Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:11155/14
Secção:CA - 2º. JUÍZO
Data do Acordão:12/04/2014
Relator:PAULO PEREIRA GOUVEIA
Descritores:DIREITOS DOS CONSUMIDORES; RESPONSABILIDADE CIVIL; JURISDIÇÃO
Sumário:A Lei nº 24/96 não se aplica às atividades não económicas do Estado, nomeadamente à atividade jurisdicional pública ou à atividade judiciária.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Central Administrativo Sul:

I. RELATÓRIO

· A…… intentou

Ação administrativa comum, sob a forma de ação popular, contra

· Estado Português.

Pediu ao T.A.C. de Loulé o seguinte:

1- Que o Estado seja declarado responsável pelo atraso no andamento e conclusão do processo, a correr termos pelo Tribunal Judicial de Vila Real de Santo António, sob o nº 106/93 e pelo atraso no andamento e conclusão do processo que corre atualmente na 6.ª Vara Cível de Lisboa sob o nº 6480/04.8TVLSB,

2- Condenação do réu a pagar aos seus associados o montante dos créditos que reclamaram no primeiro processo referido, no montante de €15.503.745.33, e a pagar aos seus associados, lesados no seu direito de propriedade sobre o mobiliário e equipamento dos apartamentos de que tinham a posse, o montante total de €216.750,201,

3- Que o Estado seja declarado responsável pela violação dos direitos fundamentais à liberdade e segurança e à inviolabilidade do domicílio de M…... O…… e pela violação dos direitos do menor J….. à não sujeição a intromissões arbitrárias ou ilegais na sua vida privada, na sua família e no seu domicílio, com o consequente pagamento de indemnização, cujo quantitativo deixa ao prudente arbítrio do Tribunal.

*

Por saneador de 21-4-2013, o referido tribunal decidiu julgar procedente a exceção dilatória de ilegitimidade ativa e, em consequência, absolver o réu Estado Português da instância.

*

Inconformada, a a. recorre para este Tribunal Central Administrativo Sul, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:

*

O recorrido contra-alegou, concluindo:

(OMISSIS)

*

Cumpridos os demais trâmites processuais, importa agora apreciar e decidir em conferência. Teremos presente o seguinte: (i) o primado do Estado democrático e social de Direito material, num contexto de uma vida política e económica submetida ao Bem Comum e à suprema e igual Dignidade de cada pessoa; (ii) os valores ético-jurídicos do ponto de vista da nossa Lei Fundamental e os princípios ou máximas estruturais vigentes, como os da Juridicidade, da Igualdade e da Proporcionalidade.

*

QUESTÕES A RESOLVER

Os recursos, que devem ser dirigidos contra a decisão do tribunal a quo e seus fundamentos, têm o seu âmbito objectivo delimitado pelo recorrente nas conclusões da sua alegação de recurso, alegação que apenas pode incidir sobre as questões que tenham sido apreciadas pelo tribunal recorrido (ou que devessem ser aí oficiosamente conhecidas).

Temos, pois, de apreciar o seguinte contra a decisão do tribunal a quo:

-erro de julgamento de direito quanto à legitimidade processual popular da autora.

*

II. FUNDAMENTAÇÃO

II.1. FACTOS PROVADOS segundo o tribunal recorrido

(OMISSIS)

(OMISSIS)

*

Continuemos.

II.2. APRECIAÇÃO DO RECURSO

Aqui chegados, há melhores condições para se compreender o recurso e para, de modo facilmente sindicável, apreciarmos o seu mérito.

Vejamos, pois.

A)

Os pedidos formulados na p.i. são de responsabilidade civil extracontratual do Estado.

O tribunal a quo considerou que a ora A. não detinha legitimidade processual como autor popular para vir a juízo formular tais pedidos, com base nas causas de pedir descritas na p.i.

Daí a absolvição da instância (artigos 288.º, n.º1, alínea d), e 494.º, alínea e), do CPC).

