Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1129/18.4BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:12/17/2020
Relator:ANA CELESTE CARVALHO
Descritores:ILEGITIMIDADE ATIVA;
LEGITIMIDADE PARA IMPUGNAR O ATO DE ARQUIVAMENTO DO PROCESSO DE APRECIAÇÃO LIMINAR DA CONDUTA DE ADVOGADO;
ORDEM DOS ADVOGADOS.
Sumário:I. Para além do disposto, em geral, no artigo 9.º, n.º 1 do CPTA, o CPTA considerou, em particular, no disposto na alínea a), do n.º 1 do artigo 55.º do CPTA, como critérios definidores da legitimidade ativa nas ações administrativas de impugnação de atos administrativos: (i) quem alegue ser titular de um interesse direto e pessoal (1.ª parte) ou, (ii) quem tiver sido lesado pelo ato impugnado nos seus direitos ou interesses legalmente protegidos (2.ª parte).

II. Nos mesmos termos estabelece o artigo 68.º, n.º 1, a) do CPTA para a ação de condenação à prática de ato devido, que tem legitimidade quem alegue ser titular de um interesse legalmente protegido dirigido à emissão do ato.

III. O Autor além de não ser parte na relação material controvertida que se estabeleceu entre o Advogado visado no processo de apreciação liminar e a Ordem dos Advogados (artigo 9.º, n.º 1 do CPTA), também não é titular de um interesse direto e pessoal na anulação do ato e na condenação à instauração do processo disciplinar ao Advogado em causa.

IV. O Autor não é titular de um qualquer direito ou interesse legalmente protegido à ação disciplinar e, consequentemente, não tem interesse em impugnar a decisão administrativa que seja tomada no âmbito do processo de apreciação liminar ou mesmo do processo disciplinar, caso este tivesse sido instaurado.

V. O Autor também não é titular de um direito ou interesse pessoal e direto na impugnação da decisão administrativa de manter a decisão de arquivamento do processo de apreciação liminar, por não ter sido parte no processo judicial em que o Advogado foi constituído e exerceu o respetivo patrocínio judiciário.

Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

I – RELATÓRIO

F..........., devidamente identificado nos autos, inconformado, veio interpor recurso jurisdicional da decisão do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, datada de 28/10/2019, que no âmbito da ação administrativa de impugnação de ato instaurada contra a Ordem dos Advogados, julgou procedente a exceção de ilegitimidade ativa e, em consequência, absolveu a entidade demandada da instância.


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Formula o aqui Recorrente nas respetivas alegações, as seguintes conclusões que se reproduzem:

“I. A DECISÃO RECORRIDA, SEMPRE COM O DEVIDO RESPEITO E QUE É MUITO, VIOLOU O DISPOSTO NO ARTIGO 55.º, N.º 1, ALÍNEA A), DO CÓDIGO DE PROCESSO NOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS AO CONSIDERAR QUE O RECORRENTE NÃO DISPÕE DE UM INTERESSE PESSOAL E DIRECTO NA PRESENTE LIDE, CARECENDO DE LEGITIMIDADE PARA IMPUGNAR O ACTO ADMINISTRATIVO;

II. O RECORRENTE É, À LUZ DO DISPOSTO NO ARTIGO 55.º, N.º 1, ALÍNEA A), TITULAR DE UM INTERESSE PESSOAL E DIRECTO NA PRESENTE DEMANDA, ENQUANTO VERTENTES DA LEGITIMIDADE PROCESSUAL;

III. NA SITUAÇÃO EM APREÇO, A ACÇÃO DE PROCESSO COMUM PROPOSTA POR L..........., TIO DO RECORRENTE, CUJO PATROCÍNIO FOI ASSUMIDO PELO SR. DR. J..........., M.D. ADVOGADO, CONTRA OS PAIS DO RECORRENTE (O........... E DE M...........) PELO SR. DR. J..........., M.D. ADVOGADO, FOI JULGADA IMPROCEDENTE, COM IGUAL CONFIRMAÇÃO PELO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA (CFR. DOCUMENTOS N.ºS 2 E 4 JUNTOS COM A PETIÇÃO INICIAL);

