucional tem firmado jurisprudência no sentido de que a inadmissibilidade da retroactivade poderá ser aferida pela aplicação cumulativa, dos seguintes critérios:

a) A afetação de expectativas, em sentido desfavorável, será inadmissível, quando constitua uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destina­tários das normas dela constantes não possam contar;

b) e quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes sobre os interesses particulares afetados.

Assim sendo, poderá considerar-se que a norma do artigo 103.º, da Lei n.º 3-B/2000, de 4 de abril, ao fazer retroagir os efeitos do artigo 72.º, n.º 3, da mesma lei, à data de 1 de janeiro de 2000, viola a confiança dos agentes económicos abrangidos pela nova “taxa” assim criada, de forma inesperada e arbitrária e, consequentemente, constitucionalmente inadmissível?

A resposta não pode deixar de ser afirmativa.

Com efeito, sendo a “taxa sobre a comercialização de produtos de saúde” criada pela referida norma um tributo com uma nova conformação no ordenamento jurídico, aos agentes económicos por ela abrangidos não ocorreria que a mesma fosse aplicada retroactivamente a transações já efetuadas à data da entrada em vigor da lei, tornando impossível efetuar um planeamento económico que tivesse em conta, no custo dos produtos colocados no mercado, o valor cobrado a este título. Designadamente, perante a aplicação retroativa do referido tributo, as entidades sujeitas ao mesmo viram inviabilizada a possibilidade de, tal como em geral acontece nos impostos indiretos, repercuti-lo no consumidor final, que seria quem suportaria economicamente o tributo devido, ao adquirir o bem que inclui no preço o valor da “taxa de comercialização”.

Desta forma, e uma vez que se não descortinam razões de interesse público que, no caso, sejam capazes de prevalecer sobre o valor da segurança jurídica, a conclu­são a extrair é a de que a confiança de agentes económicos na ordem jurídica foi violada, sem qualquer justificação, de forma arbitrária, pelo que a retroatividade é, no caso, intolerável e, consequentemente, constitucionalmente ilegítima.

Deste modo, (…) a norma fiscalizada ofende um (…) parâmetro constitucional – o da proteção da confiança -, pelo que a recusa da sua aplicação foi legítima”.

Face ao exposto, assiste em parte razão à Recorrente, concretamente quanto aos meses compreendidos entre janeiro e março de 2000, não lhe assistindo no entanto razão quanto ao mês de abril de 2000.

III.G. Do erro de julgamento, em virtude de se verificar uma situação de inconstitucionalidade orgânica

Considera, por outro lado, a Recorrente que o DL n.º 312/2002, de 20 de dezembro, padece de inconstitucionalidade orgânica, por violação do art.º 165.º, n.ºs 1, alínea a), 4 e 5, da CRP, erradamente interpretado, assim como o art.º 55.º, n.º 1, da Lei n.º 109- B/2001 (que tem por objeto uma autorização legislativa que já caducara no momento da aprovação do DL n.º 312/2002, de 20 de dezembro,), o Decreto do Presidente da República n.º 24-A/2002, de 6 de abril (que exonerou do cargo de Primeiro-Ministro o engenheiro António Manuel de Oliveira Guterres) e a Lei n.º 16-A/2002, de 31 de maio [primeira alteração à Lei n.º 109-B/2001, de 27 de dezembro (aprova o Orçamento do Estado para 2002)].

Vejamos.

O DL n.º 312/2002, de 20 de dezembro, foi aprovado ao abrigo da autorização legislativa, constante do art.º 55.º da Lei n.º 109-B/2001, de 27 de dezembro (Orçamento do Estado para 2002, que veio a ser alterado pela Lei n.º 16-A/2002, de 31 de maio).

Nos termos do art.º 165.º da CRP:

“4. As autorizações caducam com a demissão do Governo a que tiverem sido concedidas, com o termo da legislatura ou com a dissolução da Assembleia da República.

5. As autorizações concedidas ao Governo na lei do Orçamento observam o disposto no presente artigo e, quando incidam sobre matéria fiscal, só caducam no termo do ano económico a que respeitam”.

Como referido por Gomes Canotilho e Vital Moreira[5]:

“Regime especial em matéria de caducidade possuem as autorizações legislativas em matéria fiscal contidas na lei do orçamento, pois só caducam no final do ano económico a que respeitam independentemente das vicissitudes políticas por que passem o Governo e a AR (todavia não podem ser usadas por governos de gestão). Parte-se do princípio que tais autorizações são solidárias com o orçamento por serem normalmente imprescindíveis à sua execução. Note-se que: (a) as autorizações legislativas em matéria fiscal só possuem regime especial quando inseridas no Orçamento; (b) as autorizações da lei do orçamento só possuem regime especial quando respeitantes a matérias fiscais”.

Desde já se adiante que, quer se considere o tributo em causa um imposto, quer se considere uma contribuição financeira, não se verifica a inconstitucionalidade orgânica mencionada pela Recorrente.

Começando pelo entendimento no sentido de estamos perante imposto, por se tratar de uma prestação pecuniária, coativa, sem caráter de sanção, exigida por um ente público com vista à realização de fins públicos (v. os Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo, de 06.10.2010 – Processo: 01218/03; de 04.06 2003 – Processo: 061/03; de 09.07.2003 – Processo: 0439/03; de 15.10.2003 – Processo: 01063/03; e os Acórdãos do Tribunal Central Administrativo Sul, de 13.03. 2012 – Processo: 05012/11; e de 14.06.2011 – Processo: 04567/11), é-lhe aplicável o disposto no n.º 5 do art.º 165.º da CRP.

Como tal, o DL n.º 312/2002, de 20 de dezembro, tendo sido aprovado ainda no decurso do ano de 2002, ao abrigo da autorização legislativa constante do art.º 55.º da Lei n.º 109-B/2001, de 27 de dezembro, Lei do Orçamento do Estado para 2002, não padece de inconstitucionalidade orgânica, atendendo ao disposto no art.º 165.º, n.º 5, da CRP.

Neste sentido, v. o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 21.11.2019 (Processo: 01152/06.1BELSB 0345/17).

Ainda que se considere, para efeitos da apreciação do alegado pela Recorrente, que o tributo em causa é uma contribuição financeira, a conclusão mantém-se, como já referimos supra.

Com efeito, do disposto no art.º 165.º, n.º 1, al. i), da CRP, resulta que a reserva de lei parlamentar se circunscreve ao regime geral das taxas e demais contribuições financeiras a favor das entidades públicas, sendo que até à presente data não foi aprovado qualquer regime geral das contribuições financeiras e, ao nível das taxas, apenas foi aprovado o regime geral das taxas das autarquias locais.

O alcance da reserva de lei formal no que respeita às contribuições financeiras tem sido motivo de distintas posições entre a doutrina.

Já por diversas ocasiões o Tribunal Constitucional foi chamado a pronunciar-se sobre a matéria, tendo entendido que a criação de contribuições financeiras não está abrangida pelo princípio da reserva de lei formal.

Como referido no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 70/2014, de 20.03.2013:

“[C]om a revisão constitucional de 1997, a alteração introduzida na redação da alínea i), do n.º 1, do artigo 165.º, da Constituição (anterior alínea i), do n.º 1, do artigo 168.º), veio obrigar a uma reformulação dos pressupostos da discussão sobre esta matéria.

(….) Com esta alteração deixou de fazer qualquer sentido equiparar a figura das contribuições financeiras aos impostos para efeitos de considerá-las sujeitas à reserva da lei formal” (sublinhado nosso).

Aliás, o Tribunal Constitucional já se pronunciou pela inexistência de violação do princípio da reserva de lei, ainda que o tributo seja criado por decreto-lei do Governo.

Assim, refere-se no Acórdão n.º 539/2015, do Plenário do Tribunal Constitucional, de 20.10.2015:

“… [H]á que determinar quais são as consequências ao nível da reserva parlamentar da ausência de um regime geral das contribuições financeiras.