Referiu o seguinte, i.a.:

«Assim sendo, independentemente da questão da qualificação da autora como associação de consumidores, certo é que a pretensão deduzida na presente ação não se prende com a defesa dos direitos dos seus associados enquanto consumidores. Com efeito, nos termos do artigo 2.0 da Lei n.º24/96, de 31 de Julho, “1. Considera-se consumidor todo aquele… Ora, os Tribunais não prestam um serviço na aceção da norma citada, antes administram a justiça em nome do povo e asseguram, através da resolução dos litígios que são submetidos à sua apreciação, os direitos das pessoas, pelo que, na sua relação com os Tribunais, os cidadãos não surgem como consumidores de um serviço. Nesta medida, impõe-se concluir que a presente ação não visa assegurar os direitos dos associados da autora enquanto consumidores… pelo que não estamos perante uma ação que caiba no âmbito de aplicação do disposto no artigo 9 n2 do CPTA ou, por força da remissão operada por esta norma, no âmbito da Lei 83/95, de 31 de Julho, e da Lei 24/96, de 31 de Julho»;

«… a presente ação não consubstancia uma ação inibitória para efeitos da norma citada…»;

«…a presente ação não se enquadra na ação popular administrativa prevista no artigo 12, n1 da Lei 83/95, de 31 de Agosto, sendo certo que, reitere-se, não está em causa nos autos a violação de qualquer direito dos consumidores…»;

«A presente ação não se enquadra na ação popular administrativa prevista no artigo 12, n 1, da Lei 83/95, de 31 de Agosto, sendo certo que, reitere-se, não está em causa nos autos a violação de qualquer direito dos consumidores, elencados no artigo 3 da Lei 24/96, de 31 de Julho, ou a defesa de qualquer outro interesse elencado no artigo 1 da primeira lei referida».

B)

«É conferido a todos, pessoalmente ou através de associações de defesa dos interesses em causa, o direito de ação popular nos casos e termos previstos na lei, incluindo o direito de requerer para o lesado ou lesados a correspondente indemnização, nomeadamente para (artigo 52º/3 da Constituição):

«a) Promover a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infrações contra a saúde pública, os direitos dos consumidores, a qualidade de vida, a preservação do ambiente e do património cultural;

«b) Assegurar a defesa dos bens do Estado, das regiões autónomas e das autarquias locais».

Portanto, a Constituição remete expressamente para a lei a definição dos casos e dos termos da ação popular.

C)

Independentemente de ter interesse pessoal na demanda, qualquer pessoa, bem como as associações e fundações defensoras dos interesses em causa têm legitimidade para propor e intervir, nos termos previstos na lei, em processos principais e cautelares destinados à defesa de valores e bens constitucionalmente protegidos (artigo 9º/2 CPTA).

D)

O direito de ação popular para a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infrações previstas no n.º 3 do artigo 52.º da Constituição está regulado na Lei 83/95. Esta lei defende, designadamente, o ambiente e a proteção do consumo de bens e serviços (artigo 1º).

Ora, no caso presente, não é este o ponto principal em que assenta o pedido.

São titulares do direito de ação popular, v.g., as associações e fundações defensoras dos interesses previstos no artigo 1º da Lei cit., independentemente de terem ou não interesse direto na demanda (artigo 2º/1).

Constituem requisitos da legitimidade ativa das associações e fundações a personalidade jurídica e o incluírem expressamente nas suas atribuições ou nos seus objetivos estatutários a defesa dos interesses em causa no tipo de ação de que se trate (artigo 3º).

A ação popular administrativa compreende, v.g., a ação para defesa dos interesses referidos no artigo 1.º (artigo 12º/1), onde se pode incluir qualquer pedido formulável ante os tribunais administrativos nos âmbitos concretizados pelo artigo 4º do ETAF; mas tem um regime especial de indeferimento liminar (cfr. o artigo 13º).

E)

A defesa dos consumidores está regulada na Lei 24/96 atualizada.

É assegurado o direito de ação inibitória destinada a prevenir, corrigir ou fazer cessar práticas lesivas dos direitos do consumidor consignados na cit. lei, que, nomeadamente (artigo 10º/1):

a) Atentem contra a sua saúde e segurança física;

b) Se traduzam no uso de cláusulas gerais proibidas;

c) Consistam em práticas comerciais expressamente proibidas por lei.