IV. A FUNDAMENTAÇÃO PARA A IMPROCEDÊNCIA DA PRETENSÃO DE L........... (DEVOLUÇÃO DO PREÇO RECEBIDO DE € 350.000,00 PELA CEDÊNCIA DE QUOTAS NUMA SOCIEDADE COMERCIAL) ASSENTOU, POR UM LADO, NA CIRCUNSTÂNCIA DE OS PAIS DO RECORRENTE, POR ESTAREM DE RELAÇÕES CORTADAS HÁ MAIS DE DEZ ANOS, NÃO TEREM TIDO QUALQUER CONTACTO COM O SEU IRMÃO E CUNHADO (CONFIRMADO PELO PRÓPRIO L........... E EM CLARA OPOSIÇÃO AO QUE O SR. DR. J..........., M.D. ADVOGADO, ALEGOU NA PETIÇÃO INICIAL), PELO QUE NUNCA OCORREU A CONVERSA SOBRE O IMT QUE FUNDAMENTOU O PEDIDO DE L...........;

V. EM CONSEQUÊNCIA, A CONFISSÃO DE L..........., OCORRIDA A 15 DE DEZEMBRO DE 2016, EM QUE CONFIRMOU EXPRESSAMENTE QUE NUNCA TEVE QUALQUER CONVERSA COM OS PAIS DO RECORRENTE, DEMONSTRA QUE O SR. DR. J..........., M.D. ADVOGADO ALEGOU FACTOS SEM QUALQUER CORRESPONDÊNCIA COM A REALIDADE, BEM COMO A PRÓPRIA PETIÇÃO INICIAL NÃO CONTÉM FACTOS DOS QUAIS FOSSE POSSÍVEL EXTRAIR QUE O NÃO PAGAMENTO DO IMT ERA UMA CIRCUNSTÂNCIA ESSENCIAL E DETERMINANTE PARA A CONCLUSÃO DO NEGÓCIO, OU SEJA, QUE ERA UM DOS “MOTIVOS DETERMINANTES DA VONTADE”, CONFORME PREVÊ O ARTIGO 252.º, N.º 1, DO CÓDIGO CIVIL;

VI. O SR. DR. J..........., M.D. ADVOGADO, AINDA ALEGOU QUE A ESCRITURA PÚBLICA DE CESSÃO DE QUOTAS FOI CELEBRADA COM BASE NUMA PROCURAÇÃO QUE L........... OUTORGOU A FAVOR DA FILHA, BEM COMO QUE ESTE NÃO PODIA DESLOCAR-SE PROPOSITADAMENTE A PORTUGAL, DADO RESIDIR NO ESTRANGEIRO;

VII. NA VERDADE, L........... ESTEVE PRESENTE NO DIA DA ESCRITURA, SENDO QUE A PROCURAÇÃO SÓ FOI OUTORGADA NO PRÓPRIO DIA DAQUELA;

VIII. OS PREDITOS FACTOS NÃO PODIAM SER IGNORADOS PELO SR. DR. J..........., M.D. ADVOGADO, MORMENTE POR ENCONTRAREM-SE EM CONTRADIÇÃO OSTENSIVA COM A PETIÇÃO INICIAL E OS DOCUMENTOS QUE A ACOMPANHARAM (CFR. DOCUMENTO N.º 3 JUNTO COM A PETIÇÃO INICIAL), PELO QUE FOI ELABORADA UMA PETIÇÃO INICIAL ASSENTE EM FACTOS FALSOS, DETURPADOS, SEM QUALQUER CORRESPONDÊNCIA COM A REALIDADE E COM O MÓBIL, NA OPINIÃO DO RECORRENTE, DE TENTAR ATEMORIZAR E, BEM ASSIM, PRESSIONAR OS PAIS DESTE TENDO EM VISTA A OBTENÇÃO DE UM ACORDO PARA PAGAMENTO DO IMT;