A revisão constitucional de 1997 ao prever a figura das contribuições financeiras como tributo, para efeitos de definição da competência legislativa, equiparou-a às taxas e distinguiu-a dos impostos. Enquanto a criação destes se manteve na reserva relativa da Assembleia da República, relativamente às taxas e às contribuições financeiras aí se incluiu apenas a previsão de um regime geral, ficando excluída da reserva parlamentar a criação individualizada quer de taxas quer de contribuições financeiras. E a aprovação desse regime geral não surge como ato-condição ou pressuposto necessário da criação individualizada desses tributos (…), não havendo razões para que se considere que a atribuição reservada daquela competência pelo legislador constitucional tenha procurado refletir uma aplicação mais rarefeita do princípio matriz do parlamentarismo “no taxation without repre­sentation”.

A opção constitucional por uma reserva parlamentar diferenciada entre impostos, por um lado, e taxas e contribuições por outro lado, teve em consideração a ausência de qualquer bilateralidade de prestações nos primeiros, não tendo o legislador constitucional relevado como fator merecedor de uma distinção em matéria competencial o facto de nas contribuições financeiras essa bilateralidade se apresentar muitas vezes como potencial e/ou difusa.

(…) Não sendo a existência de um regime geral pressuposto necessário da criação de taxas, nem de contribuições financeiras, não tem qualquer suporte no texto constitucional, na ausência daquele regime, estender-se a competência reservada da Assembleia da República ao ato de aprovação de contribuições financeiras individualizadas, criando-se assim uma reserva integral de regime onde esta não existe. (…).

Assim, a ausência da aprovação de um regime geral das contribuições financeiras pela Assembleia da República não pode impedir o Governo de aprovar a criação de contribuições financeiras individualizadas no exercício de uma competência concorrente, sem prejuízo da Assembleia sempre poder revogar, alterar ou suspender o respetivo diploma, no exercício dos seus poderes constitucionais”.

Portanto, ainda que se considere o tributo como uma contribuição financeira, a sua criação não está abrangida pelo princípio da reserva relativa de lei parlamentar, pelo que o governo, ao abrigo das suas competências próprias, pode legislar sobre a matéria. A circunstância de o DL n.º 312/2002, de 20 de dezembro, fazer referência ao art.º 55.º, da Lei n.º 109-B/2001, de 27 de dezembro, e a conclusão de que esta última não seria exigível não faz com que o primeiro padeça de inconstitucionalidade, nos termos alegados, dado que o Governo sempre teria competência para a matéria (não se considerando que seja qualquer tipo de condicionamento do poder legislativo do governo – veja-se que o facto de ser concedida uma autorização legislativa não implica sequer a obrigação de a utilizar).

Face ao exposto, carece de razão a Recorrente nesta parte.

III.H. Do erro de julgamento, dada a inconstitucionalidade por violação do princípio da tributação pelo lucro real

Entende, ademais, a Recorrente que o Tribunal a quo errou o seu julgamento, na medida em que, considerando-se o tributo em causa como um imposto sobre o rendimento, estamos perante uma tributação do lucro presumido e não do lucro real, o que atenta contra o disposto no art.º 104.º, n.º 2, da CRP.

Vejamos.

Nos termos do art.º 103.º, n.º 2, da CRP, deve estar designadamente prevista na lei a base tributável dos impostos.

No caso dos autos, não há dúvidas que a base tributável do tributo em apreciação foi prevista na lei (Lei n.º 3-B/2000, de 4 de abril).

As questões colocadas pela Recorrente prendem-se com a interpretação dos termos em que tal base tributável foi definida.

Face à formulação em causa, entende-se que a base tributável se encontra prevista de forma passível de ser interpretada com segurança, considerando o volume de vendas do sujeito passivo e considerando o respetivo preço de venda.

Chama-se a este respeito à colação o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 04.06.2003 (Processo: 061/03), onde se refere:

“[A] imposição em causa é de qualificar como um imposto ou, ao menos, como um tributo que, dada a sua natureza, há-de ter um tratamento constitucional semelhante.

(…) Está, assim, sujeita ao disposto no artº 103º nº 2 da constituição, devendo a lei delimitar, nomeadamente, a respectiva incidência, em termos da sua determinabilidade, assegurando aos interessados um suficiente grau de densificação - cfr, Casalta Nabais, Direito Fiscal, 2ª edição, pág. 142 - .

Ora, o nº 3 do referido art 72º dispõe que "a taxa incide sobre o volume de vendas de cada produto, tendo por referência o respectivo preço de venda ao consumidor final ... e sendo o seu valor pago mensalmente com base nas declarações de vendas mensais, nos termos e com os elementos a definir pelo mesmo Instituto".

Assim, a incidência real concretiza-se "no volume de vendas" de cada produto e o seu valor é pago mensalmente com base nas respectivas, "vendas mensais".

Certo que deve ter "por referência, "o preço de venda ao consumidor final" mas tal aparece apenas de modo subordinado, de um mero "valor de referência limite".

Se se quisesse erigir como factor de incidência real o preço de venda ao consumidor final, a lei não se teria referido ao volume de vendas e às respectivas declarações de venda.

Pelo que a dita circular e o impresso "declaração de vendas" surgem como mero regulamento executivo e instrumental.

A parte final do dito inciso normativo refere-se apenas ao pagamento do tributo, cujos termos e elementos serão definidos pelo Instituto, a entidade credora: nenhum elemento de incidência resta, pois, para o Regulamento” (sublinhados nossos).

Cumpre, então, aferir se este tributo se configura como um imposto sobre o rendimento e se, nessa sequência, a respetiva disciplina atenta contra o princípio da tributação sobre o rendimento real.

Adiante-se desde já que a resposta é negativa para ambas as questões.

Isto porque, por um lado, estamos perante um tributo que incide sobre o consumo. Por outro lado, a base de incidência é o volume de vendas do sujeito passivo.

Com efeito, nos termos do art.º 72.º da Lei n.º 3-B/2000, de 4 de abril:

“1 - Os produtores, importadores, ou seus representantes, de produtos de saúde colocados no mercado, ficam sujeitos ao pagamento de uma taxa de comercialização destinada ao sistema de garantia da qualidade e segurança de utilização daqueles produtos, à realização de estudos de impacte social e ações de formação para os agentes de saúde e consumidores, a realizar pelo INFARMED, - Instituto Nacional de Farmácia e do Medicamento.

2 - A taxa a que se refere o número anterior é de:

a) Produtos Farmacêuticos Homeopáticos, Dispositivos Médicos Não Ativos e Dispositivos Médicos Para Diagnóstico In Vitro: 0,4%;

b) Cosméticos e Produtos de Higiene Corporal: 2,0%.

3 - A taxa incide sobre o volume de vendas de cada produto, tendo por referência o respetivo preço de venda ao consumidor final, constituindo receita própria daquele Instituto, e sendo o seu valor pago, mensalmente, com base nas declarações de vendas mensais, nos termos e com os elementos a definir pelo mesmo Instituto…”.

Assim, sendo os factos geradores da obrigação tributária o consumo evidenciado pela venda de tais produtos e não a obtenção de certo rendimento pelo obrigado tributário, não é aqui de considerar o princípio da tributação pelo rendimento real.

A este respeito, veja-se o Acórdão do Plenário do Tribunal Constitucional n.º 127/2004, de 03.03.2004, do qual se extrai:

“Trata-se de um imposto que visa tributar o consumo de certos “produtos de saúde” (imposto indirecto sobre o consumo), cujos sujeitos passivos são os  “produtores e importadores, ou seus representantes, de produtos de saúde colocados no mercado” (que naturalmente o repercutirão no consumidor final, pelo que este é assim o seu sujeito económico)” (v. ainda os Acórdão dos Tribunal Constitucional n.º 133/04, de 09.03.2004 e 166/2004, de 17.03.2004).

Veja-se, neste mesmo sentido, v.g., o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 21.11.2019 (Processo: 01152/06.1BELSB 0345/17), e os Acórdãos deste TCAS, de 18.05.2010 (Processo: 03351/09) e de 14.06.2011 (Processo: 04567/11).

Logo, não assiste razão à Recorrente nesta parte.

