Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:837/09.5BELRS
Secção:CT
Data do Acordão:12/16/2020
Relator:TÂNIA MEIRELES DA CUNHA
Descritores:PRESUNÇÃO DE LUCRO
INEXISTÊNCIA DE RENDIMENTOS
IRC
Sumário:
I. Tendo o lucro tributável sido determinado por aplicação do n.º 4 do artigo 53.º do CIRC, a presunção daí decorrente é ilidível pelo sujeito passivo, atento o disposto no artigo 73.º da LGT, sendo seu o ónus de alegar e provar que não exerceu qualquer atividade nem obteve os rendimentos ficcionados na norma.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:I. RELATÓRIO

A Fazenda Pública (doravante Recorrente ou FP) veio apresentar recurso da sentença proferida a 20.02.2018, no Tribunal Tributário de Lisboa, na qual foi julgada procedente a impugnação apresentada por N....., Lda (doravante Recorrida ou Impugnante), que teve por objeto o indeferimento da reclamação graciosa que versou sobre as liquidações de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC) atinentes aos exercícios de 2006 e 2007.

O recurso foi admitido, com subida imediata nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

Nesse seguimento, a Recorrente apresentou alegações, nas quais concluiu nos seguintes termos:

4.1. Visa o presente recurso reagir contra a douta decisão que julgou procedente a Impugnação judicial, intentada pela ora recorrida contra o indeferimento da reclamação graciosa que teve por objecto as liquidações adicionais de IRC n.º ....., relativa ao exercício de 2006, no montante de 1.311,70 €, e n.º ....., relativa ao exercício de 2007, no montante de 1.285,43 €.

4.2. Como fundamentos da impugnação alegou a impugnante, em suma, que é uma sociedade constituída em 2002, enquadrada no regime geral de determinação do lucro tributável, mas que nunca chegou a produzir ou a facturar, tendo, no entanto encerrado a actividade sede de IVA, com efeitos a partir de 31-12-2013;

- Que o TOC não apresentou qualquer declaração relativa à impugnante quanto aos exercícios de 2006 e 2007;

- Que, por se terem verificado a circunstância prevista no n.º 8 do artigo 53.º do CIRC, na sua redacção à data vigente, a impugnante passou a ser tributada no regime geral por métodos indirectos;

- Que interpretar o artigo 53.º do CIRC, no sentido de tributar uma empresa por via da determinação da matéria tributável por métodos indirectos, com um mínimo de imposto devido, para o ano de 2005, num valor superior a 1.500,00 € conhecendo a situação real da empresa, que não factura nem produz riqueza desde 31-12-2003 é uma injustiça tributária;

- Que é inconstitucional a aplicação dos artigos 52.º e 53.º do CIRC às empresas que cessaram a actividade em IVA, que não auferiram proveitos durante o período de tributação e que essa situação é do conhecimento das finanças, por violação do artigo 104.º da CRP.

4.3. Conclui peticionando a procedência da impugnação, por provada e, em consequência, a anulação das liquidações de IRC dos exercícios de 2006 e 2007.

4.4. O Ilustre Tribunal “a quo” julgou procedente a impugnação, declarando a ilegalidade dos actos tributários impugnados, anulando, por conseguinte, as liquidações em questão, considerando que, no caso, não seria aplicável o disposto no n.º 4 do artigo 53.º do CIRC, conforme o fez a Administração Tributária, uma vez que a impugnante não obteve proveitos nos anos de 2006 e 2007.

4.5. Entendeu o Tribunal “a quo”, em síntese, e com base na jurisprudência fixada no acórdão do Colendo STA de 22-03-2011, proferido no âmbito do processo de recurso n.º 0988/10, que não pode ser aplicado o disposto no n.º 4 do artigo 53.º do CIRC, na sua redacção vigente à data dos factos, quando se demonstre que os sujeitos passivos não tiveram actividade e que, por isso, não tiveram qualquer rendimento nesses exercícios.

Ora,

4.5. atendendo a factualidade dada como provada na decisão ora em crise, é entendimento da Representação da Fazenda Pública que, com o devido respeito e salvo sempre melhor entendimento, o Ilustre Tribunal “a quo” não poderia concluir pela ilegalidade das liquidações em questão.