IX. POR CONSEQUÊNCIA, AO TER PROPOSTO UMA ACÇÃO ASSENTE EM FACTOS SEM CORRESPONDÊNCIA COM A REALIDADE, CONTRÁRIOS, INCLUSIVE, AO CONFESSADO PELO PRÓPRIO CONSTITUINTE, E, BEM ASSIM, SEM SUBSUNÇÃO AO ARTIGO LEGAL QUE SUSTENTAVA A PRETENSÃO (252.º, N.º 1, DO CÓDIGO CIVIL), O SR. DR. J..........., M.D. ADVOGADO, VIOLOU, SALVO MELHOR OPINIÃO E SEMPRE COM O DEVIDO RESPEITO, OS DEVERES CONSAGRADOS NOS ARTIGOS 89.°, 90.°, N.ºS 2, ALÍNEAS A) E B), 100.°, N.º 1, ALÍNEAS A) E B), DO ESTATUTO DA ORDEM DOS ADVOGADOS;

X. PARA MÁRIO AROSO DE ALMEIDA E CARLOS ALBERTO FERNANDES CADILHA, O INTERESSE PESSOAL “(…) TRADUZ-SE NA UTILIDADE, BENEFÍCIO OU VANTAGEM DE NATUREZA PATRIMONIAL OU MERAMENTE MORAL, QUE PODERÁ ADVIR DA ANULAÇÃO DO ACTO IMPUGNADO E QUE NÃO TEM DE CORRESPONDER À TITULARIDADE DE UM DIREITO SUBJECTIVO OU INTERESSE LEGALMENTE PROTEGIDO, MAS TAMBÉM PODE RESULTAR DA SIMPLES INVOCAÇÃO DE UM MERO INTERESSE DE FACTO”. SUBLINHADO NOSSO;

XI. ACRESCE QUE, PARA OS CITADOS AUTORES, “O INTERESSE DIRECTO, POR SUA VEZ, PRESSUPÕE QUE O DEMANDANTE TEM UM INTERESSE ACTUAL E EFECTIVO NA ANULAÇÃO OU DECLARAÇÃO DE NULIDADE DO ACTO ADMINISTRATIVO (…)”.

XII. O INTERESSE PESSOAL DO RECORRENTE NA ANULAÇÃO DO ACTO ADMINISTRATIVO É MORAL, TENDO IGUALMENTE UM INTERESSE DIRECTO NA ANULAÇÃO DO ACTO ADMINISTRATIVO IMPUGNADO;

XIII. A UTILIDADE DIRETA E IMEDIATA DO PEDIDO DE IMPUGNAÇÃO (E, POR CONSEQUÊNCIA, O INTERESSE EM AGIR DO RECORRENTE) AFIGURA-SE PERFEITAMENTE CLARA: PRETENDE-SE QUE SEJA ANALISADO O COMPORTAMENTO DE UM COLABORADOR NA ADMINISTRAÇÃO DA JUSTIÇA E, BEM ASSIM, A RESPETIVA RELEVÂNCIA DE TAL COMPORTAMENTO EM FUNÇÃO DA OSTENSIVA VIOLAÇÃO DE DEVERES CONSAGRADOS NO ESTATUTO DA ORDEM DOS ADVOGADOS;

XIV. O ADVOGADO DEVE ENVEREDAR TODOS OS ESFORÇOS NA DEFESA DOS INTERESSES DO SEU CONSTITUINTE, MAS TAL NÃO SIGNIFICA, PORÉM, QUE POSSA ALEGAR FACTOS DIAMETRALMENTE DISTINTOS DA REALIDADE OU QUE OS ARTICULADOS POSSAM SER UTILIZADOS COMO MEIO DE OBTENÇÃO DE PRETENSÕES INÍQUAS E INFUNDADAS, TAL COMO SUCEDEU NA ACÇÃO QUE PATROCINOU CONTRA OS PAIS DO RECORRENTE;

XV. RELEMBRE-SE QUE ESTÁ EM CAUSA APRECIAR A RELEVÂNCIA DISCIPLINAR DO COMPORTAMENTO DE UM ADVOGADO QUE ALEGOU FACTOS FALSOS E SEM QUALQUER CORRESPONDÊNCIA COM A REALIDADE NUMA PETIÇÃO INICIAL, SOBRETUDO QUANDO O PRÓPRIO CONSTITUINTE O DESMENTIU EM SEDE DE DEPOIMENTO DE PARTE;