III.I. Do erro de julgamento, por violação do princípio da igualdade

Entende ainda a Recorrente que, independentemente da natureza do tributo em causa, o art.º 72.º, n.º 2, alínea b), da Lei n.º 3-B/2000, de 4 de abril, e o art.º 1.º, n.º 1, alínea a), do DL n.º 312/2002, de 20 de dezembro, interpretados no sentido de que sobre os produtos cosméticos e de higiene corporal recai uma taxa de 2%, enquanto sobre os demais produtos sujeitos a supervisão do Infarmed, mais concretamente os produtos farmacêuticos homeopáticos, dispositivos médicos não ativos e dispositivos para diagnóstico in vitro [cfr. a alínea a) do n.º 2 do art.º 72.º da Lei n.º 3-B/2000, de 4 de abril, e as alíneas b) e c) do n.º 1 do art.º 1.° do Decreto-Lei n.º 312/2002, de 20 de dezembro], bem como os medicamentos (cfr. o art.º 1.º, n.º 3, do DL n.º 282/95, de 26 de outubro), recai uma taxa de apenas 0,4%, padecem de inconstitucionalidade material por violação do art.º 13.° da CRP (princípio da igualdade, mais concretamente na vertente do princípio da proporcionalidade).

Vejamos.

A CRP determina, desde logo, no art.º 13.º, que:

“1. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.

2. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual”.

Como referido por Gomes Canotilho e Vital Moreira[6]:

“O princípio da igualdade é um dos princípios estruturantes do sistema constitucional global, conjugando dialecticamente as dimensões liberais, democráticas e sociais inerentes ao conceito de Estado de direito democrático e social (art . 2°) . Na sua dimensão liberal, o princípio da igualdade consubstancia a ideia de igual posição de todas as pessoas, independentemente do seu nascimento e do seu status, perante a lei, geral e abstracta, considerada subjectivamente universal em virtude da sua impessoalidade e da indefinida repetibilidade na aplicação. A dimensão democrática exige a explícita proibição de discriminações (positivas e negativas) na participação no exercício do poder político, seja no acesso a ele (…) seja na relevância dele (…), bem como no acesso a cargos públicos (…). A dimensão social acentua a função social do princípio da igualdade, impondo a eliminação das desigualdades fácticas (…). Com estas três dimensões, o princípio da igualdade é estruturante do Estado de direito democrático e social, dado que: (a) impõe a igualdade na aplicação do direito, fundamentalmente assegurada pela tendencial universalidade da lei e pela proibição de diferenciação de cidadãos com base em condições meramente subjectivas (igualdade de Estado de direito liberal); (b) garante a igualdade de participação na vida política da colectividade e de acesso aos cargos públicos e funções políticas (igualdade de Estado de direito democrático); (c) exige a eliminação das desigualdades de facto para se assegurar uma igualdade material no plano económico, social e cultural (igualdade de Estado de direito social)”.

A igualdade na aplicação do direito vai para além da igualdade formal, implicando sim igualdade material, que tem subjacente a ideia de tratamento igual do que é igual e tratamento diferente do que seja diferente.

Especificamente ao nível tributário, dispõe o art.º 104.º da CRP que:

“1. O imposto sobre o rendimento pessoal visa a diminuição das desigualdades e será único e progressivo, tendo em conta as necessidades e os rendimentos do agregado familiar.

2. A tributação das empresas incide fundamentalmente sobre o seu rendimento real.

3. A tributação do património deve contribuir para a igualdade entre os cidadãos.

4. A tributação do consumo visa adaptar a estrutura do consumo à evolução das necessidades do desenvolvimento económico e da justiça social, devendo onerar os consumos de luxo”.

O princípio da igualdade, evidenciado nos n.ºs 1 a 3 do supracitado art.º 104.º da CRP, no âmbito do direito tributário, abrange quer a vertente da igualdade perante a lei fiscal, no sentido de não haver discriminação dos cidadãos face à referida lei, quer a vertente da igualdade tributária ou igualdade de sacrifícios; esta encontra-se estreitamente ligada ao princípio da capacidade contributiva, enquanto reflexo da igualdade material.

Neste último sentido, fala-se em igualdade horizontal e igualdade vertical, sendo a primeira aquela que determina que os titulares das mesmas formas de riqueza sejam tributados de forma igual e a segunda a que determina que o sacrifício fiscal seja repartido em função dos rendimentos de cada um.

Feito este introito e antes de mais, refira-se que, no caso em concreto, o tributo em análise não só não é uma taxa, apesar da sua designação, como se configura como um imposto (ou contribuição financeira com carateres mais próximos dos impostos) e, de entre os impostos, como um imposto sobre o consumo, como já referimos supra.

Atentando no supracitado art.º 104.º da CRP, maxime no seu n.º 4, decorre que a tributação do consumo tem particularidades e especificidades, em termos de princípios, determinando-se que “[a] tributação do consumo visa adaptar a estrutura do consumo à evolução das necessidades do desenvolvimento económico e da justiça social”.

Nas palavras de Gomes Canotilho e de Vital Moreira[7], “[e]stabelecendo como parâmetro da tributação do consumo a adaptação deste à «evolução das necessidades de desenvolvimento económico», a Constituição menciona por uma única vez as determinantes económicas da política fiscal (…). Além disso, a tributação do consumo deve contribuir para a «justiça social, devendo onerar os consumos de luxo». De facto, para ter em conta a justiça social, a tributação do consumo tanto pode desonerar o consumo de bens de primeira necessidade como agravar o consumo de bens supérfluos …”.

Aplicando estes conceitos ao caso dos autos, desde já se antecipa que carece de razão a Recorrente.

Com efeito, o princípio da igualdade postula desde logo que se deve garantir a igualdade material, nos termos referidos supra.

In casu, do quadro normativo em análise, decorre que há tratamentos distintos, em termos de determinação das taxas, para situações distintas. Cada produto é diverso dos demais, sendo alvo de tratamento legislativo próprio, pelo que não estamos perante realidades iguais tratadas de forma desigual.

Neste sentido, veja-se o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 25.05.2010 (Processo: 03899/09), que se segue de perto:

“O princípio da igualdade, entendido como limite objectivo da discricionariedade legislativa não veda à lei a realização de distinções, mas sim a adopção de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias, ou seja, desigualdades de tratamento materialmente infundadas, sem qualquer fundamento razoável ou sem qualquer justificação objectiva e racional. Numa expressão sintética, o princípio da igualdade, enquanto princípio vinculativo da lei, traduz-se na ideia de proibição do arbítrio" (…).

Como se sublinha no acórdão do Tribunal Constitucional n.° 211/03, de 28/04/2003, a violação do princípio constitucional da igualdade subentende uma concreta e efectiva situação de diferenciação injustificada ou discriminatória, sendo certo que, a este propósito, a jurisprudência constitucional tem insistentemente sublinhado não proibir aquele princípio que se criem distinções, desde que estas não sejam arbitrárias ou desprovidas de fundamento material bastante (…).

Tal princípio exige o "tratamento desigual de situações desiguais" (…) ou, como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 1.° vol., pág. 149), "o princípio da igualdade exige positivamente um tratamento igual de situações de facto iguais e um tratamento diverso de situações de facto diferentes".

Ainda para Gomes Canotilho, haverá observância da igualdade "quando indivíduos ou situações iguais não são arbitrariamente (proibição do arbítrio) tratados como desiguais. Por outras palavras: o princípio da igualdade é violado quando a desigualdade de tratamento surge como arbitrária". Assim, "existe uma violação arbitrária da igualdade jurídica quando a disciplina jurídica não se basear num: (l) fundamento sério; (II) não tiver um sentido legítimo; (III) estabelecer diferenciação jurídica sem um fundamento razoável" (Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina, 1995. pág. 401).

Vistas as normas legais em causa quanto à cobrança da taxa, é notória a diferença de tratamento entre produtos que lhe estão sujeitos. Contudo, é também manifesta a existência de diferenças substanciais entre os produtos cosméticos e de higiene e os demais produtos de saúde.

Com efeito, reflexo disso mesmo é que, apesar de estarem enquadrados, para efeitos legais, na categoria mais ampla de "produtos de saúde", os produtos cosméticos e de higiene corporal são alvo de regime legislativo próprio.

E também não procede a invocação da violação do princípio da igualdade, quanto à circunstância do peso relativo do sector dos cosméticos e dos produtos de higiene corporal na actividade do infarmed ser chamado a financiar um percentagem muito superior dessa actividade total, pois valem aqui as considerações já expendidas quanto à qualificação do tributo.

Com efeito, estarmos perante uma prestação pecuniária coactiva, sem carácter de sanção, exigida por um ente público com vista à realização de fins públicos.