Isto porque,

4.6. e na esteira da posição já anterior assumida pela Administração Tributária em sede de contestação, é entendimento desta Representação da Fazenda que, a Administração Tributária agiu, in casu, com o legalmente então determinado, não padecendo, por isso, as liquidações em questão de qualquer ilegalidade.

Isto porque,

4.7. a impugnante, legalmente enquadrada no regime simplificado de tributação nos anos dos exercícios em questão – conforme, aliás, bem ficou firmado na sentença ora em apreciação – não facultando à Administração Tributária, em tempo útil, os elementos necessários ao apuramento do lucro tributável de acordo com os indicadores de base técnico-científica, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 53.º do CIRC, na sua redacção então vigente, esta actuou de acordo com o disposto no n.º 4 desse mesmo preceito legal, conforme aí se determina, determinando, com base no estipulado nesse n.º 4 do artigo 53.º do CIRC, o lucro tributável da impugnante nos exercícios em questão.

4.8. E nem se diga, com o devido respeito e salvo melhor entendimento, que o n.º 4 do artigo 53.º do então vigente CIRC não se aplica no caso de demonstração da inexistência de rendimento nos exercícios em questão, pois tal conclusão não resulta da interpretação do referido artigo 53.º do artigo 53.º, na sua redacção à data vigente.

4.9. Do referido n.º 4 do artigo 53.º do CIRC não resulta que o regime dele constante não se aplica às situações em que resulte demonstrado inexistir rendimento tributáveis no respectivos exercícios, podendo, por isso, este normativo ter aplicação mesmo quando se demonstre não existir rendimento tributável dos sujeitos passivos num determinado exercício.

Por outro lado,

4.10. também não se diga, mais uma vez com o devido respeito e salvo sempre melhor entendimento, que o normativo em questão padece de inconstitucionalidade, por violação do princípio da tributação das empresas fundamentalmente pelo rendimento real, uma vez que os sujeitos passivos têm sempre a possibilidade de optar pela não tributação do regime estabelecido no referido artigo 53.º do CIRC, conforme o disposto nos n.º 8 e 9 deste mesmo artigo 53.º, conforme foi decidido, e com os fundamentos que o foi, por este Colendo Tribunal Central Administrativo do Sul, em 26-06-2017, no âmbito do processo de decurso n.º 01639/07, onde se pode ler no seu sumário:

VI - O regime simplificado de tributação de IRC, previsto no art. 53.º do CIRC, sendo de carácter facultativo, não contende com o princípio constitucional da tributação das empresas fundamentalmente pelo rendimento real.”.

Assim sendo,

4.11. e pelo exposto, conclui-se que a Administração Tributária, in casu, actuou de acordo com o legalmente determinado, nos termos do disposto nos n.º 3 e 4 do então vigente artigo 53.º do CIRC, não padecendo as liquidações de IRC em questão, por isso, de qualquer ilegalidade,

4.12. Assim, é entendimento das Fazenda Pública, com o devido respeito e salvo sempre melhor entendimento, que andou mal o Ilustre Tribunal recorrido ao decidir conforme decidiu, incorrendo em erro de julgamento da matéria de direito, ao considerar que o n.º 4 do artigo 53.º do CIRC, na sua redacção então vigente, não é aplicável aos casos em que se demonstre não ter o sujeito passivo obtido proveitos no exercício em questão.

4.13. por isso, com o devido respeito e salvo sempre melhor entendimento, deve ser revogada a decisão ora recorrida, com as legais consequências daí decorrentes, nomeadamente no que respeita à anulação do acto de indeferimento da reclamação graciosa bem como das liquidações adicionais de IRC dos anos de 2006 e 2007”.

A Recorrida não apresentou contra-alegações.

Foram os autos com vista ao Ilustre Magistrado do Ministério Público, nos termos do então art.º 289.º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), que emitiu parecer, no sentido de ser negado provimento ao recurso.

Colhidos os vistos legais (art.º 657.º, n.º 2, do CPC, ex vi art.º 281.º do CPPT) vem o processo à conferência.

É a seguinte a questão a decidir:
a) Verifica-se erro de julgamento, na medida em que a matéria de facto assente não permite concluir pela ilegalidade das liquidações por falta de atividade e que a administração tributária (AT) agiu de acordo com o legalmente determinado no art.º 53.º, n.º 4, do Código do IRC (CIRC)?