XVI. PARA O RECORRENTE, A ABERTURA DO PROCESSO DISCIPLINAR, ENQUANTO CONSEQUÊNCIA LÓGICA DA ANULAÇÃO DO ACTO ADMINISTRATIVO, REPRESENTA A UTILIDADE MORAL QUE RETIRA DA PRESENTE LIDE; COM A ANULAÇÃO DO ACTO ADMINISTRATIVO IMPUGNADO, O RECORRENTE RETIRARÁ O BENEFÍCIO CERTO, IMEDIATO, DA RESPECTIVA ANULAÇÃO, ID EST, O CONSELHO REGIONAL DE DEONTOLOGIA APRECIARÁ A PARTICIPAÇÃO DISCIPLINAR APRESENTADA CONTRA O SR. DR. J..........., M.D. ADVOGADO, A QUAL FUNDA-SE, ENTRE OUTROS, NA ALEGAÇÃO DE FACTOS FALSOS NUMA PETIÇÃO INICIAL;

NA SENDA DO PRECONIZADO POR VIEIRA DE ANDRADE, O PRESSUPOSTO PROCESSUAL DO "INTERESSE EM AGIR" EXIGE "A VERIFICAÇÃO OBJETIVA DE UM INTERESSE REAL E ACTUAL, ISTO É, DA UTILIDADE NA PROCEDÊNCIA DO PEDIDO";

XVII. “O INTERESSE EM AGIR CONSISTE ASSIM NA VERIFICAÇÃO DA NECESSIDADE OU UTILIDADE DA ACÇÃO, SENDO DEFINIDO COMO A NECESSIDADE DE USAR DO PROCESSO, DE INSTAURAR OU FAZER PROSSEGUIR A ACÇÃO. ASSIM, TEM DE CONSIDERAR-SE QUE A SUA VERIFICAÇÃO OCORRE SEMPRE QUE O DEMANDANTE TENHA NECESSIDADE DE INTERVENÇÃO JUDICIAL PARA RECONHECIMENTO DA SUA PRETENSÃO, TAL COMO A CONFIGURA NO EXERCÍCIO DA SUA LIBERDADE DE CONFORMAÇÃO DA ACÇÃO”, ACÓRDÃO DO TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO SUL, DATADO DE 21 DE MARÇO DE 2019, PROCESSO N.º 317/18, DISPONÍVEL PARA CONSULTA EM WWW.DGSI.PT.

XVIII. EM FUNÇÃO DO EXPOSTO, O RECORRENTE É TITULAR, AO ABRIGO DO DISPOSTO NO ARTIGO 55.º, N.º 1, ALÍNEA A), DO CÓDIGO DE PROCESSO NOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS, DE UM INTERESSE PESSOAL, DIRECTO E EM AGIR NA ANULAÇÃO DO ACTO ADMINISTRATIVO IMPUGNADO, DISPONDO, EM CONSEQUÊNCIA, DE LEGITIMIDADE ACTIVA.

NORMAS JURÍDICAS VIOLADAS: ARTIGO 55.º, N.º 1, ALÍNEA A), DO CÓDIGO DE PROCESSO NOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS.”.

Termina pedindo a revogação do saneador-sentença e a anulação do ato impugnado.


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A ora Recorrida, não apresentou contra-alegações, nada tendo dito ou requerido.

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O Magistrado do Ministério Público, notificado nos termos do artigo 146.º do CPTA, não emitiu parecer.

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O processo teve vistos dos Exmos. Juízes-Adjuntos, indo à Conferência para julgamento.

II. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO - QUESTÕES A APRECIAR

Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pelo Recorrente, sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, nos termos dos artigos 635.º, n.º 4 e 639º, n.º 1, 2 e 3, todos do CPC ex vi artigo 140.º do CPTA, não sendo lícito ao Tribunal ad quem conhecer de matérias nelas não incluídas, salvo as de conhecimento oficioso.

A questão suscitada resume-se, em suma, em determinar se a decisão judicial recorrida enferma de erro de julgamento quanto à questão do pressuposto processual da ilegitimidade ativa, em violação do artigo 55.º, n.º 1, a) do CPTA.

III. FUNDAMENTOS

DE FACTO

O Tribunal a quo não deu assentes quaisquer factos.

DE DIREITO

Cumpre entrar no conhecimento do fundamento do recurso.