(…) [O] produto da taxa em causa destina-se a financiar actividades que ao próprio Estado compete assegurar, sendo irrelevante o balanço entre receitas e despesas da entidade a que o tributo foi adjudicado pelo legislador, no caso o infarmed.

Igualmente não procede a invocação da desproporcionalidade da percentagem cobrada, pois como já anteriormente notado, o tributo em causa incide sobre o montante do volume de vendas dos produtos por ele abrangidos, deduzido do imposto sobre o valor acrescentado, sendo aferido em função da capacidade contributiva do contribuinte e não em função de qualquer ideia de proporcionalidade, típica da medida das taxas” (sublinhados nossos).

No mesmo sentido, veja-se o Tribunal Central Administrativo Sul, de 18.05.2010 (Processo: 03351/09):

“… também não foi ofendido o princípio da igualdade já que o mesmo postula que se trate de forma igual tudo o que é igual e de forma diversa o que é desigual sendo por isso que é indevida a pretensão da recorrente de que os produtos cosméticos e de higiene corporal sejam tratados do mesmo modo que são tratados os medicamentos, os dispositivos médicos e os produtos farmacêuticos homeopáticos.

É que, manifestamente, se tratam de produtos de natureza totalmente diversa e com sistemas de fiscalização e controlos diversos, que justificam, plenamente, a existência de várias taxas.

Numa outra perspectiva, não procede a invocação da violação do princípio da igualdade, fundada na circunstância do peso relativo do sector de cosméticos e dos produtos de higiene corporal na actividade do INFARMED ser chamado a financiar uma percentagem muito superior dessa actividade total já que estamos perante uma prestação pecuniária coactiva, sem carácter de sanção, exigida por uma entidade pública com vista à realização de fins públicas.

Uma vez que o produto da taxa se destina a financiar actividades que ao próprio Estado compete assegurar, é inócuo, nesse contexto, o balanço entre a receitas e despesas da entidade da INFARMED, inverificando-se a violação do princípio da igualdade, na vertente da proporcionalidade”.

Como tal, considerando que os produtos aos quais se aplica o tributo em causa são produtos distintos, com tratamentos distintos, em termos de regime jurídico, não se trata de situações iguais, pelo que as distinções, em termos de taxa concretamente aplicada a cada produto, não ofendem o princípio da igualdade, sendo, por isso, irrelevante apreciar tudo o alegado em torno das despesas do Infarmed e, bem assim, dos procedimentos levados a cabo pelo mesmo.

Por outro lado, atendendo à natureza desta prestação tributária, que, como já referido, apesar de designada de taxa, se revela, na verdade, como sendo um imposto, não releva a vertente da proporcionalidade invocada pela impugnante, nos termos já referidos nos Acórdãos citados, dado que a vertente da proporcionalidade é caraterística das taxas, onde está subjacente a existência de um sinalagma, mas não é caraterística dos impostos, nos quais tal sinalagma não existe. Daí que não releve o peso relativo das receitas e despesas do Infarmed, tal como decorre da jurisprudência já mencionada. Ainda que se perspetive o tributo em causa como uma contribuição financeira, há que sublinhar que no caso das contribuições financeiras se está perante uma equivalência que não é sinalagmática, em virtude da bilateralidade genérica que as carateriza (cfr. a este respeito o Acórdão n.º 539/2015, do Plenário do Tribunal Constitucional, de 20.10.2015). Assim, face a esta circunstância, o facto de o tributo em causa estar configurado como um tributo ad valorem não permite extrair a conclusão de que se encontra violado o princípio da equivalência, justamente em virtude da bilateralidade genérica a que se fez referência.

Chama-se ainda a este propósito à colação o já mencionado Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 14.09.2019 (Processo: 0946/16), onde se refere:

“Tratando-se a dita taxa de imposto, não se concebe a violação do princípio da equivalência que especificamente a taxas e contribuições financeiras respeita.

Ainda que se admita tratar-se de contribuição financeira, sempre se dirá estar bem definida a base de incidência e que, sendo várias as atribuições que têm de ser exercidas pelo INFARMED, conforme previsto no art. 3.º, b), do Dec.-Lei n.º 46/2012, também não ocorrerá a sua violação.

Aliás, quanto ao princípio da proporcionalidade, em relação com o da igualdade tributária, com assento genericamente previsto no art. 13.º nº1 da C.R.P. e cuja aplicação ao caso, assim, se aceita, consideramos que os ditos princípios não podem ser desassociados do princípio da capacidade contributiva que em concreto é manifestada pelo consumidor final que suporta economicamente a tributação”.

Face ao exposto, não assiste razão à Recorrente nesta parte.

III.J. Do erro de julgamento, por violação do art.º 7.º, n.º 1, da Diretiva 76/768/CEE do Conselho, de 27 de julho de 1976, e do art.º 28.º do Tratado CE

Considera igualmente a Recorrente que a sentença em crise padece de erro de julgamento, na medida em que o art.º 72.°, n.º 2, alínea b), da Lei n.º 3-B/2000, de 4 de abril, e o art.º 1.°, n.º 1, alínea a), do DL n.º 312/2002, de 20 de dezembro, ao instituírem um requisito adicional aplicável à comercialização dos produtos cosméticos e de higiene corporal, restringem a colocação no mercado dos produtos cosméticos que obedecem às prescrições da Diretiva 76/768/CEE do Conselho, de 27 de julho de 1976, e dos seus anexos por razões relacionadas com as exigências contidas nessa mesma Diretiva. Como tal, violam o art.º 7.º, n.º 1, da mencionada Diretiva 76/768/CEE (na redação em vigor). Entende igualmente ocorrer uma violação do art.º 28.º do Tratado CE, por se tratar de medida de efeito equivalente a uma restrição quantitativa à importação.

Vejamos.

O art.º 7.º da Diretiva 76/768/CEE do Conselho, de 27 de julho de 1976, determinava, na redação em vigor à data, que:

“1. Os Estados-membros não podem, por razões relacionadas com as exigências contidas na presente diretiva e seus anexos, recusar, proibir ou restringir a colocação no mercado dos produtos cosméticos que obedeçam às prescrições da presente diretiva e seus anexos.

2. Podem, todavia, exigir que as indicações previstas no n.º 1, alíneas b), c), d) e f), do artigo 6.º sejam redigidas, pelo menos, na sua língua ou línguas nacionais ou oficiais. Podem ainda exigir que as indicações previstas no nº 1, alínea g), do artigo 6.º sejam redigidas numa língua facilmente compreensível para os consumidores…”.

A questão que ora cumpre apreciar prende-se, pois, em aferir até que ponto a previsão de um tributo, como o ora em causa, colide com este art.º 7.º.

Antes de mais, refira-se que a Diretiva em causa visou harmonizar as legislações dos diversos Estados-Membros, respeitantes aos produtos cosméticos, tendo ínsitas preocupações que se prendem com a saúde pública, como decorre, desde logo, dos seus considerandos. É esse o princípio subjacente à Diretiva e, naturalmente, ao seu art.º 7.º, cuja proibição, em termos de restrições, tem de ser lida atendendo ao próprio alcance da Diretiva.

Implica esta circunstância que não resulte daí a proibição de que sejam estabelecidos tributos sobre os produtos cosméticos.

Aliás, saliente-se que a intervenção da União Europeia (UE), ao nível tributário, é limitada, porquanto prevalece o princípio da soberania fiscal de cada Estado-Membro. A harmonização fiscal não é encarada, ao nível da UE, como um fim em si mesmo, mas como um instrumento para efeitos de concretização do mercado único: ela deverá ter reflexos apenas nos termos indispensáveis ao bom funcionamento do mercado único, sendo unicamente um instrumento para atingir esse fim.

Logo, não se pode considerar que o disposto no art.º 7.º da Diretiva em causa colida com a existência de um tributo relacionado com os produtos a que a mesma respeita.

Sublinhe-se, aliás, que o próprio art.º 7.º, no seu n.º 1, refere que as restrições proibidas são as “… razões relacionadas com as exigências contidas na presente diretiva e seus anexos”, ou seja, limita o seu alcance ao âmbito da diretiva, isto é, às exigências que se prendem com controlos de qualidade e garantias de proteção da saúde pública.

