Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1207/13.6BESNT
Secção:CT
Data do Acordão:03/11/2021
Relator:TÂNIA MEIRELES DA CUNHA
Descritores:RCO
NULIDADE SUPRÍVEL
VIOLAÇÃO DO ART.º 70.º/RGIT
Sumário:I. Se a notificação efetuada ao arguido, para efeitos de exercício do direito de defesa, não contém todos os factos apurados no processo de contraordenação e relevantes para efeitos da decisão de aplicação de coima, está-se perante uma nulidade que cabe àquele invocar, nos termos do art.º 120.º do CPP.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
I. RELATÓRIO

A Fazenda Pública (doravante Recorrente ou FP) veio apresentar recurso do despacho decisório proferido a 29.12.2019, no Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Sintra, no qual foi julgado procedente o recurso apresentado por T....., Lda (doravante Recorrida ou Arguida), da decisão de aplicação de coima, proferida pelo Diretor da Alfândega do Jardim do Tabaco, no processo de contraordenação (PCO) a que foi atribuído, na fase administrativa, o n.º ......

Nesse seguimento, a Recorrente apresentou alegações, nas quais concluiu nos seguintes termos:

“A) Ao contrário do que se entende da douta sentença ora impugnada, a estampilha especial em causa, tem por função controlar a introdução no consumo de produtos de tabaco, essencialmente no que respeita a Imposto sobre o Tabaco.

B) Efectivamente, a comercialização de produtos de tabaco com estampilha especial inválida, acontece quando existiu uma alteração do valor do imposto a pagar, que corresponde exactamente à alteração da estamplilha.

C) Pelo que, quando alguém comercializa produtos de tabaco com estampilha especial inválida, significa que está a vender com o valor de imposto antigo, logo em prejuízo para a Fazenda Pública.

D) É também por isso, que a comercialização de produtos de tabaco com estampilha especial inválida constitui infracção fiscal aduaneira.

E) De outra sorte, se não houvesse prejuízo para a Fazenda Pública, a infracção em causa não era qualificada como grave, conforme resulta do artigo 23.° do Regime Geral das Infracções Tributárias.

F) No caso, o prejuízo para a Fazenda Pública decorre dos factos e da lei e não carece de ser provado, porque constitui a razão de ser da venda de tabaco com estampilha inválida.

G) Na verdade, não estamos perante a simples preterição de uma formalidade, como decorre da douta sentença, mas em situação de fraude fiscal, por fuga ao pagamento de imposto sobre o tabaco.

H) Assim, a sentença de que ora se recorre decidiu com base em errada fundamentação de facto e de direito”.

O recurso foi admitido, com subida imediata nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

Notificados a Recorrida e o Ilustre Magistrado do Ministério Público (IMMP), nos termos e para os efeitos previstos nos art.ºs 411.º, n.º 6, e 413.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal (CPP), aplicáveis ex vi art.º 41.º, n.º 1, do Regime Geral do Ilícito de mera ordenação social (RGCO), ex vi art.º 3.º, al. b), do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT), não foram apresentadas respostas.

O IMMP neste TCAS pronunciou-se, no sentido da procedência do recurso.

Foi dado cumprimento ao disposto no art.º 417.º, n.º 2, do CPP, nada tendo sido dito.

Colhidos os vistos legais vem o processo à conferência.

É a seguinte a questão a decidir:

a) Há erro de julgamento, na medida em que, atentando na própria função da estampilha, há sempre prejuízo para a Fazenda Pública, o que resulta da lei e dos factos?

II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

II.A. O Tribunal recorrido considerou provada a seguinte matéria de facto:
“a) A 05/06/2013, foi lavrado auto de notícia, onde se lê (cfr. documento de fls. 9 dos autos):





b) A 12/06/2013, foi emitido despacho com o seguinte teor (cfr. documento de fls. 12 dos autos):


c) A 04/07/2013, foi proferida a seguinte decisão (cfr. documento de fls. 15 dos autos):









”.

II.B. Relativamente aos factos não provados, refere-se no despacho decisório recorrido:

“Não há factos alegados e não provados com interesse para a decisão da causa”.

II.C. Foi a seguinte a motivação da decisão quanto à matéria de facto:

“Os factos provados assentam na análise crítica dos documentos juntos aos autos e não impugnados, conforme se indica em cada alínea do probatório”.

III. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

III.A. Do erro de julgamento

A Recorrente invoca o erro de julgamento do Tribunal a quo, na medida em que, atentando na própria função da estampilha, há sempre prejuízo para a FP, o que resulta da lei e dos factos.

Cumpre, antes de proceder à apreciação do alegado, fazer um breve enquadramento atinente ao tipo legal contraordenacional em causa.

Nos termos do art.º 109.º do RGIT:

“2 - São puníveis com coima de (euro) 250 a (euro) 165 000 os seguintes factos:

(…) p) Introduzir no consumo, expedir, detiver ou comercializar produtos com violação das regras de selagem, embalagem, detenção ou comercialização, designadamente os limites quantitativos, estabelecidas pelo Código dos Impostos Especiais sobre o Consumo e em legislação complementar”.