Erro de julgamento quanto à questão do pressuposto processual da ilegitimidade ativa, em violação do artigo 55.º, n.º 1, a) do CPTA

Vem o Autor recorrer do saneador-sentença que na fase de saneamento da causa conheceu e decidiu da exceção de ilegitimidade ativa, julgando-a procedente e absolvendo a Entidade Demandada da instância.

Sustenta que a decisão recorrida violou o disposto no artigo 55.º, n.º 1, a) do CPTA ao considerar que o Autor não dispõe de um interesse pessoal e direto na lide, carecendo de legitimidade para impugnar o ato impugnado, defendendo ser titular desse interesse.

Invoca que foi instaurada uma ação contra os seus pais que foi patrocinada pelo advogado Dr. J..........., que se baseia em factos falsos, deturpados e sem qualquer correspondência com a realidade, até em contradição com a confissão dos factos do Autor dessa ação, com vista a atemorizar e pressionar os pais do Autor e a obtenção de um acordo, pelo que o Advogado em causa violou os deveres consagrados nos artigos 89.º, 90.º, n.ºs 2, als. a) e b), 100.º, n.º1, als. a) e b), do Estatuto da Ordem dos Advogados.

O Advogado deve enveredar todos os esforços na defesa dos interesses do seu constituinte, mas não significa que possa alegar factos distintos da realidade ou que os articulados possam ser utilizados como meio de obtenção de pretensões iníquas e infundadas, como sucedeu na ação que patrocinou contra os pais do Autor, importando aquilatar se existiu ou não uma violação dos deveres consagrados no Estatuto da Ordem dos Advogados.

Alega ter sido não apenas testemunha no referido processo, mas também, juntamente com o seu irmão, procuradores dos seus pais na abertura de propostas e na escritura pública de cessão de quotas, sendo a outorga da procuração dos pais do Autor um sinal inequívoco de confiança para a realização do ato.

Defende que participou em todo o processo negocial e nos atos judiciais e que tem um interesse moral na anulação do ato impugnado, que é direto.

Está em causa apreciar da relevância disciplinar do comportamento de um advogado que alegou factos e sem correspondência com a realidade numa petição inicial, pois reconhecendo-se que o Autor tem legitimidade ativa, a Entidade Demandada apreciará a participação disciplinar apresentada contra o Advogado a qual se funda na alegação de factos falsos numa petição inicial.

Vejamos.

A questão controvertida consiste em determinar, em face do quadro legal aplicável, se enferma a decisão recorrida de erro de julgamento ao decidir pela falta do pressuposto processual de legitimidade ativa, no âmbito de uma ação administrativa de pretensão conexa com ato administrativo, em que é pedida pelo Autor a anulação do ato impugnado e que seja instaurado processo disciplinar, determinando a absolvição da entidade demandada da instância.

Para efeitos de delimitação da questão de direito colocada a respeito do pressuposto processual de legitimidade ativa importa, antes de mais, proceder à configuração do objeto da causa, relativamente aos seus sujeitos e objeto.

A presente causa respeita a uma ação administrativa de impugnação de ato administrativo instaurada pelo Autor contra a Ordem dos Advogados, impugnando a deliberação do Conselho de Deontologia de Coimbra da Ordem dos Advogados, datada de 02/03/2018, que negou provimento ao recurso e manteve a decisão de arquivamento do processo de apreciação liminar n.º 78/2017-C/AL, em que foi visado o Advogado, Dr. J..........., na sequência da participação disciplinar que contra o mesmo o Autor apresentou, em 14/02/2017.

Essa participação foi objeto de indeferimento, tendo o Autor interposto recurso para o Conselho de Deontologia de Coimbra da Ordem dos Advogados, vindo a ser proferido o ato ora impugnado, que negou provimento ao recurso e manteve a decisão de arquivamento do processo de apreciação liminar.

Pretende o Autor que seja anulado o ato impugnado e seja instaurado processo disciplinar contra o citado Advogado, pela atuação processual que adotou na ação de processo comum que correu termos no Juízo Central de Coimbra, Juiz 1, sob o Processo n.º 6874/14.0T8CBR, instaurada contra os pais do Autor, traduzida na alegação na petição inicial de factos falsos e em contradição com as declarações de parte do próprio autor dessa ação.