Nem poderia ser outra a interpretação, porquanto o próprio art.º 93.º do Tratado CE (à época em vigor), determinava que “[o] Conselho, deliberando por unanimidade (...), adota as disposições relacionadas com a harmonização das legislações relativas aos impostos sobre o volume de negócios, aos IEC e a outros impostos indiretos, na medida em que essa harmonização seja necessária para assegurar o estabelecimento e o funcionamento do mercado interno ...” (sublinhado nosso). Ou seja, qualquer restrição que fosse feita, em termos de tributação, teria de cumprir os requisitos exigidos no Tratado, ao nível da harmonização das legislações, sendo que tal não surge evidenciado na diretiva em causa.

Não procede por outro lado o argumento da Recorrente de que tal taxa não existiria se não houvesse a harmonização em causa, dado que se trata de uma extrapolação feita, que carece de fundamentação. Com efeito, já existia, nos vários Estados-Membros, legislação sobre o assunto, que se pretendeu harmonizar, o que naturalmente não significa que, se não existisse harmonização comunitária, não existiria qualquer controlo dos produtos.

Logo, a previsão da taxa em causa não se encontra abrangida pela restrição contida no art.º 7.º da Diretiva 76/768/CEE, ao contrário do defendido pela Recorrente.

Quanto à eventual violação do então art.º 28.º (e 30.º) do Tratado CE, há que atentar desde logo na redação do mesmo, à época, segundo a qual:

“São proibidas, entre os Estados-Membros, as restrições quantitativas à importação, bem como todas as medidas de efeito equivalente”.

A este respeito, também a jurisprudência já se pronunciou, seguindo-se de perto o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 18.05.2010 [Processo: 03351/09 – no mesmo sentido, v. o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 25.05.2010 (Processo: 03899/09)], onde se entendeu o seguinte:

“[N]ão estamos perante qualquer restrição quantitativa à importação ou medida de efeito equivalente, como resulta da leitura dos normativos insertos nos artigos 28°e 30° do TCE (actuais artigos 34.° e 36.° do TUE).

Isso porque o tributo em apreço incide quer sobre produtos fabricados em Portugal, quer sobre os fabricados noutros países, incluindo os restantes membros da EU pois, como já visto, tem a natureza de um imposto sobre o consumo, repercutido no consumidor final.

É que o próprio mecanismo de aplicação e cobrança do tributo aponta para não poder constituir restrição quantitativa à importação ou de efeito equivalente, isso porque o mesmo é autoliquidado após as vendas.

Assim sendo, o tributo não viola os normativos dos artigos 23.°/l e 25.° do TCE, que proíbem aos Estados Membros a imposição de direitos de importação ou encargos de efeito equivalente nem uma imposição de carácter interno, nos termos do artigo 90.° do TCE.

Com efeito, a taxa em causa não consubstancia um direito aduaneiro ou um encargo de efeito equivalente, nem implica uma restrição quantitativa à importação ou medida equivalente, antes constitui um tributo que se aplica aos produtos cosméticos e de higiene corporal fabricados em Portugal como aos mesmos produtos fabricados noutros países, maxime os restantes Estados da União Europeia” (sublinhado nosso).

Como resulta do acórdão supracitado, o tributo em causa não colide com o referido art.º 28.º do Tratado CE, porquanto não se trata de qualquer medida restritiva à importação, uma vez que se aplica a quaisquer produtos, independentemente do país onde os mesmos sejam fabricados, sendo que os argumentos aventados pela Recorrente de modo algum evidenciam que haja uma oneração de uns produtos em relação aos outros.

Não se estando no âmbito do art.º 28.º do Tratado CE, em consequência não há lugar à apreciação das situações de exceção previstas no art.º 30.º do mesmo tratado.

Neste mesmo sentido, veja-se ainda o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 14.09.2019 (Processo: 0946/16), onde se refere:

“A tributação em causa, inserida no dito sistema geral, sujeita segundo os mesmos critérios, os produtos nacionais e os importados, o que tem sido admitido como aplicável pelos Estados-Membros – ponto 7 do acórdão do T.J.U.E. de 31-5-1979, Denkavit/França, proc. C-132/78, Recueil págs. 1934 e ss., e em https://eur-lex.europa.eu/legal-content/FR/TXT/?uri=CELEX:61978CJ0132.

Consideramos não ocorrer a invocada violação do Direito Comunitário”.

Refira-se ainda que carece de relevância o alegado pela Recorrente, no sentido de que o Tribunal a quo fala na repercussão do tributo, sem que tal decorra dos factos provados, uma vez que essa repercussão é possível, atento o regime legal vigente, sendo irrelevante se a Recorrente em concreto o fez ou não (e sendo, por isso, irrelevantes as eventuais vicissitudes casuísticas mencionadas nas alegações que possam dificultar a repercussão).

Como tal, não assiste razão à Recorrente.

Refira-se ainda que, a este respeito, se entende inexistirem dúvidas que justifiquem a formulação de reenvio prejudicial, considerando a jurisprudência sólida existente em torno da matéria e a que temos vindo a fazer referência.

Com efeito, atento o disposto no art.º 267.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia (TFUE), é possível submeter à apreciação do TJUE dois tipos de questões prejudiciais: as relacionadas com a interpretação dos Tratados e dos atos adotados pelas instituições, órgãos ou organismos da União (reenvio de interpretação) e as relacionadas com a validade dos atos adotados pelas instituições, órgãos ou organismos da União (reenvio de validade).

Como tal, os órgãos jurisdicionais dos diversos EM da UE, enquanto tribunais comuns da ordem jurídica da UE, podem e devem formular as necessárias questões prejudiciais pertinentes para a resolução de litígios.

A formulação de questões prejudiciais pode configurar-se, por outro lado, como facultativa ou obrigatória.

Assim, nos termos do art.º 267.º do TFUE: “[s]empre que uma questão desta natureza seja suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno, esse órgão é obrigado a submeter a questão ao Tribunal”[8].

Como tal, nos reenvios de interpretação, caso o processo seja passível de recurso ordinário, a formulação de questão prejudicial é facultativa.

A propósito do reenvio de interpretação, refere-se nas Recomendações à atenção dos órgãos jurisdicionais nacionais, relativas à apresentação de processos prejudiciais (2018/C 257/01):

“5.Os órgãos jurisdicionais dos Estados-Membros podem submeter uma questão ao Tribunal de Justiça sobre a interpretação ou a validade do direito da União se considerarem que uma decisão sobre essa questão é necessária ao julgamento da causa (ver artigo 267.o, segundo parágrafo, do TFUE). Um reenvio prejudicial pode revelar-se particularmente útil nomeadamente quando for suscitada perante o órgão jurisdicional nacional uma questão de interpretação nova que tenha um interesse geral para a aplicação uniforme do direito da União ou quando a jurisprudência existente não dê o necessário esclarecimento num quadro jurídico ou factual inédito”.

Ora, no caso dos autos, entende-se inexistir uma situação de dúvida que motive reenvio prejudicial ao TJUE, considerando tratar-se de questões já tratadas de forma sistemática na nossa jurisprudência.

Face ao exposto, não existe necessidade de proceder ao reenvio prejudicial.

III.K. Do erro de julgamento, no que se refere às normas aplicáveis em sede de procedimento inspetivo

Considera, por outro lado, a Recorrente que a decisão recorrida fez um errado enquadramento dos factos e uma errada interpretação das normas que regulam o procedimento de inspeção tributária levado a cabo pelo Infarmed, devendo ser tidas em conta não só as normas constantes do DL n.º 312/2002, de 20 de dezembro, da própria LGT e do CPPT aplicáveis à inspeção, como ainda as regras a que o próprio Infarmed se auto-vinculou no decurso do procedimento e ainda a normas constantes do RCPIT. Como tal, o procedimento de inspeção levado a cabo pelo Infarmed padece de vários vícios, que deverão determinar a sua anulação e a anulação dos atos de liquidação nos quais culminou, entre os quais os vícios de incompetência e falta de credenciação dos elementos que levaram a cabo a inspeção, de falta de notificação da nota de diligência, de ultrapassagem do prazo máximo de duração da inspeção, de falta de notificação do projeto de conclusões do relatório (e concomitante violação dos art.ºs 60.º da LGT e 60.º do RCPIT) e de falta de notificação do relatório final da inspeção.

Vejamos.

O RCPIT foi aprovado pelo DL n.º 413/98, de 31 de dezembro, e determina, no seu art.º 1.º, que “[o] presente diploma regula o procedimento de inspeção tributária, definindo, sem prejuízo de legislação especial, os princípios e as regras aplicáveis aos atos de inspeção”.