Além disso, o consumidor tem direito à indemnização dos danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes do fornecimento de bens ou prestações de serviços defeituosos (artigo 12º/1).

A legitimidade processual para as duas ações acabadas de referir (inibitórias e de indemnização) também assiste às associações de consumidores, nos termos da Lei n.º 83/95 (artigo 13º/b) da Lei 24/96).

Considera-se consumidor todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios. Consideram-se incluídos no âmbito daquela lei os bens, serviços e direitos fornecidos, prestados e transmitidos pelos organismos da Administração Pública, por pessoas coletivas públicas, por empresas de capitais públicos ou detidos maioritariamente pelo Estado, pelas Regiões Autónomas ou pelas autarquias locais e por empresas concessionárias de serviços públicos (artigo 2º).

Ora, é notório que o caso da justiça estadual, da tutela jurisdicional efetiva pelo Estado, não é uma atividade económica, nem visa a obtenção de benefícios para o profissional que a exerce. Este é o ponto essencial para resolver o presente dissenso. Dali se conclui que a Lei 24/96 não tem aplicação no caso dos atrasos da Justiça estatal.

O consumidor (definido no artigo 2º cit.) tem direito específico, v.g., a qualidade dos bens e serviços e a uma justiça acessível e pronta como previsto no artigo 14º(1) (artigo 3º). E daqui não consta a responsabilidade civil por atrasos na justiça estatal.

F)

Enfim, certo é que não estamos ante uma ação inibitória. Trata-se de uma das ações de responsabilidade civil abstratamente previstas no artigo 12º/1 da Lei 24/96.

Mas, no caso concreto, os associados da autora não são consumidores do serviço público prestado pelos tribunais, pela simples razão de que a Jurisdição não é uma atividade económica como previsto nos citados artigos 2º e 12º/1 da Lei 24/96, para onde remete o nº 3 do artigo 52º da Constituição e o nº 2 do artigo 9º do CPTA.

Em síntese: a Lei nº 24/96, autorizada pela Constituição, expressamente não se aplica às atividades não económicas do Estado, nomeadamente à atividade jurisdicional pública ou à atividade judiciária.

Assim, a ora autora não está aqui a representar “consumidores” (de justiça), pois que os interesses prosseguidos na p.i. por esta associação de consumidores não se integram nos interesses protegidos pela Lei nº 24/96.

*

III. DECISÃO

Por tudo quanto vem de ser exposto e de harmonia com o disposto nos artigos 202º e 205º da Constituição, acordam os Juizes do Tribunal Central Administrativo Sul em, com fundamentos parcialmente distintos, negar provimento ao recurso e confirmar o decidido.

Custas a cargo da recorrente.

(Acórdão processado com recurso a meios informáticos, tendo sido revisto e rubricado pelo relator)

Lisboa, 4-12-2014

Paulo H. Pereira Gouveia

Catarina Jarmela

Carlos Araújo

1)Artigo 14º - Direito à proteção jurídica e direito a uma justiça acessível e pronta
1 - Incumbe aos órgãos e departamentos da Administração Pública promover a criação e apoiar centros de arbitragem com o objetivo de dirimir os conflitos de consumo.
2 - É assegurado ao consumidor o direito à isenção de preparos nos processos em que pretenda a proteção dos seus interesses ou direitos, a condenação por incumprimento do fornecedor de bens ou prestador de serviços, ou a reparação de perdas e danos emergentes de factos ilícitos ou da responsabilidade objetiva definida nos termos da lei, desde que o valor da ação não exceda a alçada do tribunal judicial de 1.ª instância.
3 - Os autores nos processos definidos no número anterior ficam isentos do pagamento de custas em caso de procedência parcial da respetiva ação.
4 - Em caso de decaimento total, o autor ou autores intervenientes serão condenados em montantes, a fixar pelo julgador, entre um décimo e a totalidade das custas que normalmente seriam devidas, tendo em conta a sua situação económica e a razão formal ou substantiva da improcedência.