II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

II.A. O Tribunal recorrido considerou provada a seguinte matéria de facto:

“A) N....., Lda (ou impugnante) exerceu a actividade de “Outras actividades de serviços prestados principalmente às empresas” com o CAE 074872 (fls 127 a 132, do pa);

B) Em sede de IRC e por opção de 01-01-2002 a 31-12-2004, a impugnante encontrava-se tributada pelo regime geral de determinação do lucro tributável

C) Em sede de IRC a partir de 01-01-2005 até 31-12-2007 a impugnante passou a ser tributada pelo regime simplificado;

D) Em sede de IVA, a impugnante estava enquadrada no regime normal de periodicidade trimestral, desde 17-11-2002;

E) A impugnante encontra-se cessada em IVA com data de 31-12-2003 (fls 133, do pa);

F) Em 19-12-2008 a AT emitiu as seguintes liquidações adicionais:

- liquidação nº ....., relativo ao exercício de 2006, com valor de imposto a pagar de €1.188,57, juros de mora de €25,25 e juros compensatórios de €97,88, num total de €1.311,70;

- liquidação nº ....., relativa ao exercício de 2007, com imposto a pagar de €1.213,03, juros de mora de €24,79 e juros compensatórios de €47,61, na importância total de €1.285,43.

G) Em 19-12-2008 a impugnante entregou as declarações periódicas de rendimentos Modelo 22 de IRC, relativas aos exercício de 2005, 006 e 2007, a zeros, considerando estar sujeita ao regime geral de tributação do lucro tributável (doc nº 39 a 103, dos autos);

H) Em 26-01-2009 foi apresentada reclamação graciosa das liquidações identificadas em F), que correu termos sob o nº ..... (RG apensa);

I) Por despacho de 24-03-2009 foi proferido projecto de despacho de indeferimento, na reclamação graciosa, identificada em H) (fls 62, da RG);

J) Pelo ofício nº ....., de 23-02-2009 a impugnante foi notificada para exercer direito de audição, nos termos do artº 60º da LGT, tendo sido exercido (fls 33 a 41, da RG);

K) Por despacho de 234-03-2009 a reclamação graciosa sofreu despacho de indeferimento, que se dá por inteiramente reproduzido para todos os efeitos legais (fls 142 a 144, da RG)”.

II.B. Foi a seguinte a motivação da decisão quanto à matéria de facto:

“A convicção do tribunal formou-se no teor dos documentos identificados em cada ponto dos factos provados que não foram impugnados”.

II.C. Atento o disposto no art.º 662.º, n.º 1, do CPC, ex vi art.º 281.º do CPPT, acorda­‑se em alterar a redação de parte da factualidade mencionada em II.A., em virtude de resultarem dos autos elementos documentais que exigem tal alteração[1].

Nesse seguimento, passará a ser seguinte a redação do facto G, referido em II.A.:

G) Em 19.12.2008 a impugnante entregou as declarações periódicas de rendimentos Modelo 22 de IRC, relativas aos exercícios de 2006 e 2007, considerando estar sujeita ao regime geral de tributação do lucro tributável (cfr. informação da administração tributária – cfr. fls. 128 dos autos em suporte de papel, a que correspondem futuras referências sem menção de origem, e fls. 177 do processo administrativo).

II.D. Considerando o disposto no art.º 662.º, n.º 1, do CPC, ex vi art.º 281.º do CPPT, acorda-se aditar a seguinte matéria de facto provada:

L) A impugnante apresentou, junto dos serviços da AT, informação empresarial simplificada relativa aos exercícios de 2002, 2003, 2004 e 2005, de cujos Anexos A consta, a título de proveitos e ganhos do exercício, o valor 0,00 Eur (cfr. fls. 39 a 61 e 104 a 109, dos autos, e fls. 143 a 146, do processo administrativo).

M) A Impugnante apresentou, junto dos serviços da AT, informação empresarial simplificada, relativa ao exercício de 2006, de cujo Anexo A consta, a título de proveitos e ganhos do exercício, o valor 0,00 Eur. (cfr. fls. 62 a 83, dos autos, e fls. 147, do processo administrativo).

N) A Impugnante apresentou, junto dos serviços da AT, informação empresarial simplificada, relativa ao exercício de 2007, de cujo Anexo A consta, a título de proveitos e ganhos do exercício, o valor 0,00 Eur. (cfr. fls. 84 a 103, dos autos, e fls. 148, do processo administrativo).

III. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

III.A. Do erro de julgamento

Considera a Recorrente que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, na medida em que, por um lado, a matéria de facto assente não permite concluir pela ilegalidade das liquidações por falta de atividade, e que, por outro lado, a AT agiu de acordo com o legalmente determinado, padecendo de erro a interpretação segundo a qual o art.º 53.º, n.º 4, do CIRC não se aplica no caso de demonstração da inexistência de rendimentos.

Vejamos então.

In casu, estamos perante a reação a indeferimento de reclamação graciosa que teve por objeto duas liquidações de IRC, relativas aos exercícios de 2005 e 2006, emitidas em aplicação do disposto no art.º 53.º, n.º 4, do CIRC.

É desde logo de referir que, em primeira instância, foi posto em causa pela ora Recorrida o seu enquadramento no regime simplificado, questão que o Tribunal a quo considerou improcedente, não tendo sido a mesma posta em causa, pelo que se consolidou na ordem jurídica.

Posto isto, enquadremos, em primeiro lugar, do ponto de vista jurídico-normativo a questão.

Assim, nos termos do art.º 53.º do CIRC (redação à época):

“1 - Ficam abrangidos pelo regime simplificado de determinação do lucro tributável os sujeitos passivos residentes que exerçam, a título principal, uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola, não isentos nem sujeitos a algum regime especial de tributação, com exceção dos que se encontrem sujeitos à revisão legal de contas, que apresentem, no exercício anterior ao da aplicação do regime, um volume total anual de proveitos não superior a 30000000$00 ((euro) 149639,37) e que não optem pelo regime de determinação do lucro tributável previsto na secção II do presente capítulo.

2 - No exercício do início de atividade, o enquadramento no regime simplificado faz-se, verificados os demais pressupostos, em conformidade com o valor total anual de proveitos estimado, constante da declaração de início de atividade, caso não seja exercida a opção a que se refere o número anterior.

3 - O apuramento do lucro tributável resulta da aplicação de indicadores de base técnico-científica definidos para os diferentes sectores da atividade económica, os quais devem ser utilizados à medida que venham a ser aprovados.

4 - Na ausência de indicadores de base técnico-científica ou até que estes sejam aprovados, o lucro tributável, sem prejuízo do disposto no n.º 11, é o resultante da aplicação do coeficiente de 0,20 ao valor das vendas de mercadorias e de produtos e do coeficiente de 0,45 ao valor dos restantes proveitos, com exclusão da variação de produção e dos trabalhos para a própria empresa, com o montante mínimo igual ao valor anual do salário mínimo nacional mais elevado”.

A circunstância de a AT estar legitimada a emitir liquidações ao abrigo do n.º 4 do art.º 53.º do CIRC não implica que as mesmas não sejam sindicáveis, desde logo com fundamento em inexistência de facto tributário, como foi o caso.

Com efeito, as presunções em matéria tributável são ilidíveis (cfr. art.º 73.º da Lei Geral Tributária – LGT), sendo esta a interpretação que se compadece, designadamente, com o desiderato constitucionalmente consagrado da tendencial tributação pelo rendimento real (cfr. art.º 104.º da Constituição da República Portuguesa – CRP).

Como referido no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 04.11.2009 (Processo: 0553/09):

“… [O] artigo 53.º n.º 4 do Código do IRC (na redacção anterior ao Decreto-Lei n.º 159/09, de 13 de Julho) – vem sistematicamente incluída na Secção V (…), do Capítulo III (…) do Código do IRC, respeitante à “quantificação” da obrigação tributária, logicamente subsequente ao Capítulo respeitante à incidência (capítulo I) e ao respeitante às isenções (capítulo II).

A inserção sistemática da norma em causa no capítulo III do CIRC, o respeitante à determinação da matéria colectável, constitui um importante subsídio interpretativo para determinar o alcance da norma questionada. É que desta inserção sistemática resulta que a norma em causa não deve ser interpretada como procedendo a uma extensão da incidência objectiva do imposto, pois que se trata de norma inserida no procedimento de quantificação do imposto a pagar, procedimento este que pressupõe a prévia verificação dos pressupostos (objectivos e subjectivos) do tributo em causa, concretizados nas regras de incidência objectiva e subjectiva que se contêm no Capítulo I do Código.