Nos termos do art.º 2.º do DL n.º 312/2002, de 20 de dezembro:

“O INFARMED pode determinar, em articulação com a Inspeção-Geral de Finanças, a realização das inspeções ou outras ações que se mostrem necessárias, com o objetivo de verificar e fiscalizar a correção dos elementos, documentos e declarações fornecidos para a determinação da taxa devida nos termos deste diploma”.

Refira-se a este propósito que a circunstância de esta competência inspetiva apenas resultar do DL n.º 312/2002, de 20 de dezembro, em nada põe em causa a ação inspetiva realizada, não obstante abranger anos anteriores, porquanto estamos perante normas de cariz procedimental, logo de aplicação imediata.

Assim, face ao exposto, existe uma norma específica, ao nível da realização de ações inspetivas, relativas ao tributo em causa, constituindo lei especial, que prevalece sobre a lei geral, consubstanciada no RCPIT.

Logo, não é aplicável, in casu, ao contrário do alegado pela Recorrente, o RCPIT, em termos de determinação da entidade competente para a realização da atividade inspetiva – não obstante a aplicação do referido regime, no que toca à própria tramitação do procedimento [aplicável por força do disposto na LGT (cfr. o seu art.º 54.º), visto que a LGT é aplicável à generalidade dos tributos (cfr. art.º 1.º)], dado que não há regras específicas quanto a essa parte (e nesta parte distanciamo-nos, pois, do defendido pelo Tribunal a quo).

Por outro lado, trata-se de uma competência articulada com a IGF (que não se confunde com a Inspeção Tributária da então DGCI). Sendo certo que o DL n.º 312/2002, de 20 de dezembro, não determina os termos em que tal articulação é feita, o Infarmed, ao ter comunicado a realização das ações inspetivas a levar a efeito, a tal inspeção-geral, evidenciou a existência da mencionada articulação [cfr. facto N)].

Portanto, no que toca à competência, não assiste razão à Recorrente.

Vejamos então as demais vicissitudes apontadas ao procedimento de inspeção.

Da análise da matéria de facto provada, verifica-se, efetivamente, que há vários passos do procedimento definidos no RCPIT que não foram seguidos pelo Infarmed, sendo que, no entanto, nem todos configuram irregularidades passíveis de pôr em causa a legalidade das liquidações.

Não obstante, cumpre desde logo, pela importância que tal formalidade assume em sede de procedimento inspetivo, analisar o alegado quanto à violação do direito de audição.

O Tribunal a quo considerou que, in casu, face ao disposto no n.º 2 do art.º 60.º da LGT, a audição prévia se encontrava dispensada, uma vez que as liquidações tiveram por base as declarações e os elementos fornecidos pela Recorrente e pelo seu técnico oficial de contas.

Desde já se adiante que não se acompanha o entendimento vertido na sentença.

Vejamos então.

O direito de audição prévia, ao nível tributário, encontra-se previsto no art.º 60.º da LGT, consagrando, ao nível ordinário, o desiderato constitucional consubstanciado no direito de participação dos cidadãos na formação das decisões administrativas que lhes disserem respeito, consagrado no art.º 267.°, n.º 4, da CRP.

“A audição prévia do contribuinte visa garantir a defesa dos interesses destes perante o Fisco e a valoração dos factos tributáveis de acordo com o princípio da verdade material. Consequentemente, o seu único pressuposto positivo é a previsão de uma decisão da Administração fiscal desfavorável aos interesses do contribuinte. Perante tal hipótese, quis o legislador que fosse dada ao contribuinte a possibilidade de criticar o entendimento já assumido pela Administração”[9].

Nos termos do art.º 60.º da LGT, na redação à época aplicável:

“1 - A participação dos contribuintes na formação das decisões que lhes digam respeito pode efetuar-se, sempre que a lei não prescrever em sentido diverso, por qualquer das seguintes formas:

a) Direito de audição antes da liquidação;

b) Direito de audição antes do indeferimento total ou parcial dos pedidos, reclamações, recursos ou petições;

c) Direito de audição antes da revogação de qualquer benefício ou ato administrativo em matéria fiscal;

d) Direito de audição antes da decisão de aplicação de métodos indiretos, quando não haja lugar a relatório de inspeção;

e) Direito de audição antes da conclusão do relatório da inspeção tributária.

2 - É dispensada a audição no caso de a liquidação se efetuar com base na declaração do contribuinte ou a decisão do pedido, reclamação, recurso ou petição lhe for favorável”.

Por seu turno, o RCPIT também determina a obrigatoriedade de audição prévia, nos termos do seu art.º 60.º.

In casu, não houve qualquer notificação da Recorrente para o exercício do direito de audição (nem, rigorosamente, sequer de qualquer projeto de relatório ou de relatório inspetivo).

Ora, ao contrário do decidido, não se trata de uma situação enquadrável no n.º 2 do art.º 60.º da LGT. Com efeito, esta disposição legal respeita a somente aos casos em que as liquidações se baseiam em declarações do contribuinte, o que não é o caso. Aliás, precisamente por a Recorrente não declarar a taxa devida é que foi efetuada a inspeção. Coligir elementos junto da entidade inspecionada e liquidar tributo com base em tais elementos não se enquadra no referido n.º 2 do art.º 60.º, sendo sim correções técnicas.

Logo, deveria ter sido ouvida a Recorrente, em sede de audição prévia.

Ora, o não cumprimento desta formalidade essencial faz com que as liquidações em causa padeçam de vício de forma.

Por outro lado, não se considera que esta preterição de formalidade legal se degrade em formalidade não essencial (designadamente por força da teoria do aproveitamento do ato).

A este respeito, em situação muito similar à dos presentes autos, pronunciou-se o Pleno da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, em Acórdão de 15.10.2014 (Processo: 01374/13), no qual se refere:

“Na situação de facto a que se refere o acórdão recorrido, deve ou não considerar-se que se impunha a audiência da Contribuinte previamente às liquidações?

(…) Como resulta do que deixámos já dito, as liquidações não podem considerar-se efectuadas «com base na declaração do contribuinte» para os efeitos previstos no n.º 2 do art. art. 60.º da LGT.

Desde logo, porque a Contribuinte não apresentou quaisquer declarações para efeitos de autoliquidação do tributo em causa. Aliás, o próprio INFARMED o reconheceu, afirmando textualmente nos ofícios remetidos à ora Recorrente para notificá-la das liquidações que, «[f]ace à não apresentação das declarações de vendas de produtos cosméticos e de higiene corporal e à não autoliquidação e pagamento a este Instituto da taxa sobre a comercialização dos mesmos produtos, procedeu o INFARMED à liquidação oficiosa da mesma taxa» [cfr. alínea A) dos factos provados que foram aditados pelo Tribunal Central Administrativo Sul].

Aliás, se a ora Recorrente tivesse enviado as declarações e procedido à autoliquidação do tributo (taxa de comercialização de produtos de saúde), mal se compreenderia que o INFARMED a tivesse notificado nos termos em que o fez: dando-lhe conhecimento das liquidações oficiosas da taxa de comercialização de produtos cosméticos e de higiene corporal, indicando o volume de vendas tido por referência e a taxa aplicável (Nos termos do disposto no art. 72.º da Lei n.º 3-B/2000, de 4 de Abril (Orçamento do Estado para 2000), a taxa sobre a comercialização dos produtos de saúde é de 0,4% para os “produtos farmacêuticos homeopáticos, dispositivos médicos não activos e dispositivos médicos para diagnóstico in vitro” e de 2% para os “cosméticos e produtos de higiene corporal”.) e concedendo-lhe prazo para pagamento [cfr. os factos provados sob os n.ºs 11 a 48].

Por certo, teria o INFARMED optado pela cobrança coerciva das dívidas, extraindo de imediato os pertinentes títulos executivos – certidões de dívida – e com base nos mesmos providenciado por que fosse instaurada execução fiscal para cobrança do montante autoliquidado mas não entregue. Tanto mais que o art. 36.º, n.º 3, da LGT («A administração tributária não pode conceder moratórias no pagamento das obrigações tributárias, salvo nos casos expressamente previstos na lei».) proíbe a concessão de moratórias no pagamento das obrigações tributárias, sendo que a concessão de moratória em casos não autorizados por lei pode mesmo gerar a responsabilidade subsidiária da pessoa que a conceder [cfr. art. 85.º, n.º 3 («A concessão da moratória ou a suspensão da execução fiscal fora dos casos previstos na lei, quando dolosas, são fundamento de responsabilidade tributária subsidiária».), do CPPT].