Essa ação foi julgada improcedente, tendo a sentença sido confirmada pelo Tribunal da Relação de Lisboa.

Tendo presente o enquadramento fáctico do objeto do presente litígio, pretende o ora Recorrente que este tribunal de recurso se debruce sobre o fundamento da sentença recorrida, de o julgar parte ilegítima para instaurar a presente ação contra a Ordem dos Advogados.

No que respeita à delimitação do objeto da causa, na presente instância foi deduzido o pedido de anulação de ato administrativo, pelo que estamos no quadro de uma ação administrativa impugnatória, cujo regime particular aplicável se encontra previsto nos artigos 50.º a 65.º, para além do regime geral da ação administrativa, previsto nos artigos 37.º a 48.º e da aplicação das disposições fundamentais do Código, consagradas nos artigos 1.º a 35.º do CPTA.

Para o conceito de legitimidade ativa releva o disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 55.º do CPTA, nos termos da qual tem legitimidade para impugnar um ato administrativo quem alegue ser titular de um interesse direto e pessoal, designadamente, por ter sido lesado pelo ato nos seus direitos e interesses legalmente protegidos.

Considerando o conceito de legitimidade previsto no artigo 30.º, n.º 1 do CPC, ele não conduz a resultado diferente, pois o autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar.

Para que o juiz possa conhecer do mérito da causa é preciso que as partes tenham legitimidade para a ação, que o autor e a entidade demandada sejam legítimas, ou seja, que estejam no processo as partes que devam estar, sejam as “partes exatas” – cfr. Antunes Varela, J. Miguel Beleza e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª ed., Coimbra Editora, 1985, pp. 129.

Ser parte legítima na ação significa ter o poder de dirigir a pretensão deduzida em juízo contra a contraparte, de modo que o Autor terá legitimidade se puder juridicamente fazer valer a pretensão em face do demandado, admitindo que tenha direito à pretensão formulada.

Por estar em causa uma referência concreta da legitimidade à ação, a legitimidade já foi designada como legitimatio ad causam, como forma de legitimação para determinada ação, por oposição à legitimatio ad processum, que é a capacidade judiciária – vide Antunes Varela, J. Miguel Beleza e Sampaio e Nora, obra cit., pp. 132.

Assim, “Não basta assim saber quem são as partes (em sentido formal) no processo. Para que o juiz se possa pronunciar sobre o mérito da causa, importa ainda saber quais devem ser as partes em sentido substancial, porque só a intervenção destas em juízo garante a legitimidade para a acção.” – Idem, pp. 132.

“A legitimidade, tal como os restantes pressupostos processuais, constitui um requisito essencial para que o juiz profira decisão, não apenas sobre a causa, mas sobre o mérito da acção. E para tal não basta (…) ser parte em sentido formal; é essencial ser parte em sentido substancial. Não basta, noutros termos, saber quem propôs a acção e contra quem a providência foi requerida; torna-se necessário saber quem devia propor e contra em quem devia ser proposta, para que o juiz possa utilmente conhecer do fundo da causa. E essa resposta só pode ser obtida em face da relação material controvertida.” – Ibidem, pp. 151.

Por isso, se a pessoa que figura na ação como autor não for, perante o direito substantivo aplicável, o titular da relação jurídica que serve de fundamento à pretensão por ele deduzida, ele não é parte legítima.

Daí que a legitimidade consista numa posição da parte perante determinada ação, sendo uma “questão de posição das partes em relação à lide” – Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, I, pp. 74.

Trata-se de saber se o Autor é o sujeito da pretensão formulada, admitindo que a pretensão exista, que se afere nos termos da sua posição subjetiva da pessoa perante a relação controvertida, por ser o titular do direito ou o portador do interesse tutelado pelo direito invocado.

Além de que a legitimidade não se basta com a existência de qualquer interesse na procedência da ação, sendo exigível que o autor tenha um interesse direto em demandar, para o qual é insuficiente um interesse indireto, reflexo ou derivado.

Porque nem sempre é fácil determinar o critério do interesse direto e pessoal na demanda, utiliza-se muitas vezes um critério subsidiário, como sendo titulares de um interesse relevante, os sujeitos da relação material controvertida.