Por seu turno, o Código dos Impostos Especiais de Consumo (CIEC), nos seus art.ºs 110.º e 111.º, prevê a obrigatoriedade de aposição de uma estampilha especial nas embalagens de venda ao público de tabaco manufaturado para consumo, estampilha essa que tem de conter as características definidas para o ano da respetiva comercialização, sendo proibida a comercialização de produtos que ostentem estampilhas diferentes.

In casu, refira-se que, em sede de recurso de contraordenação, a Arguida centrou a sua posição na existência da nulidade no PCO, tendo sido apenas nesse prisma que o Tribunal a quo se pronunciou.

Como tal, tudo o alegado em torno da importância da estampilha fiscal em termos de controlo é irrelevante no âmbito do presente recurso.

Releva apenas apreciar se, tal como refere o Tribunal a quo, a falta de mensuração do prejuízo da Fazenda Pública é motivadora de nulidade e consequente anulação da decisão de aplicação de coima ou se, como parece decorrer da posição da Recorrente, tal prejuízo decorre “dos factos e da lei”.

Vejamos então.

Em sede de processo de contraordenação, existem nulidades supríveis e insupríveis e, a par destas, irregularidades processuais.

As nulidades insupríveis, em processo de contraordenação tributário, estão previstas no art.º 63.º do RGIT, são de conhecimento oficioso (art.º 63.º, n.º 5, do RGIT) e o seu conhecimento prevalece sobre as demais questões invocadas.

De acordo com o art.º 63.º, n.º 1, do RGIT:

“1 - Constituem nulidades insupríveis no processo de contraordenação tributário:

a) O levantamento do auto de notícia por funcionário sem competência;

b) A falta de assinatura do autuante e de menção de algum elemento essencial da infração;

c) A falta de notificação do despacho para audição e apresentação de defesa;

d) A falta dos requisitos legais da decisão de aplicação das coimas, incluindo a notificação do arguido”.

Já quanto às nulidades supríveis ou sanáveis pelo decurso do tempo, há que ter em conta o regime constante dos art.ºs 120.º e ss. do CPP, aplicável com as necessárias adaptações (cfr., a este propósito, Jorge Lopes de Sousa e Manuel Simas Santos, Regime Geral das Infracções Tributárias Anotado, 4.ª edição, Áreas Editora, Lisboa, 2010, pp. 445 e 446).

No que respeita às demais irregularidades, há que atentar no n.º 1 do art.º 123.º do CPP, nos termos do qual “[q]ualquer irregularidade do processo só determina a invalidade do ato a que se refere e dos termos subsequentes que possa afetar quando tiver sido arguida pelos interessados no próprio ato ou, se a este não tiverem assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum ato nele praticado”. Caso a irregularidade não seja suscitada, a mesma considera-se sanada. Sendo a irregularidade conhecida com a notificação de decisão de aplicação de coima, a mesma pode ser arguida no respetivo recurso (cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 2.ª edição atualizada, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2008, p. 314, relativa à irregularidade evidenciada na sentença, entendimento aplicável com as devidas adaptações).

Por outro lado, é ainda de ter em conta que, nos termos do art.º 70.º, n.º 1, do RGIT:

“1 - O dirigente do serviço tributário competente notifica o arguido do facto ou factos apurados no processo de contraordenação e da punição em que incorre, comunicando-lhe também que no prazo de 10 dias pode apresentar defesa e juntar ao processo os elementos probatórios que entender, bem como utilizar as possibilidades de pagamento antecipado da coima nos termos do artigo 75.º ou, até à decisão do processo, de pagamento voluntário nos termos do artigo 78.º”.

Apliquemos estes conceitos ao caso dos autos.

Neste, verifica-se que, na decisão de aplicação de coima, é feita a menção a um “eventual prejuízo à Fazenda Pública” (apesar de tal elemento não se encontrar sequer mensurado).

Por seu turno, nem no auto de notícia nem no despacho mencionado em b) do probatório é feita qualquer menção à existência de prejuízo para a FP e sua mensuração.

Portanto, resulta claro que da decisão de aplicação de coima consta um elemento factual sobre o qual não foi notificada a Recorrida, para efeitos do seu exercício do direito de defesa.

Nos termos do já mencionado art.º 70.º, n.º 1, do RGIT, “… [o] dirigente do serviço tributário competente notifica o arguido do facto ou factos apurados no processo de contraordenação e da punição em que incorre” (sublinhado nosso).

É certo que o art.º 63.º, n.º 1, do RGIT, apenas considera ser nulidade insuprível a falta de notificação para efeitos do exercício do direito de defesa e não a notificação desprovida de todos os elementos previstos no art.º 70.º, n.º 1, do RGIT.

No entanto, o desrespeito pelo art.º 70.º, n.º 1, do RGIT, consubstancia-se numa nulidade, que cabe ao arguido invocar (cfr. art.º 120.º do CPP), sob pena de sanação da mesma.