Na verdade, se tivesse havido declaração (e autoliquidação), como afirma a Recorrida, a dívida seria já certa e exigível, não se vislumbrando motivo para que ela viesse notificar a Contribuinte nos termos em que o fez, que apenas são compatíveis com a prática de liquidações oficiosas, ou seja, de liquidações efectuadas na sequência da verificação em sede inspectiva da omissão do dever declarativo por parte da Contribuinte e sendo a matéria tributável fixada com base nos elementos colhidos na contabilidade desta.

Por outro lado, não podemos acompanhar a tese que equipara um registo contabilístico à declaração. Na verdade, declarar, é sinónimo de «manifestar de modo claro e terminante; patentear, tornar conhecido dar a saber» (Cfr. “declarar”, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, http://www.priberam.pt/dlpo/declarar [consultado em 06-10-2014].) e as declarações, que constituem uma obrigação acessória dos sujeitos passivos [cfr. art. 39.º, n.º 2, da LGT («São obrigações acessórias do sujeito passivo as que visam possibilitar o apuramento da obrigação de imposto, nomeadamente a apresentação de declarações, a exibição de documentos fiscalmente relevantes, incluindo a contabilidade ou escrita, e a prestação de informações».)] e que, em regra, estão na origem do procedimento de liquidação [cfr. art. 59.º, n.º 1, do CPPT («O procedimento de liquidação instaura-se com as declarações dos contribuintes ou, na falta ou vício destas, com base em todos os elementos de que disponha ou venha a obter a entidade competente».)], só relevam para o apuramento da matéria tributável se efectuadas nos termos legais e desde que permitam à AT verificar a regularidade da situação tributária do sujeito passivo [cfr. art. 59.º, n.º 2, do CPPT («O apuramento da matéria tributável far-se-á com base nas declarações dos contribuintes, desde que estes as apresentem nos termos previstos na lei e forneçam à administração tributária os elementos indispensáveis à verificação da sua situação tributária».)].
Não pode, pois, considerar-se como declaração a mera inscrição contabilística (certa ou errada, não releva para este efeito) de determinados montantes a título de volume de vendas. Porque essa inscrição contabilística não foi transcrita para uma declaração e porque a ora Recorrente nunca preencheu e entregou os documentos por que deveria proceder à entrega do tributo ao INFARMED, não pode considerar-se que tenha efectuado a autoliquidação do imposto.

A autoliquidação exigirá sempre uma declaração, que não pode ser dispensada por qualquer registo contabilístico. Se é certo que as declarações devem basear-se nos registos contabilísticos (cfr. art. 59.º, n.º 2, do CPPT), estes não substituem aquelas.

Um conceito de declaração ou de autoliquidação do tributo que se baste com uma mera inscrição contabilística, sem qualquer formalização, exteriorização, declaração, comunicação, divulgação ou transmissão, seja a terceiros seja às próprias autoridades fiscais, não tem, qualquer apoio na letra ou no espírito de qualquer lei fiscal.

O que sucedeu no caso sub judice foi que o INFARMED, tendo verificado a existência de factos tributários não declarados – as vendas de produtos cosméticos e de higiene corporal –, instaurou oficiosamente o procedimento de liquidação, como lhe é imposto pelo n.º 7 do art. 59.º do CPPT («Sempre que a entidade competente tome conhecimento de factos tributários não declarados pelo sujeito passivo e do suporte probatório necessário, o procedimento de liquidação é instaurado oficiosamente pelos serviços competentes».). No âmbito desse procedimento, serviu-se dos registos contabilísticos do sujeito passivo para avaliar a matéria tributável [cfr. art. 81.º, n.º 1 («A matéria tributável é avaliada ou calculada directamente segundo os critérios próprios de cada tributo, só podendo a administração tributária proceder a avaliação indirecta nos casos e condições expressamente previstos na lei».), 82.º, n.º 1 («A competência para a avaliação directa é da administração tributária e, nos casos de autoliquidação, do sujeito passivo».), 83.º, n.º 1 («A avaliação directa visa a determinação do valor real dos rendimentos ou bens sujeitos a tributação».) e 84.º, n.ºs 1 e 3 («1 - A avaliação dos rendimentos ou valores sujeitos a tributação baseia-se em critérios objectivos.

[…]

3 - A fundamentação da avaliação contém obrigatoriamente a indicação dos critérios utilizados e a ponderação dos factores que influenciaram a determinação do seu resultado».), da LGT] e, a final, procedeu à liquidação oficiosa da taxa de comercialização de produtos cosméticos e de higiene corporal que considerou ser devida.

Concluímos, pois, que não estamos perante uma situação de autoliquidação por apresentação da declaração, como sustentou a Recorrida, mas de liquidação oficiosa, o que significa que não pode considerar-se, para efeitos do n.º 2 do art. 60.º da LGT que as liquidações foram efectuadas com base na declaração do contribuinte.

Não será, pois, ao abrigo daquela disposição legal que poderá justificar-se a dispensa da audiência prévia à liquidação.

Mas será que, reconhecendo-se embora a necessidade daquela audiência, se deverá concluir, com o acórdão recorrido, que a omissão dessa formalidade se degradou em não essencial, na medida em que nunca o resultado poderia ser outro? Será que, como afirmou o acórdão recorrido, «a liquidação oficiosa do tributo em exame foi efectuada com base nas declarações e registos contabilísticos do contribuinte, pelo que a audição prévia à nota de liquidação não permitiria modificar a determinação da matéria colectável, assente no volume de vendas, tal como declarada pelo contribuinte; perante o volume de vendas mensal certificado pelo contribuinte, através dos seus registos, aceite pelo Infarmed e não impugnado através da presente impugnação, não resta outra alternativa à AF [leia-se ao INFARMED] que não seja o cômputo do tributo mensal devido de acordo com o referido volume mensal de vendas, através da aplicação da taxa prevista na lei; trata-se, pois, de um acto de liquidação vinculado, quanto aos seus termos, donde resulta o carácter não essencial ou inoperante da imputada preterição da audição prévia, cuja arguição se oferece como claudicante».

Salvo o devido respeito, não podemos concordar.

É certo que a doutrina e a jurisprudência têm vindo a acolher o princípio do aproveitamento do acto, nos termos do qual se admite que a falta de audiência dos interessados, quando obrigatória, possa não conduzir à anulação do acto final do procedimento (in casu a liquidação), que é a sua consequência de acordo com o previsto no art. 135.º do Código do Procedimento Administrativo («São anuláveis os actos administrativos praticados com ofensa dos princípios ou normas jurídicas aplicáveis para cuja violação se não preveja outra sanção».). Essa omissão nem sempre conduzirá à anulação, «designadamente não a justificando nos casos em que se apure no processo contencioso que, se ela tivesse sido realizada, o interessado não teria possibilidade de apresentar elementos novos nem deixou de pronunciar-se sobre questões relevantes para determinar o conteúdo da decisão final» (DIOGO LEITE DE CAMPOS, BENJAMIM SILVA RODRIGUES e JORGE LOPES DE SOUSA, Lei Geral Tributária Anotada e Comentada, Encontro da Escrita, 4.ª edição, anotação 15 ao art. 60.º, págs. 515 e segs. ).

No entanto, no caso sub judice não pode afirmar-se que a audiência prévia da ora Recorrente não permitiria modificar a decisão final, nem sequer, contrariamente ao afirmado pelo acórdão recorrido, que não permitiria modificar a matéria colectável. Desde logo, porque, contrariamente ao que parece supor-se no acórdão recorrido, o direito de audiência não tem como única finalidade a possibilidade de participar na fixação da matéria colectável, antes podendo essa participação (que o direito de audiência visa assegurar) assumir muitos outros domínios da formação da decisão final. Mas, ainda que assim não se entenda, a própria fixação da matéria colectável não pode dar-se como estabilizada pelo facto de ter sido efectuada com base em elementos extraídos da contabilidade da Contribuinte (vimos já que o não foi com base em declaração da mesma). Na verdade, só pode falar-se em estabilização da matéria colectável quando esta seja fixada em procedimento autónomo (v.g., os procedimentos de fixação do valor patrimonial tributário de imóveis para efeitos de IMI e de IMT), no qual tenha sido respeitado o direito de audiência, e que fica sujeito a impugnação judicial autónoma [cfr. art. 134.º, n.ºs 1 e 2, do CPPT («1. O actos de fixação dos valores patrimoniais podem ser impugnados, no prazo de 90 dias após a sua notificação ao contribuinte, com fundamento em qualquer ilegalidade.