Ora, dispõe o artigo 1.º do Código do IRC, sob a epígrafe pressuposto do imposto, que tem aqui o sentido de facto constitutivo da respectiva relação jurídica de IRC (…), que:

«O imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas (IRC) incide sobre os rendimentos obtidos, mesmo que provenientes de actos ilícitos, no período de tributação, pelos respectivos sujeitos passivos, nos termos deste Código» (…).

(…) Parece certo, em face das normas de incidência subjectiva do IRC, que a inactividade da empresa não obsta a que esta possa ser sujeito passivo de imposto, pois que mantém a sua existência jurídica não obstante o não exercício do objecto social (embora a personalidade jurídica não seja, sequer, pressuposto da sua potencial sujeição – cfr. a alínea b) do n.º 1, do artigo 2.º do CIRC) e pode ter obtido outros rendimentos tributáveis. Sucede, contudo, que tal só sucederá verificado que seja o pressuposto do imposto, ou seja, que tenha obtido rendimentos, mesmo que provenientes de actos ilícitos (artigo 1.º do CIRC), pois que não basta que possa ser sujeito passivo, necessário é também que se verifique o facto constitutivo da relação jurídica de IRC.

É a esta luz que se há-de interpretar o n.º 4 do artigo 53.º do CIRC (…)

(…) A norma em causa, respeitante à determinação do lucro tributável, só se aplica havendo rendimentos, pois que só havendo rendimentos, ou seja, só verificado que seja o pressuposto do imposto, nasce a respectiva relação jurídica.

Mesmo nesse caso, ou seja havendo rendimentos, o valor mínimo constante da referida norma legal terá de ser entendido como mera presunção de rendimento, e como tal ilidível, ex vi do 73.º da Lei Geral Tributária, cuja regra não parece aplicável apenas as normas de incidência tributária em sentido próprio, mas também a todas as normas que estabelecem ficções que influenciam a determinação da matéria colectável (quer directamente, através de valores ficcionados para a matéria colectável, quer indirectamente, ao fixarem ficcionadamente os valores dos rendimentos relevantes para a sua determinação). É este, parece, o alcance do advérbio «sempre» utilizado no artigo 73.º da Lei Geral Tributária, que arvora esta regra em princípio basilar da globalidade do ordenamento jurídico tributário, corolário do princípio da igualdade na repartição dos encargos públicos, assente no princípio da capacidade contributiva, como ensina CASALTA NABAIS (O Dever Fundamental de Pagar Impostos, Coimbra, Almedina, 1998, pp. 443 e ss.)

Assim (…), a existência de rendimentos tributáveis não é apenas um pressuposto do regime simplificado de tributação, mas da constituição de qualquer relação jurídica de IRC, que se assume, precisamente, como um imposto sobre rendimentos, fundamentalmente reais, e não como um imposto de ‘porta aberta’” [sublinhados nossos; no mesmo sentido, vejam-se os Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 17.10.2010 (Processo: 0609/10), de 02.03.2011 (Processos: 0997/10 e 01039/10), de 22.03.2011 (Processo: 0988/10), de 14.09.2011 (Processo: 0215/11) e de 05.12.2012 (Processo: 0474/11)].

Com efeito, como referimos, decorre, desde logo, da lei fundamental que “[a] tributação das empresas incide fundamentalmente sobre o seu rendimento real” - art.º 104.º, n.º 2, da CRP.

Como se escreveu no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 127/2004, de 3 de março de 2004:

“A tributação segundo o rendimento real é, numa certa dimensão, uma decorrência necessária do princípio da capacidade contributiva. É ele que justifica que a Constituição estabeleça que o sistema fiscal não pode deixar de assegurar “uma repartição justa dos rendimentos e da riqueza” (art.º 103º, n.º 1) e que especifique, posteriormente, que os impostos devem ter em conta as “necessidades e os rendimentos [concretos] do [de cada] agregado familiar” e, finalmente, que a “tributação das empresas incide fundamentalmente sobre o seu rendimento real”.