É este o critério geral de legitimidade ativa, previsto no artigo 9.º, n.º 1 do CPTA.

Tendo presente este enquadramento, o CPTA considerou em particular, no disposto na alínea a), do n.º 1 do artigo 55.º do CPTA, como critérios definidores da legitimidade ativa nas ações administrativas de impugnação de atos administrativos:

(i) quem alegue ser titular de um interesse direto e pessoal (1.ª parte),

ou,

(ii) quem tiver sido lesado pelo ato impugnado nos seus direitos ou interesses legalmente protegidos (2.ª parte).

Nos mesmos termos estabelece o artigo 68.º, n.º 1, a) do CPTA para a ação de condenação à prática de ato devido, que tem legitimidade quem alegue ser titular de um interesse legalmente protegido dirigido à emissão do ato.

Decidiu-se na sentença recorrida, de entre o mais, o seguinte:

Ora, atenta a configuração da presente acção, verifica-se que o Autor não só não é destinatário directo do acto impugnado – o qual, respeitando a matéria disciplinar, tem por destinatário imediato o Advogado visado pela queixa –, como não foi parte no processo n.º 6874/14.0T8CBR – do qual foram, alegadamente, partes, o seu tio, na posição de Autor, e os seus pais, na posição de Réus –, não resultando, de resto, da causa de pedir configurada na petição inicial qualquer facto concreto susceptível de configurar uma afectação, por lesão, da sua esfera jurídica pessoal, que resulte dos efeitos do acto ora impugnado.

Na situação dos autos, os factos concretos alegados na petição inicial não permitem, de facto, concluir no sentido de que o Autor retire qualquer utilidade ou vantagem da instauração do processo disciplinar em litígio (interesse pessoal), com imediata repercussão na sua esfera jurídica (interesse directo), sendo certo que, da causa de pedir, não resulta que o Autor tenha sido parte na acção onde, alegadamente, o Advogado visado praticou os factos referidos na participação, nem que o mesmo Advogado tenha alegado quaisquer factos inverídicos imputáveis à sua pessoa, designadamente, com relevância para o desfecho do processo n.º 6874/14.0T8CBR.

Efectivamente, tendo presentes os factos alegados na petição inicial, verifica-se que, subjacentes à presente acção, estão eventualmente interesses dos pais do Autor e, portanto, interesses de terceiros, que não lhe são próprios, não obtendo o mesmo, da procedência dos pedidos formulados, qualquer benefício ou vantagem actual, com repercussão imediata na sua esfera jurídica.

Nesta conformidade, inexistindo qualquer benefício ou vantagem actual que o Autor possa lograr em razão da pronúncia judicial a proferir nestes autos, com imediata repercussão na esfera jurídica, é de concluir que o mesmo não é parte certa na presente acção, razão pela qual é de julgar verificada a excepção dilatória de legitimidade activa e, não sendo tal excepção passível de sanação, é de absolver a Entidade Demandada da instância, abstendo-se o Tribunal de conhecer do mérito da causa, nos termos das disposições conjugadas do artigo 89.º, n.os 2 e 4, alínea e), do CPTA.”.

Este julgamento afigura-se correto, pelo que, é de manter.

No caso do litígio em presença, o Autor além de não ser parte na relação material controvertida que se estabeleceu entre o Advogado visado no processo de apreciação liminar e a Ordem dos Advogados (artigo 9.º, n.º 1 do CPTA), também não é titular de um interesse direto e pessoal na anulação do ato e na condenação à instauração do processo disciplinar ao Advogado em causa, por uma dupla ordem de razões.

O Autor não é titular de um qualquer direito ou interesse legalmente protegido na ação disciplinar e, consequentemente, não tem interesse em impugnar a decisão administrativa que seja tomada no âmbito do processo de apreciação liminar ou mesmo do processo disciplinar, caso este tivesse sido instaurado.

Por maioria de razão, o Autor também não é titular de um direito ou interesse pessoal e direto na impugnação da decisão administrativa de manter a decisão de arquivamento do processo de apreciação liminar, por não ter sido parte no processo judicial em que o Advogado foi constituído e exerceu o respetivo patrocínio judiciário.