Como referido no Assento do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2003 (publicado no Diário da República, Série I-A, de 25.01.2003):

Quando, em cumprimento do disposto no artigo 50.º do regime geral das contra-ordenações, o órgão instrutor optar, no termo da instrução contra-ordenacional, pela audiência escrita do arguido, mas, na correspondente notificação, não lhe fornecer todos os elementos necessários para que este fique a conhecer a totalidade dos aspectos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito, o processo ficará doravante afectado de nulidade, dependente de arguição, pelo interessado/notificado, no prazo de 10 dias após a notificação, perante a própria administração, ou, judicialmente, no acto de impugnação da subsequente decisão/acusação administrativa” (sublinhados nossos).

Chama-se ainda à colação o Acórdão deste TCAS, de 05.11.2020 (Processo: 1747/14.0BELRS), onde se refere:

“[S]e a notificação administrativa para exercício do direito de defesa não fornecer todos os elementos necessários para que o arguido fique a conhecer todos os aspetos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito, o vício será o da nulidade sanável, e não insanável, arguível pelo arguido/notificado no prazo de 10 dias após a notificação, perante a própria administração ou, judicialmente, no ato da impugnação/recurso (…)

Se na impugnação se limitar a arguir a nulidade, o tribunal deverá declarar a nulidade da instrução administrativa, a partir da notificação incompleta, e também, por dela depender e a afetar, a subsequente decisão administrativa”.

Revertendo para o caso dos autos, da decisão de aplicação de coima consta, como referido, um elemento fático, indicado nos respetivos factos provados, sobre o qual a Arguida nunca teve oportunidade de se pronunciar, o que equivale à preterição do direito de defesa nessa parte.

Por outro lado, a Recorrida não se prevaleceu na impugnação do direito preterido, integrando, na sua defesa, os aspetos de facto ou de direito omissos na notificação, mas presentes na decisão (situação que, a ocorrer, implicaria sanação da nulidade), muito pelo contrário, suscitou, justamente, essa discrepância.

Uma vez a Arguida só teve conhecimento da nulidade em causa com a prolação e notificação da decisão de aplicação de coima, é na sequência de tal conhecimento que pode, administrativa ou judicialmente, suscitá-la. Logo, a mesma é passível de ser conhecida em sede de recurso da decisão de aplicação de coima.

É certo que na decisão de aplicação de coima nem se mensura qual o prejuízo que houve para a FP (questão sempre relevante, por exemplo, para efeitos de compreensão da medida concreta da coima, que foi fixada no dobro do mínimo legal).

No entanto, esta nova factualidade, sobre a qual a Arguida não se pôde pronunciar, limitou-lhe o seu direito de defesa, impedindo-a de, em sede administrativa, pôr em causa esse pressuposto, o que, como refere o Tribunal a quo, tem impacto, designadamente para efeitos de eventual dispensa da aplicação de coima.

Não acompanhamos, pois, a Recorrente quando, no fundo, defende que o prejuízo para a FP se infere da circunstância factual, porquanto nada resulta dos autos no sentido de que tenham sido comercializados os produtos (veja-se que o tipo contraordenacional abrange quer a comercialização quer a detenção, que correspondem a realidades fáticas distintas) e, a haver prejuízo, não pode deixar de ser afirmada inequivocamente tal circunstância em termos tais que pudessem ser contraditados em sede de exercício do direito de defesa.

Como referido por Jorge Lopes de Sousa e Manuel Simas Santos (Contra-Ordenações – Anotação ao Regime Geral, 5.ª edição, Áreas Editora, Lisboa, 2009, p. 407), “[a]o prestar declarações o arguido tem o direito de confessar ou negar os factos que lhe são imputados ou a sua participação e indicar as causas que possam excluir a ilicitude e a culpa, bem como quaisquer circunstâncias que possam relevar para a determinação da sua responsabilidade ou da medida da sanção [art. 141.º, n.º 5, do CPP (…)]”.

Ora, se não chega ao conhecimento do arguido toda a factualidade relevante considerada pela autoridade administrativa, está condicionado o cabal exercício do direito de defesa, o que sucedeu in casu.

Reitera-se que não está aqui em causa aferir se houve ou não prejuízo para a FP, mas tão-só a circunstância de, em sede de direito de defesa, a Recorrida não ter tido oportunidade de se pronunciar sobre um facto relevado na decisão de aplicação de coima e justamente consubstanciado no eventual prejuízo para a FP.

Como tal, não assiste razão à Recorrente.

IV. DECISÃO

Face ao exposto, acorda-se em conferência na 2.ª Subsecção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:

a) Negar provimento ao recurso;

b) Sem custas;

c) Registe e notifique.


Lisboa, 11 de março de 2021


[A relatora consigna e atesta que, nos termos do disposto no art.º 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13 de março, aditado pelo art.º 3.º do DL n.º 20/2020, de 01 de maio, têm voto de conformidade com o presente Acórdão os restantes Desembargadores integrantes da formação de julgamento, os Senhores Desembargadores Susana Barreto e Mário Rebelo]

Tânia Meireles da Cunha