Mas o rendimento real fiscalmente relevante não é, em si próprio, uma realidade de valor fisicamente apreensível, mas antes um conceito normativamente modelado e contabilisticamente mensurável, sendo constituído, simpliciter, “pela soma algébrica do resultado líquido do exercício e das variações patrimoniais positivas e negativas [previstas na lei e] verificadas no mesmo período” (…) - o saldo entre os proveitos ou ganhos provenientes das mais diversas fontes, como vendas, bónus, comissões, rendimentos de imóveis, rendimentos de carácter financeiro, prestações de serviços, mais-valias realizadas, subsídios, etc., menos os custos ou perdas, como os encargos relativos à produção, distribuição e venda, encargos de natureza financeira e de natureza administrativa, encargos fiscais e parafiscais, reintegrações e amortizações, etc., acrescido das variações patrimoniais positivas ou diminuído das variações patrimoniais negativas, previstas na lei.

Por outro lado, a injunção constitucional da tributação segundo o rendimento real não pode deixar de atender, necessariamente, aos princípios da praticabilidade e de operacionalidade do sistema, pelo que não pode deixar de se lhes reconhecer natureza constitucional, sob pena dos arquétipos legalmente construídos não conseguirem realizar, com a aproximação possível, o princípio da universalidade e da igualdade no pagamento de os impostos…”.

Mais recentemente, veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 04.03.2020 (Processo: 01555/11.0BEPRT 017/17), do qual decorre:

“A aplicação do regime simplificado tem como pressuposto necessário a existência de base tributável, consubstanciada no lucro resultante do exercício da actividade da sociedade comercial (art.3º nº1 al. a) e 53º nº1 CIRC).

Apesar de a personalidade jurídica não ser pressuposto da qualidade de sujeito passivo, é indispensável a verificação do pressuposto do imposto como facto constitutivo da relação jurídica, ou seja, a obtenção de rendimentos, mesmo que provenientes de actos ilícitos (arts.1.º e 2º als. b) e c) CIRC).

Mesmo havendo rendimentos o valor mínimo constante da norma, entendido como mera presunção de rendimento, será sempre ilidível (art.73º LGT aplicável a todas normas que influenciam directa ou indirectamente a determinação da matéria colectável).

A tese da Fazenda Pública (aplicação do regime simplificado segundo um critério forfetário, independentemente do apuramento de rendimento positivo, nulo ou negativo) é inaceitável:

a) constitui violação do princípio constitucional segundo o qual a tributação das empresas incide fundamentalmente sobre o seu rendimento real; admitindo-se a tributação do rendimento normal por aplicação de métodos indirectos, mas nunca a tributação de um rendimento inexistente, equiparado a confisco fiscal (art.104º nº2 CRP RC/97);

b) constitui violação do princípio constitucional da igualdade (na sua vertente de tratamento diferenciado de situações diferentes),ao tributar identicamente empresas em actividade que geram lucro e empresas inactivas, sem fundamento material bastante (art.13º CRP)

c) radica em interpretação da norma sobre o rendimento tributável que ficciona um rendimento inexistente para o submeter a tributação”.

Posto este enquadramento, as liquidações em crise são sindicáveis, designadamente por inexistência de facto tributário, consubstanciado em falta de existência de quaisquer rendimentos nos exercícios em análise, não se acompanhando, pois, nesta parte o entendimento da Recorrente.

Cabe ao contribuinte, em situações como a dos autos, alegar e provar a inexistência de facto tributário [cfr. Acórdãos do Tribunal Central Administrativo Sul, de 31.10.2019 (Processo: 908/10.5BELRS) e de 13.10.2009 (Processo: 03436/09)].

A este respeito, referiu-se no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 05.07.2012 (Processo: 0474/11):

“No caso vertente, trata-se de uma liquidação oficiosa de IRC efectuada segundo as regras do regime simplificado, por aplicação do disposto no artigo 53.º, nº 4, do CIRC, a um sujeito passivo de IRC, dos tipificados na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do CIRC, que se encontra colectado pelo exercício de uma actividade comercial.

Sobre a interpretação e aplicação do artigo 53.º, n.º 4, do CIRC pronunciou-se já por diversas vezes esta Secção do Supremo Tribunal Administrativo, designadamente nos acórdãos proferidos em 4/11/2009, em 17/11/2010 e em 22/03/2011, nos recursos nºs. 0553/09, 0609/10 e 0988/10, respectivamente, sustentando, em todos eles, idêntica posição doutrinária, que acompanhamos, no sentido de que a inactividade da empresa não obsta a que esta possa ser sujeito passivo de imposto, pois mantendo a sua existência jurídica pode ter obtido rendimentos tributáveis, ainda que não resultantes do exercício do seu objecto social; e, por outro lado, o valor mínimo constante da referida disposição legal terá de ser entendido como mera presunção de rendimento ilidível nos termos do artigo 73.º da Lei Geral Tributária.