Nem se invoque, como faz o ora Recorrente que alegar que participou nesse processo na qualidade de testemunha e nas negociações que ocorreram e que, juntamente com o seu irmão, foi procurador dos seus pais na escritura pública de cessão de quotas.

É manifestamente infundada a alegação do ora Recorrente de que a outorga da procuração dos seus pais para os representarem na referida escritura constitui um sinal inequívoco de confiança neste para a realização do ato, pois a procuração outorgada confere apenas os direitos nela abrangidos, além de se tratar sempre de uma atuação do ora Recorrente em nome e em representação dos direitos e interesses dos seus pais e não do exercício de direitos e interesses próprios do Autor, ora Recorrente.

Por conseguinte, não pode existir controvérsia de que, atenta a configuração da presente ação, nos exatos termos em que foi instaurada pelo Autor e com o objeto que se encontra definido na petição inicial, que o Autor, ora Recorrente carece de legitimidade ativa para vir deduzir a pretensão deduzida.

Nestes termos, tal como bem decidido na decisão recorrida, o Autor, ora Recorrente é parte ilegítima para estar em juízo e como tal, verifica-se a exceção de ilegitimidade ativa.

A ilegitimidade ativa constitui uma exceção dilatória, de conhecimento oficioso, cuja procedência obsta a que o tribunal conheça do mérito da causada, dando lugar à absolvição da instância, segundo o disposto no n.º 2 e na alínea e), do n.º 4, do artigo 89.º do CPTA.

Assim, nenhuma censura há a dirigir à decisão recorrida quando assim decidiu, pelo que é de manter o referido julgamento, não se verificando o erro de julgamento que lhe é apontado, antes procedendo a uma correta interpretação e aplicação dos normativos de Direito.


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Pelo exposto, será de negar provimento ao presente recurso, por não provado o seu respetivo fundamento.

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Sumariando, nos termos do n.º 7 do artigo 663.º do CPC, conclui-se da seguinte forma:

I. Para além do disposto, em geral, no artigo 9.º, n.º 1 do CPTA, o CPTA considerou, em particular, no disposto na alínea a), do n.º 1 do artigo 55.º do CPTA, como critérios definidores da legitimidade ativa nas ações administrativas de impugnação de atos administrativos: (i) quem alegue ser titular de um interesse direto e pessoal (1.ª parte) ou, (ii) quem tiver sido lesado pelo ato impugnado nos seus direitos ou interesses legalmente protegidos (2.ª parte).

II. Nos mesmos termos estabelece o artigo 68.º, n.º 1, a) do CPTA para a ação de condenação à prática de ato devido, que tem legitimidade quem alegue ser titular de um interesse legalmente protegido dirigido à emissão do ato.

III. O Autor além de não ser parte na relação material controvertida que se estabeleceu entre o Advogado visado no processo de apreciação liminar e a Ordem dos Advogados (artigo 9.º, n.º 1 do CPTA), também não é titular de um interesse direto e pessoal na anulação do ato e na condenação à instauração do processo disciplinar ao Advogado em causa.

IV. O Autor não é titular de um qualquer direito ou interesse legalmente protegido à ação disciplinar e, consequentemente, não tem interesse em impugnar a decisão administrativa que seja tomada no âmbito do processo de apreciação liminar ou mesmo do processo disciplinar, caso este tivesse sido instaurado.

V. O Autor também não é titular de um direito ou interesse pessoal e direto na impugnação da decisão administrativa de manter a decisão de arquivamento do processo de apreciação liminar, por não ter sido parte no processo judicial em que o Advogado foi constituído e exerceu o respetivo patrocínio judiciário.


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Por tudo quanto vem de ser exposto, acordam os Juízes do presente Tribunal Central Administrativo Sul, em negar provimento ao recurso, por não provados os seus respetivos fundamentos e em manter a decisão recorrida.

Custas pelo Recorrente – artigo 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC.

Registe e Notifique.

A Relatora consigna e atesta, que nos termos do disposto no artigo 15.º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13/03, aditado pelo artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 20/2020, de 01/05, tem voto de conformidade com o presente Acórdão os restantes Juízes integrantes da formação de julgamento, os Desembargadores, Pedro Marchão Marques e Alda Nunes.


(Ana Celeste Carvalho - Relatora)