2. Constitui motivo de ilegalidade, para além da preterição de formalidades legais, o erro de facto ou de direito na fixação».) e art. 86.º, n.º 1, da LGT («A avaliação directa é susceptível, nos termos da lei, de impugnação contenciosa directa».)], o que não é o caso.

Por outro lado, salvo o devido respeito, o argumento de que a liquidação não foi impugnada judicialmente com fundamento em erro na quantificação da matéria colectável em nada releva para efeito de averiguar da degradação da omissão do direito de audiência em formalidade não essencial. Não será pelos fundamentos invocados em sede de impugnação contenciosa do acto que se poderá aferir da relevância ou não do exercício do direito de audiência sobre o conteúdo decisório do acto, mas antes pela sua susceptibilidade de influir sobre o conteúdo decisório do acto, motivo por que aquele direito não poderá deixar de ser assegurado sempre que não seja de afastar a possibilidade de a decisão do procedimento tributário ser influenciada pela intervenção do interessado. Em todo o caso, sempre se dirá que a Recorrente invocou a falta de fundamentação das liquidações no que à quantificação se refere, o que sempre a impediria de impugnar a quantificação da matéria colectável.

Como ficou dito no acórdão da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo de 15 de Fevereiro de 2007, proferido no processo n.º 1071/06 (Publicado no Apêndice ao Diário da República de 14 de Fevereiro de 2008

(https://dre.pt/application/dir/pdfgratisac/2007/32210.pdf), págs. 386 a 392, também disponível em

http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/3d268a41bfe236798025728f0050532e?OpenDocument.), «[à] luz de tal princípio [do aproveitamento do acto], deverá entender-se que não se justifica a anulação, apesar da preterição do direito de audição, nos casos em que se apure no processo contencioso que, se a audiência tivesse sido realizada, o interessado não teria possibilidade de apresentar elementos novos nem de se pronunciar sobre questões relevantes para determinar o conteúdo da decisão final sobre as quais não tivesse já tido oportunidade de se pronunciar. Mas, apenas nessas situações em que não se possam suscitar quaisquer dúvidas sobre a irrelevância do exercício do direito de audiência sobre o conteúdo decisório do acto pode ser efectuada aplicação daquele princípio».

Ora, na situação sub judice, sendo certo que o volume de vendas foi recolhido da contabilidade da ora Recorrente, a verdade é que esta, até à fase da liquidação, poderia pronunciar-se, não só sobre a quantificação da matéria colectável (apurada com referência ao volume de vendas apurado com base na sua contabilidade), como também sobre muitas outras questões de facto e de direito, algumas das quais as suscitadas em sede de impugnação judicial, susceptíveis de influir na decisão do procedimento.

Note-se, finalmente, que apesar da aplicação do princípio do aproveitamento do acto implicar necessariamente um juízo a posteriori, este deve ser um juízo de prognose póstuma, pelo que não pode nem deve ser influenciado pela improcedência dos demais vícios (para além da preterição do direito de audiência) invocados no processo em que o acto foi impugnado, sob pena de esvaziamento do direito de participação e de impossibilidade prática de verificação do vício resultante da preterição desse direito”.

Mais recentemente e no mesmo sentido, veja-se o Acórdão deste TCAS, de 09.07.2020 (Processo: 584/07.2BELSB).

Como tal, assiste razão à Recorrente nesta parte, o que comporta a revogação da sentença recorrida e a anulação dos atos impugnados, ficando prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas (incluindo a que resultou da omissão de pronúncia mencionada em III.C.).

No tocante à responsabilidade pelo pagamento das custas, atento o disposto no art.º 527.º do CPC, no caso do recurso do despacho de 22.04.2009, a mesma cabe à Recorrente.

Já no que respeita ao recurso da sentença, saindo vencida a Recorrida é a mesma responsável pelas custas em ambas as instâncias (art.º 527.º do CPC), sem prejuízo de não haver lugar ao pagamento de taxa de justiça na presente instância, por não ter contra-alegado (art.º 7.º, n.º 2, do Regulamento das Custas Processuais).

Cumpre ainda, atento o valor dos autos, considerar o disposto no art.º 6.º, n.º 7, do RCP.

Assim, nos termos desta disposição legal, “[n]as causas de valor superior a (euro) 275 000, o remanescente da taxa de justiça é considerado na conta a final, salvo se a especificidade da situação o justificar e o juiz de forma fundamentada, atendendo designadamente à complexidade da causa e à conduta processual das partes, dispensar o pagamento”.

No caso, considerando quer a conduta das partes, que se revelou sem mácula, quer a circunstância de diversas das questões suscitadas já terem sido tratadas na jurisprudência, entende-se dever haver lugar à dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça, prevista no art.º 6.º, n.º 7, do RCP.

IV. DECISÃO

Face ao exposto, acorda-se em conferência na 2.ª Subsecção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:
a) Negar provimento ao recurso do despacho de 22.04.2009;
b) Conceder provimento ao recurso da sentença e, em consequência:
b.1. Declarar nula a sentença, por omissão de pronúncia, no que respeita à ilegalidade dos juros compensatórios;
b.2. Revogar a sentença recorrida e, em consequência, julgar a impugnação procedente, com a decorrente anulação dos atos impugnados;
c) Custas pela Recorrente, quanto ao recurso do despacho de 22.04.2009, e pela Recorrida, quanto ao recurso da sentença e em ambas as instâncias, com dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça, na parte em que exceda os 275.000,00 Eur.;
d) Registe e notifique.


Lisboa, 28 de janeiro de 2021


[A relatora consigna e atesta que, nos termos do disposto no art.º 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13 de março, aditado pelo art.º 3.º do DL n.º 20/2020, de 01 de maio, têm voto de conformidade com o presente Acórdão os restantes Desembargadores integrantes da formação de julgamento, os Senhores Desembargadores António Patkoczy e Mário Rebelo]

Tânia Meireles da Cunha


___________________________
[1] Cfr. António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5.ª Ed., Almedina, Coimbra, 2018, p. 169.
[2] V., a título exemplificativo, o Acórdão deste TCAS, de 27.04.2017 (Processo: 638/09.0BESNT) e ampla doutrina e jurisprudência no mesmo mencionada.
[3] V. o Acórdão do Pleno da Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo, de 15.09.2011 (Processo: 0505/10). V. igualmente os Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo, de 25.11.2015 (Processo: 0839/15), de 12.02.2015 (Processo: 0373/14), de 29.01.2015 (Processo: 01311/13), de 29.01.2014 (Processo: 0663/13), do Tribunal Central Administrativo Norte, de 28.09.2017 (Processos: 00203/14.0BEMDL e 00193/14.0BEMDL), de 12.07.2013 (Processo: 00127/07.8BEBRG) e de 30.11.2016 (Processo: 00109/14.3BEMDL) e o do Tribunal Central Administrativo Sul, de 12.05.2016 (Processo: 09475/16) e de 14.11.2019 (Processo: 566/13.5BELLE).
[4] Manual de Direito Fiscal, Almedina, Coimbra, 2014, p. 223.
[5] Constituição da República Portuguesa, 3.ª Edição revista, Coimbra Editora, Coimbra, 1993, p. 680.
[6] Constituição da República Portuguesa, Vol. I, 4.ª Edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, pp. 336 e 337.
[7] Constituição da República Portuguesa, Vol. I, 4.ª Edição, cit., p. 1001.
[8] Cfr., no entanto, sobre o reenvio de validade, o Acórdão de 22 de outubro de 1987, C-314/95, Foto-Frost, EU:C:1987:452.
[9] Pedro Machete, «A Audição Prévia do Contribuinte», Problemas fundamentais do Direito tributário, Vislis, Lisboa, 1999, p. 322.