Ora, decorre dos autos que a administração fiscal procedeu à liquidação oficiosa de IRC por estar em causa um sujeito passivo de IRC e se verificar a presunção juris tantum de obtenção de rendimento decorrente da norma contida no artigo 53.º, n.º 4, do CIRC, tendo em conta que se trata de um imposto que incide sobre os lucros das sociedades comerciais que exerçam, a título principal, uma actividade de natureza comercial, industrial ou agrícola – cfr. artigo 3.º, n.º 1, al. a), do CIRC.

Com efeito, tem de presumir-se que a recorrente, como sociedade comercial que é, com início de actividade declarada perante a administração fiscal, exercia a actividade pela qual se encontrava colectada, tendo a seu cargo a realização de actividades de natureza marcadamente económica, produtoras de rendimentos. Pelo que o pressuposto da tributação levada a cabo pela administração tributária foi a prática de uma actividade comercial geradora de rendimentos, cujo lucro tributável foi, e bem, determinado por aplicação do n.º 4 do artigo 53.º do CIRC, sendo que o valor mínimo de rendimento constante desta norma legal deve ser entendido como mera presunção de rendimento, ilidível pelo sujeito passivo por força do disposto no artigo 73.º da Lei Geral Tributária, como se deixou explicado nos acórdãos acima referenciados.

Face à verificação de tal pressuposto da liquidação, legitimador da actuação da administração tributária, cabia à Impugnante apresentar prova bastante da ilegitimidade do acto, provando que não exerceu qualquer actividade nem obteve os rendimentos ficcionados na norma, obstando, assim, à sua aplicação. Dito de outro modo, agindo a Administração em conformidade com a lei aquando da emissão da liquidação oficiosa, cabia à impugnante o ónus da prova de factos demonstrativos da inexistência de factos tributários resultantes da sua alegada inactividade, caso em que a liquidação do imposto não se poderia manter na ordem jurídica por respeito ao princípio da capacidade contributiva plasmado no artigo 104.° da Constituição da República Portuguesa, interpretado no sentido de que as sociedades apenas devem ser tributadas quando têm rendimento e na exacta medida desse rendimento” (sublinhados nossos).

Cumpre, então, considerando as regras de distribuição do ónus da prova a que nos vimos referindo, aferir se ocorreu erro de julgamento.

Nesta parte também não acompanhamos o entendimento da Recorrente

Explicitando.

O Tribunal a quo considerou demonstrado que a Recorrida não teve, nos exercícios em análise, qualquer atividade, com base na alínea G) da factualidade assente.

In casu, como resulta da matéria de facto assente, não impugnada, foram emitidas liquidações de IRC pela AT a 19.12.2008 [cfr. facto F)].

Nesse mesmo dia, a Recorrida apresentou as declarações periódicas de rendimentos modelo 22 de IRC, relativas aos exercícios em causa.

É certo que as declarações de rendimentos em causa foram já apresentadas fora de prazo [cfr. art.º 112.º do CIRC].

Neste contexto, não funciona a presunção de veracidade das mesmas, a que se refere o art.º 75.º, n.º 1, da LGT, nos termos do qual “[p]resumem-se verdadeiras e de boa-fé as declarações dos contribuintes apresentadas nos termos previstos na lei…”.

A este respeito, chama-se à colação o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 04.05.2016 (Processo: 0415/15), no qual se refere:

“[C]ontrariamente ao que sucede nos casos em que a declaração de rendimentos é apresentada nos termos previstos na lei – aí se incluindo o prazo legal para a sua apresentação, pois que os termos previstos na lei o incluem também - a declaração de rendimentos tardia não beneficia já de tal presunção estabelecida no artigo 75.º da Lei Geral Tributária, sendo livremente valorada” (sublinhado nosso).

Não beneficiando as declarações de rendimentos em causa da presunção de veracidade, a sua apresentação, per se, é livremente valorada. No entanto, sempre deveria a AT ter tido em consideração tal elemento na sua atuação.

A este propósito, sumariou-se no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 05.12.2018 (Processo: 0220/11.2BEVIS 0286/18), relativo ao regime simplificado de IRS, mas cuja doutrina é transponível in casu:

“I – (…) [P]erante a omissão declarativa do contribuinte, em sede de IRS, era lícito à AT, (…) proceder à declaração oficiosa com recurso ao regime simplificado de tributação (…).

II - Mas se após a declaração oficiosa o(a) contribuinte fez uso atempado da possibilidade que lhe conferia o artº 76º nº 4 do CIRS e apresentou a declaração modelo 3 de IRS, esta declaração ainda que não gozasse da presunção de veracidade não podia ser totalmente ignorada na sua substância.

III - O princípio da tributação do rendimento real impunha a sua apreciação e aconselhava a realização de inspecção perante os elementos supervenientes que foram apresentados e que por não gozarem já da presunção de veracidade, estavam sujeitos a livre apreciação e confirmação pela AT.

IV - Não o tendo feito, resultou a ocorrência de evidente excesso de quantificação de rendimentos que influenciou a liquidação oficiosa agora questionada a qual não se pode manter”.

Da mesma forma, chama-se à colação o Acórdão deste TCAS, de 04.06.2020 (Processo: 2072/07.8BELSB), onde a ora relatora interveio na qualidade de 2.ª adjunta e onde se sumariou:

“I- A apresentação de declaração de rendimentos Modelo 22 de IRC, fora do prazo legal mas dentro do prazo de caducidade não implica, per se, a anulação da liquidação oficiosa, desde logo, porque a aludida declaração não goza da presunção de verdade declarativa.

II- Essa falta de presunção de verdade declarativa não se estende à contabilidade, desde que devidamente organizada;

III- Tendo sido apresentada declaração de rendimentos após a emissão de liquidação oficiosa, mas dentro do prazo de caducidade e mediante a faculdade consignada no artigo 83.º, nº 10 do CIRC, o princípio da tributação do lucro real impõe outras diligências por parte da Administração Tributária, designadamente, a realização de ação inspetiva para aferição de todos os elementos que foram supervenientemente apresentados pelo contribuinte e na sequência de pronúncia da Administração Tributária. Inexistindo tal procedimento ocorre excesso de quantificação de rendimentos”.

Portanto, sempre a AT deveria ter considerado tais elementos na sua atuação, o que não ocorreu.

Ademais e mesmo que tais declarações não tivessem sido apresentadas, face à matéria de facto provada, designadamente ao teor das informações empresariais simplificadas (IES), nunca postas em causa pela AT, verifica-se que, desde 2002, a Recorrida nunca teve quaisquer rendimentos, como, aliás, alega na petição inicial, abrangendo os exercícios ora em análise.

Refletindo as IES a contabilidade da Impugnante e nunca tendo as mesmas sido postas em causa, há que atentar na presunção de veracidade dessa mesma contabilidade, que evidencia a inexistência de quaisquer proveitos.

Por outro lado, a cessação de atividade para efeitos de IVA desde 31.12.2003, não sendo elemento isoladamente determinante, não pode deixar de funcionar como reforço em termos de convicção de que a Recorrida não laborava.

Assim, e em suma, em situações como a dos autos, caberia à Recorrida o ónus da prova de que não auferiu quaisquer rendimentos durante os exercícios em questão[2], ilidindo, desta forma, a presunção legalmente consagrada (cfr. art.º 73.º da LGT).

Cabendo à Recorrida o ónus da prova da inexistência de rendimentos e tendo resultado provada tal circunstância, as liquidações em crise no presente recurso padecem de vício de erro sobre os pressupostos, motivo pelo qual não se devem manter na ordem jurídica.

Logo, não assiste razão à Recorrente.

IV. DECISÃO

Face ao exposto, acorda-se em conferência na 2.ª Subsecção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:
a) Negar provimento ao recurso;
b) Custas pela Recorrente;
c) Registe e notifique.


Lisboa, 16 de dezembro de 2020


[A relatora consigna e atesta que, nos termos do disposto no art.º 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13 de março, aditado pelo art.º 3.º do DL n.º 20/2020, de 01 de maio, têm voto de conformidade com o presente Acórdão os restantes Desembargadores integrantes da formação de julgamento, os Senhores Desembargadores António Patkoczy e Mário Rebelo]

Tânia Meireles da Cunha

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[1] Cfr. António dos Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2018, p. 286.
[2] Sobre o ónus da prova a cargo do sujeito passivo em situações como as in casu, cfr. o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 05.07.2012 (Processo: 0474/11).